Acessibilidade / Reportar erro

Memórias, “analogias e transposições poéticas”

Memories, “analogies and poetic transpositions”

Resumo

Em Pequenos poemas em prosa: o spleen de Paris (1869), precisamente em “O quarto duplo”, Charles Baudelaire relacionou a memória ao tempo com uma nota de amargura: “O Tempo reapareceu; o Tempo agora reina soberano; e com o hediondo velho voltou todo o seu demoníaco cortejo de Lembranças, Desgostos, Espasmos, Medos, Angústias, Pesadelos, Raivas e Neuroses”. Alguns anos mais tarde, com uma abordagem especulativa inspirada por autores como Baudelaire e Gérard de Nerval, a obra de Marcel Proust atribuiu relevância e novas possiblidades de análise ao tema da memória como viagem no tempo. Na literatura brasileira, influenciado pela similaridade das perspectivas de Baudelaire e Proust sobre o tópico, Pedro Nava explorou a ideia da memória como mecanismo criativo e poético. Comparando excertos das obras de Baudelaire, Proust e Nava, este ensaio pretende examinar a noção de memória evocativa discutindo-a como elemento essencial do processo de composição literária.

Palavras-chave
Charles Baudelaire; Marcel Proust; Pedro Nava; prosa poética; memória

Abstract

In Paris Spleen: Little Poems in Prose (1869), precisely in “The Double Bedroom”, Charles Baudelaire related memory to time with bitter irony: “[...] Time has reappeared; Time reigns absolute now; and with that hideous old character has come his devilish retinue of Memories, Regrets, Convulsions, Fears, Anguish, Nightmare, Rage, Neurosis”. Some years later, with a speculative approach inspired by authors such as Baudelaire and Gérard de Nerval, Marcel Proust attached new possibilities of analysis to the theme of memory as time travel. In brazilian literature, influenced by the similarity of Baudelaire and Proust’s perspectives, Pedro Nava explored the idea of memory as creative and poetic mechanism. Comparing excerpts of Baudelaire, Proust and Nava’s works, this essay aims to examine the notion of evocative memory discussing this notion as essential part of the process of literary composition.

Keywords
Charles Baudelaire; Marcel Proust; Pedro Nava; poetic prose; memories

Resumé

Dans “La Chambre double”, poème recueilli dans Le Spleen de Paris (1869), Charles Baudelaire associe mémoire et temps avec ironie: “Le Temps a reparu; le Temps règne en souverain maintenant; et avec le hideux vieillard est revenu tout son démoniaque cortége de Souvenirs, de Regrets, de Spasmes, de Peurs, d’Angoisses, de Cauchemars, de Colères et de Névroses”. Quelques années plus tard, suivant une approche spéculative et inspirée par Baudelaire et Gérard de Nerval, Marcel Proust a ouvert de nouvelles possibilités d’analyse du théme de la mémoire comme voyage dans le temps. Dans la littérature brésilienne, Pedro Nava a exploité l’idée de la mémoire comme dispositif créatif et poétique. En comparant des extraits d’œuvres de Baudelaire, Proust et Nava, cet essai vise à examiner et à discuter la notion de mémoire évocatrice comme partie essentielle de la composition littéraire.

Mots-clé
Charles Baudelaire; Marcel Proust; Pedro Nava; prose poétique; mémoire

Uma possível referência de Charles Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 35) à memória surge indiretamente em Pequenos poemas em prosa (1869), quando o poeta justifica em tom confessional a Arsène Houssaye sua ambição de obter uma prosa poética permeável “às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência” que emergem do cotidiano ou de uma recordação: “Você mesmo, meu caro amigo, não tentou traduzir numa canção o grito estridente do vidraceiro, e expressar numa prosa lírica todas as aflitivas sugestões que este grito envia até as águas furtadas, através das mais altas brumas da rua?”

Yves Bonnefoy (2000BONNEFOY, Yves. Baudelaire: La tentation de l’oubli. Paris: Bibliothèque nationale de France, 2000.) estabeleceu certa tensão ou relação paradoxal entre os temas da memória e do esquecimento na poesia de Baudelaire ao distinguir elementos autobiográficos que teriam inspirado a composição de dois poemas de As Flores do Mal (1857), “Nunca mais esqueci, da cidade vizinha” e “À ama bondosa de quem tinhas tanto ciúme”. Bonnefoy definiu por “tentation de l’oubli” o desejo que impele o escritor a priorizar e refinar a linguagem, criadora de um mundo à sua conveniência, alheio ao consequente distanciamento das coisas e seres como estes se apresentam nas relações humanas que nascimento, acaso e morte determinam. Caberia à poesia reparar tal perda, lutar contra o esquecimento, a fim de devolver sua presença à realidade cotidiana, sua capacidade de ensinar a sorte de verdade própria à existência efetivamente vivenciada.

Entre as “correspondances” que entrelaçam memória e linguagem nas obras de Baudelaire e Marcel Proust, Antoine Compagnon (2003COMPAGNON, Antoine. Baudelaire devant l’innombrable. Paris: Presses de L’ Université de Paris-Sorbonne, 2003.: 66) assinalou o conceito de “eterno” e a questão da temporalidade: o primeiro pensado como figura da memória involuntária, a segunda como domínio da reminiscência que transcende o presente. Esta reflexão de Compagnon poderia ser ilustrada por esta passagem de “O quarto duplo”:

A que demônio benévolo devo o estar assim rodeado de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes? Oh, beatitude! O que geralmente denominamos vida, mesmo em sua expansão mais feliz, nada tem em comum com esta vida suprema da qual tenho ciência agora, e que saboreio minuto a minuto, segundo a segundo! Não! Já não existem minutos! Já não existem segundos! O tempo desapareceu: é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias! Mas uma batida terrível, pesada, ressoou na porta, e, como nos sonhos infernais, me pareceu que eu recebia uma enxadada no estômago. (...) toda essa magia desapareceu com a brutal batida (...) Horror! Estou lembrando! Estou! Sim! Este casebre, morada do eterno tédio, é realmente o meu. (BAUDELAIRE, 2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.:45).

