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A VERDADE FORMAL DA CIÊNCIA MODERNA E SUA RELAÇÃO COM A ANGÚSTIA

THE FORMAL TRUTH OF MODERN SCIENCE AND ITS RELATION TO ANXIETY

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo discutir duas relações, destacadas por Lacan em uma coletiva de imprensa de 1974, entre ciência moderna, o real e a angústia: (a) uma, que se refere à manipulação laboratorial de bactéria; e (b) outra, da qual a primeira é dependente, que diz respeito aos impactos dos gadgets. Essa segunda relação remete às elaborações dos neologismos “aletosfera” e “latusa”, para indicar o estatuto de verdade que está envolvido na “atmosfera” e nas objetivações científicas. Esses termos originais, todavia, não têm por fim desprestigiar os avanços científicos, mas o de demonstrar teoricamente que tais avanços também implicam consequências subjetivas.

Palavras-chave:
Lacan; ciência; psicanálise; “aletosfera”; “latusas”

Abstract:

This article aims to discuss two relationships, highlighted by Jacques Lacan in a 1974 press conference, between modern science, real and anxiety: (a) one, which refers to the laboratory work on bacteria; and (b) another, reliant on the former, which concerns the impact of gadgets. This second relation refers to the elaboration of the “alethosphere” and “lathouse” neologisms, to indicate the status of truth that is involved in the scientific “atmosphere” and objectivations. However, these original terms are not intended to discredit scientific advances, but to theoretically demonstrate that such advances also imply subjective consequences.

Keywords:
Lacan; science; psychoanalysis; “alethosphere”; “lathouses”

INTRODUÇÂO

Este artigo tem por objetivo explorar duas relações entre a ciência moderna, o real e a angústia, apontadas por Jacques Lacan em uma coletiva de imprensa de 1974 (LACAN, 1974LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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/1975; 1975[1974]/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10)). São elas: (a) a preocupação que o autor levanta acerca do manuseio de bactérias em laboratórios (LACAN, 1974LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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/1975, p. 10-11; 1975[1974]/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 61-62); e (b) a interação dos sujeitos com as objetivações científicas, como os gadgets (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 22; 1975[1974]/2005, p. 77-78), mas também abordadas por ele a partir dos neologismos “aletosfera” e “latusa” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 152-154, 174, 179).

A referida coletiva de impressa foi concedida a jornalistas italianos em 29 de outubro de 1974, por ocasião do 7º Congresso da Escola Freudiana de Paris, no Centro Cultural Francês, em Roma. Originalmente, a entrevista foi publicada no ano seguinte, sob o título Coletiva de imprensa do doutor Jacques Lacan, em 29 de outubro de 1974 no Centro Cultural Francês (Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français) (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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). Como se percebe, trata-se de um título genérico que nada sinaliza, para o leitor, sobre o seu conteúdo. Talvez isso faça sentido, uma vez que, nessa entrevista, o autor discorre de maneira breve e dispersa sobre vários assuntos: o triunfo da religião e o fracasso da psicanálise, as posições (ou profissões) insustentáveis (como educar, governar e analisar), a angústia dos cientistas de laboratório, a definição do “real” como “o que não funciona”, as relações entre o versículo “No princípio era o Verbo” e o parlêtre, entre o sintoma e o real, a ciência e o real e, finalmente, entre os gadgets e o real.

Em 2005, essa entrevista foi reeditada por Jacques-Alain Miller, e recebeu outra rubrica, então nada genérica: “O triunfo da religião” (LACAN, 1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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[1974]/2005). Por certo, Lacan comenta, todavia de maneira breve, o assunto do “triunfo da religião”. O curioso é que o autor argumenta que há uma relação intricada entre o triunfo da religião e o real desvelado pela ciência moderna. Essa observação, no mínimo curiosa, em uma coletiva de imprensa foi elegida como eixo de discussão, no presente trabalho, por alguns motivos: (a) a situação de entrevista pode não ser suficiente para explorar conceitualmente tal relação; (b) essa intricada relação não é abordada pelo autor em outro momento de sua obra; e (c) há teorizações, nessa entrevista, passíveis de serem pormenorizadas a partir da investigação de outros momentos do ensino do autor.

Entretanto, o presente texto se restringe especificamente à relação que Lacan, de forma vaga nessa coletiva de imprensa, expõe entre a angústia e o real da ciência moderna. É deixada de lado, por enquanto, a vinculação com a temática da religião, que, por sua vez, merece ser objeto de discussão em outro trabalho.

A noção de ciência moderna

Entende-se, aqui, como ciência moderna uma mudança radical no estatuto do conhecimento, ocorrida no séc. XVII, que, de uma ancient-intuitive science, passa para uma modern-rational science (NOBUS, 2002NOBUS, Dany. A matter of cause: reflections on Lacan’s “Science and truth”. In: GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis(edited by). Lacan & Science. London and New York: H. Karnac(Books) Ltd., 2002, p. 89-118., p. 93). Essa compreensão de ciência está alicerçada nos trabalhos em história e filosofia da ciência de Alexandre Koyré, a partir de quem Lacan é “guiado” (LACAN, 1966[1965]/1998LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1966 [1965]). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 869-892., p. 870). Para ele, essa passagem requer o abandono das faculdades qualitativas-aristotélicas em favor de uma ciência de caráter platônico, marcada pela matematização da natureza e da própria ciência (KOYRÉ, 1943/1982KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão (1943). In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos da história do pensamento científico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 152-180., p. 167), tendo como principais expoentes dessa “nova ciência” Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes (1596-1650) (KOYRÉ, 1955/1982KOYRÉ, Alexandre. Galileu e a revolução científica do século XVII (1955). In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos da história do pensamento científico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 181-196., p. 181). Galileu teria sido designado como o que construiu o primeiro instrumento verdadeiramente apoiado em uma teoria, a teoria óptica. Isso caracterizará a ciência como encarnação da teoria na matéria, em detrimento do conhecimento prático do artesão. O real passa a ser composto não por aquilo que é capaz de ser apreendido pelos órgãos dos sentidos, mas pelo universo científico matemático (KOYRÉ, 1951/1982KOYRÉ, Alexandre. A contribuição científica da Renascença (1951). In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos da história do pensamento científico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982, p. 46-55., p. 54-55).

