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Estudo exploratório sobre análise multimodal da atenção compartilhada

RESUMO

O objetivo deste estudo foi produzir análise multimodal exploratória sobre a atenção compartilhada. Utilizou-se a ferramenta ELAN (EUDICO Language Annotator), software com recursos para sincronização temporal e especiais para modalidades verbal e não verbal, que facilitam a visualização e anotação de contextos interacionais. Foram analisados e transcritos trechos de dez minutos de sessão de avaliação fonoaudiológica de uma criança em investigação para transtorno do espectro do autismo (TEA) e outra, com desenvolvimento típico, pareadas por faixa etária e gênero. Foram investigadas e quantificadas as ocorrências espontâneas de direcionamento do olhar das crianças para: os olhos do interlocutor; os brinquedos e/ou brincadeiras; os olhos do interlocutor – brinquedos (atenção compartilhada). As ocorrências de direcionamento do olhar diferiram entre as crianças de forma quantitativa e qualitativa. A criança com suspeita de TEA não produziu episódio de atenção compartilhada, nem direcionou seu olhar para o interlocutor. Foram 56 ocorrências de direcionamentos de olhar apenas para os brinquedos. A criança em desenvolvimento típico produziu 18 ocorrências de atenção compartilhada, sendo que, em todas as vezes que direcionou o olhar para os olhos do interlocutor, o fez para compartilhar o brinquedo ou brincadeira. Observou-se, ainda, 37 ocorrências de direcionamento do olhar para o brinquedo. A partir da análise exploratória produzida pela ferramenta ELAN, foi possível observar que houve diferença em número de ocorrência e trajetória do olhar entre as duas crianças e verificar que a atenção compartilhada esteve ausente na criança com risco para TEA.

Palavras-chave:
Transtorno Autístico; Comunicação; Linguagem; Criança; Fonoaudiologia

ABSTRACT

The aim of this study was to produce exploratory multimodal analysis on joint attention. We used the ELAN tool: software with resources for temporal and special synchronization for verbal and non-verbal modalities that facilitate the visualization and annotation of interactional contexts. Excerpts of ten minutes of speech and language pathology evaluation of the child with suspected ASD and of another child with typical development matched by age group and gender, were analyzed and transcribed. Spontaneous occurrences of the child's gaze were investigated: a) Towards the interlocutor's eyes. b) Towards toys or play. c) Towards the interlocutor's eyes and toys (Joint Attention). The occurrences of look direction differed between children in a quantitative and qualitative way. The child with suspected ASD did not produce an episode of joint attention, nor did he direct his gaze to the interlocutor. There were 56 occurrences of gazing towards the toys. The typical child produced 18 occurrences of joint attention, and whenever he directed his eyes to the interlocutor's eyes, he did so with the intention of sharing the toy or play. We also observed 37 occurrences of gazing towards the toy or play. From the exploratory analysis produced by ELAN tool, it was possible to observe that there were differences in the number of occurrences and look direction between the evaluated children and to verify that the joint attention was absent in the child with ASD risk.

Keywords:
Autism Spectrum Disorder; Communication; Language; Child; Speech Language Hearing Science

INTRODUÇÃO

A atenção compartilhada é o foco de duas pessoas em um mesmo objeto ou evento, com o propósito de compartilharem uma experiência em comum. É observada quando uma pessoa direciona seu olhar para outro indivíduo, olha ou aponta para um objeto ou evento e depois volta seu olhar, novamente, para o indivíduo(11 Murza KA, Schwartz JB, Hahs-Vaughn DL, Nye C. Joint attention interventions for children with Autism Spectrum Disorder: a systematic review and meta-analysis. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(3):236-51. https://dx.doi.org/10.1111/1460-6984.12212. PMid:26952136.). Déficits na habilidade de atenção compartilhada estão entre os mais fortes preditores de comprometimento do desenvolvimento infantil, em especial no transtorno do espectro do autismo (TEA)(11 Murza KA, Schwartz JB, Hahs-Vaughn DL, Nye C. Joint attention interventions for children with Autism Spectrum Disorder: a systematic review and meta-analysis. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(3):236-51. https://dx.doi.org/10.1111/1460-6984.12212. PMid:26952136.

