RESUMO
Objetivo Investigar risco de alterações no desenvolvimento infantil de crianças de 18 meses nascidas de mães que foram infectadas pelo vírus SARS-CoV-2 durante a gestação e identificar possíveis atrasos em indicadores de desenvolvimento.
Métodos Participaram da pesquisa 41 crianças que nasceram no período de janeiro de 2021 a agosto de 2021, cujas mães testaram positivo para a Covid-19 durante a gestação. Para a investigação do desenvolvimento linguístico, motor, cognitivo e social foi utilizado o Ages & Stages Questionnaires nos cinco domínios: Comunicação, Coordenação Motora Ampla, Coordenação Motora Fina, Resolução de Problemas e Pessoal/Social. Os dados foram descritos por meio de frequências absolutas e percentuais e por meio de média, desvio padrão, mínimo, mediana e máximo. Para analisar a associação entre as variáveis de interesse foi utilizado o modelo de regressão de Poisson. O pós-teste de Tukey foi utilizado para as comparações múltiplas.
Resultados Os domínios Pessoal/-Social, Coordenação Motora Fina e Resolução de Problemas, neste seguimento, foram os de melhor desempenho. O pior desempenho foi observado no domínio Comunicação, seguido da Coordenação Motora Ampla. A prematuridade, peso ao nascimento, índice de Apgar e necessidade de internação da criança pós-nascimento foram variáveis associadas ao baixo desempenho nos domínios avaliados.
Conclusão Foi observado risco de atraso no desenvolvimento de crianças de 18 meses nascidas de mães que foram contaminadas pelo vírus SARS-CoV-2 durante a gestação. O domínio com maior prejuízo foi o de Comunicação, seguido de alteração da Coordenação Motora Ampla.
Palavras-chave:
Triagem; Diagnóstico precoce; Síndrome pós-Covid-19 aguda; Desenvolvimento da linguagem; Fonoaudiologia
ABSTRACT
Purpose To investigate the risk of child development in 18-month-old children born to mothers who were infected by the SARS-CoV-2 virus during pregnancy and identify possible delays in development indicators.
Methods Children who were born between January 2021 and August 2021, whose mothers tested positive for COVID-19 during pregnancy, participated in the research. To investigate linguistic, motor, cognitive and social development, the Ages & Stages Questionnaires (ASQ-3) was used in the five domains: Communication, Gross motor coordination, Fine motor coordination, Problem solving and Personal/social. Data were described using absolute and percentage frequencies and using mean, standard deviation, minimum, median and maximum. To analyze the association between the variables of interest, the Poisson regression model was used. Tukey's post-test was used for multiple comparisons.
Results The Personal-Social domains, followed by Fine motor coordination and Problem Solving were the best performing. The worst performance was observed in the Communication domain, followed by Gross motor coordination. Prematurity, birth weight, Apgar score and need for hospitalization of the child after birth were variables associated with low performance in the domains assessed.
Conclusion A risk of developmental delay was observed in 18-month-old children born to mothers who were infected with the SARS-CoV-2 virus during pregnancy. The domain with the greatest loss was Communication, followed by changes in Gross Motor Coordination.
Keywords:
Triage; Early diagnosis; Post-acute Covid-19 syndrome; Language development; Speech, language and hearing sciences
INTRODUÇÃO
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, intitulado como Covid-19. Até meados do mês de dezembro de 2023 já haviam sido infectadas 38.210.864 milhões de pessoas no Brasil e mais de 650 milhões no mundo(1). A infecção por SARS-CoV-2 é transmitida principalmente por gotículas. Esse vírus faz parte de uma família de RNA (ácido ribonucleico) vírus, que causa desde um resfriado comum a condições mais graves e até mesmo fatais, com comprometimento pulmonar significativo(2).
Apesar de os primeiros sinais se manifestarem no trato respiratório superior e no tecido pulmonar em decorrência da porta de entrada, outros órgãos que também possuem esse receptor podem ser acometidos e, assim, o indivíduo poderá desenvolver outras manifestações clínicas. Estudos relatam que a falta de oxigênio e a inflamação generalizada também podem danificar de forma aguda os rins, fígado, trato gastrointestinal, causar alterações na cascata de coagulação e sistema hematopoiético, coração e sistema cardiovascular, cérebro e sistema nervoso central, além de outros órgãos(2,3).
