Acessibilidade / Reportar erro

INCIDÊNCIAS DA PSICANÁLISE NO CONTEXTO DA SAÚDE MENTAL: O SUJEITO EM QUESTÃO

INCIDENCES OF PSYCHOANALYSIS IN THE CONTEXT OF MENTAL HEALTH: THE SUBJECT IN QUESTION

RESUMO:

Este trabalho tem o objetivo de discutir as incidências do laço social como instância que comparece em ato no trabalho do psicanalista, no contexto da saúde mental, e assegura um lugar de sujeito para usuários de Centro de Apoio Psicossocial - CAPS. Para o percurso metodológico, foram adotados o método qualitativo, referencial teórico psicanalítico, breve apresentação e discussão de um caso clínico. O resultado aponta para a necessidade de construção do laço social como possibilidade para o emergir do sujeito a partir de uma invenção sustentada em um discurso que estabelecerá um meio de regulação de gozo.

Palavras-chave:
discurso do analista; laço social; CAPS

Abstract:

This work aims to discuss the incidence of the social bond as an instance that is present in the psychoanalyst’s work, in the context of mental health, and ensures a place of subject for users of the Psychosocial Support Center. For the methodological path, the qualitative method, psychoanalytic theoretical framework, brief presentation and discussion of a clinical case was adopted. The result points to the need to build the social bond as a possibility for the subject to emerge, based on an invention sustained in a discourse that will establish a means of regulating enjoyment.

Keywords:
analyst’s speech; social bond; CAPS

INTRODUÇÃO

Em processo desde o final da década de 1970, o movimento pelo fim dos manicômios marca a emergência de alguns modelos epistêmicos de orientação para o fazer no campo da saúde mental, entre eles, de acordo com Guerra (2004GUERRA, A. M. Reabilitação psicossocial no campo da reforma psiquiátrica: uma reflexão sobre o controverso conceito e seus possíveis paradigmas. Rev. Latino americana de psicopatologia fundamental, n.7, 2004.), destacam-se o psicoeducativo, o sociopolítico e o clínico. O psicoeducativo visa a busca de uma suposta normalidade do sujeito com a aquisição de habilidades e comportamentos para a reabilitação. O sociopolítico investe em uma contratualidade do sujeito que tem por fim sua imersão na cidadania. O clínico diz sobre uma aposta da equipe e de cada componente desta equipe na implicação e responsabilização do sujeito nas construções de apaziguamentos no mal-estar e na construção do laço social.

No desdobramento destas questões, é observável a inseparabilidade do entrelaçamento entre o fazer clínico e o sociopolítico na dimensão dos Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, enquanto dispositivos institucionais que se estruturam com base no território e compõem a rede de atenção psicossocial. A clínica da desinstitucionalização designa, desse modo, um corpo de trabalhos em equipes com iniciativas práticas e teóricas, em uma multiplicação de protagonismos e de autores inseridos na comunidade de abrangência deste serviço.

Ao logo da história de luta pelo fim dos manicômios e desinstitucionalização da “loucura”, diversos movimentos sociais marcaram avanços. A redemocratização do país e a efetivação do Sistema Único de Saúde - SUS foram cruciais para o ato de irrupção dos serviços substitutivos de saúde mental em diversas regiões do território nacional. Assim, a reforma psiquiátrica, por ser um processo complexo, não se resume apenas a uma mudança na oferta de serviços, mas principalmente a uma outra orientação clínica, política e social.

A construção desta outra clínica - a da saúde mental - investe no desejo da equipe, na transferência de trabalho e na ética do fazer com os sujeitos usuários dos serviços e seus familiares. Assim, a questão para a elaboração deste trabalho recaiu sobre a pergunta: de que forma circula o discurso do psicanalista nos CAPS como ferramenta possível de um fazer na clínica do laço social? Esta questão se deve à importância de pensar a prática psicanalítica nos serviços de saúde mental, demarcando um lugar diferente das psicoterapias que visam o cidadão de direitos da reforma psiquiátrica; embora não se opondo a ele, mas criando dispositivos para o emergir do sujeito para além do cidadão, ou seja, para além de uma “terapêutica da restauração” (VIGANÒ, 1999VIGANÒ, C. A construção do caso clínico em saúde mental. Curinga, Belo Horizonte, n. 13, 1999.).

