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Violência, acidente e trauma: a clínica psicanalítica frente ao real da urgência e da emergência

resumo:

Discute-se sobre os instrumentos teóricos que a psicanálise lacaniana oferece para pensar a atuação do psicanalista frente a situações de urgência e de emergência. Entre eles, a identificação, o manejo clínico de testemunho e de secretáriado e a função de objeto a no ato de analista. Cconsiderando, sobretudo, os últimos trabalhos de Lacan, em que este concebe o trauma como da ordem do Real, o trabalho volta-se mais para o ato do analista e a direção do tratamento, para o saber-fazer.

Palavras-chave:
Urgência; emergência; psicanálise lacaniana; trauma; ato de analista.

Abstract:

This article presents theoretical contributions of Lacanian psychoanalysis for its practice, especially in situations of urgency and emergency. Some of Lacan's concepts are discussed, including 'Identification', the function of `object a', 'secretary to the insane', 'testimony', and some other issues that concern the therapeutic work. The authors have researched Lacan's last papers, in which the concept of trauma is linked to his notion of the Real and he stresses the importance of the analyst's acts in directing the treatment in urgency and emergency situations.

Keywords:
Urgency; emergency; Lacanian psychoanalysis; trauma; analyst's act.

Introdução

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, vem se debruçando em sua Agenda Nacional de Prioridades em Pesquisa de Saúde (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. (2011) Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde, Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_nacional_prioridades_2ed_3imp.pdf . Acesso em 31/8/2016.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) sobre a avaliação de programas, políticas, projetos e intervenções para o monitoramento das políticas públicas de saúde. A construção e implementação da Agenda Nacional é um processo político destinado à pesquisa e à saúde. A articulação em torno da Agenda é a ação mais importante na legitimação desse instrumento na Política Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação da Saúde no Brasil.

Entre tantos tópicos abordados pela Agenda, encontramos um especial, destinado à questão da Saúde Mental, e outro destinado à Violência, Acidentes e Traumas, nos quais são discutidos os problemas da violência familiar, sexual, psicológica e urbana, os acidentes domésticos, os de trânsito, de trabalho e comunitários. Estão sendo feitas avaliações da eficácia e segurança dos protocolos dos tratamentos utilizados em manejos de condições traumáticas e estudos de novos métodos terapêuticos.

Gonçalves, Morita e Haddad (2007GONÇALVES, F.; MORITA P.A.; e HADDAD, S. (2007) Sequelas invisíveis de acidente de trânsito: o transtorno de estresse pós-traumático como problema de saúde pública. Texto para discussão n.1291, publicado no site do governo federal da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República/Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content &view=article&id=4850 . Acesso em 1/9/2016.
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?...
) discutem, por exemplo, a gravidade do problema de acidentes de trânsito em todo o mundo e refletem sobre a qualificação dos profissionais para o pronto atendimento, visando minimizar a magnitude do sofrimento humano ali implicado (GONÇALVES et al., 2007GONÇALVES, F.; MORITA P.A.; e HADDAD, S. (2007) Sequelas invisíveis de acidente de trânsito: o transtorno de estresse pós-traumático como problema de saúde pública. Texto para discussão n.1291, publicado no site do governo federal da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República/Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content &view=article&id=4850 . Acesso em 1/9/2016.
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?...
, p.21). Nomeiam, como um dos momentos mais cruciais para o restabelecimento da saúde, a forma como é dada a notícia das possíveis sequelas do acidente. Discutem a importância de se oferecer parâmetros e estratégias de cuidados para a equipe de saúde tanto no pré-hospitalar como na urgência e na emergência.

O Manual do Atendimento Pré-hospitalar (Siate/CBPR) (PORCIDES et al., 2006PORCIDES, A. J. et al. (2006) Manual de atendimento pré-hospitalar. Corpo de Bombeiro do Paraná/Curitiba - Siate/CBPR Cap. 17 Trauma da face, p.237-247. Disponível em: Disponível em: http://www.defesacivil.pr.gov.br/arquivos/File/primeiros_socorros_2/cap_17_trauma_face.pdf . Acesso em 1/9/2016.
http://www.defesacivil.pr.gov.br/arquivo...
) nos dá outro exemplo mostrando que o trauma facial pode ser uma das agressões mais devastadoras encontradas em centros de trauma, devido às consequências emocionais e a possibilidade de deformidade. Estudos constatam que a maior causa de traumas faciais é ocasionada por violência interpessoal e quedas, pois os aparatos como cinto de segurança, capacete, air bags, diminuíram as estatísticas de traumas faciais por acidentes de trânsito, que eram bem altos. O Manual indica que o trauma facial é uma realidade constante no serviço de emergência de um grande centro de referência de trauma e acomete todas as idades - sendo as crianças e os idosos por maiores problemas com quedas pela questão da idade - e os adultos por violência doméstica e quedas, principalmente quando estão envolvidos o álcool e as drogas.

