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Família, parentesco espiritual e estabilidade familiar entre cativos pertencentes a grandes posses de Minas Gerais século XIX

Resumos

Este artigo analisa as possibilidades de convívio familiar entre cativos pertencentes a três abastadas famílias escravistas na Zona da Mata Mineira, região de plantation cafeeira no século XIX. O cruzamento de vários tipos de fontes concernentes a essas três famílias possibilitou "seguir" alguns de seus cativos e suas relações familiares. As propriedades estudadas possibilitaram aos cativos um convívio comunitário, bem como a constituição de família em suas "múltiplas formas". As relações de parentesco espiritual permitiram conhecer como se estruturaram as redes de solidariedade e reciprocidade daqueles indivíduos. Os cativos daquelas três posses tiveram a possibilidade de manter certa estabilidade de seus laços afetivos e espirituais, mesmo após a partilha dos bens de seu senhor, estabelecendo vínculos espirituais e consanguíneos com indivíduos de diferentes status sociais.

família escrava; apadrinhamento; estabilidade; grandes posses


This article examines the possibilities of family life among captives of three wealthy slave-holding families in the forest region of Minas Gerais [Zona da Mata Mineira], which was an area of thriving coffee plantations during the nineteenth century. Utilizing diverse types of documentation, the paper examines the lives of these families' slaves and their family structures. The data reveal that the captives were able to live together and that they created family environments in a variety of ways. Relations of symbolic (spiritual) kinship point to the existence of networks of solidarity and reciprocity. The captives of the three families studied maintained some stability in their emotional and spiritual ties, even after the division of property of his master, establishing ties, spiritual and consanguineous, with individuals of different social status.