De acordo com Laurent (1999) e Zenoni (2000ZENONI, A. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos: Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares - Rede FHEMIG, ano I, n. 0, 2000.), a reforma psiquiátrica, ao constituir novos dispositivos de saúde mental e inserção social dos sujeitos atendidos nos CAPS, constrói também novos lugares para o psicanalista operar com o imprevisível no cotidiano do fazer “analítico no espaço público”. O psicanalista na clínica no coletivo, convoca os sujeitos ao fazer, ao dizer, ao existir, em uma prática que vai para além de protocolos e/ou conhecimentos técnicos.

A psicanálise, no campo da saúde mental, orienta sua prática pelo bem-dizer ao privilegiar a escuta e colocar no dizer, nas pequenas intervenções, a possibilidade da implicação para o emergir do sujeito do desejo e do gozo. Deste modo, os operadores da psicanálise nos CAPS guiam suas intervenções pela clínica do sujeito.

Quando empregamos esse termo ‘sujeito’, é importante destacar que o diferenciamos de ‘indivíduo’, ‘pessoa’, ‘personalidade’ ou qualquer outro termo que signifique unidade ou todo. O sujeito não é todo; ele é, antes de tudo, um efeito. Um efeito da intervenção do Outro. Podemos dizer que o sujeito porta o Outro na sua própria constituição, nele se aliena e dele se separa pontualmente, parcialmente, e nunca se faz um com o outro. O sujeito não faz Um, nem com o outro, nem com seu objeto. Nada o complementa. Pelo contrário, se às vezes temos a impressão de estar diante de um sujeito completo, a quem não parece faltar nada porque nada demanda, esse deve estar suspenso em seu próprio isolamento, seu autismo particular, sua recusa ao Outro, como o ápice de sua patologia. Cabe a nós provocá-lo para sair disso. O sujeito é uma abertura, é sobredeterminado, como nos ensinou Freud, em sua abertura ao Outro. (FIGUEIREDO, 2005FIGUEIREDO, A. C. de. Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe de saúde mental. Mental, Barbacena, ano III, n. 5, 2005., p. 48).

Montezuma (2001MONTEZUMA, M. A. A clínica na saúde mental. In: QUINET, Antonio. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001.) afirma que o tratamento psicanalítico, no campo da saúde mental, deve implicar o sujeito e seu desejo desde o primeiro momento de acolhimento nos CAPS. Sobre esta questão, Figueiredo orienta que cabe ao psicanalista sustentar o lugar do sujeito de desejo na clínica, quando tudo mais vacila. Para tanto, esta autora salienta assim o trabalho no CAPS:

Tomando a referência aos quatros discursos em Lacan, deve haver algo, seja no trabalho em equipe, ou no contexto das intervenções na instituição, que remeta ao discurso do analista. O discurso do mestre já opera através da própria instituição em suas normas e regras de funcionamento. E o discurso universitário está presente principalmente quando se toma o saber referencial como o agente no trabalho em equipe. O chamado saber “multi” ou interdisciplinar (ou mesmo “trans”) mantém o saber de referência como operador principal. A psicanálise pode ser absorvida como um dos “saberes” vigentes, e se manter assim também no discurso universitário. É preciso um giro retroverso no discurso universitário para operar o discurso do analista. Um deslocamento do saber como agente para o lugar da verdade. (FIGUEIREDO, 2007FIGUEIREDO, A. C. de. A função da psicanálise (e do psicanalista) na clínica da atenção psicossocial. In: NASCIMENTO, E. M. V. do. GONZÁLES, R. de C. F. (Orgs.). A clínica psicanalítica: reflexões teóricas e incidências institucionais na contemporaneidade. Salvador: EDUFBA, 2007., p. 84).

Pensar o circular do discurso do psicanalista no CAPS, como possibilitador de laço social, evidencia a formalização do ato psicanalítico. Ato sustentado pela transferência no encontro do trabalhador da psicanálise com um sujeito não todo, e pela implicação do campo da ética no agir deste trabalho, que visa o singular dentro do coletivo de uma instituição.

Assim, a construção deste trabalho tem como objetivo discutir as incidências do laço social como instância que comparece em ato no trabalho do psicanalista, no contexto da saúde mental e assegura um lugar de sujeito para usuários de CAPS.

