Open-access QUALIDADE DO GELO UTILIZADO NA CONSERVAÇÃO DE PESCADO FRESCO

ICE QUALITY USED FOR THE PRESERVATION OF FRESH SEAFOOD

RESUMO

O gelo utilizado para refrigerar alimentos pode estar contaminado com micro-organismos patogênicos e se tornar um veículo de contaminação para infecções humanas. Para avaliar a qualidade microbiológica de gelo utilizado para conservar pescado fresco, 30 amostras foram estudadas. Os seguintes parâmetros foram determinados: contagem de heterotróficos mesófilos e psicrotróficos, NMP de coliformes totais e termotolerantes, pH, turbidez e cloro residual livre (CRL). A presença de uma alta população de coliformes e micro-organismos heterotróficos e a má qualidade físico-química sugerem que o gelo usado na conservação do pescado fresco pode representar risco potencial ao consumidor, além de reduzir a vida útil do alimento.

PALAVRAS-CHAVE Qualidade; gelo; pescado fresco

ABSTRACT

Ice used to refrigerate foods can be contaminated with pathogenic microorganisms and may become a vehicle for human infection. To evaluate the microbiological content of commercial ice used to refrigerate fresh seafood, 30 samples were studied. The following parameters were determined: counting of mesophilic and psychrotrophics, MPN for total coliforms and thermoresistant coliforms, pH, turbidity and free residual chlorine (FRC). The presence of high numbers of coliforms and heterotrophic indicator microorganisms, coupled with the bad physical-chemical results, suggested that ice used to preserve fresh fish may represent a potential hazard to the consumer while also reducing the shelf life of this food.

KEY WORDS Quality; ice; fresh seafood

O potencial do Brasil para o desenvolvimento da aquicultura é imenso, já que é constituído por 8.400 km de costa marítima, 5.500.000 hectares de reservatórios de águas doces, o que equivale aproximadamente 12% da água doce disponível no planeta, clima extremamente favorável para o crescimento dos organismos cultivados, terras disponíveis e ainda relativamente de baixo custo na maior parte do país, mãode-obra abundante e crescente demanda por pescado no mercado interno (MERCADO DA PESCA, 2005).

A boa qualidade de um alimento, como o pescado, deve reunir alguns requisitos adequados ao consumo humano como, por exemplo, seguir as leis em vigor e as normas gerais de comércio, incluindo ausência de fraudes e de aditivos não autorizados, bem como apresentar-se com adequada identificação(FEHLHABER; JANETSCHKE, 1992).

Nesse sentido, o controle da qualidade do pescado inicia-se com a inspeção sanitária da matéria-prima, estendendo-se aos entrepostos e sistema de transporte, atingindo por último as indústrias processadoras. A vigilância sanitária atua zelando pela qualidade higiênico-sanitária dos produtos colocados à disposição dos consumidores. O pescado integra o grupo dos alimentos altamente perecíveis e exige cuidados especiais, como a conservação pelo frio, já que também está sujeito à contaminação pelos mais variados microorganismos, adquiridos já no ambiente aquático, ou durante as diferentes etapas de captura e transporte (CONSTANTINIDO, 1994; HOBBS, 1998). Assim, as ações da vigilância sanitária são de extrema importância para assegurar aos consumidores produtos com boa qualidade higiênico-sanitária (GERMANO; GERMANO, 2001).

O pescado considerado em condições satisfatórias durante a captura é destinado para os entrepostos, para posterior distribuição. O transporte é uma etapa importante e tem de ser realizado em caminhões frigoríficos. Em todas estas fases, a inspeção tem de se fazer presente, assegurando, principalmente, que a cadeia do frio seja mantida com rigor (ZICAN, 1994). Durante o processamento, o excesso de peixe que não pode ser imediatamente processado é conservado em caixas nas quais são intercaladas camadas de pescado e gelo em escamas, e que são armazenadas em câmaras refrigeradas por até 3 dias. O mesmo acontece nos pontos de venda ao consumidor (OETTERER, 2001).

O gelo utilizado para conservação de alimentos pode ser um importante veículo de contaminação microbiana para o pescado, sendo que, no Brasil, já se observou a baixa qualidade do gelo utilizado na refrigeração, devido à presença de grandes quantidades de micro-organismos (PIMENTEL, 2001).