2 Klin A, Klaiman C, Jones W. Reducing age of autism diagnosis: developmental social neuroscience meets public health challenge. Rev Neurol. 2015;60(Suppl 1):S3-11. PMID: 25726820.
-33 Tamanaha AC, Chiari BM, Perissinoto J. A eficácia da intervenção terapêutica fonoaudiológica nos Distúrbios do Espectro do Autismo. Rev CEFAC. 2015;17(2):552-8. https://dx.doi.org/10.1590/1982-021620156314.
https://dx.doi.org/10.1590/1982-02162015...
).

É consenso que quanto mais precoce e oportuna for a intervenção, melhor será a sua eficácia. Os benefícios da intervenção precoce dependem claramente da detecção precoce, a qual requer que os profissionais inseridos em equipes multiprofissionais saibam como identificar acuradamente as crianças e planejem intervenções adequadas às necessidades individuais.

Nesse sentido, a identificação e investigação subsequente dos sinais de alerta para TEA são tarefas primordiais, especialmente no período da primeiríssima infância. O contato visual reduzido, a ausência de direcionamento do olhar, de atenção compartilhada e do uso de gestos são considerados não apenas sinais de alerta, mas também critérios diagnósticos potenciais para TEA.

Diversos estudos têm sido produzidos para mapear e documentar tais inabilidades, com o uso da ferramenta Eye Tracking (44 Mundy P. A review of joint attention and social-cognitive brain systems in typical development and autism spectrum disorder. Eur J Neurosci. 2018;47(6):497-514. https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720. PMid:28922520.
https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720...

5 Klin A, Schultz S, Jones W. Social visual engagement in infants and toddlers with autism: early developmental transitions and a model of pathogenesis. Neurosci Biobehav Rev. 2015;50:189-203. https://dx.doi.org/10.1016/j.neubiorev.2014.10.006. PMid:25445180.

6 Constantino JN, Kennon-McGill S, Weichselbaum C, Marrus N, Haider A, Glowinski AL, et al. Infant viewing of social scenes is under genetic control and atypical in autism. Nature. 2017;547:340-4. https://dx.doi.org/10.1038/nature22999.

7 Dindar K, Korkiakangas T, Laitila A, Kärnä E. An interactional “live eye tracking” study in autismo spectrum disorder: combining qualitative and quantitative approaches in the study of gaze. Qual Res Psychol. 2017;14(3):239-65. https://doi.org/10.1080/14780887.2017.1290174.
https://doi.org/10.1080/14780887.2017.12...

8 Moriuchi JM, Klin A, Jones W. Mechanism of diminished attention to eyes in autism. Am J Psychiatry. 2017;174(1):26-35. https://dx.doi.org/10.1176/appi.ajp.2016.15091222. PMid:27855484.
-99 Sifre R, Olson L, Gillespie S, Klin A, Jones W, Shultz S. A longitudinal investigation of preferential atention to biological motion in 2 to 24 months old infants. Sci Rep. 2018;8(1):2527. http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-20808-0. PMid:29410484.
http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-208...
). A aplicação do Eye Tracking, em contexto de pesquisa, iniciou-se há duas décadas, com estudos sobre a trajetória do olhar em adultos com TEA de alto funcionamento. Mais recentemente, seu uso tem possibilitado o registro do declínio ou da ausência de marcadores interacionais ao longo do desenvolvimento de crianças diagnosticadas com TEA durante a primeiríssima infância(44 Mundy P. A review of joint attention and social-cognitive brain systems in typical development and autism spectrum disorder. Eur J Neurosci. 2018;47(6):497-514. https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720. PMid:28922520.
https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720...

5 Klin A, Schultz S, Jones W. Social visual engagement in infants and toddlers with autism: early developmental transitions and a model of pathogenesis. Neurosci Biobehav Rev. 2015;50:189-203. https://dx.doi.org/10.1016/j.neubiorev.2014.10.006. PMid:25445180.

6 Constantino JN, Kennon-McGill S, Weichselbaum C, Marrus N, Haider A, Glowinski AL, et al. Infant viewing of social scenes is under genetic control and atypical in autism. Nature. 2017;547:340-4. https://dx.doi.org/10.1038/nature22999.

7 Dindar K, Korkiakangas T, Laitila A, Kärnä E. An interactional “live eye tracking” study in autismo spectrum disorder: combining qualitative and quantitative approaches in the study of gaze. Qual Res Psychol. 2017;14(3):239-65. https://doi.org/10.1080/14780887.2017.1290174.
https://doi.org/10.1080/14780887.2017.12...