Trata-se, então, de uma breve leitura do campo da saúde mental e, a partir daí, repensar a questão da inserção social de sujeitos atendidos nos CAPS, focalizando o emergir do sujeito, as transferências e os modos possíveis de estabelecer laços sociais.

Para o percurso metodológico, foi adotado o método qualitativo com a apresentação de fragmentos de um caso clínico construído a partir da experiência da autora em CAPS II; a apresentação e a discussão teórico-prática do caso se sustentam no referencial teórico psicanalítico (BIRMAN, 1994BIRMAN, J. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994). Para esse autor, uma pesquisa psicanalítica não está desvinculada da clínica psicanalítica, ou seja, quando pensamos em uma é porque estamos considerando a outra.

Na construção deste caso, foi possível identificar a posição assumida pela psicanalista na relação transferencial junto ao sujeito em atendimento, a articulação entre a história de vida, a elaboração do diagnóstico estrutural e a proposição das intervenções em ato, considerando a ética da psicanálise para a construção do laço social.

Este trabalho será apresentado em três etapas: sendo a primeira, esta em curso, introdutória; a segunda se constituirá do desenvolvimento da proposta e será apresentada em duas categorias de análise - (a) incidências do discurso do analista na clínica em CAPS e (b) breves notas de um caso clínico e os impasses na construção do laço social; como terceira e última etapa, será apresentada a conclusão do trabalho.

INCIDÊNCIAS DO DISCURSO DO ANALISTA NA CLÍNICA EM CAPS

Ao operar com a clínica das psicoses, o psicanalista precisa considerar, em seu ato, a lógica estrutural marcada por sua diferença da neurose e as possibilidades de um outro enodamento singular com a transferência. Na operação no campo da saúde mental, com sujeitos psicóticos, o psicanalista deve ter, claro, a psicose como uma estrutura estruturalmente diferente da neurose, pois disso irá depender o avanço para o desenvolvimento de sua clínica.

Lacan (1955-1956/1988LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (O seminário, livro 3)) orienta que os analistas não recuem diante da psicose, que tantos desafios apresenta. Tal orientação conduz a reflexões e questionamentos sobre as particularidades da transferência e os possíveis manejos nesta clínica.

Na clínica com sujeitos psicóticos, a operação precisa ser realizada atendendo aos limites e às aberturas que o sujeito vai indicando ao psicanalista, que precisa estar atento em sua escuta. Estas aberturas, quando escutadas no trabalho cotidiano no coletivo dos CAPS, constituem-se em fissuras, aberturas para o laço social. Este trabalho, com o suporte da transferência na psicose, leva-nos a produzir questionamentos sobre a direção clínica, pois o Outro não é apenas aquele que sabe; ele é, ainda, aquele que invade. “A psicose, diz Lacan, é isso diante do qual o analista não deve recuar em nenhum caso” (TENÓRIO, 2001TENÓRIO, F. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um trabalho necessário. In: FIGUEIREDO, A. C.; CAVALCANTI, M. T. (Orgs.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização - Contribuições à III Conferência Nacional de Saúde Mental. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001.. p. 92).

Coadunam com esta ação indicada por Lacan as orientações de Zenoni (2000), quando este psicanalista coloca a importância de o trabalhador psicanalista assumir a função de secretário do alienado (LACAN, 1955-56/1988LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (O seminário, livro 3)), o que implica o acompanhamento do trabalho do sujeito psicótico, sendo um dos aspectos desta função seguir os caminhos que o sujeito indica.

Por estar situada “no plano das políticas públicas, a reforma psiquiátrica mira o coletivo”, reivindica e institui direitos à cidadania e à inserção social dos usuários de CAPS (DELGADO, 2001DELGADO, P. G. O tratamento a partir da reforma psiquiátrica. In: QUINET, Antônio. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001., p. 153). Mesmo considerando quão importante e urgente sejam as ações que visam este percurso, não podemos apagar os faróis para o sujeito desta prática clínica e lançá-lo apenas sobre o “cidadão de direitos”.