Diante do risco potencial da transmissão de doenças de veiculação hídrica através do consumo de gelo contaminado, a diretoria do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde preconiza que todo gelo destinado ao consumo humano ou que entre em contato com alimentos deverá ser fabricado a partir de água que atenda ao padrão de potabilidade estabelecido, sendo cloro residual livre entre 0,5 e 2,0 ppm; pH de 6,0 a 9,5; turbidez menor que 2,0 NTU; contagem de mesófilos de no máximo 5,0 x 10² UFC/mL e ausência de coliformes/100 mL de água analisada (BRASIL, 2004).

Segundo SCHERER et al. (2004), o uso do gelo clorado é efetivo na redução da contagem de micro-organismos aeróbios mesófilos e psicrotróficos na carne, ampliando em aproximadamente três dias a vida de prateleira de pescados armazenados inteiros sob refrigeração. Porém, nem sempre o gelo utilizado na conservação de alimentos apresenta qualidade satisfatória, como pode ser verificado em diversos trabalhos descritos na literatura científica (NICHOLS et al., 2000; LATEEF et al., 2006).

O presente trabalho teve como objetivos avaliar a qualidade microbiológica do gelo utilizado na conservação do pescado por meio da contagem de microorganismos heterotróficos aeróbios ou facultativos mesófilos e psicrotróficos viáveis presentes e da determinação do número mais provável de coliformes totais e termotolerantes e avaliar as características físico-químicas desse gelo, através da determinação do pH, da turbidez e do cloro residual livre.

Assim, foram colhidas e analisadas 30 amostras de gelo utilizado na conservação de pescados, obtidas em quatro diferentes estabelecimentos comerciais de Ribeirão Preto, SP, no período de fevereiro a julho de 2006. As amostras de gelo permaneceram sob refrigeração (4º C) até se descongelarem (10 horas) para então serem submetidas às análises.

Para a contagem de mesófilos e psicrotróficos (BRASIL, 2003), foram realizadas diluições decimais (10-1 a 10-4) em solução salina peptonada a 0,1%, que foram então distribuídas em placas de Petri em quadruplicata. A seguir, adicionou-se o agar (plate count agar) pela técnica de pour plate. Após solidificação, as placas foram incubadas para contagem de mesófilos e psicrotróficos (ambos em duplicatas), respectivamente, em estufas a 35º C/48h e 7º C/7 dias, quando foram submetidas a contagem de unidades formadoras de colônia (UFC).

Para a determinação do NMP de Coliformes Totais e Termotolerantes (BRASIL, 2003), as análises foram divididas em provas presuntiva e confirmativa.

  • Prova presuntiva: para tal, as referidas diluições foram inoculadas em caldo lauril sulfato triptose (LST) com tubos de Durham invertidos, que foram incubados a 36º C por 24 horas, em estufa, e após foi observado se houve desenvolvimento microbiano, caracterizado por turvação, com a produção de gás.

  • Prova confirmativa: transferiu-se uma alíquota dos tubos positivos na prova presuntiva para tubos de ensaio contendo caldo lactosado bile verde brilhante (coliformes totais), com tubos de Durham invertidos, que foram incubados a 36º C/48h. Após o período, os que se apresentaram positivos (turvação com produção de gás) foram repicados em tubos de ensaio contendo caldo EC (para verificação de coliformes termotolerantes), com tubos de Durham invertidos, que foram então incubados a 45o C por 24-48 horas, em banho-maria. Também considerou-se positivos os tubos que evidenciaram produção de gás e desenvolvimento microbiano.

As avaliações físico-química foram realizadas em duplicata. Todas as amostras foram analisadas imediatamente após terem sido descongeladas. O pH foi determinado pela da utilização de um pHmetro de profundidade (Quimis, 400A®). O cloro residual livre, por método colorimétrico utilizando-se reagente DPD para a dosagem do cloro. A leitura foi realizada em comparador colorimétrico DLH 2000, (Del Lab®), enquanto a turbidez foi determinada pela da utilização de turbidímetro de bancada (Turbidímetro multiprocessado DLM 2000B, Del Lab®).

Os resultados da população de micro-organismos heterotróficos encontram-se na Tabela 1. Verifica-se que todas as amostras analisadas apresentaram população mesofílica e psicrotrófica superior a 104 UFC/ mL, estando em desacordo com a legislação vigente, no qual preconiza contagem de mesófilos de no máximo 5,0 x 10² UFC/mL (BRASIL, 2004). A população encontrada neste trabalho é maior do que a obtida por PIMENTEL (2001) nas amostras de gelo utilizado para conservação de pescado obtidas na grande São Paulo. De acordo com o autor, a maioria das amostras apresentava populações mesofílicas entre 103 e 104 UFC/ mL, sendo poucas as amostras cuja contaminação ultrapassava 105 UFC/mL.