8 Moriuchi JM, Klin A, Jones W. Mechanism of diminished attention to eyes in autism. Am J Psychiatry. 2017;174(1):26-35. https://dx.doi.org/10.1176/appi.ajp.2016.15091222. PMid:27855484.
-99 Sifre R, Olson L, Gillespie S, Klin A, Jones W, Shultz S. A longitudinal investigation of preferential atention to biological motion in 2 to 24 months old infants. Sci Rep. 2018;8(1):2527. http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-20808-0. PMid:29410484.
http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-208...
). Embora o Eye Tracking seja considerado um instrumento notório para o rastreamento de TEA(88 Moriuchi JM, Klin A, Jones W. Mechanism of diminished attention to eyes in autism. Am J Psychiatry. 2017;174(1):26-35. https://dx.doi.org/10.1176/appi.ajp.2016.15091222. PMid:27855484.,99 Sifre R, Olson L, Gillespie S, Klin A, Jones W, Shultz S. A longitudinal investigation of preferential atention to biological motion in 2 to 24 months old infants. Sci Rep. 2018;8(1):2527. http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-20808-0. PMid:29410484.
http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-208...
), sabe-se que seu uso em serviços de saúde pública no Brasil ainda é limitado.

Por outro lado, o ELAN (EUDICO Language Annotator)(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
) é um software que possui recursos para sincronização e coordenação temporal e espacial de modalidades de naturezas distintas - verbal e não verbal - que facilitam a visualização e anotação dos recursos interacionais desencadeados em situações de interlocução. Seu acesso é gratuito e, apesar de requerer treinamento, pode ser utilizado por equipes multidisciplinares e em cenário naturalístico de avaliação e tratamento.

O objetivo deste estudo foi produzir análise multimodal exploratória sobre a atenção compartilhada.

A hipótese é a de que a análise multimodal exploratória pode subsidiar a avaliação fonoaudiológica à medida que pode fornecer dados consistentes sobre marcadores interacionais, tais como a atenção compartilhada.

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Trata-se de estudo de caso de uma criança em processo de investigação diagnóstica multidisciplinar no Núcleo de Investigação Fonoaudiológica de Linguagem da Criança e Adolescente no Transtorno do Espectro do Autismo - NIFLINC-TEA do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, devido ao risco para TEA, e que foi pareada por faixa etária e gênero com outra criança em desenvolvimento típico.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP da instituição, sob o número: 0715/2019. Os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consentindo, desta forma, com a realização e divulgação da pesquisa e de seus resultados.

Criança 1 – M.B., 21 meses, sexo masculino

A queixa mencionada pela família referiu-se à regressão de fala.

Segundo relato dos pais, a produção das primeiras palavras ocorreu aos 12 meses, mas, por volta dos 16 meses, eles passaram a notar a diminuição e parada subsequente da emissão de palavras que já estavam estabelecidas no repertório da criança (nomes de pessoas e objetos, verbos de ação). Nesse mesmo intervalo de tempo, notaram redução do contato visual, respostas inconscientes quando a chamavam pelo nome e desinteresse por brinquedos e brincadeiras.

Conforme referido pelos pais, M.B., quando quer algo que esteja fora de seu alcance não aponta, apenas conduz a mão do adulto até o objeto desejado. Reconhece a irmã mais velha, mas não demonstra interesse em interagir, nem em compartilhar brincadeiras ou brinquedos com ela. Tem preferência por empilhar ou enfileirar objetos e, mais recentemente, tem se interessado por números e letras.

Em relação aos dados constitucionais, a mãe relatou que a gravidez foi planejada. Ela fez acompanhamento pré-natal e aos cinco meses gestacionais foi identificado um quadro clínico de pré-eclâmpsia, sendo necessária a realização de parto por cesariana. A criança nasceu prematura extrema, com 27 semanas, pesando 680 gramas. Ficou internada em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) neonatal por 30 dias, evoluindo para tratamento semi-intensivo por dois meses. Teve acompanhamento fonoaudiológico ao longo do primeiro mês de vida, para o desenvolvimento dos movimentos de sucção. Utilizou a mamadeira até os 18 meses. Embora atualmente seja capaz de mastigar diferentes texturas alimentares, a família mencionou certa seletividade alimentar (preferência por certas texturas e consistências de alimentos).