De acordo com Slavoj Žižek (2010ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 81), Lacan se distingue dos relativistas pós-modernos - com os quais é, todavia, frequentemente confundido - quanto à questão da atuação da ciência moderna no mundo1 1 Alan Sokal e Jean Bricmont (1998), bem como Paul Gross e Norman Levitt (1994), são alguns dos autores que confundem Lacan com os pós-modernos. Apesar de Žižek não deixar claro quem seriam esses relativistas, não é temerário inferir que ele esteja se referindo a Bruno Latour, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jean Baudrillard etc., então criticados por Sokal e Bricmont, por exemplo. . Enquanto, para tais relativistas, segundo o autor, a ciência se definiria no terreno social como apenas mais uma narrativa dentre outras, que conta uma história ao ser humano sobre si mesmo, para Lacan, a ciência moderna instaurou uma noção de real que independe de significação. Acerca desse assunto, destaca-se a seguinte passagem de Žižek:

[q]ual é, então, a natureza da diferença entre o narrativismo pós-modernista e Lacan? Talvez a melhor maneira de abordar isso seria pela lacuna que separa o universo moderno da ciência do conhecimento tradicional: para Lacan, a ciência moderna não é apenas outra narrativa local firmada em suas condições pragmáticas específicas, uma vez que esteja relacionada com o Real (matemático) sob o universo simbólico. (ŽIŽEK, 2008ŽIŽEK, Slavoj. Cyberspace, or, The Unberable Closure of Being. In: ŽIŽEK, Slavoj. The Plague of Fantasies. London and New York: Verso, 2008, p. 161-213., p. 206, grifo no original, TA)2 2 Todas as traduções próprias serão indicadas pela sigla TA (tradução dos autores). .

Ao definir a ciência moderna como uma prática social capaz de descrever aquilo que está além (ou aquém) da realidade imediata, Žižek entende que Lacan aponta para algo que não está vinculado ao sentido3 3 A noção de “realidade” aqui empregada, em conformidade com a teoria lacaniana, refere-se ao cruzamento dos simbólico e imaginário, teorizados por Lacan. Segue-se, aqui, o trabalho de Tom Eyers, que afirma: “[r]ealidade, para Lacan, é gerada através dos registros Imaginário e Simbólico” ([xref ref-type="bibr" rid="r1"]EYERS, 2012[/xref], p. 4, TA). . O filósofo esloveno exemplifica isso mencionando a diferença entre a meteorologia moderna, alicerçada em dados de satélite, e a meteorologia tradicional, baseada em observações locais (ŽIŽEK, 2008ŽIŽEK, Slavoj. Cyberspace, or, The Unberable Closure of Being. In: ŽIŽEK, Slavoj. The Plague of Fantasies. London and New York: Verso, 2008, p. 161-213., p. 207). Enquanto a meteorologia moderna possui um tipo de metalinguagem sobre a atmosfera terrestre como um mecanismo fechado, a meteorologia tradicional se constitui pela sabedoria do ponto de vista de um horizonte finito, observável a olho nu. Nesse último caso, a sabedoria não é baseada em leis naturais, mas permanece em conhecimentos relativamente vagos que conservam um mistério acerca de um além do que é observável. É esse aspecto obscuro, impenetrável pela observação, que mobiliza criação de sentidos para as mudanças do clima (as secas, p. ex., podem significar castigo, enquanto as chuvas, benção). Desse modo, a meteorologia tradicional possui a capacidade de promover um senso de “segurança” ontológica pela forma como os fenômenos naturais “falam” com os sujeitos (e, portanto, mobilizam significados). Isso é o oposto da meteorologia moderna e, de maneira geral, da ciência moderna. Esta busca a descrição e explicação do funcionamento dos fenômenos naturais, mas esvaziadas de sentido (subjetivo). Ela realiza precisamente a eliminação dos pontos obscuros e potencialmente misteriosos dos fenômenos a fim de preservar somente a sua sintaxe.

É isso que Lacan designa, em determinados momentos de sua obra, como real. Tanto na coletiva de impressa (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 22; 1975[1974]/2005LACAN, Jacques. O triunfo da religião (1975 [1974]). In: LACAN, J. O triunfo da religião, precedido de, Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 55-83. (Campo freudiano no Brasil; Série Paradoxos), p. 76-78) quanto em uma conferência em Bruxelas, realizada poucos anos depois, Lacan vincula o real, enquanto objeto ciência com sua ausência de sentido:

[o] real é o oposto extremo de nossa prática. É uma ideia, uma ideia limite do que não tem sentido. O sentido é o que por meio do qual operamos nossa prática: a interpretação. O real é o ponto de fuga como o objeto da ciência (e não do conhecimento, que é mais que criticável), o real é o objeto da ciência. (LACAN, 1977LACAN, Jacques. Propos sur l’hysterie(1977). Quarto: Supplement belge à la Lattre mensuelle de l’École de la Cause Freudinne, n. 2, p. 5-10, 1981. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1977-02-26.pdf . Acesso em: 24 mar. 2018.
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/1981, p. 5, TA).

No excerto que se segue, datado de 1960, Lacan já sublinhava o afastamento do sentido, aqui figurado pelas “intuições”, como característica da ciência:

[o] que o discurso da ciência desmascara é que nada mais resta de uma estética transcendental mediante a qual se estabeleceria um acordo, ainda que perdido, entre nossas intuições e o mundo. A realidade física verifica-se doravante impenetrável a qualquer analogia com qualquer tipo do homem universal. Ela é plena, totalmente inumana. O problema que se abre para nós não é mais o do co-nascimento, de uma co-naturalidade em que atrevemos a amizade das aparências. Sabemos o que cabe à terra e ao céu, ambos são vazios de Deus, e a questão é saber o que fazemos aparecer nas disjunções que constituem nossas técnicas. (LACAN, 1960/2005LACAN, Jacques. Discurso aos católicos (1960). In: LACAN, Jacques. O triunfo da religião, precedido de, Discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 9-54. (Campo freudiano no Brasil; Série Paradoxos), p. 40).