Partindo da crítica à padronização e homogeneização dos procedimentos que caracterizavam o velho modelo manicomial e excludente, no qual o tratamento dos chamados doentes mentais, sob o inquestionável domínio do saber médico, resumia-se a compensar o paciente, a reforma introduziu novos dispositivos de tratamento, que reconfiguraram o quadro da assistência em saúde mental no país. O novo campo da atenção psicossocial caracteriza-se pela articulação entre diversos saberes com a instituição do trabalho em equipe multidisciplinar, onde estão presentes várias orientações clínico-assistenciais, desde as que privilegiam a reabilitação psicossocial e o resgate dos direitos de cidadania dos usuários, ponto de partida da própria reforma, até aquelas que tomam como eixo a clínica de cada sujeito em sua singularidade, esta última de inspiração psicanalítica. (RINALDI, 2015RINALDI, D. Micropolítica do desejo: a clínica do sujeito na instituição de saúde mental. Ciência e saúde coletiva, 2015., p. 316).

Esta última prática clínica, de inspiração na teoria psicanalítica, exige da equipe de profissionais dos CAPS, que guiam suas ações por essa teoria, um reinventar-se cotidiano, a cada encontro com cada paciente, com o dito e também com o não-dito, abrindo-se para novas experiências com o advir do sujeito, ao ceder lugar para imprevistos, possibilidades para a transferência e o laço social.

Na posição de trabalhadores atuantes no contexto da saúde mental, frente às demandas das políticas públicas desse campo, faz-se necessário cada vez mais apostas no fazer cotidiano nesse espaço e não recuar frente às intempéries. Se antes a alienação estava ligada às instituições psiquiátricas, agora incorre que possa estar colada aos discursos imperativos sociais, mesmo em serviços abertos. O trabalhador de CAPS que firma suas práticas nas orientações de Freud e Lacan precisa estar atento aos lugares e aos discursos construídos nesse campo. Na atuação nos serviços substitutivos, este profissional precisa incorporar, então, no cotidiano de suas ações, o “trabalhador que, ao encarnar posições intercessoras de objeto a, faz descaridade” (LACAN, 2003, p. 518).

No domínio das técnicas generalizadas e dos protocolos firmados no campo da saúde mental, como meios de instituir cidadania e construir quantitativos de atendimentos, o trabalhador da psicanálise pode dirigir-se na via do avesso, por desconsiderar nesse ato que é na palavra que pode circular o desejo, pois “é na própria palavra do sujeito que começa o trabalho clínico” (FIGUEIREDO; MACHADO, 2000FIGUEIREDO, A. C.; MACHADO, O. R. O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura. Ágora. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 65-86, 2000., p. 66), trabalho sobre a influência dos conceitos de uma teoria inventada por Freud a partir de uma prática.

Os discursos que circulam na saúde mental deixam, por vezes, lugares engessados para os sujeitos em atendimento. É isto que denunciam as ações que colocam os pacientes no lugar de aprendizes de cidadãos ou os fármacos como única terapêutica possível de apaziguamento diante aos pedidos de cura de pacientes e familiares. Não distante destas práticas, nos CAPS está o discurso da equipe, que assume a posição de mestre, ou seja, coloca-se no lugar daquele que tem o saber sobre o direcionamento do tratamento. O que se espera, no entanto, é que o discurso do analista venha realizar contrapontos a esses outros discursos, principalmente ao do mestre.

Na clínica psicanalítica, em sua incidência na saúde mental, pode-se tomar a orientação de Lacan de que “o discurso do analista não é outra coisa senão a lógica da ação” (LACAN, 1970/1992, p. 57); uma ação que não reduz a técnica a si mesma, pois atua no um a um, como em um jogo de xadrez, tomando a partir da fala, é claro, as posições para o fazer que incluem o sujeito do inconsciente e dividido pelo gozo.

BREVES NOTAS DE UM CASO CLÍNICO E OS IMPASSES NA CONSTRUÇÃO DO LAÇO SOCIAL

A clínica nos CAPS opera através dos enlaçamentos transferenciais e das produções que se tecem em torno de cada caso que a equipe acolhe e interroga, em um trabalho de tessitura “entre vários”, mas que considera e inclui as produções singulares de cada sujeito em seu enigma. A direção do tratamento nos CAPS, assim, incide na direção de cada cidadão/sujeito, como modo possível de sustentar a interrogação que se faz aí para a construção do laço social.