Galetti Jr (2011GALETTI, JR. (2011) Modelos de atendimento às urgências/emergências. Portal de Aviação de Segurança Pública e Defesa Civil. Disponível em: Disponível em: http://www.pilotopolicial.com.br , Acesso em 28/9/2012.
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), em Modelos de atendimento às urgências/emergências, discorre sobre a problemática do trauma como doença no meio social devido ao crescimento dos conglomerados urbanos e aumento da velocidade dos meios de transporte. Por exemplo, cita ele, em 1930, a violência representava 3% e hoje representa 15% das causas de morte. Pela Classificação Internacional de Doenças (GALETTI JR., 2011GALETTI, JR. (2011) Modelos de atendimento às urgências/emergências. Portal de Aviação de Segurança Pública e Defesa Civil. Disponível em: Disponível em: http://www.pilotopolicial.com.br , Acesso em 28/9/2012.
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), causas externas seriam lesões, envenenamentos, fraturas, ferimentos, queimaduras, intoxicações, afogamentos, etc., emergências por agravo de fatores traumáticos, sendo que "cerca de quatro a cada dez leitos hospitalares são ocupados por vítimas de trauma, para cada óbito em acidentes de trânsito existem cerca de quatro vítimas com sequelas graves e 15 feridos" (idem, 2011).

Galetti Jr (2011GALETTI, JR. (2011) Modelos de atendimento às urgências/emergências. Portal de Aviação de Segurança Pública e Defesa Civil. Disponível em: Disponível em: http://www.pilotopolicial.com.br , Acesso em 28/9/2012.
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) recorre ao Conselho Federal de Medicina para definir urgência e emergência (através da Resolução 1.451/95). A urgência seria "uma ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata"; a emergência seria a "constatação médica de condições de agravo à saúde que implicam risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento médico imediato (GALETTI JR apud FERNANDES, 2011GALETTI, JR. (2011) Modelos de atendimento às urgências/emergências. Portal de Aviação de Segurança Pública e Defesa Civil. Disponível em: Disponível em: http://www.pilotopolicial.com.br , Acesso em 28/9/2012.
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)." As urgências médicas representam uma ameaça à integridade física ou psicológica da pessoa. As emergências são passíveis de tratamento, desde que reconhecidas e rapidamente executadas as medidas terapêuticas. A gravidade dos casos é avaliada pelo tempo. Quanto menor o tempo, maior a urgência. A emergência inclui a questão de diminuir a mortalidade e as sequelas incapacitantes.

Em seu artigo, Galetti Jr (2011GALETTI, JR. (2011) Modelos de atendimento às urgências/emergências. Portal de Aviação de Segurança Pública e Defesa Civil. Disponível em: Disponível em: http://www.pilotopolicial.com.br , Acesso em 28/9/2012.
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) enfatiza o gasto global de bilhões, devido ao politraumatismo, ao grande número de mortes, à ocupação de leitos em hospitais, às consequências posteriores (por questões de incapacidade de retorno ao mercado de trabalho que atingem estruturas familiares), sem contar as sequelas físicas e psíquicas que atingirão aquele que sofreu o traumatismo, talvez por toda a vida.

Desta forma, uma das propostas da Agenda Nacional de Prioridades em Pesquisa de Saúde do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. (2011) Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde, Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/agenda_nacional_prioridades_2ed_3imp.pdf . Acesso em 31/8/2016.
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) de políticas públicas para a questão dos Acidentes, Violência e Trauma são as propostas e estratégias de prevenções de saúde que estão ocorrendo em escolas e postos de saúde com o recurso da Estratégia de Saúde da Família. Um dos exemplos de tentativa de prevenção acionado pelo Governo é o cerco em relação ao uso de álcool por menores de 18 anos e na questão do trânsito.

Porém, a prevenção e a promoção de saúde são os primeiros passos para a diminuição de acidentes, violência e traumas. Outro ponto, levantado pelos autores, é a premência de se avançar na necessidade de obter recursos humanos, infraestrutura, equipamentos e materiais, de modo a assegurar uma assistência integral, com qualidade aceitável e contínua, logo nos primeiros momentos do acidente.

Isto posto, podemos dizer que buscamos aqui discutir quais os recursos que o psicanalista tem para trabalhar nos momentos em que a Agenda Nacional está chamando de: Acidentes, Violência e Trauma. A psicanálise tem recursos? Como proceder? Como intervir? Quais os instrumentos teóricos que a saúde mental possui para lidar com a prática de situações de urgência e de emergência?

O sujeito frente ao Real traumático

Uma das questões do atendimento em situações de Acidentes, Violência e Trauma é a profunda angústia em que o sujeito se encontra. Uma angústia que avassala suas entranhas e o desnorteia. O sujeito perde as referências, deixa de pensar, não consegue decidir ou agir. Há uma paralisia, um momento de crise. Os piores pensamentos o assolam e não permitem dar vazão a novas ideias que possam redirecionar melhor sua vida. É o que mais tarde, em seu ensino, Lacan nomeou de encontro com o Real, o traumatismo de lidar com o imprevisto do Real. O esfacelamento do sujeito, o momento de ruptura, de descontinuidade, o espaço sem lei que se descortina e tira o chão do sujeito. Ou seja, um encontro com o real que pode levar a um colapso imaginário, uma queda narcísica.