Nesse trecho, Lacan chama a atenção para uma compreensão de ciência que exerce a função de desalojar o sujeito de sua correspondência com o mundo real, ao demonstrar que este, além de independer da vontade humana, é inteiramente contraintuitivo e alheio a sentidos subjetivos (“inumano”). Isso contraria aquilo que se estabelecia em épocas mais remotas como ciência. A partir de sua matriz aristotélica, a ciência “pré-moderna” teria envolvido não só a contemplação do objeto, como também um movimento de identificação com o próprio objeto (LACAN, 1958-1959/2016LACAN, Jacques. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016. O seminário, livro 6, p. 407-408). Aliás, tal concepção de ciência estaria calcada na crença, posteriormente abandonada, de que a natureza estaria suscetível a significar alguma coisa4 4 O seguinte excerto pode ser ilustrativo para a questão: “Lia no Sr. [...] que ele se maravilhava com a existência do elemento água - como são bem percebidos os cuidados que o Criador tomou no tocante à ordem e ao nosso prazer, pois se a água não fosse esse elemento ao mesmo tempo maravilhosamente fluido, pesado e sólido, não veríamos os barquinhos navegarem tão lindamente no mar. Isso está escrito, e estaríamos errados em crer que o autor fosse um imbecil. Somente que ele estava ainda na atmosfera de um tempo em que a natureza era feita para falar” (LACAN, 1955-1956/[xref ref-type="bibr" rid="r10"]1988[/xref], p. 214). . O que se efetivaria com o advento da ciência moderna seria, em contrapartida, uma recusa da possibilidade de identificação, desmantelando, destarte, qualquer possibilidade de um caráter potencialmente “subjetivante” do conhecimento. Nesse sentido, não se trata de um discurso ideológico - embora suas implicações e ações no mundo não escapem desse caráter -, mas de um discurso que possui consequências cuja dimensão do real encontra lugar de forma mais radicalizada.

O real desvelado pela ciência estaria, segundo esta perspectiva, instaurado como aquilo que é apartado da dimensão imaginária, que, por outro lado, comportaria, necessariamente, a constituição da realidade do sujeito. E a aparição do real seria sentida, em correspondência à configuração da realidade e de sua apresentação ao sujeito, o que poderia ter por efeito o surgimento da angústia, atrelado a uma sensação de ausência - o que, por sua vez, poderia vir a ser aterrorizante.

Acontece que o real científico não irrompe como a porta que golpeia o batente e desperta o sonhador, ou como uma devastação causada por forças da natureza, ou como o real implicado na psicanálise, que compreende a sexualidade como um enigma irredutível para o sujeito. A ciência proporcionaria a busca voluntária do real. Nesta passagem da coletiva de imprensa, Lacan esclarece o conceito real, engendrado com a ciência:

[m]as o real que nós podemos acessar é por meio de uma via totalmente precisa, é a via científica, ou seja, as pequenas equações. E esse real, o real real, se posso dizer, o verdadeiro real é justamente esse que nos falta completamente naquilo que nos concerne, porque desse real no que nos concerne, nós somos totalmente separados dele por causa de uma coisa totalmente precisa na qual eu acredito, ainda que eu nunca tenha podido demonstrá-lo; que nós nunca chegaremos ao fim, nós nunca chegaremos a uma conclusão acerca desses seres falantes que nós sexuamos como homem e seres falantes que sexuamos como mulher. (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 22, TA).

Em suma, o real, ao qual se tenta dar ênfase aqui, é aquele que, mediante eventos e objetos, tem a capacidade de, em algum momento, romper a realidade simbólico-imaginária de um sujeito, a ponto de gerar uma necessidade de elaboração que possibilite restituir tal realidade. Essa ruptura, porém, não acontece sem causar certo mal-estar. A perda de determinados referenciais pelo sujeito - geralmente relacionados à própria imagem, por exemplo -, situa-se como um dos aspectos do surgimento da angústia (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 71). E é a partir disso que se pode vislumbrar as pistas para entender a angústia como sinal do real, ou, ainda, como “o que não funciona” [ce qui ne marche pas] no mundo humano (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 11; 1975[1974]/2005LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 63).

A angústia é indicadora, para Lacan (1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 178), de “algo” que se caracteriza pela irredutibilidade do real à experiência, na sua maior oposição à função do significante. Isso faz o autor considerar que a angústia “não é sem objeto” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 175). Porém, o objeto da angústia não se apresenta no sentido convencional, como um objeto físico, localizável. Refere-se, isto sim, a um objeto que se dispõe em uma íntima relação com o sujeito, a saber, aquilo que Lacan nomeia de objeto a. Isso faz com que boa parte da teoria lacaniana da angústia esteja atrelada à forma como esse objeto (a) se apresenta.

Pode parecer até curioso que Lacan não relacione a angústia com a falta de objeto, mas, sim, com a possibilidade de sua presença: “[v]ocês não sabem que não é a nostalgia do seio materno que gera a angústia, mas a eminência dele? O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao colo” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 64). Em outras palavras, é só a partir da ausência da mãe que a criança encontra a abertura para fazer uso do jogo para desenvolver a capacidade de simbolização5 5 O grande exemplo que ilustra isso é o da criança que Freud (1920/[xref ref-type="bibr" rid="r2"]1976[/xref], p. 25-29) observara brincando com o carretel - jogando-o e depois recuperando-o pelo cordão amarrado a ele, ao mesmo tempo que balbuciava “Fort” (algo como “ir embora”, em alemão), no primeiro ato, e “Da” (algo como “ali”), no segundo. Dirá Freud que “[a] interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance” (FREUD, 1920/1976, p. 27). . A separação provoca o aparecimento desse objeto opaco, que é o objeto a, permitindo que a criança deseje, isto é, que ela coloque em movimento o alvo da satisfação em uma trilha sempre avante, com os significantes. O que provoca a angústia, assim, não é a ausência que causa o desejo, mas aquilo que se apresenta no lugar dela, na tentativa de cumprir uma falta da falta; isto é, quando se sinaliza a presença do objeto a.

Algo que, aliás, Lacan apresenta em articulação com o seu esquema óptico6 6 Para isso, recomenda-se o recurso à terceira lição do Seminário 10 ou ao texto Observações obre o relatório de Daniel Lagache: “psicanálise e estrutura da personalidade” (LACAN, 1960/[xref ref-type="bibr" rid="r15"]1998[/xref]). . Em suma, trata-se de ressaltar a impossibilidade de identificação da imagem da falta. Por isso, estabilizar e fixar uma identificação para a satisfação do desejo se encontra na raiz da angústia. Melhor dizendo, quando esse vazio estrutural da constituição de um sujeito está prestes a sumir, a angústia ganha lugar (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 67).