Uma preocupação no período de isolamento decorrente da pandemia foi a de gestantes infectadas pelo vírus. Sabe-se que o coronavírus infecta células humanas através da ligação com os receptores das moléculas da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2), sendo expressa em diversos tecidos e órgãos humanos, dentre eles, o útero e a placenta3. No entanto, pouco se sabe sobre a forma de transmissão transplacentária e, portanto, a possibilidade de transmissão materno-fetal de SARS-CoV-2 permanece em discussão(4,5).
Ao contrário do Zika Vírus, que tem uma taxa de transmissão vertical materno-fetal bastante elevada e associada a um espectro bem descrito de manifestações congênitas, incluindo a microcefalia, paralisia cerebral e atrasos no desenvolvimento(4), alguns estudos demonstraram que a transmissão vertical do SARS-CoV-2 é possível, embora rara, podendo ocorrer através da passagem de microrganismos durante a gestação, do contato com sangue e secreções vaginais no momento do parto e pelo leite materno(6). A membrana placentária separa o sangue materno e fetal atuando como barreira protetora, mas alguns vírus e bactérias, por mecanismos desconhecidos, conseguem permeá-la. Fatores como o parto prematuro, baixo peso ao nascimento e malformações fetais estão relacionadas diretamente ao aumento do risco de transmissão vertical(5)
O risco potencial de alterações no neurodesenvolvimento de crianças expostas ao SARS-CoV-2 durante o período pré-natal também já foi evidenciado em alguns estudos(7-9). Segundo estudo(10) os bebês nascidos de mães infectadas pela Covid-19 durante a gestação apresentaram maior risco de atraso no desenvolvimento, destacando-se maior prejuízo nos domínios envolvendo coordenação motora. Já um estudo de revisão sistemática e metanálise sugeriu que o neurodesenvolvimento geral no primeiro ano de vida não foi alterado por exposição gestacional ao SARS-CoV-2, porém, observou-se risco de atraso na comunicação entre os descendentes(11).
Dessa forma, entender o impacto da exposição ao SARS-CoV-2 durante o período gestacional no neurodesenvolvimento infantil é necessário, assim como acompanhar longitudinalmente os filhos de mães que tiveram Covid-19 confirmada, independentemente do período gestacional e da intensidade das manifestações clínicas, uma vez que estes podem apresentar um desconhecido conjunto de comprometimentos futuros, secundários à infecção propriamente, ou como consequência das reações inflamatórias maternas observadas durante a infecção pelo SARS-CoV-2(12).
Sendo assim, o objetivo deste estudo foi investigar o desenvolvimento infantil de crianças de 18 meses nascidas de mães que foram contaminadas pelo vírus SARS-CoV-2 durante a gestação e identificar possíveis atrasos nos indicadores de desenvolvimento.
MÉTODOS
Este estudo foi realizado após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Sorocaba – CEP/UNISO, sob parecer número 5.440.030 (CAAE 57255822.9.0000.5500). Todos os responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), enviado via formulário eletrônico posteriormente ao convite e aceite dos informantes e antes do início da coleta de dados por telefone.
Participaram 41 crianças, nascidas no período de janeiro a agosto de 2021, cujas mães testaram positivo para SARS-Cov-2 durante a gestação e que foram acompanhadas pelo Programa Recém-Nascido de Risco (Programa RN de Risco) de uma policlínica municipal. Além de monitorar as crianças nascidas com critérios de risco para o neurodesenvolvimento, preestabelecidos pelo programa, o objetivo do RN de Risco também foi de acompanhar longitudinalmente todas as 92 mães que estiveram internadas em maternidades conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) nesse período e que testaram positivo para a Covid-19. A amostra foi por conveniência, sendo selecionadas somente as 41 mães que aceitaram o convite para participar do estudo e que testaram positivo para SARS-Cov-2 no período descrito, independentemente do período gestacional em que contraíram o vírus e da gravidade das manifestações apresentadas durante o curso da doença. As mães ou cuidadores primários foram os informantes e responderam aos questionários aplicados, mesmo aquelas menores de idade. A perda amostral se deu devido à negativa diante do convite e à dificuldade em contatar as mães durante o período da coleta.