Tabela 1
População de mesófilos e psicrotróficos encontrados em amostras de gelo utilizado na conservação de pescado comercializados na Cidade de Ribeirão Preto, SP.

Em seu trabalho, NICHOLS et al. (2000) analisaram 3.672 amostras de gelo utilizadas para gelar bebidas (96,1%) e também para conservar alimentos prontos para consumo (3,9%). Daquelas utilizadas para armazenar alimentos, 29% apresentaram populações mesofílicas superiores a 103 UFC/mL e 23% apresentaram presença de coliformes, sendo que as amostras usadas na conservação de pescado foram as que apresentaram piores condições higiênico-sanitárias. Em seu trabalho, LATEEF et al. (2006) encontraram mesófilos em gelo usado no armazenamento de pescado na proporção média de 2,19 x 104 UFC/mL. Porém, nenhuma amostra apresentou a presença de coliformes.

No presente estudo, das 30 amostras de gelo analisadas, 29 (96,7%) apresentaram contaminação por coliformes totais e 22 (73,3%), por coliformes termotolerantes (Tabela 2). De acordo com a legislação, a água usada para fabricação de gelo deve ter ausência de coliformes em 100 mL de água analisada (BRASIL, 2004) e o gelo utilizado em contato direto com alimentos ou superfícies que entram em contato direto com eles não deve conter nenhuma substância que possa ser perigosa para a saúde ou contaminar o alimento, obedecendo o padrão de água potável.

Tabela 2
Número mais provável de coliformes totais e coliformes termotolerantes encontrados em amostras de gelo utilizado na conservação de pescado comercializados na Cidade de Ribeirão Preto, SP.

Em um trabalho realizado por SCHERER et al. (2004), as populações de micro-organismos aeróbios mesófilos e psicrotróficos em carpas aumentaram significativamente ao longo da armazenagem, mas o gelo clorado (5 ppm de cloro residual livre) reduziu significativamente a população de mesófilos e psicrotróficos em relação ao grupo de carpas armazenadas em gelo não clorado, além de evitar o aumento do pH da carne das carpas durante o armazenamento. No presente trabalho, apenas uma amostra (3,3%) apresentou cloro residual livre (0,5 ppm), atendendo a legislação (BRASIL, 2004). Em todas as outras amostras, detectou-se ausência de cloro residual livre, o que faz com que a qualidade do pescado armazenado neste gelo possa ficar comprometida.

As 12 (40%) amostras que estavam em desacordo apresentaram pH variando de 4,98 a 5,92.

Em relação à turbidez, verifica-se, pela Tabela 3, que apenas quatro amostras (13,33%) atendiam a legislação vigente. Os resultados encontrados nas 26 amostras que estavam em desacordo com a legislação variavam de 2,68 a 306,0 NTU (BRASIL, 2004).

Tabela 3
Resultados das análises físico-químicas encontradas em amostras de gelo utilizadas na conservação de pescado comercializados na Cidade de Ribeirão Preto, SP.

Os resultados do presente trabalho indicam que o gelo utilizado na conservação do pescado fresco comercializado na Cidade de Ribeirão Preto, SP, apresenta-se em desacordo com o estabelecido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (BRASIL, 2004), na maior parte das análises realizadas, tanto em relação às características físico-químicas quanto microbiológicas, trazendo riscos ao produto armazenado nesse gelo, bem como à população consumidora. Além disso, contribui para a contaminação do pescado, fazendo com que haja diminuição da sua vida de prateleira. Cabe às autoridades sanitárias uma melhor fiscalização e orientação de manipuladores de alimentos para garantir melhor qualidade do pescado fresco.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Centro Universitário Barão de Mauá pela bolsa de iniciação científica concedida para a realização do projeto, bem como ao técnico de laboratório Aristeu Gomes Costa, pela valiosa ajuda prestada na execução do trabalho.

REFERÊNCIAS

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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Estabelece os procedimentos e responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade, e dá outras providências. Portaria n.518, de 25 de março de 2004. Diário Oficial da União, de 26 de março de 2004. Seção I, p.266.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2009

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2008
  • Aceito
    18 Maio 2009
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