Sobre o desenvolvimento neuropsicomotor, a mãe referiu que M. sustentou a cabeça aos 6 meses e começou a andar somente com 1 ano e 9 meses. Ela não mencionou necessidade de tratamento fisioterapêutico.

Não houve relato de casos de transtornos mentais na família.

Aos 18 meses, em consulta de acompanhamento pediátrico, foi aplicada a escala M-CHAT (Modified Checklist for Autism in Toddlers)(1212 Losapio MF, Ponde MP. Tradução para português da Escala MCHAT para rastreamento precoce do autismo. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2008;30(3):221-9. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082008000400011.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082008...
), cuja pontuação de 18 pontos indicou necessidade de avaliação multidisciplinar, devido ao alto risco para transtorno do espectro do autismo.

Na avaliação fonoaudiológica, observaram-se prejuízos acentuados em todos os comportamentos que regulam e sustentam a interação e a comunicação social, ou seja: redução do contato visual, da atenção compartilhada, do uso de expressões faciais e da responsividade social. Teve dificuldade em interagir com os avaliadores e em engajar-se nas atividades propostas.

Notou-se restrita intenção comunicativa e ausência do uso de gestos indicativos e/ou representativos. Sua fala limitou-se à nomeação de letras e números que estavam adesivados em brinquedos e que foram lidos de forma espontânea.

Não respondeu ao chamado pelo nome, nem à testagem formal da compreensão verbal do teste Avaliação do Desenvolvimento da Linguagem - ADL(1313 Menezes MLN. A construção de um instrumento para avaliação do desenvolvimento da linguagem – ADL: idealização, estudo piloto para padronização e validação [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2003.).

Em relação à exploração lúdica, a criança limitou-se a retirar os brinquedos um a um da caixa; ora os enfileirou, ora fixou sua atenção aos números e letras contidos nesses brinquedos. Não brincou de forma imitativa, funcional, nem simbólica, mesmo com incentivo e modelo dos avaliadores.

Notou-se a presença de movimentos estereotipados (balanceio de mãos) em momentos de contentamento.

Na aplicação da Escala Bayley de Desenvolvimento(1414 Madaschi V, Mecca TP, Macedo EC, Paula CS. Bayley III Scales of Infant and Toddler Development: transcultural adaptation and psychometric properties. Paidéia. 2016;26(64):189-97. https://doi.org/10.1590/1982-43272664201606.
https://doi.org/10.1590/1982-43272664201...
), a criança mostrou índices extremamente baixos nos domínios linguístico e socioemocional; baixo no comportamento adaptativo; limítrofe no motor e, na média, para o cognitivo.

A criança seguiu em investigação diagnóstica multidisciplinar e a família participou de programa de orientação parental, que teve como foco o desenvolvimento de habilidades de interação e comunicação social. Aos 3 anos de idade o diagnóstico multidisciplinar de transtorno do espectro do autismo foi confirmado.

Criança 2 – X.Y., 21 meses, sexo masculino

A mãe relatou que a gravidez foi planejada. Ela fez acompanhamento pré-natal e não houve relato de intercorrências pré-natais, perinatais ou pós-natais. A criança nasceu a termo e o parto foi normal.

Sobre o desenvolvimento neuropsicomotor, a mãe referiu que X.Y. sustentou a cabeça aos 3 meses, sentou-se aos 6 meses e começou a andar com 12 meses, mesmo período em que foi observada a emissão das primeiras palavras. Aos 18 meses a criança iniciou a justaposição de palavras.

Não houve menção na anamnese a casos de transtorno do espectro do autismo ou outros transtornos mentais na família.

Na observação comportamental, mostrou engajamento social apropriado, com uso dos múltiplos comportamentos não verbais que regulam a interação e a comunicação social. Sua exploração lúdica mostrou-se funcional e simbólica.

Na testagem formal da produção e compreensão verbal, os resultados obtidos na aplicação do teste Avaliação do Desenvolvimento da Linguagem – ADL(1313 Menezes MLN. A construção de um instrumento para avaliação do desenvolvimento da linguagem – ADL: idealização, estudo piloto para padronização e validação [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2003.), estiveram dentro dos parâmetros esperados para a faixa etária.