Os dados referentes à idade materna, idade gestacional, tipo de parto, gênero da criança, índice de Apgar, peso ao nascimento, necessidade de internação prolongada da criança após nascimento e trimestre gestacional de exposição da mãe ao vírus foram obtidos diretamente do banco de dados do Programa RN de Risco, coletados pela equipe de enfermagem que acompanhou as mães durante o período de internação para o nascimento de seus bebês. Demais informações, como presença e/ou ausência de aleitamento materno e aplicação do questionário investigativo, foram realizadas via telefone. Não houve contato presencial com as mães e crianças durante a coleta de dados.
Para investigar o desenvolvimento infantil foi aplicado o Ages & Stages Questionnaires - ASQ-3(13), na tradução para o português, na faixa etária de 18 meses. Trata-se de um instrumento para identificação de risco em crianças de 1 a 66 meses de idade. Os pais/cuidadores primários responderam às questões sobre as habilidades da criança, feitas pelo pesquisador por meio de leitura. Os questionários são formados por cinco blocos, um para cada domínio do desenvolvimento: Comunicação, Coordenação Motora Ampla, Coordenação Motora Fina, Resolução de Problemas e Pessoal/Social. Cada bloco é composto por seis questões, totalizando 30 perguntas. De acordo com as respostas fornecidas, atribui-se uma pontuação: “sim” (10 pontos), “às vezes” (5 pontos) e “ainda não” (0 ponto). Cada bloco poderá ter pontuação máxima de 60 pontos. O escore total do ASQ-3 refere-se à soma dos pontos relativos às respostas dos cuidadores em relação a um ponto de corte predefinido pelo teste. Assim, o resultado da avaliação é classificado como “acima do ponto de corte”, quando o desenvolvimento está dentro do esperado, “perto do ponto de corte”, indicando necessidade de monitoramento e “abaixo do ponto de corte”, já evidenciando prejuízo no desenvolvimento e necessidade de avaliação especializada. Para fins de análise deste estudo, as crianças que obtiveram pontuação “perto do ponto de corte” também foram consideradas “abaixo do ponto de corte”, visto que nas duas situações houve desempenho abaixo do esperado para a idade.
Os dados foram descritos por meio de frequências absolutas e percentuais e de medidas como média, desvio padrão, mínimo, mediana e máximo. Para analisar a associação entre as variáveis de interesse e os desfechos, estimando os riscos relativos correspondentes, foi utilizado o modelo de regressão de Poisson com variância robusta e função de ligação logarítmica(14). Também foi utilizado o pós-teste de Tukey para as comparações múltiplas, no caso de variáveis com mais de dois níveis de resposta. Considerou-se o nível de significância de 5%.
RESULTADOS
A faixa etária materna, tipo de parto e trimestre gestacional em que a mãe foi infectada pela Covid-19 estão descritos na Tabela 1. A maioria das mães tinha menos de 30 anos (média de 28 anos e 2 meses), com idade gestacional média de 37,85 semanas (variando de 30 a 41 semanas) e foi infectada pela Covid-19 no terceiro trimestre de gestação. O tipo de parto com maior prevalência foi o vaginal. Em relação às crianças, os dados percentuais em relação ao gênero, prematuridade, índice de Apgar no primeiro minuto, peso ao nascimento, internação pós-nascimento, resultado de teste de Covid-19, presença de comorbidades e de aleitamento materno também estão descritos na Tabela 1. A maioria era do gênero feminino, com média de idade de 17 meses e 9 semanas, nascidas a termo, com Apgar igual ou maior que 7 no primeiro minuto, peso acima de 2.500 g e com média de 3079 g (±559,10). Não foi realizada a testagem de Covid-19 na maioria das crianças. Em relação às comorbidades, as alterações pulmonares ocorreram em maior porcentagem (19,51%) quando comparadas às demais. Quanto ao aleitamento materno, apenas 5 crianças não foram amamentadas e 37,5% mantiveram o aleitamento por mais de 12 meses.
ASQ-3 (faixa etária de 18 meses de idade)
Os valores médios dos escores obtidos em cada um dos domínios avaliados pelo ASQ-3 foram: Comunicação (33,41±12,57), Coordenação Motora Ampla (47,44±12,8), Coordenação Motora Fina (52,93±13,6), Resolução de Problemas (41,22±14,04) e Pessoal/Social (50,37±8,83).
A Figura 1 demonstra a porcentagem de crianças que apresentou respostas abaixo do ponto de corte estabelecido pelo próprio teste. Em relação ao percentual de respostas abaixo do ponto de corte, o pior desempenho foi observado no domínio Comunicação (53,66%), seguido da Coordenação Motora Ampla (46,34%).