As bactérias e o real

A primeira vez que Lacan expõe algo relativo ao tema da angústia, na coletiva de imprensa, refere-se a uma situação que não parece, à primeira vista, decorrer de certa iminência do objeto a. Ele fala da crise que se alastrou entre certos cientistas de laboratório, com suas manipulações de microrganismos e de suas consequências potencialmente catastróficas:

[e]les começam somente agora, os cientistas, a ter crises de angústia! Eles começam a se questionar - é uma crise de angústia que não é mais importante do que qualquer crise de angústia, a angústia é uma coisa totalmente fútil, totalmente falha [foireuse]7 7 Foireux (mas.) e foireuse (fem.) significam algo que funciona mal, que falha do previsto. Mas também pode conotar uma pessoa que teve diarreia (avoir le foire). - mas é divertido ver que os cientistas, os cientistas que trabalham em laboratórios totalmente sérios, nesses últimos tempos, de repente, vimos alguns que se alarmaram, que tiveram “um cagaço” [ont eu ‘les foies’],8 8 “[T]iveram os fígados”, literalmente, perde o sentido quando traduzido. “Avoir les foies” corresponde ao que se fala com “ter um cagaço”, isto é, ficar terrivelmente amedrontado. como se diz - você fala francês? Você sabe o que é “avoir les foies”? Isso significa ter medo - disseram-se a si mesmos: “mas e se todas essas pequenas bactérias com as quais nós fazemos coisas tão maravilhosas, suponhamos que um dia, depois que nós tivermos feito verdadeiramente um instrumento absolutamente sublime para destruição, suponhamos que um camarada qualquer as solte do laboratório?”. (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 10, TA).

As bactérias criadas em laboratório, com tamanho cuidado, refletem tanto o trabalho obstinado do cientista em alcançar o objeto “sublime” quanto, em contrapartida, a consequência presumivelmente calamitosa de sua efetivação. Em outros termos, o conhecimento obtido, que parece transparecer à consciência acerca do objeto manipulado, equivaler-se-ia à extensão do instante jubilatório constituidor da imagem especular, que forneceria a ilusão da apreensão do objeto em sua forma estável (LACAN, 1962-1963/2005, p. 70). No entanto, isso é logo contrariado quando surge a possibilidade de “algo” elidir o sujeito dele mesmo e produzir um efeito que escancara a falta estruturante de sua constituição. É nesse ponto que Lacan faz questão de sublinhar que o objeto de conhecimento é construído na relação com o sujeito, “à imagem da relação com a imagem especular” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 70). No caso aqui abordado, pode acontecer tanto uma falha na manipulação dos microrganismos quanto uma ação de má-fé de um indivíduo, que desestabilizaria essa relação com a imagem.

Mas acontece que os cientistas, continua Lacan (1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
http://ecole-lacanienne.net/wp-content/u...
, p. 10-11), tomaram consciência da magnitude da ameaça que poderia estar ali envolvida através da manipulação irrestrita das bactérias. Vislumbrava-se a possibilidade de gerar bactérias resistentes a tudo, e isso os levou a restringir o desenvolvimento de determinadas pesquisas. Essa irrupção de certa responsabilidade ética por parte dos cientistas tornou a bactéria uma figura para o “hóspede desconhecido” - para usar uma expressão de Lacan (1962-1963LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 87) -, ou seja, o que Freud descreve como Das Unheimliche (FREUD, 1919/1996FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996, p. 233-269. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)). O objeto é sentido como estranho e incômodo quando assume uma potência hostil ao ser enquadrado em uma situação de perigo de aniquilação corporal. Encontra-se, assim, a angústia como sinal que demanda, ao mesmo tempo, uma solução, a partir de certos critérios.

Não é à toa que os desenvolvimentos de trabalhos acerca do tema da bioética surgiram com o progressivo aumento do uso de biotecnologias (RUSS, 1994RUSS, Jacqueline. Introdução (1994). In: RUSS, Jacqueline. O pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 5-20./1999, p. 16-18; POST, 2004POST, Stephen Garrard. Introduction. In: POST, Stephen Garrard (edited by). Encyclopedia of bioethics, v. 1. 3rd edition. New York: Macmillan Reference USA, 2004, p. XI-XV.). A necessidade de uma reflexão acerca do uso que a ciência moderna faz do corpo está intimamente relacionada ao que Lacan se refere, ao afirmar que “a ciência não sabe o que faz”9 9 “Como a ciência não tem alguma ideia do que faz, a não ser ter um pequeno acesso de angústia, ela vai, de qualquer jeito, continuar um certo tempo e, por causa de Freud provavelmente, ninguém cogitou dizer que era completamente impossível existir uma ciência, uma ciência que tenha resultados como o de governar e de educar” (LACAN, 1975/1974, p. 11, TA). . Esse é o motivo pelo qual uma área como a bioética deve ser interdisciplinar, buscando suscitar debates com as diversas esferas do conhecimento humano. Isso forneceria um anteparo simbólico-imaginário diante da utilização que a ciência faz dos seus avanços técnicos e de seus limites.

Aletosfera, latusas e gadgets

Outro aspecto importante na relação da ciência com o real e a angústia, que, inclusive, se encontra implícito na questão das bactérias, ainda precisa ser destacado. A ciência não se constitui, como foi apontado no início, como uma teoria que visa acrescentar somente um conhecimento melhorado acerca do mundo. Uma grande distinção da ciência moderna em relação a qualquer outra teoria do conhecimento é o efeito de introdução de “coisas” no mundo, cuja existência não seria acessível pela via da percepção (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 150-151). Afinal, a manipulação de microrganismos só é exequível devido ao aparato tecnológico criado a partir da aplicação de leis físicas e matemáticas.

A distinção entre descoberta e invenção, realizada por Samo Tomšič (2012TOMŠIČ, Samo. The technology of jouissance. Umbr(a): a journal of the unconscious, p. 143-159, 2012., p. 149), pode ser elucidativa para o assunto. Enquanto a descoberta implica, necessariamente, a existência de algo que seja anterior ao seu descobrimento, não se pode supor que o objeto inventado tenha existido antes do momento que surge; ele é fundamentalmente novo, como um “a mais” que se acrescenta ao mundo e que altera a sua configuração. A tecnologia estaria, assim, associada à invenção, que, ao adicionar objetos ao mundo, modifica a própria noção de real.