Ambas as crianças não estavam matriculadas em escolas de ensino infantil.

Para a análise exploratória da atenção compartilhada, selecionaram-se trechos de dez minutos de sessão de avaliação fonoaudiológica, na qual se observou a exploração lúdica espontânea das crianças frente aos brinquedos. As sessões foram gravadas com a filmadora posicionada à frente e com distância suficiente para captação dos movimentos da criança e da fonoaudióloga (avaliadora). Posteriormente, o vídeo foi inserido, analisado e transcrito pela ferramenta ELAN(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
). Essa ferramenta foi desenvolvida por psicolinguistas do Max Planck Institute e possui recursos para sincronização e coordenação temporal e espacial de modalidades de naturezas distintas - verbal e não verbal -, que facilitam a visualização e a anotação dos recursos interacionais desencadeados em situações de interlocução.

Foi investigado o número de ocorrências espontâneas do olhar de cada criança em direção:

  1. a

    aos olhos do interlocutor;

  2. b

    aos brinquedos e/ou brincadeiras;

  3. c

    aos olhos do interlocutor – ao brinquedo – de volta aos olhos do interlocutor (atenção compartilhada).

Na Figura 1, pode-se observar a análise comparativa das ocorrências de direcionamento do olhar de ambas as crianças.

Figura 1
Quantidade de direcionamento do olhar de ambas as crianças

As ocorrências de direcionamento do olhar diferiram entre as crianças de forma quantitativa e qualitativa.

A Figura 2 apresenta um exemplo de captura de tela do ELAN na análise da criança com risco para TEA.

Figura 2
Screenshot de tela do ELAN (EUDICO Linguistic Annotator) na análise da criança com risco para Transtorno do Espectro do Autismo

DISCUSSÃO

A atenção compartilhada é o foco de duas pessoas em um mesmo evento ou objeto. Essa habilidade emerge ao longo do primeiro ano de vida e é considerada um sinal de alerta para TEA quando se mostra ausente ou reduzida na criança(11 Murza KA, Schwartz JB, Hahs-Vaughn DL, Nye C. Joint attention interventions for children with Autism Spectrum Disorder: a systematic review and meta-analysis. Int J Lang Commun Disord. 2016;51(3):236-51. https://dx.doi.org/10.1111/1460-6984.12212. PMid:26952136.

2 Klin A, Klaiman C, Jones W. Reducing age of autism diagnosis: developmental social neuroscience meets public health challenge. Rev Neurol. 2015;60(Suppl 1):S3-11. PMID: 25726820.
-33 Tamanaha AC, Chiari BM, Perissinoto J. A eficácia da intervenção terapêutica fonoaudiológica nos Distúrbios do Espectro do Autismo. Rev CEFAC. 2015;17(2):552-8. https://dx.doi.org/10.1590/1982-021620156314.
https://dx.doi.org/10.1590/1982-02162015...
).

Estudos recentes sobre a atenção compartilhada têm sido delineados utilizando a ferramenta Eye Tracking (44 Mundy P. A review of joint attention and social-cognitive brain systems in typical development and autism spectrum disorder. Eur J Neurosci. 2018;47(6):497-514. https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720. PMid:28922520.
https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720...

5 Klin A, Schultz S, Jones W. Social visual engagement in infants and toddlers with autism: early developmental transitions and a model of pathogenesis. Neurosci Biobehav Rev. 2015;50:189-203. https://dx.doi.org/10.1016/j.neubiorev.2014.10.006. PMid:25445180.

6 Constantino JN, Kennon-McGill S, Weichselbaum C, Marrus N, Haider A, Glowinski AL, et al. Infant viewing of social scenes is under genetic control and atypical in autism. Nature. 2017;547:340-4. https://dx.doi.org/10.1038/nature22999.

7 Dindar K, Korkiakangas T, Laitila A, Kärnä E. An interactional “live eye tracking” study in autismo spectrum disorder: combining qualitative and quantitative approaches in the study of gaze. Qual Res Psychol. 2017;14(3):239-65. https://doi.org/10.1080/14780887.2017.1290174.
https://doi.org/10.1080/14780887.2017.12...