Se uma equipe CAPS, ao receber um paciente, não se sente provocada a ponto de produzir questões, se este técnico procura simplesmente enquadrar esse paciente em um protocolo ou em técnicas normativas, não estará construindo espaços para o emergir de singularidades. De acordo com Lebrun (2004), o psicanalista nos serviços de saúde mental precisa operar no sentido de investir para o emergir do sujeito do inconsciente e não para o seu apagamento.

O trabalhador da psicanálise, ao assumir a função de testemunha da psicose, esquiva-se de operar assumindo o lugar do mestre, com um saber prévio sobre o sujeito. Em oposição a este modo de agir, o analista escuta o sujeito oferecendo olhos e ouvidos a um saber que até então vinha sendo ignorado ou desqualificado. Nesta posição de escuta, um saber é construído com o sujeito em um trabalho que recebe a marca da ética e é sustentado pelo desejo do analista, no enlace transferencial.

Um recorte de caso, aqui, pode fazer cena para algumas considerações sobre a incidência da psicanálise no trabalho em um CAPS e a construção de proposições sobre a marca do laço social.

Inicia-se um tratamento quando tomo como convocação a solicitação de atendimento para Noé, um homem de trinta e dois anos, que reside com os pais e irmãos. Aos vinte anos, Noé recebeu diagnóstico de esquizofrenia, passou por três internações psiquiátricas em um intervalo de oito anos, dos vinte aos vinte e oito anos. Os relatos entre familiares e técnicos eram de que Noé não se vinculava ao tratamento no CAPS e, após muitas investidas, tinham “desistido de Noé”. No momento de minha apresentação a este usuário-sujeito, a equipe temia a necessidade de mais uma internação.

Noé sempre estava “conversando sozinho” ou calado mexendo nas lixeiras, como estivesse sempre à procura de algo, algo que não simbolizava, por mais que ele acumulasse objetos retirados de lixos diversos. Noé estava imerso no Real. Quando interrogado, Noé não respondia, continuava sua procura e sua conversa que não construía laço com o Outro. Tinha dificuldade de permanecer no CAPS, assim como negava a terapêutica medicamentosa. Os períodos de desestabilização eram, sempre, muito difíceis para todos. As investidas da equipe e dos familiares eram sempre para que Noé não mexesse nos sacos de lixo e não os guardasse consigo, o que não funcionava. A família, por vezes assessorada por técnicos, fazia entradas duras, a exemplo da retirada forçada desses ‘acúmulos’ - objetos que ele guardava em sua bolsa e quarto - às vezes sendo utilizada a contenção física. Ações devastadoras para o sujeito.

Foi em uma das investidas de Noé a um saco de lixo, que a analista aposta nesse momento como o espaço-tempo possível para um acesso a este sujeito. Nesse momento de busca nas lixeiras, de um traço de objeto que colocasse limite ao gozo, é que a analista se oferece para ajudar na procura e segura o saco para facilitar a busca de Noé. Neste instante, Noé pôde olhar para a analista, e, por um momento, cessa a desagregação de pensamento. A analista se lança ao trabalho com o enigma, colocando no discurso que faz ato a questão: “se você disser o que procura, eu posso te ajudar na busca”. E já o ajudando. Quando Noé solta uma única palavra: “o quadro”. A partir desse instante, desse significante que, por muitas investidas, não fazia cadeia, pois é do Real, Noé pode aos poucos construir uma história, particular. Com muito(s) nó(s), inicia-se a construção de um vínculo entre Noé e esta analista. Noé pode aos poucos ir se colocando diante das interrogações, direcionando uma demanda de escuta à analista, participando inicialmente de um grupo de escuta aberto, com entradas e saídas livres, respeitando seus limites. Noé está há três anos nessa construção; hoje não acumula mais lixo, mas, sim, suas produções em duas oficinas de artesanato das quais participa por escolha.

No trabalho com Noé, não se tratava de dar sentido ao sem sentido de seu enigma, “o quadro”, mas de possibilitar a Noé uma construção que minimamente sustentasse os registros Real, Simbólico e Imaginário unidos, embora com grande incidência, ainda, do Real. A fala de Noé em suas passagens rápidas pelos grupos, pelos corredores, refeitórios etc., mesmo fora de um sentido, passou a ser aceita pelos colegas que emitiam respostas, as quais, também, muitas vezes sem sentido, ressoavam nos ouvidos de Noé e convocavam seu olhar.