Trata-se, para Lacan, com isso, do fato de a ciência moderna criar um verdadeiro espaço, cujo limite é, por enquanto, inimaginável. Isso quer dizer que ela possui a capacidade de fabricar um lugar no espaço, onde os seus objetos são capazes de operar a partir de uma verdade formalizada10 10 A ciência, que carrega consigo o germe da causa a partir da verdade formal, já havia sido objeto de discussão de Lacan, com o propósito de distinguir a partir de qual concepção de verdade como causa as práticas da ciência, da religião, da magia e da psicanálise possuem. Tal debate é mediado por uma interpretação que o autor realiza da teoria aristotélica das quatro causas (LACAN, 1966[1965]/1998, p. 890). Para uma visão elucidativa desse assunto, ver o trabalho de Dany Nobus (2002). . Inovações que a percepção sensorial não alcança diretamente, mas que se assentam sobre alguma espécie de materialidade. Isso implica, como afirma Tomšič (2012TOMŠIČ, Samo. The technology of jouissance. Umbr(a): a journal of the unconscious, p. 143-159, 2012., p. 153), um novo materialismo que coincide com o abandono da busca pela substância. Esse é o espaço que abriga, por exemplo, as ondas eletromagnéticas hertzianas (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 152)11 11 “Trata-se justamente do lugar de fato ocupado - pelo quê? Falei há pouco das ondas. É disso que se trata. Ondas hertzianas ou quaisquer outras, nenhuma fenomenologia da percepção nunca nos deu delas a menor ideia, e com certeza jamais nos teria conduzido a elas” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 152). , a radiação (TOMŠIČ, 2012TOMŠIČ, Samo. The technology of jouissance. Umbr(a): a journal of the unconscious, p. 143-159, 2012., p. 152) etc. Elas vivem naquilo que Lacan chama de “aletosfera” (aléthosphère). Esse neologismo é criado para designar esse “lugar” no espaço que não é totalmente “físico-sensível”, mas é físico-matemático

A palavra “aletosfera” foi forjada a partir da palavra grega “ἀλήθεια” (alétheia), comumente traduzida como “verdade” (em uma conotação de “desvelamento”), e “atmosfera” ou mesmo “estratosfera” (atmosphère e stratosphère, em francês) (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 152-153). É graças à criação da aletosfera que o ser humano é capaz de gravar a voz, ir à lua ou mesmo mandar um pequeno veículo para Marte, por exemplo (LACAN, 1969-1970/1992, p. 153). E uma característica central desse espaço seria a sua “insubstância” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 151, grifo no original), justamente pela função exercida pela “percepção operacional”12 12 Lacan cria um neologismo com a junção das formas verbais “opera” (opère) e “percebe” (perçoit), que foi traduzido como “opercebe” (operçoit) (LACAN, 1969-1970/1992, p. 152, 208). , em detrimento de um espaço para o qual é possível se dirigir pelo uso dos cinco sentidos corporais.

Patrick Martin-Mattera e Alexandre Lévy (2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 312) identificam, na falta de substância desse espaço, uma operação que age apenas na ordem do significante, e não pelo conhecimento “prático” acerca da matéria bruta. Em outras palavras, significa acentuar que o mais preponderante na formação dos objetos da ciência são os cálculos matemáticos, a teoria, do que a própria percepção sensorial. O neologismo “aletosfera” significa uma atmosfera dentro da qual se desvela a verdade (formalizada) de um mundo que não possui envolvimento com a realidade sensorial (MATIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 313). Nisso se encontra o porquê de o mundo não parecer, com a ciência, se constituir mais como uma extensão do corpo. E é a partir dessa nova configuração que se derivam certos objetos isentos de substância, que são, em última análise, avatares do objeto a.

A esses avatares elaborados cientificamente, Lacan (1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 153) dá o nome de latusas (lathouses). A elaboração de nomes tanto para esse “lugar” no espaço quanto para os objetos inseridos nesse “lugar” sugere uma relativa importância dada por Lacan para tratar das implicações da ciência na sociedade. Nesse sentido, o contexto no qual Lacan estava inserido, no momento que essa discussão é abordada, pode fornecer pistas mais precisas acerca do que está envolvido no desenvolvimento desses objetos e sua relação com a evocação de angústia. O momento histórico-cultural do fim dos anos de 1960 e início da década seguinte é, de acordo com Martin-Mattera e Lévy (2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 312), marcado pela dominância do cientificismo, pelo desenvolvimento do capitalismo na sociedade do consumo e pelas ideias gerais da revolução de maio de 68, pautadas por um gozo pretensamente acessível a qualquer pessoa.

O neologismo “latusa” é formado a partir da junção de duas palavras gregas: λᾰθον (láthon) e οὐσία (ousía). A primeira (láthon) é o aoristo do verbo “λήθω”, comumente traduzido como “esquecer”, “ato de esquecer”. Por causa do seu radical, o termo grego alétheia, anteriormente citado, é derivado desse verbo. A segunda (ousía) é comumente traduzida como “substância” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 153; MARTIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 313). As latusas se constituem, assim, como objetos produzidos pela verdade formal da ciência, que entram no mundo e que são definidos por seu esquecimento da substância (MARTIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 313).

Com sua natureza opaca, elas podem figurar, sem muitas dificuldades, objetos provocadores de desejo. Entretanto, agora, sob o comando da ciência: “[e] quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que os governa, pensem neles como latusas”. (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17), p. 153).

No entanto, a ciência é a primeira parte do desenvolvimento das latusas. Existe outra forma de laço social que não apenas medeia a relação entre as latusas e o grande público, como também é capaz de estimular a produção científica. Trata-se do fato de as latusas estarem intimamente associadas à lógica capitalista de acesso aos bens. Elas só se apresentam como tais dentro do laço social moderno das leis do mercado globalizado como objetos de consumo imediato, que despertam a ilusão de uma satisfação completa generalizada (MARTIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 315).

Essas versões modernas e tecnológicas do objeto a não deixam de manter certa ambiguidade quanto à emergência da angústia13 13 “A angústia - posto que é com isso que temos que nos haver -, é totalmente certo que, havendo a latusa, ela não é sem objeto” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 154). . A latusa fornece uma satisfação que se apresenta em seu suporte com a vida virtual, tendo como notável exemplo, a partir de Martin-Mattera e Lévy (2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 315), a própria internet. Para eles, a internet provoca a adesão imaginária ao objeto idealizado do desejo, tão fulgurante que é diretamente proporcional ao aumento do nível de intensidade da angústia, quando ocorre a decepção no momento do encontro com esse objeto. Os autores afirmam que a latusa (láthon ousia), em última instância, avança sem a presença, haja vista a sua possibilidade de ser insubstancial; tendo o seu caráter inquietante no fato de tratar do esquecimento do próprio ser.