8 Moriuchi JM, Klin A, Jones W. Mechanism of diminished attention to eyes in autism. Am J Psychiatry. 2017;174(1):26-35. https://dx.doi.org/10.1176/appi.ajp.2016.15091222. PMid:27855484.
-99 Sifre R, Olson L, Gillespie S, Klin A, Jones W, Shultz S. A longitudinal investigation of preferential atention to biological motion in 2 to 24 months old infants. Sci Rep. 2018;8(1):2527. http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-20808-0. PMid:29410484.
http://dx.doi.org/10.1038/s41598-018-208...
) em situações experimentais. Sabe-se que essa ferramenta é promissora e seu uso tem documentado a ausência de marcadores interacionais em crianças diagnosticadas com TEA, ainda durante a primeiríssima infância(( 44 Mundy P. A review of joint attention and social-cognitive brain systems in typical development and autism spectrum disorder. Eur J Neurosci. 2018;47(6):497-514. https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720. PMid:28922520.
https://dx.doi.org/10.1111/ejn.13720...

5 Klin A, Schultz S, Jones W. Social visual engagement in infants and toddlers with autism: early developmental transitions and a model of pathogenesis. Neurosci Biobehav Rev. 2015;50:189-203. https://dx.doi.org/10.1016/j.neubiorev.2014.10.006. PMid:25445180.
-66 Constantino JN, Kennon-McGill S, Weichselbaum C, Marrus N, Haider A, Glowinski AL, et al. Infant viewing of social scenes is under genetic control and atypical in autism. Nature. 2017;547:340-4. https://dx.doi.org/10.1038/nature22999.) . No entanto sua aplicação ainda é limitada no país.

Por outro lado, o ELAN(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
)é um software que facilita a visualização e anotação dos recursos interacionais desencadeados em situações de interlocução. É multimodal, à medida que analisa comportamentos verbais e não verbais. Seu acesso é gratuito e, apesar de requerer treinamento, pode ser utilizado por equipes multidisciplinares e em cenário naturalístico de avaliação e tratamento.

Para este estudo, foram transcritos pelo ELAN(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
) trechos das sessões de avaliação fonoaudiológica de duas crianças de mesma idade e gênero, mas que mostravam processos de desenvolvimento distintos.

Embora o número total de ocorrências de direcionamento do olhar tenha sido semelhante para ambas as crianças, elas diferiram em sua trajetória e finalidade.

A criança típica produziu um total de 55 ocorrências, sendo 18 delas de atenção compartilhada, pois, todas as vezes que direcionou o olhar para os olhos do interlocutor, o fez com a intenção de compartilhar o brinquedo ou brincadeira. As 37 ocorrências de direcionamento do olhar restantes estiveram relacionadas aos brinquedos e/ou brincadeiras.

A criança com risco para TEA, por sua vez, não produziu episódios de atenção compartilhada, nem direcionou seu olhar para o interlocutor. Todas as suas 56 ocorrências foram na direção dos brinquedos. Portanto, a visualização detalhada do vídeo permitiu confirmar as atipias comportamentais evidenciadas durante todo o processo de avaliação fonoaudiológica.

Sendo assim, a ferramenta ELAN(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
) foi capaz de fornecer subsídios por meio dos recursos de sincronização e coordenação temporal e espacial que comprovaram a trajetória atípica do direcionamento do olhar e a ausência de atenção compartilhada no caso com risco para TEA.

COMENTÁRIOS FINAIS

A partir da análise exploratória produzida por meio da ferramenta ELAN(1010 Wittenburg P, Brugman H, Russel A, Klassmann A, Sloetjes H. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: Proceedings of the 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006); 2006; Genoa, Italy. France: European Language Resources Association (ELRA); 2006. p. 1156-9.,1111 Cruz FM, Ostermann AC, Andrade DNP, Frezza M. O trabalho técnico-metodológico e analítico com dados interacionais audiovisuais: a disponibilidade de recursos multimodais nas interações. Delta. 2019;35(4):e2019350404. https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019350404.
https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X2019...
), foi possível observar que houve diferença em número de ocorrência e trajetória do olhar entre as crianças avaliadas e verificar que a atenção compartilhada esteve ausente na criança com risco para TEA.

  • Trabalho realizado no Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP – São Paulo (SP), Brasil.
  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Processos nº 421937/2018-1 e nº 405091/2018-4. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, Processo nº 2018/07565-7.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2020
  • Aceito
    26 Maio 2022
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