slave family; godparents; stability; large slaveholding


  • 1
    1 Para uma análise acerca da herança africana e uma crítica sobre o grau de distanciamento dos grupos etnolinguísticos centro-africanos, conferir: Robert Slenes, "Malungu, Ngoma vem!: África encoberta e descoberta no Brasil", Revista USP, n. 12 (1991-92), pp. 48-67.
  • 2
    2 Robert Slenes, Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 147.
  • 3
    3 Slenes, Na senzala uma flor, p. 147.
  • 6 Fabio Wilson Amaral Pinheiro, "O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809 c.1830)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007).
  • Afonso de Alencastro Graça Filho e Fábio Carlos Vieira Pinto, "Tráfico e famílias escravas em Minas Gerais", in Andréa Lisly Gonçavles e Valdei Lopes de Araújo (orgs.), Estado, região e sociedade: contribuições sobre história social e política (Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008).
  • Marcos Ferreira de Andrade, Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro Minas Gerais Campanha da Princesa (1799-1850), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
  • Robert Slenes, "A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)", in Douglas Cole Libby e Júnia Ferreira Furtado (orgs.), Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX (São Paulo: Annablume, 2006).
  • 7 Isabel Cristina Ferreira dos Reis, "A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888" (Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2007).
  • 8 Slenes, "A árvore de Nsanda", p. 276.
  • 9 Slenes, "A árvore de Nsanda", p. 276.
  • 10 Slenes, "Malungu, Ngoma vem!", p. 55.
  • 13 Sobre essa fonte, seus cuidados e possibilidades ver Robert Slenes, "Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX", Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16 (1988), pp. 189-203,
  • 14 Auguste de Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, Paris: Grimbert e Dorez, 1830, p. 97.
  • 15 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, p. 98
  • 16 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, p. 99.
  • 17 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, pp. 98-9.
  • 18 Saint-Hilaire, Voyage dans les provinces, p. 99.
  • 19 Fazendo uso de conceitos etnográficos, Pratt afirmou que, nas regiões de zona de contato, ocorre o fenômeno da transculturação, quando o grupo subordinado seleciona o que e o modo como absorverá elementos da cultura dominante. Mary Louis Pratt, Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação, Bauru: Edusc, 1999.
  • 20 Sandra Lauderdale Graham, Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • 21 Alida Metcalf encontra um percentual de 93% de escravos casados, pertencentes ao mesmo senhor, em Santana do Parnaíba (SP). Alida C Metcalf, "A família escrava no Brasil colonial: um estudo de caso em São Paulo", in Sérgio Odilon Nadalin et alii (orgs.), Historia e população: estudos sobre a América Latina (São Paulo: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados, 1990);
  • Iraci Del Nero da Costa, Robert Slenes e Stuart Schwartz, "A família escrava em Lorena (1801)", Estudos Econômicos. Demografia da escravidão, v.17, n. 2 (1987);
  • Robert Slenes, "Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)", Estudos Econômicos, v.17, n. 2 (1987).
  • 22 Slenes, "Escravidão e família", p. 218. De acordo com Bacellar e Scott, "Em Itu, os escravos casados chegavam a compor 37% do total em 1808, mantendo, para o total das três datas analisadas [1798, 1808 e 1818], uma média de quase 31%. Nas vilas de economia de abastecimento, os casados, embora em percentuais um pouco menores, também compunham parte considerável do conjunto: 22%, em 1798, 32%, em 1808 e 28%, em 1818. Se levados em conta somente os escravos de 7 anos excluindo-se assim a faixa em que não poderia haver indivíduos casados as porcentagens elevam-se muito, ultrapassando os 40% em Itu e os 35% nas demais vilas. Caso também sejam excluídos os escravos da faixa etária 8 a 14, os casados ultrapassariam o índice de 50% em ambas as áreas." Carlos de Almeida Prado Bacellar e Ana Silvia Volpi Scott, "Sobreviver na senzala: estudo da composição e continuidade das grandes escravarias paulistas, 1798-1818", in Sérgio Odilon Nadalin et alii (orgs.), História e população, p. 214.
  • 23 Brenda E. Stevenson, Life in Black and White. Family and Community in Slave South, New York: Oxford University Press: 1996.
  • 24 Ann Patton Malone, Sweet Chariot: Slave Family and Household Structure in Nineteenth-Century, Louisiana: Chapel Hill & London, 1992.
  • 27 Rômulo Andrade, "Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX" (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1995), p. 276.
  • 32 Tânia M. G. N. Kjerfve e Silvia M. J. Brugger, "Compadrio: relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas (Campos, 1754-1766)", Estudos Afro-Asiáticos, n. 20 (1991).
  • 33 Stuart Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • 34 José Roberto Góes, O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, Vitória: Lineart, 1993, p. 105.
  • 35 Stephan Gudeman e Stuart Schwartz, "Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII", in João José Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil (São Paulo: Brasiliense, Brasília CNPq, 1988);
  • Roberto Guedes Ferreira, "Na pia batismal família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2000);
