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Reinventar a psicanálise

RESENHAS

Reinventar a psicanálise

Betty B. Fuks

Psicanalista; professora da PUC-Rio e Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ). betty.fuks@gmail.com

Lacan e a formação do psicanalista, organizado por Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, 290 p.

Ao final da redação de Totem e tabu, Freud se pergunta sobre os modos pelos quais uma herança arcaica — os traços de memória arrastados pelo fluxo caudaloso do tempo e perdidos entre as ruínas dos séculos —, é transmitida de uma geração à outra. Ao encontrar a resposta em Goethe ("Aquilo que herdastes de teus pais, conquista-o para fazê-lo seu"), interpreta o verbo ‘conquistar’ ao pé da letra: despertado por um acontecimento atual, o legado da geração antecedente, sofre um processo de re-atualização, isto é, é reescrito e re-significado pela geração procedente. Sobre a autoridade da literatura, Freud concebe um imprevisível princípio de transmissibilidade que não o da natureza: o princípio de operação recorrente. Trata-se de uma operação de retorno a um ponto de origem que, paradoxalmente, originará uma outra montagem da narrativa oral, a história que sustenta e leva a termo a transmissão.

A idéia de que a transmissão da cultura é efeito de uma temporalidade complexa que envolve a reescrita do passado no presente com vistas ao devir, leva Lacan a propor o princípio de operação recorrente à transmissão da psicanálise. Cada analista precisa reinventar, a partir do que conseguiu retirar do fato de ter sido analisando por algum tempo, o modo pelo qual a psicanálise pode durar. ‘Reinventar’ designa o movimento de retorno à origem para saltar em direção ao futuro. Assim, depois de Lacan, o devir da psicanálise passa a ser garantido pela formação analítica, desde que esta se faça conforme os princípios da descoberta freudiana.

Marco Antonio Coutinho Jorge, conhecido por sua luta permanente em transmitir o legado freudiano, lança esta coletânea de textos. Deve-se reconhecer que, em meio à confusão instalada pela busca de regulamentação da prática psicanalítica, um livro-testemunho da história antiga e recente da especificidade da experiência analítica e que inclui investigações sobre o tripé clássico da formação do analista — análise pessoal, ensino teórico e supervisão clínica — merece saudações. Sobretudo porque o organizador, na escolha dos textos, partiu do princípio de que Lacan não rompeu, em nenhum momento, com o tripé que sustenta a formação, "mas deu a ele maior consistência, ao promover intervenções radicais em cada um de seus segmentos" (p.9).

Na primeira seção do livro, Alain Didier-Weill faz uma análise riquíssima dos três textos que balizaram a posição de Lacan quanto à formação do analista. Catherine Millot traz um amplo panorama do interesse da comunidade psicanalítica pela questão da formação do analista, desde os tempos de Freud. Elisabeth Roudinesco identifica o mal-estar contemporâneo dos analistas frente ao empobrecimento intelectual e ao abuso de poder das grandes instituições psicanalíticas. Os textos de Ona Nierenberg e de Paola Mieli revelam os impasses, alguns deles bastante kafkianos, diga-se de passagem, sobre os critérios da formação psicanalítica nos Estados Unidos. O leitor toma conhecimento das propostas do Consórcio Psicanalítico, formado por quatro grandes associações psicanalítica norte-americanas que, sob o título de "Critérios para a formação analítica", se tornaria o parâmetro de acordo com o qual cada instituição seria formalmente reconhecida pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos. Mieli sustenta que, malgrado as boas intenções do Consórcio, tais critérios estão absolutamente distantes da concepção da psicanálise como Freud a entende.

À luz do ensaio "A questão da análise leiga", Ana Vicentini de Azevedo revê alguns projetos nacionais e internacionais de regulamentação da formação e da prática do analista. Coutinho Jorge faz uma articulação entre os elementos da formação do analista, para pensar de que modo Lacan questionou a tradição clássica da formação e, a partir daí, empreende uma reflexão inédita sobre a questão da transmissão da psicanálise.

"Análise" — título da segunda seção — congrega textos muito variados, assinados por autores estrangeiros e brasileiros. Se os textos de Jean Michel Vivès, Nadiá Ferreira, Jean Charmoille, Sonia Leite e Lucia Perez abordam questões que concernem às vicissitudes do desejo do analista e da análise, os artigos de Teresinha Costa e Claude Dumézil tratam de resgatar o lugar da criança na experiência analítica. Estes textos "fora de lugar" dão, a meu ver, maior consistência ao tema. Indicam que a escrita analítica, tal qual a prática clínica, está também comprometida com a emergência do outro.

Na terceira sessão — "Ensino" — o artigo de Denise Maurano mostra como o ensino da psicanálise nas universidades, embora legítimo e muitíssimo preciso, esbarra no ponto intransponível da formação do analista. Tania Rivera, na esteira de Lacan, aproxima o ato de reinventar a psicanálise ao ato da escrita e do fazer do artista. O texto de Philippe Julien ganha atualidade e pertinência, ao propor que a transmissão da psicanálise consista na instauração de duas passagens: uma do analisando, que se torna analista em sua prática; outra do analista, que se torna analisando em público, isto é, quando dá conta do saber psicanalítico num lugar de comunicação e partilha.

Por último, a apresentação do tema da "supervisão". O texto de Laéria Fontenele representa um esforço de buscar os fundamentos da supervisão, articulando o universal da teoria ao particular da clínica. Moustapha Safouan analisa, com muita presteza, os efeitos da supervisão sobre o reinventar da psicanálise. Fechando com chave de ouro, Coutinho Jorge nos lembra de que forma Lacan incluiu a supervisão no tempo de cada sujeito em formação, renovou o estatuto do dispositivo dentro da Escola e lhe conferiu um relevo fundamentalmente analítico, diverso do mero controle proposto pela IPA (International Psychoanalytical Asssociation, na sigla em inglês).

Recebida em 24/6/2007.

Aprovada em 18/7/2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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