Podemos utilizar, como exemplo de trauma, o recorte do trágico acidente que foi muito discutido na mídia brasileira e envolveu o filho da atriz Cissa Guimarães. Rafael faleceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de julho de 2010, quando andava de skate, com amigos num túnel fechado por policiais. Ele foi atropelado por um moço que surgiu, de repente, fazendo racha com o amigo.

Cissa Guimarães, após dois meses, deu uma entrevista para a Revista Veja (6 de outubro de 2010) em que fala do efeito do Real perante a morte de um filho:

"Nos primeiros dias, a minha dor era tão grande que eu ficava à deriva. Não conseguia tomar decisões de ordem prática. Não conseguia, por exemplo, decidir o que ia comer. Alguns amigos se encarregavam da minha alimentação. E isso dura um pouco até hoje. Sempre que vou atravessar a rua, alguém que está comigo é que olha para os dois lados. Estou um pouco aérea. (...) Às 8, soubemos da morte. Mas eu não me lembro de muito mais coisas daquele dia. Depois, eu me sentia exausta e toda doída. Passei dias sem saber dos detalhes do crime." (VEJA, 2010VEJA. (6/10/2010) "Eu estou sangrando", reportagem de Juliana Linhares, p.19-23., p.22)

Ao que Miguel Falabella, ator e diretor arremata: "Minha filha, um tsunami passou na sua vida e ele não vai embora tão cedo; se agarra no primeiro toco que passar, amarra um sári na cabeça para se proteger do sol e não larga desse toco nunca mais. É isso que vai fazer você não se afogar" (idem, ibidem).

Psicanálise

Para falarmos sobre as perdas, algo frequente em situação de trauma, podemos ir ao começo do trabalho de Lacan, no Seminário IV (1995LACAN, J. (1995/1956-1957) O Seminário, livro IV: As relações de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1956-1957) em que este nomeia as três formas de falta de objeto como: privação, frustração e castração. Grosso modo, diz, apenas a título de introdução, que a privação consiste em uma natureza de falta e é essencialmente uma falta real. É um furo. O objeto perdido é um objeto simbólico.

Por sua vez, a frustração é vivida como um dano, uma lesão no plano imaginário. Nela impera o domínio da reivindicação. É aquilo que foi desejado e não obtido, mas sem referência à aquisição, ou à satisfação. A frustração é por si mesma o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. O centro da noção de frustração é o dano imaginário. O objeto é visto por Lacan como objeto real.

Por fim, a castração é o conceito central da noção de falta de objeto, da lei primordial, do que há de lei fundamental na interdição do incesto e na estrutura do Édipo. A castração se classifica na categoria da dívida simbólica, sendo o objeto considerado objeto imaginário.

Assim, Lacan conceitua as formas de inscrição da falta, ao mesmo tempo em que pensa as dimensões do objeto à luz dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Nesse momento de sua teorização, o falo é o conceito central nessa articulação entre o objeto e os registros, no que tange à questão da falta. E, para que se possa discutir acidente, violência e trauma, é preciso admitir que o indivíduo se defronta, visceralmente, com a falta.

A falta de objeto é uma questão que toca todo ser humano. Neste exato momento, estamos privados de tantos objetos que nem nos damos conta de quantos... Ao longo da vida, são inúmeras as frustrações, objetos que desejamos, mas a que não tivemos acesso... É a condição de sujeito dividido, logo, castrado, incompleto, faltante. Porém, as situações de emergência e urgência são marcadas pela intensidade e gravidade, da falta de objeto, no momento. A privação (por exemplo: de não ter o socorro no tempo certo) traz efeitos danosos e, provavelmente irreversíveis, colocando o sujeito entre a vida e a morte. As frustrações existem em grande quantidade e intensidade, abalando estruturas de base do sujeito: casamento, família, moradia, saúde; todas ao mesmo tempo, e a probabilidade de elas continuarem acontecendo, ao longo de um tempo, é muito grande. Assim, a castração vai dilacerando as vísceras do sujeito, apontando a morte, um despedaçamento real, como uma possibilidade não tão distante.

O Real é contingente. Ele irrompe de forma dramática. O Real não se explica, pois se o explicarmos, ele deixa de ser Real. Ele invade a vida, aos pedaços.

No Seminário XXIII, Lacan se refere ao real como estando fora da lei: "O verdadeiro real implica a ausência de lei. O real não tem ordem" (2003/1974-1975, p.83), Para se aproximar do real, não adianta ir pela lógica do racional, pois não são as mesmas leis que o regem, e nem sempre é possível ir pela lógica do simbólico, pois o Real é sem lei. O real irrompe fora de uma linearidade espaço-temporal.

