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DA VIDA PSÍQUICA À POLÍTICA EM PSICANÁLISE

Prezados leitores, é com imensa alegria que publicamos o novo número da Revista Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica. Passados 18 meses desde o início da pandemia do coronavírus, ainda estamos imersos em uma crise sanitária e política que afeta as nossas formas de estar no mundo. Graves retrocessos nos são impostos diariamente, e o horizonte de ação parece encurtado em face às possibilidades que nos são apresentadas. A pesquisa brasileira não está fora desse cenário. Os cortes abruptos de verbas destinadas à pesquisa - somados à precarização das relações de trabalho que, sob a forma da flexibilização e do trabalho remoto, expõe os pesquisadores a jornadas excessivas - têm contribuído para as dificuldades que ora enfrentamos. Em tempos sombrios, insistir na produção e divulgação do conhecimento é insistir na pulsação da vida.

Queremos agradecer especialmente à Fundação de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ que, através do edital “Apoio aos Programas e Cursos de Pós-Graduação Stricto Senso do Estado do Rio de Janeiro - 2019”, assegurou a continuidade das publicações da Revista Ágora neste ano. De igual modo, agradecemos aos autores que têm contribuído com excelentes reflexões e pesquisas, cuja solidez teórica e diversidade de práticas contribuem para que a psicanálise se firme como área de saber pujante, dinâmica e comprometida com a transformação da realidade social. Por fim, nossos sinceros agradecimentos a todos os pareceristas que doaram seu tempo e conhecimento na avaliação criteriosa, dedicada e cuidadosa dos artigos apresentados à revista.

Nesta edição da Revista Ágora, foram publicados artigos que tematizam tanto a vida psíquica, seja tomando como referência o corpo (DELEUZE, 1978DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.; FREUD 1895/1976FREUD, S. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 19); LACAN, 1975LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2007. (O seminário, 23)), o eu (FERENCZI, 1921/1993FERENCZI, S. (1921/1993) “Reflexões psicanalíticas sobre os tiques”, in Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes.; FREUD, 1923/1986FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1986, p. 381-395. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1); LACAN, 1951LACAN, J. Algumas reflexões sobre o Ego (1951). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 24, jun. 1999. São Paulo: Edições Eólia.) ou o sujeito (BUTLER, 2017BUTLER, J. (2017). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica.; LACAN, 1959LACAN, J. (1959-1960/2008) Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Zahar.), quanto a relação da psicanálise com a vida política, na qual a precarização produzida pelo capitalismo (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935-1936). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política); EHRENBERG, 2000EHRENBERG, A. (2000) La fatigue d’être soi. Dépression et société, Paris: Odile Jacob.; KOHUT, 1971KOHUT, H. (1971) Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora.; LACAN, 1969LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17)) está em questão.

Kátia Barbosa Macêdo, no artigo Corpo e sintoma no paciente somatizador: uma visão psicodinâmica, aborda a concepção dual do corpo para a psicanálise, resultante do processo de constituição do psiquismo entre sensação, memória, representação e simbolização. A autora discute o conceito de sintoma e os seus sentidos nos pacientes somatizadores, apontando a necessidade de um manejo clínico que tome como indispensável o vínculo transferencial, a tradução ou nomeação do inominável, sua interpretação e ressignificação para integração na psiquê.

A temática do corpo também está presente no artigo de Gesianni Amaral Gonçalves e Alexandre Simões Ribeiro, cujo título bem expressa o seu conteúdo: O corpo em Lacan e em Deleuze: um diálogo possível? Os autores partem do conceito de évènement, corpo sem órgãos e da noção lacaniana de corpo-saco, com vistas a uma apreensão das principais acepções, a fim de cingir o que vem a ser um évènement.

Em A presença do analista: lugar e função do corpo do psicanalista em diferentes contextos de atuação, de Carolina Escobar de Almeida Prado, Fabio Menezes dos Anjos e Ivan Ramos Estevão, a discussão tematiza o corpo, mas dessa vez trata-se do corpo do analista como condições para a sustentação da clínica. Para tanto, os autores destacam diferentes contextos de atuação do psicanalista - no consultório, nas clínicas psicossociais e nos atendimentos online - como forma de pensar o ato analítico norteado pela ética da psicanálise e assegurado na sustentação da posição do analista enquanto presença - ponto de convergência que permite a inserção do psicanalista nos campos de atuação citados.