Estes objetos criados pela ciência e mediados pelo capitalismo alavancam a dimensão da angústia, na medida em que ela está inevitavelmente presente quando, através da demanda, esses objetos estão sempre enganando e frustrando a “promessa” de realização total do desejo. Lacan chega mesmo a chamar a atenção para a dinâmica do funcionamento da angústia no tocante à demanda: “[m]as, o que nos ensina aqui a experiência sobre a angústia em sua relação com o objeto do desejo senão que a proibição é uma tentação? Não se trata de perda do objeto, mas da presença disso: de que os objetos não faltam” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 64). Com efeito, pode-se localizar não na privação, mas na saturação da resposta à demanda, a causa da angústia (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, Jacques. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (O seminário, 10), p. 76).

Outro termo que se refere às latusas aparece na coletiva de imprensa, a saber, os gadgets. Eles são as objetivações científicas que estabelecem modificações na relação com o mundo a partir de sua gênese e proliferação na aletosfera (MARTIN-MATTERA; LÉVY, p. 314). Diz Lacan:

[m]as o real que nós acessamos através de pequenas fórmulas, o verdadeiro real, isso é uma coisa completamente diferente14 14 Lacan se refere aqui à sexualidade humana. Ele estava falando da impossibilidade de que a sexualidade venha a se tornar uma fórmula para homens e mulheres, no sentido de haver uma possibilidade de integração na relação entre esses sujeitos. Para ele, não há esperança alguma na sexualidade, no sentido de que isso venha a ter fórmulas científicas como receita para que deem certo. Cada um precisaria, em última análise, encontrar o seu jeito de atuar no mundo. . Até o momento, nós só temos como resultado gadgets, a saber: envia-se um foguete à lua, tem-se a televisão etc. Isso nos come [mange],15 15 Aqui, manger parece possuir um sentido mais próximo de “consumir” [consumer] do que, de fato, “comer”. Tudo indica que os gadgets, para Lacan, são capazes de modificar o sujeito, corroendo-o, por exemplo. Aliás, a alteração não incide estritamente no sujeito, mas também na relação dele com o mundo. Isso acarreta certa dependência a esses objetos, que sem os quais pode propiciar um acréscimo na dificuldade imaginária em viver no mundo - aumentando o nível de angústia. Por esse motivo, optou-se pela tradução do verbo manger como “comer”, para preservar a conotação mais “primitiva” empregada pelo autor. mas isso nos come [mange] pelo intermédio de coisas que, apesar de tudo mexem com a gente. Não é por acaso que a televisão é devoradora. É porque isso nos interessa, apesar de tudo. Isso nos interessa por um certo número de coisas totalmente elementares, que poderíamos enumerar, sobre as quais poderíamos fazer uma pequena lista, muito, muito precisa. Mas, enfim, nos deixamos comer. É por isso que eu não estou entre os alarmistas nem entre os angustiados. Quando tivermos nossa cota disso, a gente vai parar, e a gente vai se ocupar com as verdadeiras coisas; a saber, o que eu chamo a religião16 16 Essa última frase necessitaria de um espaço mais abrangente para poder destrinchar o seu alcance. Seria necessário confecionar outro texto para traçar com mais detalhes a forma como Lacan aborda o assunto da religião, principalmente a partir dessa entrevista. No entanto, é possível antecipar algumas considerações: a noção de sentido religioso é, aqui, crucial para se contrapor ao real da ciência e a contenção da angústia suscitada por este. (LACAN, 1974/1975LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf . Acesso em:28 ago. 2018.
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, p. 22, TA).

Além do efeito “hipnotizante” da televisão que consome o sujeito de sua própria divisão, isto é, suprimindo a dimensão do vazio, em que Lacan localiza a orientação do desejo em movimento, Martin-Mattera e Lévy (2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 315-316) chamam a atenção para uma situação ainda mais recente: as latusas de hoje apresentam-se de um modo mais potente no mundo, visto que se instalou uma configuração de mundo na qual os desenvolvimentos tecnológicos se alastram em uma hegemonia digital, a partir da aplicação dos algoritmos e criação de bancos de dados. Assim, os autores afirmam, a aletosfera de Lacan pode ser chamada, atualmente, de “aritmosfera” (“arithmosphère”), como uma atmosfera digital ou, ainda, uma esfera virtual, “iconosfera” (“iconosphère”).

Martin-Mattera e Lévy (2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 316) alertam para as consequências dessa esfera artificial e virtual. Os objetos fabricados pelo mundo virtual são permeados, não por um apelo de satisfação “negativizada”, mas, sim, pela oferta de satisfação “positivada”. Os autores justificam esse caráter negativo, inerente à satisfação, pela mudança da relação do ser humano com o mundo: que, de uma imediaticidade primeira, transforma-se em uma relação parcial e indireta, devido à intricada dependência da linguagem.

A satisfação “positivizada”, por sua vez, reivindica uma constância, entusiasmada e deficiente de regulação simbólica, ao mesmo tempo em que é destacada da realidade. Martin-Mattera e Lévy elencam, em um primeiro momento, as consequências sociais desse fenômeno: as comunicações imediatas e onipresentes, o desenvolvimento de redes sociais, contatos íntimos distantes, mas também, o inverso, o desencadeamento de paixões perversas e anti-perversas, expansão dos fanatismos religiosos e o desenvolvimento de guerras virtuais. E, em seguida, os autores apresentam os efeitos clínicos: anorexia, bulimia, dependências diversas tanto em relação a substâncias quanto a atividades (esporte, sexo e trabalho), depressões engendradas pelas decepções e saturações, além do desenvolvimento de “estados limítrofes” (MARTIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 316).

Os autores declaram que esses exemplos escancaram as duas faces indissociáveis das latusas, quais sejam, o progresso tecnológico - até então inédito - e a angústia que acompanha e mantém o uso que se faz delas (MARTIN-MATTERA; LÉVY, 2017MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017., p. 316). Trata-se de uma insistência constante na obtenção de satisfação e oferta de demanda para cobrir a falha estrutural daquilo que compõe o sujeito, que acabam por serem sentidas como angustiantes. Junta-se isso ao fato de a ciência desmantelar o mundo simbólico-imaginário em uma constante fragmentação em partículas daquilo que constitui esse universo. Como afirma Lacan,

[p]or ora, quero simplesmente fazê-los notar isto que o mundo, o mundo está em decomposição, graças a Deus. O mundo, vemos que ele não mais se aguenta, pois, mesmo no discurso científico, é claro que não há mais o mínimo mundo. A partir do momento em que vocês podem ajuntar aos átomos um troço que se chama quark, e que é ali o verdadeiro fio do discurso científico, vocês têm de qualquer modo que se dar conta de que se trata de outra coisa que não um mundo (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, Jacques. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 1985. (O seminário, 20), p. 51).