Existem diferentes formas de o Real emergir, mas podemos dizer que as situações de Acidente, Violência e Trauma são, por excelência, da ordem do Real. A chamada clínica do Real, que Lacan apresentou na década de 1970, tem muito a contribuir quanto à saúde mental do politraumatizado e daqueles que viveram o choque junto ao indivíduo, bem como às pessoas que sofrerão as consequências da situação - suas famílias, por exemplo.

O psicanalista deve levar em conta que quem sofre o trauma, ou seus efeitos, tende a ter um encontro com o Real que o invade, o sujeito é tomado pela angústia e, dessa forma, é comum que as construções simbólicas se desmontem. A pessoa pode ficar em choque e não parar de chorar, pode 'racionalizar', pode avaliar erroneamente que em dois ou três dias já voltará ao trabalho e tudo continuará como antes, etc. São muitas as formas de responder ao real traumático.

Cruglak (2001CRUGLAK, C. (2001) Clínica da identificaçãoRio de Janeiro: Companhia de Freud ., p.11) aponta que, frente ao Real, podemos fazer um sintoma ou um ato de criação, um delírio ou uma manifestação do corpo. Difícil sair incólume ao choque com o Real. O sujeito perde-se na direção a seguir... muitas vezes, um dos laços se desata, desarticulando o nó borromeano, gerando crise, angústias e sofrimentos. Frente ao trauma, o real irrompe. É preciso responder a ele. E nem sempre é possível responder da melhor forma para nossas vidas.

Este é o estado do sujeito que recebemos na 'clínica das urgências e emergências': em pronto-socorro, em hospital geral, em instituições de saúde, etc. Como o psicanalista pode se posicionar frente ao sujeito que está avassalado, dilacerado, pelas três relações de falta de objeto: privação, frustração e castração? O que Lacan nomeou, mais tarde, como sujeito frente ao trauma. O trauma que irrompe e invade o Real dividindo o sujeito.

Intervenção em situação de trauma - a identificação

Se nem tudo passa pelo simbólico, se não é possível traduzir todo o inconsciente em palavras, como atingir o sujeito? Mesmo porque, em situações de trauma, uma das questões é que não há tempo hábil para traduzir o inconsciente em palavras e essa é a crítica que a psicanálise recebe, com frenquência, ao se deparar com tais situações limites. Como operar nesta nova clínica lacaniana frente ao Real? Frente a situações de trauma?

Nossa hipótese é de que a teoria lacaniana oferece instrumentos interessantes para se pensar a atuação do psicanalista nessas circunstâncias. Para tanto, nos valeremos do Seminário XXIII (2003LACAN, J. (2003/1975-1976) Le Séminaire, Livre XXIII: Le Sinthome. Paris: Seuil./1975-1976) e do Seminário XXIV (1976), nos quais Lacan dedica-se a pensar o trauma como da ordem do Real. Como algo que invade o que está estabelecido, é algo que causa uma fratura, um rompimento: "o real em questão tem o valor do que chamamos geralmente de um traumatismo" (2003/1975-1976, p.79) É algo que se despedaça: "só podemos alcançar pedaços de real" (2003/1975-1976, p.71). Ou seja, neste ponto, Lacan entende que podemos ter acesso sim ao real, porém, em fragmentos. Então, ele deixa de ser o impossível e o impensável para o que Lacan apresenta no Seminário XXIV (1976): "o Real é o possível à espera de se escrever".

A grande questão no caso, passa a ser: como podemos, como psicanalistas, alcançar um pedaço desse real? Pois, é somente alcançando um pedaço desse real que o analista tem o mínimo de condição de trabalho frente ao sujeito esfacelado na situação de trauma.

Na Lição de 15 de abril do Seminário R.S.I. (1975), Lacan interroga: "ouviram falar sobre a identificação?", e acrescenta: "Em Freud, a identificação é simplesmente genial. O que é que desejo? A identificação com o grupo" (idem, p.64) é o ponto de partida para qualquer nó se constituir. Continuando na mesma lição, Lacan faz uma ligação entre os pontos abordados antes: "Ao que em todo nó borromeano é o coração, o centro do nó; e onde é que marquei se situar o desejo, desejo que também é uma possibilidade de identificação? Aqui, onde situei para vocês o lugar do objeto pequeno a..." (idem, p.65).

Ou seja, numa situação de trauma, o psicanalista não tem a transferência do sujeito, pois, na maioria das vezes, é um primeiro encontro; e também não pode contar muito com o simbólico do sujeito, pois houve uma abertura maior para o real. Lacan enfatiza que podemos, então, contar com a identificação, pois a identificação sempre é de um pedaço, de uma parte, de uma borda, um primeiro laço. A identificação é o primeiro passo para a constituição do nó e, portanto, da consitituição do sujeito do inconsciente e, sempre, o psicanalista irá se posicionar no lugar do objeto pequeno a. Porque é da posição de semblante de objeto a que os fios da amarração borromeana se entrecruzam e, no momento do trauma, podem estar desentrelaçados. O psicanalista pode intervir e alinhavar, fazer uma sutura, momentânea, porém eficaz para as primeiras manobras nas situações de urgência e emergência, utilizando um recurso imaginário.