Leonardo Câmara e Regina Herzog, em O sistema mnêmico do eu: da guerra à clivagem, discutem as contribuições teóricas de Sándor Ferenczi. Os autores localizam os antecedentes da concepção de sistema mnêmico do eu na experiência de Ferenczi com a neurose de guerra, a qual o permitiu desenvolver múltiplos modelos de clivagem na sua clínica do trauma.

No artigo A sujeição como processo paradoxal de poder: da constituição psíquica à ética do desejo, Cleyton Sidney de Andrade e Inácio Antonio Silva de Mariz descrevem, a partir de Judith Butler, o processo paradoxal que coloca o poder como operador tanto da constituição quanto da sujeição psíquica através da internalização da consciência de culpa. Os autores buscam os efeitos do poder na neurose e nos processos de sujeição social, bem como os limites e possibilidades da psicanálise orientada por uma ação ética.

No artigo Imagens: a política do aparecimento e do desaparecimento, Luciene de Melo Paz, Maria de Fátima Vilar de Melo e Véronique Donard discutem a ausência de referências para o eu no contemporâneo. A hipótese defendida pelas autoras é a de que a ascensão vertiginosa das imagens a que as subjetividades contemporâneas estão expostas produz o declínio da função simbólica das palavras, tornando a angústia paralisante. Deste modo, faz-se necessária uma política da existência que remarque o lugar da singularidade, a fim de que o sujeito do inconsciente apareça.

A função simbólica do discurso também está presente no artigo Stella do Patrocínio e a metáfora delirante, no qual Carolina Anglada analisa as possibilidades de simbolização no discurso delirante. Neste sentido, a metáfora, enquanto elaboração do Simbólico, funciona como fio que permite o entrelaçamento entre a poética de Stella do Patrocínio e os discursos da psicanálise, da teoria da literatura e da filosofia.

Em Considerações sobre o horror e o alicerce discursivo da psiquiatria, Rita Meurer Victor, norteada pela proposição de Lacan no seminário 21, Les non-dupes errent, parte do pressuposto de que se é o horror que preside o saber, então a constituição da psiquiatria se assenta no horror suscitado pela loucura.

Marina Cardoso de Jesus Gomes e Amandio de Jesus Gomes, no artigo Sobre o colapso da objetalidade no discurso do capitalista, trazem para o debate o percurso freudiano desde a exclusão de das Ding até o surgimento da dimensão da objetalidade por meio da constituição da realidade estruturada como fantasia. Com Lacan, os autores discutem o objeto a como causa do desejo e o colapso da objetalidade na vigência do discurso do capitalista, sublinhando o engodo deste discurso ao fazer supor acessível o objeto perdido na forma dos gadgets, que a cada vez renovam a promessa de mais gozar.

Em Relações precarizadas, mundo traumatizado: uma retomada de Heinz Kohut e sua importância para a atualidade, Maicon Pereira da Cunha discute algumas mudanças estruturais no tempo causadas pelo neoliberalismo e os efeitos daí advindos nas subjetividades, tomando o trauma como categoria de análise central. Analisando o contexto em que o sujeito se situa, o autor ressalta a atualidade do psicanalista Heinz Kohut para uma reflexão sobre os destinos do sofrimento na atualidade.

Desejamos uma boa leitura a tod@s.

Referências bibliográficas

  • BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935-1936). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. (Obras escolhidas, 1, Magia e técnica, arte e política)
  • BUTLER, J. (2017). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Editora Autêntica.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972). Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
  • EHRENBERG, A. (2000) La fatigue d’être soi. Dépression et société, Paris: Odile Jacob.
  • FERENCZI, S. (1921/1993) “Reflexões psicanalíticas sobre os tiques”, in Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes.
  • FREUD, S. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 19)
  • FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895). Rio de Janeiro: Imago , 1986, p. 381-395. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1)
  • KOHUT, H. (1971) Análise do self. Rio de Janeiro: Imago Editora.
  • LACAN, J. Algumas reflexões sobre o Ego (1951). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 24, jun. 1999. São Paulo: Edições Eólia.
  • LACAN, J. (1959-1960/2008) Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Zahar.
  • LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17)
  • LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2007. (O seminário, 23)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021
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