Quanto ao domínio Comunicação (Tabela 2), observou-se que, em média, o risco de estar abaixo do esperado foi 82% maior nas crianças prematuras quando comparadas às crianças nascidas a termo. As crianças que permaneceram internadas pós-nascimento também apresentaram risco de 92% de estarem abaixo nesse domínio quando comparadas às crianças sem necessidade de internação. Os bebês que nasceram com peso menor que 2500 g apresentaram, em média, 2,12 vezes mais risco de baixo desempenho no domínio em questão. Não houve associação das demais variáveis analisadas (gênero da criança, trimestre de gestação, faixa etária materna, índice de Apgar e duração do aleitamento) com o baixo desempenho em Comunicação.
Associação das variáveis de interesse com o desempenho no domínio COMUNICAÇÃO (Ages & Stages Questionnaires-3)
Em relação ao domínio Coordenação Motora Fina (Tabela 3), as variáveis prematuridade e peso ao nascimento apresentaram associação com o baixo desempenho. As crianças prematuras apresentaram, em média, 7,28 vezes mais risco de respostas abaixo do ponto de corte quando comparadas às crianças a termo. Já crianças nascidas com baixo peso (menor que 2500 g) apresentaram 4,8 vezes mais risco de respostas abaixo do ponto de corte do que crianças com peso acima de 2500 g. As demais variáveis analisadas não apresentaram associações. Já no domínio Coordenação Motora Ampla, não foram observadas associações significativas em nenhuma variável analisada (Tabela 4).
Associação das variáveis de interesse com o desempenho no domínio COORDENAÇÃO MOTORA FINA (Ages & Stages Questionnaires-3)
Associação das variáveis de interesse com o desempenho no domínio COORDENAÇÃO MOTORA AMPLA (Ages & Stages Questionnaires-3)
Quanto ao domínio Resolução de Problemas, as variáveis prematuridade, Apgar no primeiro minuto e duração do aleitamento evidenciaram associação com o baixo desempenho. As crianças prematuras apresentaram, em média, 2,91 vezes mais risco de desempenho abaixo do esperado do que as crianças nascidas a termo, assim como as crianças com Apgar menor que 7, que apresentaram 2,13 vezes mais risco do que as crianças com Apgar igual ou maior que 7, ao nascimento. As crianças que não foram amamentadas também apresentaram risco de baixo desempenho no domínio em questão quando comparadas às crianças que mamaram. Não foram observadas associações significativas nas demais variáveis analisadas (Tabela 5).
Associação das variáveis de interesse com o desempenho no domínio RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS (Ages & Stages Questionnaires-3)
No último domínio investigado, Pessoal/Social, apenas foi observada associação da variável Apgar no primeiro minuto com o baixo desempenho. As crianças com pontuação menor que 7 apresentaram uma estimativa média de 9,25 vezes mais risco de pontuação baixa do que as crianças com Apgar igual ou maior que 7 (Tabela 6).
Associação das variáveis de interesse com o desempenho no domínio Pessoal/Social (Ages & Stages Questionnaires-3)
DISCUSSÃO
Características maternas e infantis
As informações científicas sobre o impacto do coronavírus, SARS-CoV-2, na saúde de gestantes, fetos e recém-nascidos ainda estão sendo levantadas e são consideradas, muitas vezes, enviesadas e sem compreensão de forma assertiva. Em uma revisão integrativa(15), os autores relataram que gestantes que contraíram o vírus podem apresentar abortos espontâneos, partos prematuros e sofrimento fetal, incluídos outros fatores maternos sistêmicos desencadeados pela doença. A associação entre a infecção por SARS-CoV-2 e o parto prematuro ainda não está totalmente estabelecida e alguns autores divergem quanto a opiniões e estudos(15,16).
Em estudo metanalítico(17), os autores observaram que o desfecho obstétrico adverso mais frequente da Covid-19 foi o parto prematuro, ocorrendo em 41.1% dos casos. O parto cesariana também foi o mais encontrado. Outro trabalho que selecionou 137 estudos de metanálise sobre os riscos durante a gravidez concluiu que neonatos nascidos de mulheres com infecção por SARS-CoV-2 tiveram maior probabilidade de serem internados em uma unidade de cuidados neonatais após o nascimento, nascerem prematuros ou moderadamente prematuros e com baixo peso(18).