No Seminário XI (1964/1988) segundo Lacan, para que exista o objeto, para o objeto tomar corpo para o sujeito, é preciso que, de alguma forma, este toque o objeto a do sujeito, ou seja, esbarre no lugar de falta particular para ele. Somente no lugar da falta que o sujeito consegue fazer uma primeira ligação de objeto: que seria ainda bastante primitiva, seria um traço identificatório. O objeto é percebido pelo sujeito como expectativa de fonte de satisfação, plenitude e complementaridade narcísica. O objeto ainda está no plano imaginário, ainda numa posição de ideal e, o sujeito frente ao trauma está, por excelência, em situação de falta. Desta forma, há uma possibilidade de ligação efêmera, porém imediata, do analista como objeto ideal no momento capturando fatias de real do paciente.

Freud, em Psicologia das massas e análise do eu (1921FREUD, S. (1921) "Psicologia de grupo e análise do ego", v. XVIII, p.91-184.), fala de três modos específicos de identificação: 1) Identificação ao desejo do Outro, que aparece muito bem no caso da Bela Açougueira de A interpretação dos sonhos (1900FREUD, S. (1900) "A interpretação dos sonhos", v.IV e V), e que Lacan desenvolveu depois sobre a capacidade de ir em busca de desejos que não são próprios do sujeito, mas como imitação a uma identificação; 2) Identificação ao traço unário: a pura diferença; 3) Identificação no quadro da situação edípica. Freud coloca o caso Dora como paradigma. Por uma identificação ao pai faz um sintoma. Uma parte pelo todo (a tosse da Sra. K).

No Seminário IX, A identificação (1961LACAN, J. (1961-1962) Seminaire livre IX, L'identification. (O Seminário, livro IX, A Identificação) Recuperado de http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/09-ID/ID10011962.htm
http://gaogoa.free.fr/Seminaires_HTML/09...
-1962), Lacan discute sobre estas três maneiras de identificação apresentadas por Freud. No Seminário XXII (1975) coloca-as no âmago da constituição do nó borromeano. Lacan termina a aula de 18 de março de 1975 do Seminário R.S.I. apresentando a identificação tripla que se interliga na cadeia borromeana:

"se há um outro Real, não está senão no próprio nó e é por isso que não há Outro do Outro. Esse Outro Real, identifiquem-no com o seu imaginário, terão então a identificação do histérico com o desejo do Outro, esta se passa neste ponto central. Identifiquem-se com o Simbólico do Outro Real, terão então essa identificação que especifiquei como Eiziger Zug, como traço unário. Identifiquem-se com o Real do Outro Real, obterão o que indiquei como Nome do Pai..." (LACAN, 1975LACAN, J. (1974-1975) Le seminaire XXII: R.S.I. Ornicar?, n.3, Paris: Navarin., p.53)

É preciso marcar, sobretudo, que o nó borromeano é a abstração de uma figura topológica em movimento, estudada no compromisso de responder ao real da clínica. Lacan está colocando o quanto nosso sistema psíquico - Real, Simbólico e Imaginário - é configurado sob o referencial da identificação. O sujeito é montado a partir do desejo do Outro. Se não existir o desejo do Outro, o sujeito não surge. Se não houver um traço de semelhança que o una ao outro (pai, mãe, etc.) não se dá a constituição do sujeito. Se não houver a Lei e o Pai, o sujeito fica comprometido.

Lacan continua, e na 1ª Lição do Seminário XXIV (1976) interroga: o que é interior ao inconsciente? E diz em seguida: "este interior que chamamos correntemente a identificação? (...) Por que é claro que a identificação é o que se cristaliza na identidade" (p.10) Coloca que na identidade, na formação do inconsciente, está a identificação e retoma Freud e os três níveis que ele apresenta de identificação, os quais discutiu no referencial do nó borromeano: 1) Identificação ao pai - amor; 2) Identificação histérica - querer o que o outro tem, o desejo do Outro; 3) Identificação fabricada por um traço, um traço unário.

Para Lacan, o traço não tem necessariamente relação com uma pessoa amada: "Uma pessoa pode ser indiferente e um traço unário escolhido como constituindo a base de uma identificação" (idem, p.10). É como Freud havia discutido em Psicologia das massas e análise do eu (1921), um único traço liga pessoas de um grupo, elege um presidente, coordena o exército, guia a Igreja.

A identificação é constituinte do sujeito e também constituinte da ligação com o outro, com o mundo, um passo para o objeto causa de desejo. Para que haja ligação entre um e outro é importante que haja, de alguma forma, a identificação. Uma primeira ligação de reciprocidade ajuda muito no atendimento à clínica das emergências e urgências.