Essa fragmentação do mundo, que Lacan exemplifica através da redução do átomo ao quark, faz com que se escancare a face mais real daquilo que compõe o corpo humano - isto é, o seu despedaçamento. A ciência acaba por desmantelar qualquer possibilidade de antecipação imagética do mundo como análogo à imagem especular. E nisso se caracteriza o que se configura, para Lacan, como o mais perturbador. Em outras palavras, aquilo que é substancialmente perturbador se caracteriza pelo surgimento do real no irreal17 17 “A psicologia clássica ensina que o material da experiência compõe-se do real e do irreal, e que os homens são atormentados pelo irreal no real. Se assim fosse, seria inteiramente inútil termos esperança de nos livrar disso, em razão de que a conquista freudiana nos ensina, por sua vez, que o inquietante é que, no irreal, é o real que os atormenta” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 91). , isto é, na construção simbólico-imaginária da realidade humana. Essa noção de real implica todas as alterações introduzidas pela ciência moderna, em sua desmontagem e fragmentação do mundo.

Entretanto, Lacan não se encontra dentre os alarmistas ou mesmo no grupo dos angustiados. Para ele, não se trata definitivamente de uma questão que coloque um freio na ciência moderna. A fala do autor, nesse sentido, por mais que possa vir a parecê-lo, não se apresenta em termos moralizantes ou reacionários. Ele chegou mesmo a afirmar que, embora já pudessem pensar isso dele, não é essa a questão. No entanto, não significa dizer que em qualquer ideia de “clarificação” esteja implicado um direcionamento para o progresso, de uma forma que o resultado fosse um aumento do nível de felicidade (LACAN, 1969-1970/1992, p. 99).

Freud (1930[1929]/1996FREUD, Sigmund. O estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996, p. 233-269. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17), p. 94-96) já dissera algo semelhante. Para ele, o avanço das ciências naturais e de sua técnica possibilitou um amplo controle sobre a natureza. Embora o ser humano se orgulhe dessa conquista, isso não redundou em uma maior satisfação em relação àquilo que o indivíduo pode esperar da sua vida. Ele ainda chama a atenção para que se reconheça o fato de a ciência não ser a única condição para a felicidade, como também não é o único objeto da cultura. Muitas conquistas foram alcançadas com o esforço da ciência; contudo, isso não foi sem consequências - muitas vezes, desastrosas - como também não significou uma garantia de felicidade para o ser humano. Segundo Freud (1930FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930[1929]) Rio de Janeiro: Imago , 1974, p. 65-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)[1929]/1996), a ciência proporciona algo como o estilo “modelo do ‘prazer barato’”, que ele ilustra com uma anedota: “o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente” (p. 95). Em suma, ele vai dizer que “[a] felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo” (p. 96).

Não se trata de uma atitude de demérito quanto aos avanços da ciência. A crítica que é levantada por esses autores se refere mais a uma noção ideológica que se liga ao que há de real no discurso da ciência acerca daquilo que possa vir a constituir a felicidade e a relação com o desejo - por meio das latusas e dos gadgets que figuram objetos idealmente capazes de suplantar a divisão subjetiva.