  • Tarcísio Rodrigues Botelho, "Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais no século XIX" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1994);
  • Maria de Fátima das Neves, "Ampliando a família escrava";
  • Tânia M. G. N. Kjerfve e Silvia M. J. Brugger, "Compadrio: relação social";
  • Ana Lugão Rios, "Família e Transição" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 1990), pp. 47-63;
  • Góes, O cativeiro imperfeito; Stanley Stein, Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba, com referência especial ao município de Vassouras, São Paulo: Brasiliense, 1961;
  • Vitória Schettini Andrade, "Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé (1852-1888)" (Dissertação de Mestrado, Universidade Severino Sombra, 2006).
  • 37 Com relação à incorporação do nome/sobrenome do senhor por parte dos libertos, os autores se dividem entre aqueles que não vislumbram esta hipótese e entre os que apoiam a hipótese de que eles associem os nomes e os sobrenomes. No primeiro caso, ver Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
  • Para o segundo, conferir Jean Hebrard, "Esclavage et dénomination: imposition et appropriation d'um nom chez lês esclaves de la Bahia au XIXª siecle", Cahiers du Brésil Contemporain, n. 53/54 (2003).
  • 38 Graham, Caetana diz não, pp. 73-5.
  • 39 Em Vila Rica, em 1804, Ramos constata a presença de 2% de filhos de escravas casadas legalmente perante a Igreja; na freguesia de São José da Cidade do Rio de Janeiro, entre 1802 e 1821, Ferreira encontra 6,8%; Brugger analisando São João Del-Rey, entre 1730 e 1850, encontra um máximo de 19,72% de crianças escravas legítimas. Donald Ramos, "City and Country: The Family in Minas Gerais, 1804-1838", Journal of Family History, v.3, n.4 (1986);
  • Roberto Guedes Ferreira, "Na pia batismal família e compadrio";
  • Silvia Maria J. Brugger, "Legitimidade, casamento e relações ditas ilícitas em São João Del Rei (1730 - 1850)", Diamantina: Anais do IX Seminário sobre Economia Mineira - CEDEPLAR-UFMG, 2000.
  • 40 Eni de Mesquita Samara, "A família negra no Brasil: escravos e libertos", Anais do VI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Olinda: ABEP, 1988, p. 15.
  • 41 Elisabeth Anne Kuznesof, "Ilegitimidade, raça e laços de família no Brasil do século XIX: uma análise da informação de censos e de batismos para São Paulo e Rio de Janeiro", in Sérgio Odilon Nadalin et alii (orgs.), História e população, p. 173.
  • 42 Eliane Cristina Lopes, O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII, São Paulo: Annablume/FAPESP, 1999, p. 205.
  • 43 H. E. Lamur, "A família escrava no Suriname colonial do século XIX", Estudos Afro-Asiáticos, n. 29 (1996), p. 109.
  • 44 Segundo a pesquisadora: "[...] a primeira seria a presença do amor ou de preferências sexuais fortes; a segunda, e talvez a mais provável para a maioria dos casos seria o interesse de alguns homens, despossuídos, em ter acesso a terras dos donos das escravas; uma terceira poderia ser a existência de um mercado matrimonial, com uma menor proporção de mulheres livres/forras e disponíveis para o casamento." Sheila Siqueria de Castro Faria, A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XIX), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 317.
  • Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da Costa puderam perceber que em Vila Rica, entre os anos de 1727-1826, houve um número significativo desses enlaces matrimoniais. De um total de 1.591 casamentos, 200 deles envolveram um indivíduo livre e outro escravo o que equivale a 12% do total. Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da Costa, "Vila Rica: nota sobre casamentos de escravos (1727-1826)", África, n. 4 (1981).
  • Em Santana de Parnaíba (1775-1820), Metcalf encontrou 20% de casamentos envolvendo escravos e pessoas livres Alida C. Metcal, "Vida familiar dos escravos em São Paulo no século XVIII: o caso de Santana de Parnaíba, São Paulo", Estudos Econômicos, v. 17, n. 2 (1987), p. 237.
  • 45 Graham, Caetana diz não, p.153.
  • 46 Slenes, Na senzala uma flor;
  • Costa, Slenes e Schwartz, "A família escrava em Lorena (1801)".
  • 47 Slenes, Na senzala uma flor, p. 72.
  • 48 Malone, Sweet Chariot.
  • 49 Herbert Gutman, The Black Family in Slavery and Freedom, New York: Pantheon, 1976.
  • 50 Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 c.1850, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 116.
  • 51 Cristiany Miranda Rocha, "Gerações da senzala: famílias e estratégias escravas no contexto dos tráficos africano e interno, Campinas" (Tese de Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2004).
  • 52 Cristiany Miranda Rocha, Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX, Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
  • 53 Rocha, "Gerações da senzala".
  • 54 Rocha, "Gerações da senzala", p. 57. Esta hipótese já havia sido levantada por Slenes, Na senzala uma flor.
  • 55 Rômulo Andrade, "Limites impostos a escravidão", pp. 365-66.
  • 56 Juliana Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista: Batatais, 1851-1887" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2006), p. 240.
  • 57 Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista", p. 241.
  • 58 Garavazo, "Riqueza e escravidão no Nordeste Paulista", p. 243.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2009
  • Aceito
    16 Jun 2011
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