Intervenção do psicanalista em situação de trauma - a parapsicose

Numa instituição em que lidamos, na maior parte do tempo, com o trauma atravessando fortemente a vida das pessoas, temos que considerar que elas estão em 'suspensão'. O sistema psíquico está tendo que digerir a realidade, e uma realidade bastante indigesta, sofrida, com dores e separações. Os mecanismos de defesa agem rápido: a negação, a regressão, a racionalização, etc. Algumas pessoas ficam em estado de choque, outras ficam agitadas e otimistas, outras ficam mais cabisbaixas e pessimistas, sem conseguir ver uma luz, etc. São formas imediatas de reagir ao Real. São formas de suspensão da vida cotidiana. Como disse a atriz Cissa Guimarães, fica-se à deriva, não se consegue tomar decisões, até quanto ao que comer, fica-se aéreo e a sensação pode durar muito tempo, o dia a dia não encaixa mais em suas vidas, às vezes, por meses. É necessário reexplicar a vida, recriá-la talvez... e, para isso, é necessário um investimento psíquico muito grande.

Bom, independentemente do diagnóstico de cada pessoa, através destes anos de trabalho em instituição, pudemos ver que o atravessamento do real, o trauma, num primeiro momento, faz um corte em que 'tira a conexão do sujeito com o mundo', aparece o alheamento, a suspensão das referências. E é nesse estado que o analista encontra a pessoa pela primeira vez numa instituição de saúde. Isto nos fez pensar que em primeiras entrevistas, em situação de urgências e emergências, poderíamos utilizar, primeiro, o recurso da identificação, de alguma forma, algum traço que conecte o indivíduo e, depois, o manejo da psicose apontada por Lacan em 1956: o testemunho e o secretariado.

No Seminário III, As psicoses (1981/1955LACAN, J. (1985/1955-1956) O Seminário, livro III: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.-1956), Lacan fala do recurso do analista ficar na posição de secretário do alienado: "não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta - o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada" (idem, p.235). E prossegue: "A questão é saber o que vale o testemunho do sujeito. Pois bem, ele nos dá sua experiência, que se impõe como a própria estrutura da realidade para ele" (idem, p.240).

Lacan trouxe uma nova luz para o manejo do psicótico em 1956, possibilitando o tratamento da psicose. Esse mesmo recurso também traz, agora, avanços para a questão do trauma.

Podemos recorrer ao que Jean Allouch (2004ALLOUCH, J. (2004) A erótica do luto Rio de Janeiro: Companhia de Freud.) discute em A erótica do luto, pois corriqueiramente, frente a situações de trauma, contamos com perdas e lutos. Por exemplo, em problemas de violência familiar, algumas vezes acontecem mortes ou separações; em acidentes de trânsito, acontece o falecimento de uma pessoa ou a falência de um órgão, a perda de uma perna ou um olho, comprometendo o trabalho e a vida cotidiana. Num diagnóstico de câncer, existe a perda das atividades diárias, a perda dos cabelos e o medo da morte iminente. Ou seja, para discutir a questão da violência e do trauma, podemos incluir a questão da perda. Frente a graves perdas, o indivíduo sente uma invasão 'automática' do Real, que Allouch nomeia como um estado de parapsicose. A pessoa fica em suspensão, fica por instantes, dias ou meses (depende do tempo lógico do sistema psíquico do sujeito) em parapsicose. É como se a pessoa estivesse em surto. Porém, Allouch distingue a parapsicose do surto psicótico: na psicose, o furo é no simbólico. Há o retorno no real, mas a falta está no simbólico. No luto, o furo é real e um elemento simbólico é convocado por um furo no real.

Como no exemplo de Cissa Guimarães - "Às 8, soubemos da morte. Mas eu não me lembro de muito mais coisas daquele dia. Depois, eu me sentia exausta e toda doída. Passei dias sem saber dos detalhes do crime..." - este é o efeito que estamos nomeando, segundo Allouch, de parapsicose. A pessoa fica atordoada, não se conecta, não compreende os detalhes, fica algo à espera de se inscrever.

Nas três ocasiões: tanto o indivíduo em surto psicótico, quanto o indivíduo em luto ou em situação de trauma, fenomenicamente, a pessoa se encontra no mesmo estado: desconectada, falando coisas desconexas, tendo alucinações, incapaz de responder às demandas que a vida apresenta.

Ou seja, tanto o traço identificatório quanto o testemunho e o secretariado são construções que partem da ideia de que a pessoa está desconectada e o primeiro passo seria fazer uma conexão. Uma conexão com uma parte da vida, com uma pessoa, com um objeto talvez. Uma conexão com o analista, com a presença do analista. Algumas vezes, ouvimos frases como: "preciso ficar bem por causa do meu neto, ele precisa de mim". Ou então, "preciso melhorar porque não tem ninguém para cuidar da casa". São formas de conexão que precisam ser incentivadas para que o sujeito crie forças imaginárias de sobrevivência. Pois, as pessoas estão desesperadas, desorientadas e, assim como o psicótico ou a pessoa enlutada, ficam sem um reduto em que possam existir, em suspensão, e é com este fenômeno que o analista deve estar preparado para lidar em situações de trauma.