REFERÊNCIAS

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  • LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1966 [1965]). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 869-892.
  • LACAN, Jacques. (1955-1956) As psicoses Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. (O seminário, 3)
  • LACAN, Jacques. Conférence de presse du docteur Jacques Lacan - le 29 octobre 1974 au Centre Culturel Français (1974). Lettres de l’École freudienne, n. 16, p. 6-26, 1975. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf Acesso em:28 ago. 2018.
    » http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/Lettres-de-EFP-N16-part-1.pdf
  • LACAN, Jacques. Discurso aos católicos (1960). In: LACAN, Jacques. O triunfo da religião, precedido de, Discurso aos católicos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 9-54. (Campo freudiano no Brasil; Série Paradoxos)
  • LACAN, Jacques. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 1985. (O seminário, 20)
  • LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (O seminário, 17)
  • LACAN, Jacques. Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade” (1960). In: LACAN, Jacques. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 653-691. (Campo freudiano no Brasil).
  • LACAN, Jacques. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016. O seminário, livro 6
  • LACAN, Jacques. O triunfo da religião (1975 [1974]). In: LACAN, J. O triunfo da religião, precedido de, Discurso aos católicos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 55-83. (Campo freudiano no Brasil; Série Paradoxos)
  • LACAN, Jacques. Propos sur l’hysterie(1977). Quarto: Supplement belge à la Lattre mensuelle de l’École de la Cause Freudinne, n. 2, p. 5-10, 1981. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/1977-02-26.pdf Acesso em: 24 mar. 2018.
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  • MARTIN-MATTERA, Patrick; LÉVY, Alexandre. Le “concept” de lathouse dans l’œuvre de Jacques Lacan. Implications psychologiques, cliniques et sociales. Bulletin de psychologie, n. 550, p. 311-319, 2017.
  • NOBUS, Dany. A matter of cause: reflections on Lacan’s “Science and truth”. In: GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis(edited by). Lacan & Science London and New York: H. Karnac(Books) Ltd., 2002, p. 89-118.
  • POST, Stephen Garrard. Introduction. In: POST, Stephen Garrard (edited by). Encyclopedia of bioethics, v. 1. 3rd edition. New York: Macmillan Reference USA, 2004, p. XI-XV.
  • RUSS, Jacqueline. Introdução (1994). In: RUSS, Jacqueline. O pensamento ético contemporâneo São Paulo: Paulus, 1999, p. 5-20.
  • SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Fashionable nonsense: postmodern intellectuals’ abuse of science. New York: Picador, 1998.
  • TOMŠIČ, Samo. The technology of jouissance. Umbr(a): a journal of the unconscious, p. 143-159, 2012.
  • ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
  • ŽIŽEK, Slavoj. Cyberspace, or, The Unberable Closure of Being. In: ŽIŽEK, Slavoj. The Plague of Fantasies London and New York: Verso, 2008, p. 161-213.
  • 1
    Alan Sokal e Jean Bricmont (1998), bem como Paul Gross e Norman Levitt (1994), são alguns dos autores que confundem Lacan com os pós-modernos. Apesar de Žižek não deixar claro quem seriam esses relativistas, não é temerário inferir que ele esteja se referindo a Bruno Latour, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jean Baudrillard etc., então criticados por Sokal e Bricmont, por exemplo.
  • 2
    Todas as traduções próprias serão indicadas pela sigla TA (tradução dos autores).
  • 3
    A noção de “realidade” aqui empregada, em conformidade com a teoria lacaniana, refere-se ao cruzamento dos simbólico e imaginário, teorizados por Lacan. Segue-se, aqui, o trabalho de Tom Eyers, que afirma: “[r]ealidade, para Lacan, é gerada através dos registros Imaginário e Simbólico” ([xref ref-type="bibr" rid="r1"]EYERS, 2012[/xref], p. 4, TA).
  • 4
    O seguinte excerto pode ser ilustrativo para a questão: “Lia no Sr. [...] que ele se maravilhava com a existência do elemento água - como são bem percebidos os cuidados que o Criador tomou no tocante à ordem e ao nosso prazer, pois se a água não fosse esse elemento ao mesmo tempo maravilhosamente fluido, pesado e sólido, não veríamos os barquinhos navegarem tão lindamente no mar. Isso está escrito, e estaríamos errados em crer que o autor fosse um imbecil. Somente que ele estava ainda na atmosfera de um tempo em que a natureza era feita para falar” (LACAN, 1955-1956/[xref ref-type="bibr" rid="r10"]1988[/xref], p. 214).
  • 5
    O grande exemplo que ilustra isso é o da criança que Freud (1920/[xref ref-type="bibr" rid="r2"]1976[/xref], p. 25-29) observara brincando com o carretel - jogando-o e depois recuperando-o pelo cordão amarrado a ele, ao mesmo tempo que balbuciava “Fort” (algo como “ir embora”, em alemão), no primeiro ato, e “Da” (algo como “ali”), no segundo. Dirá Freud que “[a] interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance” (FREUD, 1920/1976, p. 27).
  • 6
    Para isso, recomenda-se o recurso à terceira lição do Seminário 10 ou ao texto Observações obre o relatório de Daniel Lagache: “psicanálise e estrutura da personalidade” (LACAN, 1960/[xref ref-type="bibr" rid="r15"]1998[/xref]).
  • 7
    Foireux (mas.) e foireuse (fem.) significam algo que funciona mal, que falha do previsto. Mas também pode conotar uma pessoa que teve diarreia (avoir le foire).
  • 8
    “[T]iveram os fígados”, literalmente, perde o sentido quando traduzido. “Avoir les foies” corresponde ao que se fala com “ter um cagaço”, isto é, ficar terrivelmente amedrontado.
  • 9
    “Como a ciência não tem alguma ideia do que faz, a não ser ter um pequeno acesso de angústia, ela vai, de qualquer jeito, continuar um certo tempo e, por causa de Freud provavelmente, ninguém cogitou dizer que era completamente impossível existir uma ciência, uma ciência que tenha resultados como o de governar e de educar” (LACAN, 1975/1974, p. 11, TA).
  • 10
    A ciência, que carrega consigo o germe da causa a partir da verdade formal, já havia sido objeto de discussão de Lacan, com o propósito de distinguir a partir de qual concepção de verdade como causa as práticas da ciência, da religião, da magia e da psicanálise possuem. Tal debate é mediado por uma interpretação que o autor realiza da teoria aristotélica das quatro causas (LACAN, 1966[1965]/1998, p. 890). Para uma visão elucidativa desse assunto, ver o trabalho de Dany Nobus (2002).
  • 11
    “Trata-se justamente do lugar de fato ocupado - pelo quê? Falei há pouco das ondas. É disso que se trata. Ondas hertzianas ou quaisquer outras, nenhuma fenomenologia da percepção nunca nos deu delas a menor ideia, e com certeza jamais nos teria conduzido a elas” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 152).
  • 12
    Lacan cria um neologismo com a junção das formas verbais “opera” (opère) e “percebe” (perçoit), que foi traduzido como “opercebe” (operçoit) (LACAN, 1969-1970/1992, p. 152, 208).
  • 13
    “A angústia - posto que é com isso que temos que nos haver -, é totalmente certo que, havendo a latusa, ela não é sem objeto” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 154).
  • 14
    Lacan se refere aqui à sexualidade humana. Ele estava falando da impossibilidade de que a sexualidade venha a se tornar uma fórmula para homens e mulheres, no sentido de haver uma possibilidade de integração na relação entre esses sujeitos. Para ele, não há esperança alguma na sexualidade, no sentido de que isso venha a ter fórmulas científicas como receita para que deem certo. Cada um precisaria, em última análise, encontrar o seu jeito de atuar no mundo.
  • 15
    Aqui, manger parece possuir um sentido mais próximo de “consumir” [consumer] do que, de fato, “comer”. Tudo indica que os gadgets, para Lacan, são capazes de modificar o sujeito, corroendo-o, por exemplo. Aliás, a alteração não incide estritamente no sujeito, mas também na relação dele com o mundo. Isso acarreta certa dependência a esses objetos, que sem os quais pode propiciar um acréscimo na dificuldade imaginária em viver no mundo - aumentando o nível de angústia. Por esse motivo, optou-se pela tradução do verbo manger como “comer”, para preservar a conotação mais “primitiva” empregada pelo autor.
  • 16
    Essa última frase necessitaria de um espaço mais abrangente para poder destrinchar o seu alcance. Seria necessário confecionar outro texto para traçar com mais detalhes a forma como Lacan aborda o assunto da religião, principalmente a partir dessa entrevista. No entanto, é possível antecipar algumas considerações: a noção de sentido religioso é, aqui, crucial para se contrapor ao real da ciência e a contenção da angústia suscitada por este.
  • 17
    “A psicologia clássica ensina que o material da experiência compõe-se do real e do irreal, e que os homens são atormentados pelo irreal no real. Se assim fosse, seria inteiramente inútil termos esperança de nos livrar disso, em razão de que a conquista freudiana nos ensina, por sua vez, que o inquietante é que, no irreal, é o real que os atormenta” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 91).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2019
  • Aceito
    12 Dez 2021
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