Na perspectiva psicanalítica, estamos falando da transferência, mola propulsora para uma prática clínica atravessada pela ética psicanalítica, prática que sempre leva em consideração a singularidade de cada sujeito. Esta práxis segue a orientação de Lacan (1964/1988, p. 14), de que qualquer que seja a ação, esta precisa ser a que se “põe em condição de tratar o real pelo simbólico”.

Este fragmento de caso clínico suscita vários pontos para discussão, porém, vou me ater a um aspecto específico, que diz respeito à relação que a instituição estabelece com o sujeito psicótico. Acredito que estejam claros os efeitos sobre o paciente de dois modos de operar da instituição: um deles diz respeito à totalização do Outro; e o segundo modo caracteriza-se pela possibilidade de construção de uma relação mais suportável com o Outro, caminho construído pela via da transferência e do laço social.

Podemos, assim, considerar que o trabalho nos CAPS precisa operar em oposição às práticas que produzem a submissão do sujeito, posição de objeto frente ao Outro. Neste caso clínico, fica claro que a analista opera de forma distinta desta perspectiva, na medida em que favoreceu uma possibilidade de subjetivação.

O que prevalecia nas tentativas de inserção de Noé no CAPS eram os ideais institucionais que pregavam a construção de um Outro total. Esses ideais colocavam o sujeito à mercê de vivências impossíveis de serem simbolizadas. Quando os ideais da reforma psiquiátrica não são trabalhados com o usuário-sujeito em seu processo singular de construção de um laço social possível, podem funcionar como um Outro total gozador, o que dificulta a estabilização e o impede de fazer laço.

[...] atenção psicossocial e clínica do sujeito não são a mesma coisa. Mas uma pode tornar a outra possível - desde que a primeira evite dois riscos: o de impor ao psicótico ideais de funcionamento que são nossos, e aos quais ele muitas vezes não pode corresponder, e o de acreditar que o bem-estar psicossocial torna menos relevante o trabalho subjetivo da palavra; e que a segunda reconheça os limites de qualquer prática ligada à palavra e a necessidade, em certos casos, prioridade, na psicose, de uma ajuda concreta e cotidiana ao viver. (TENÓRIO, 2001TENÓRIO, F. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um trabalho necessário. In: FIGUEIREDO, A. C.; CAVALCANTI, M. T. (Orgs.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização - Contribuições à III Conferência Nacional de Saúde Mental. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001., p. 90).

Neste caso, a construção de laço social foi considerada como possibilidade de parceria para o sujeito circular ou, ainda, se inserir a partir da construção de uma invenção sustentada em um discurso que se oferece como meio de regulação de gozo. “A proposta da clínica da psicose, neste sentido, consiste não em fazer apelo a um sujeito que não pode responder, mas sim em criar as condições para que ali, numa existência aniquilada pela psicose, se produza essa possibilidade” (TENÓRIO, 2001TENÓRIO, F. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um trabalho necessário. In: FIGUEIREDO, A. C.; CAVALCANTI, M. T. (Orgs.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização - Contribuições à III Conferência Nacional de Saúde Mental. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001., p. 124).

Portanto, é necessário o esvaziamento do saber prévio do trabalhador dos CAPS, para que se propicie o surgimento de um lugar para o sujeito. O trabalhador precisa, de um modo possível, abrir parênteses no trabalho protocolar e técnico para assumir a função de sujeito suposto não saber que é, como indica Zenoni:

Uma posição favorável para encontrar um sujeito que sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é endereçado enigmaticamente. É uma posição favorável para encontrar esse sujeito, sem alimentar uma posição intensiva, persecutória de transferência. [...] Na psicose, o saber não é suposto, mas realizado pelo próprio sujeito, que é a referência, o gozo desse saber. É por isso que, quando o Outro se apresenta como o Outro do saber, ele pode ser encontrado sob uma forma erotomaníaca ou persecutória. Enquanto que a posição do sujeito não saber deixa principalmente ao sujeito a iniciativa de saber. (ZENONI, 2000ZENONI, A. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos: Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares - Rede FHEMIG, ano I, n. 0, 2000., p. 20).