A direção do atendimento

Já temos alguns instrumentos para trabalhar frente às emergências e urgências. Então, qual seria o objetivo do atendimento psicanalítico na situação de trauma? Qual a direção do tratamento quando o Real se impõe? Qual o viés do atendimento? Talvez de uma única entrevista? Seria: Apoio? Compreensão? Retificação subjetiva? Abertura de inconsciente? Interrogar o sujeito?

Em situação de trauma, o passo seguinte é incluir o gozo. O ato do analista deve se direcionar para que, do gozo quase que pleno, do gozo em estado bruto típico do surto psicótico, possa ser produzido um gozo fálico. A substância gozante fica eviscerada e indiscriminada e o horror, o terror, o pavor ganham imensas proporções.

A questão, como diz Lambert (2003LAMBERT, A. (2003) Psicanálise no hospital. Opção Lacaniana n.37, Rio de Janeiro.), é que o "atendimento em hospital inclui a presença constante de alguma forma de horror, de real que convoca o sujeito, como a doença, a pobreza, os maus tratos" (p.49). Neste ponto, continua Lambert, é importante ressaltar, o horror e a angústia que causam o traumatizado na equipe de saúde. A doença e as mazelas geram horror e angústia e convocam ou à repugnância ou ao assistencialismo, e a equipe de saúde, sobretudo o psicanalista, deve estar preparado para não cair no engodo. É preciso que o psicanalista inclua o horror pelo qual o sujeito está passando e administre o próprio horror ao se deparar tão cruamente com a castração.

Entre muitos casos clínicos que poderiam ser discutidos aqui, demos preferência para um que saiu na mídia, o de Cissa Guimarães, já publicado e... quem não se lembra desse fato? Quem não ficou horrorizado ao saber da notícia?

Isto é trabalhar em pronto-socorro, hospital geral, instituição de saúde, etc. É defrontar-se durante 24 horas com atrocidades que causam horror ao profissional. Desta forma, é preciso muita análise pessoal, muito esforço para não haver uma identificação e um embaralhamento das questões subjetivas do profissional com as do paciente.

Camargo (2003CAMARGO, M.B. (2003) O analista trabalhando na instituição. Opção Lacaniana n.37. Rio de Janeiro, p.66-72.), ao escrever sobre sua experiência em instituição, enfatiza: "O lugar de objeto a é vazio, lugar de semblante e o analista o ocupa, desembaraçado de suas questões subjetivas (...) a encarnar o objeto da pulsão para o sujeito (...) Significa também estar aberto ao imprevisto, sabendo tirar consequências disso" (p.69).

Mesmo sendo a primeira entrevista, o analista, ao se colocar na posição de objeto a, faz o semblante através do traço identificatório e, assim, artesanalmente, abre o espaço vazio para cada sujeito, como diz Vieira (2008VIEIRA, M. A. (2008) A periferia de Freud: do pai freudiano ao objeto lacaniano Arquivos brasileiros de psicologia, v.60, n.1.): "insufla a vida artesanal nos contornos industriais de uma existência" (p.5). O analista passa a encarnar o objeto da pulsão artesanalmente, sendo endereçado a ele um gozo bruto, desgovernado, aberto ao imprevisto, ao inusitado e ao horror.

Para Geneviève Morel, é no momento em que Lacan começa a pensar o Real como não há relação sexual, que ele introduz o conceito de função fálica e utiliza esse instrumento para pensar o lugar vazio do sujeito em relação ao falo, num paradoxo entre gozo e castração e, assim, a lógica do analista que impera é a "lógica que possa escrever a relação do sujeito com o gozo e com a função fálica" (MOREL, 1999MOREL, G. (1999) A função do sintoma. Revista de Psicanálise, ano VI, n.11. Bahia: Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise, p.4-27. {Links}, p.14). É exatamente neste ponto, neste vazio da articulação R.S.I. com o gozo que o analista pode exercer seu ato de analista na posição de objeto a.

Lacan diferencia algumas formas de gozo que se movimentam via real, simbólico e imaginário. "O gozo é um real e suas localizações se fazem por determinações simbólicas e imaginárias, ou seja, as localizações de gozo, de forma complexa, implicam a tríade real-simbólico-imaginário" (idem, p.10).