No presente estudo, a maioria das crianças nasceu a termo, com baixa incidência de prematuridade (17%) e de baixo peso (12%). O parto vaginal foi o mais prevalente (56%). Além disso, apenas um número reduzido de crianças apresentou índice de Apgar menor que 7 no primeiro minuto de vida (9,76%) e necessitou de internação após nascimento (19,51%). Tais achados revelam discordância em relação aos dados da literatura pesquisada, indicando um bom estado clínico geral da maioria dos bebês ao nascimento. Sugere-se que tal fato possa ser justificado pelo trimestre gestacional em que as mães contraíram o vírus, já que a maioria das mães participantes deste estudo foram infectadas no terceiro trimestre de gestação, período em que o desenvolvimento fetal já está avançado. Autores descrevem a importância do monitoramento das mães infectadas, principalmente no primeiro e no segundo trimestre gestacional devido ao aumento dos riscos sistêmicos causados pela doença(19).
Em relação ao aleitamento materno, apenas cinco crianças (12,5%) não foram amamentadas em algum momento da vida e a maioria delas (73%) foi alimentada com o leite materno por até 6 meses de vida ou mais. Esse resultado não concorda com os achados de bebês americanos que foram acompanhados do nascimento até os 6 meses de idade e que nasceram de mães com síndrome respiratória aguda grave devido à infecção por Covid-19(20). As taxas de amamentação desse grupo diminuíram em comparação à coorte histórica pré-pandemia (18% versus 36%), embora 97% das mães demonstrassem intenção em amamentar.
Importante ressaltar que as mães do presente estudo faziam parte de um programa municipal que acompanha gestantes de risco e que incentiva os cuidados pré, peri e pós-natais. Em razão de os nascimentos terem ocorrido em um hospital gerenciado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o incentivo aos partos vaginais e à amamentação também foi observado nesse público, podendo justificar os resultados encontrados.
Além disso, ao nascer, o bebê estabelece uma relação direta com a mãe por meio do aleitamento materno. Durante esse processo, diversas funções se desenvolvem, como os reflexos orais de alimentação e o início do processo cognitivo linguístico, e ambos influenciarão diretamente o desenvolvimento global de cada criança(21,22).
Ages & Stages Questionnaires ASQ-3 (18 meses)
As experiências maternas e perinatais influenciam a saúde da criança nos seus primeiros anos de vida. Embora as infecções virais durante a gravidez possam prejudicar o desenvolvimento infantil, pouco se sabe sobre os efeitos da exposição materna à Covid-19 durante a gravidez, no desenvolvimento global e socioemocional de crianças(9).
No atual estudo observou-se risco de alteração no domínio Comunicação em 22 crianças (53,66%), significativamente associado à prematuridade, histórico de internação após nascimento e baixo peso ao nascer. A prematuridade é considerada um fator de risco importante para o desenvolvimento neuropsicomotor. Existem inúmeros estudos na área do desenvolvimento infantil que investigam a associação entre o nascimento pré-termo e prejuízos no desenvolvimento, englobando as defasagens motoras, cognitivos e linguísticas. Esses domínios são interdependentes, ou seja, cada um deles influencia e é influenciado pelos demais(23).
O desenvolvimento cognitivo-linguístico pode ser afetado por diversas intercorrências ao longo dos períodos gestacionais, perinatal e/ou pós-natal, dentre as quais, a prematuridade é um fator de risco para a alteração linguística(24). Segundo a literatura, esse atraso é decorrente da restrição de crescimento intrauterino, do aumento do risco de mortalidade, de disfunções cognitivas e da elevação da frequência de morbidade neurológica, até formas sutis de atraso de desenvolvimento(25).
No presente trabalho, também foi encontrado risco de alteração no domínio Coordenação Motora Ampla, com 19 crianças apresentando desempenho abaixo do esperado. A coordenação motora fina, embora abaixo do esperado em apenas cinco crianças do estudo, foi influenciada pela prematuridade e baixo peso ao nascer. Sabe-se que no terceiro trimestre da gestação o sistema nervoso central do feto passa por uma rápida sequência de maturação e a interrupção desse processo em razão do nascimento pré-termo gera comprometimentos nas estruturas e funções subjacentes ao comportamento humano. Isso pode gerar déficits no processamento e integração sensório-motora, desempenho inferior em tarefas de habilidades motora fina e grossa, atraso no desenvolvimento da integração visomotora, coordenação bimanual e lateralidade(25).