A psicanálise propõe, como modo de operar no contexto da saúde mental, uma escuta do singular, que está interessada nas articulações significantes do sujeito. O fazer desta prática não está subordinado às perspectivas do cuidado protocolar e técnico, pois produziria mais uma prática moralizante e educadora que promotora de autonomia e inserção. O analista nos CAPS, antes de qualquer ato, deve abandonar o desejo de “cura”, de devolver uma suposta normalidade ao sujeito. No entanto, sempre sustentará que nenhum caso está fora de um manejo possível.

PARA CONCLUIR: UMA APOSTA

Conclui-se que o psicanalista, ao ocupar o lugar de secretário, no trabalho com o sujeito psicótico, em Centros de Atenção Psicossocial, afirma em ato sua posição de testemunha. Assim, este trabalhador da psicanálise possibilita o emergir do sujeito que ele testemunha. Não tem um saber pronto; o saber se constrói no encontro, na aliança firmada e sustentada em cada encontro, em cada intervenção apaziguadora de gozo. Ainda segundo Zenoni, “é na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como praticar” (ZENONI, 2000ZENONI, A. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos: Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares - Rede FHEMIG, ano I, n. 0, 2000., p. 19).

Na psicose, somos sempre aprendizes. Seja na clínica particular ou na instituição pública, estaremos sempre na posição de secretário. É o que nos mostrou o fragmento do caso apresentado, pois, quem tem o saber, interroga o enigma e edifica algo a partir do Real; é o sujeito dentro de suas possibilidades de simbolização. O trabalho “entre vários” tem seus impasses, mas também tem suas vantagens na construção e andamento de casos com sujeito psicóticos, a família, a equipe e a comunidade. A rede de atenção psicossocial tem se efetivado de grande importância para o cuidado em liberdade e continuará, mesmo diante de tantos percalços sociais e políticos, mantendo sua aposta.

REFERÊNCIAS

  • BIRMAN, J. Psicanálise, ciência e cultura Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994
  • DELGADO, P. G. O tratamento a partir da reforma psiquiátrica. In: QUINET, Antônio. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
  • FIGUEIREDO, A. C. de. A função da psicanálise (e do psicanalista) na clínica da atenção psicossocial. In: NASCIMENTO, E. M. V. do. GONZÁLES, R. de C. F. (Orgs.). A clínica psicanalítica: reflexões teóricas e incidências institucionais na contemporaneidade. Salvador: EDUFBA, 2007.
  • FIGUEIREDO, A. C. de. Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe de saúde mental. Mental, Barbacena, ano III, n. 5, 2005.
  • FIGUEIREDO, A. C.; MACHADO, O. R. O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura. Ágora. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 65-86, 2000.
  • GUERRA, A. M. Reabilitação psicossocial no campo da reforma psiquiátrica: uma reflexão sobre o controverso conceito e seus possíveis paradigmas. Rev. Latino americana de psicopatologia fundamental, n.7, 2004.
  • LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (O seminário, livro 3)
  • LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 1992. O seminário, 17)
  • LACAN, J. Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (O seminário, 11)
  • LACAN, J. Televisão. In: LACAN, J. Outros Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 2003.
  • LAURENT, E. O analista cidadão. Curinga, n. 13. Psicanalise e saúde mental Belo Horizonte: EBP, 1999.
  • LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
  • MONTEZUMA, M. A. A clínica na saúde mental. In: QUINET, Antonio. Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2001.
  • RINALDI, D. Micropolítica do desejo: a clínica do sujeito na instituição de saúde mental. Ciência e saúde coletiva, 2015.
  • TENÓRIO, F. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um trabalho necessário. In: FIGUEIREDO, A. C.; CAVALCANTI, M. T. (Orgs.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização - Contribuições à III Conferência Nacional de Saúde Mental. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001.
  • VIGANÒ, C. A construção do caso clínico em saúde mental. Curinga, Belo Horizonte, n. 13, 1999.
  • ZENONI, A. Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos: Revista de Saúde Mental do Instituto Raul Soares - Rede FHEMIG, ano I, n. 0, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2020
  • Aceito
    28 Set 2022
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com