Porém, neste artigo, a diferenciação prioritária é pensarmos que existe um gozo da ordem do Real que tende à plenitude, que visa à satisfação completa e imediata, pois a pessoa está em desespero. Por outro lado, existe o gozo fálico. Gozo universal, pois todo ser humano tem a capacidade de exercer a função fálica, "A função fálica, que é uma função universal, se articula a algo que é singular" (idem, p.14). Este modo de gozo possui duas vertentes: a impossibilidade e a possibilidade, a castração e a execução de uma atividade incluindo a castração. "Ser fálico em seu gozo é ser castrado em seu gozo. Eis a particularidade da função fálica", "A função fálica tem... uma face real - o gozo - e uma face simbólica - a lei, a interdição, a castração" (idem, p.15). Assim, na função fálica há uma perda de gozo e um redirecionamento do gozo para outra diz-mansão.1 1 Conceito desenvolvido por Lacan no Seminário XVIII (2009/1971), sobre a morada do dito. Aquilo que é dito tem uma dimensão e uma morada, um lugar de gozo para o sujeito. Dessa maneira, através de significantes específicos, particulares a cada sujeito, é possível redimensionar a direção do gozo. Independentemente da forma como o parletre vê e se relaciona com a castração, de um modo absolutamente particular e singular, é possível exercer a função fálica, pois pode haver um modo de barrar o gozo via desejo, condição sine qua non da qualidade humana.

Ao suportar este lugar. Ao suportar ficar neste lugar de escuta. Ao ficar, de alguma forma, como para-raio desse gozo encarnando o objeto da pulsão de maneira singular a cada sujeito, a presença de analista já faz uma parte do trabalho. Pois é nesse momento que muitos profissionais se fragilizam e então só conseguem ver uma direção que seria o apoio, a compreensão e pensamentos positivos. Mas esta não é a posição ética da psicanálise, esta é uma posição pautada na paralisia que o profissional sente frente à castração do outro e que, por sua vez, fica identificado nesta posição de castração.

Dessa forma, segundo a ética da psicanálise, é preciso escutar na posição de lugar vazio, de objeto a e suportar o horror da castração para que o analista, desembaraçado de suas questões subjetivas, possa ficar de fato na posição de analista e executar o seu ato. É preciso uma boa dose de investimento objetal que faça laço social, que veja e escute o outro, pois o analista que se perde em frágeis questionamentos da ordem do narcisismo, voltando-se para si próprio, pouco pode executar o seu ato, principalmente em situações tão limites.

No Seminário XXIV (1976), Lacan vai ainda mais longe quando apresenta o inconsciente como l'une bevue, a intervenção possível é pela via da poesia, do jogo, da falha, do resto. Algo que nem sempre passa pelas leis simbólicas. Algo que escapa e possibilita um encontro, único e singular do sujeito com seu analista, mesmo que seja uma única sessão, em situação de trauma.

Uma evidência clínica constante que nos motivou a escrever o artigo foi que, após essas manobras, percebíamos pequenas, porém importantes decisões do sujeito, como por exemplo: parar de brigar com a colega de leito no quarto, dar um telefonema para o marido explicando algumas questões sérias que o acidente provocara e que ela ainda não tinha conseguido expressar, sair na rua, mesmo fraturada, sem tanta preocupação com o que as pessoas pensariam para realizar algumas questões práticas e necessárias. São exemplos que apontam pequenas mudanças de posição e que fazem um diferencial na paralisia frente ao real, como demonstra Cissa Guimarães.

Podemos dizer que o manejo é próximo, um esboço, do que, anos antes, Lacan discutia no Seminário XI: É naquilo que falta ao sujeito, no - phi, que a angústia invade e assim são abertas as portas para o objeto causa. É nesta tiquê, nesta hiância que se contrapõe ao automaton que há espaço para o analista, portanto, há lugar para o analista na tiquê, na hiância que se abre com a situação traumática. Tiquê e Automaton são termos aristotélicos e utilizados por Lacan, anteriormente ao último desenvolvimento do conceito de Real. "A função da tiquê, do real como encontro - o encontro enquanto podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso - de forma de traumatismo" (LACAN, 1988LACAN, J. (1988/1964) Seminário Livro XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1964, p.57).

Para capturar um inconsciente eviscerado pelo Real, para enfrentar as situações de trauma e para capturar um pedaço de real, por que não mais uma tiquê? Por que não uma pergunta, um assunto banal, um gosto, uma paixão ou até mesmo amenidades triviais? Um chiste, uma brincadeira, uma besteira? Qualquer coisa, como diz Lacan, qualquer coisa que faça traço, que faça ligação com o sujeito desejante para que, com o trabalho do analista, de gozo pleno se produza gozo fálico.

O segundo passo é o manejo de testemunho e secretariado direcionando o atendimento do sujeito que está em suspenso, a fim de que ele consiga nomear o gozo fálico. Com o objetivo de que com alguma alteração na vida prática o sujeito possa efetuar, mesmo que de forma ínfima, perto da imensidão e da grandiosidade do problema pelo qual está passando. A ideia é o psicanalista trabalhar em instituições que lidam com o sujeito frente ao trauma, de forma a favorecer o saber-fazer do sujeito. Um passo importante que pode trazer luz para um novo caminhar.

Referências

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    /1971LACAN, J..(2009/1971) Seminário LivroXVIII, De um discurso que não fosse semblante Rio de Janeiro: Jorge Zahar .), sobre a morada do dito. Aquilo que é dito tem uma dimensão e uma morada, um lugar de gozo para o sujeito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2012
  • Aceito
    01 Abr 2013
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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