Alguns trabalhos investigaram o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças nascidas de mães infectadas pela Covid-19 durante a gestação. Autores(10) analisaram 222 crianças aos 12 meses de vida, filhas de mães infectadas pela SARS-CoV-2 durante a gestação e observaram que os distúrbios do desenvolvimento da função motora ou da fala e linguagem são mais comuns nessa população. Além disso, essas alterações foram mais frequentes em mães infectadas no terceiro trimestre de gestação, assim como ocorreu neste estudo.
Estudo de coorte longitudinal de 57 bebês com exposição pré-natal ao SARS-CoV-2 na China identificou déficits no domínio socioemocional nos testes de neurodesenvolvimento aos 3 meses de idade(26). Em outro estudo, no qual 272 mães de bebês nascidos durante a pandemia (expostos e não expostos ao SARS-CoV-2 durante a gravidez) preencheram o questionário ASQ-3, na idade de 6 meses, foram encontrados déficits nos domínios Coordenação Motora Ampla, Coordenação Motora Fina e Pessoal/Social em ambos os grupos. Os autores sugerem que os déficits podem ser produto da gravidez durante a própria pandemia, ao invés da exposição ao SARS-CoV-2 em si(8).
Estudo brasileiro(9) realizado com 56 lactentes, de 1 a 12 meses de idade, sendo 27 nascidos de mães com Covid-19 durante a gravidez, encontrou risco de atraso no desenvolvimento motor em 15 bebês (12 no grupo Covid-19) e 36 com risco de alteração comportamental (22 no grupo Covid-19).
Em metanálise que realizou uma síntese de dez trabalhos sobre o efeito da exposição intrauterina ao SARS-CoV-2 no desenvolvimento e comportamento infantil não encontrou evidências que confirmem a associação entre a exposição gestacional ao SARS-CoV-2 e atrasos no neurodesenvolvimento de crianças até os 12 meses de idade(27). No entanto, o trabalho indicou, por meio do Ages and Stages Questionnaires-Third Edition (ASQ-3), que a exposição gestacional afetou negativamente as habilidades motoras finas e de resolução de problemas. No presente estudo, esses dois domínios não foram os mais afetados, não confirmando, portanto, a literatura pesquisada. O fato de o grupo amostral deste estudo ter idade mais avançada do que as crianças dos trabalhos já publicados pode justificar o maior comprometimento do domínio Comunicação, visto que é a partir dos 18 meses que o desenvolvimento da linguagem emerge significativamente com o aparecimento da fala para expressar suas necessidades(28) e as demandas dessa área começam a ser mais facilmente notadas. Além disso, o estresse materno associado à pandemia, as restrições de socialização das crianças e o confinamento prolongado no primeiro ano de vida também podem ter levado ao menor desempenho nos domínios relacionados à Comunicação e Coordenação Motora Ampla.
Este estudo apresentou dados preliminares importantes. No entanto, possui algumas limitações como a ausência de um grupo controle de crianças não expostas à Covid materna, falta de dados sobre a condição socioeconômica da família e sobre a gravidade da infecção materna durante a contaminação por Covid-19, recentemente evidenciada como associada ao risco de parto prematuro(29), além de um tamanho amostral reduzido. Tal temática necessita de estudos ampliados, mais robustos e com menos fatores de confusão para a compreensão real do impacto no desenvolvimento das crianças nascidas de mães infectadas pela Covid-19 durante a gestação.
CONCLUSÃO
Foi observado risco de atraso do desenvolvimento nos domínios envolvendo Comunicação e Coordenação Motora Ampla de crianças de 18 meses de idade nascidas de mães infectadas por Covid-19 durante a gestação. Esses resultados sugerem a importância de acompanhamento longitudinal de crianças que foram expostas ao vírus durante a gestação e a necessidade de mais estudos que contemplem essa relação.
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Trabalho realizado no Curso de Fonoaudiologia, Universidade de Sorocaba – UNISO – Sorocaba (SP), Brasil.
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Financiamento: Nada a declarar.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Fev 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
13 Jul 2024 -
Aceito
11 Dez 2024


Legenda: ASQ-3 = Ages & Stages Questionnaires - 3