Paul Ricoeur (2000RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.: 26-30) abordou a noção de reminiscência considerando-a no quadro da problemática do esquecimento. Refletir sobre a memória pressupõe a revelação da aporia da presença de uma ausência, ou seja, para representar o passado é necessário admitir a extinção de algo no tempo. Evocar fatos do passado, armazenados pela memória ou registrados pela história, narrados oralmente ou por escrito, no intuito de reconstituir ou confirmar algo, exige da consciência um exercício de retrospecção que incluiria a mimesis1 1 O conceito de mimesis desenvolvido por Ricoeur (1990, p. 45-46) a partir da Poética de Aristóteles propõe que a mimesis não contém apenas uma função de ruptura entre o domínio real, alusivo à “ética”, e o imaginário, respectivo à “poética”. A função de ruptura instaura o espaço de ficção, mas há também uma função coesiva, responsável pela transposição “metafórica” do campo prático ao domínio do mito. Neste caso, a definição primeira de mimesis preconizada por Ricoeur refere-se ao estado que precede à composição poética. A segunda foi denominada mimesis-criação e possui função basilar em relação às outras duas. A terceira, por seu caráter dinâmico de atividade mimética, não se restringe ao texto poético, mas alcança o espectador ou leitor. As operações envolvidas nos estados que antecedem e sucedem a mimesis-invenção da composição poética efetuam a reconfiguração do passado na esfera do imaginário. nos relatos históricos e ficcionais, segundo Ricoeur (309-320).

A noção de memória associativa que Proust desenvolveu artisticamente a partir da poética de Baudelaire estender-se-ia ao projeto composicional de uma prosa peculiar, capaz de apreender a linguagem simbolicamente elaborada da consciência, do devaneio e das recordações. Pedro Nava incluiu e comentou tal proposta na redação da Memórias.

Adotando esta hipótese inicial de estudo, este ensaio pretende comentar a ideia de uma memória evocativa2 2 Na transcrição de recordações, impressões da consciência e devaneios, a mimesis não é somente objeto de análise das ciências da linguagem. A neurofisiologia da memória é campo de pesquisa amplo. Neste, o conceito basilar de memória evocativa refere-se à capacidade de evocar a imagem de algo ausente naquele momento. Na linha dos estudos de Marya Schechtman (2005), cujo enfoque “neolockeano” da identidade pessoal destaca a narrativa como critério de persistência da individualidade ao longo do tempo, Richard Heermink (2017) defende uma abordagem narrativa da identidade pessoal. Nesta acepção, entende-se por narrativa a história pessoal e subjetiva de uma série de eventos conectados e de experiências consideradas essenciais pela pessoa. Heermink arguiu que objetos evocativos, os quais estariam ligados à experiência pessoal, ativam e constituem emocionalmente memórias (e narrativas) autobiográficas. Logo, o eu (self) seria parcialmente formado por uma teia de objetos evocativos acumulados na existência, perspectiva que reconhece a memória como parte essencial da individualidade. Cabe notar que, após o terceiro volume de Tempo e Narrativa (1984-1988), Ricoeur desenvolveu um influente modelo teórico de narrativização do passado, apresentando o conceito de “identidade narrativa”. , cujo aspecto sugestivo e poético pode expressar gradações, adequando-se a linguagens e gêneros diferentes da prosa. O objetivo é examinar, de forma breve e comparativa, como se apresenta a questão temática da memória evocativa em alguns excertos dos discursos literários de Baudelaire, Proust e Nava. Considerando a obra de Proust, Baú de ossos (1972) inaugura o projeto inconcluso das Memórias distinguindo por funções as faces da memória evocativa para recuperar o passado: “memória associativa”, “memória involuntária” ou “sistema de recuperação do tempo”.

Este último, incluiria o aporte mnemônico da musicalidade na sugestão poética de Baudelaire: “[...] traduzir numa canção o grito estridente do vidraceiro, e expressar numa prosa lírica todas as aflitivas sugestões que este grito envia até as águas furtadas, através das mais altas brumas da rua”. Assim, uma passagem da juventude “da mineira da gema D. Maria Luísa da Cunha Pinto Coelho Jaguaribe”, a “Inhá Luísa”, avó de Nava, perdura na memória familiar e na crônica “das mais altas brumas” do Paraibuna:

[...] numa festa de São João, dada pelo Coronel Ribeiro de Rezende, o futuro Barão de Juiz de Fora (...) a Inhá Luísa meteu num chinelo (...) as netas emproadas e ricaças do dono da casa. A rainha do baile foi minha avó, como o cantou Inácio Gama em valsa-canção que lhe dedicou e que se chamava “Passavas linda...” Esse “Passavas linda...” virou numa espécie de hino nacional do sucesso feminino da família e as bisnetas da Inhá Luísa cantam-no ainda hoje, para as filhas e as filhas das filhas. (...)Os versos, transcritos assim, perdem muito do seu conteúdo mas, envolvidos no compasso ternário e no ritmo de valsa - sol - sol - sol - si - lá - sol - fá - mi - ré - ré - dó - da música composta pelo Gama, eram de rasgar os corações mais duros. (...) Curto, entretanto, foi esse êxtase. (NAVA, 1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 128-130).

Em “Um hemisfério numa cabeleira”, Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 93) associa o perfume e a música à experiência de viagem no tempo: “Minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens por sobre a música”. Páginas adiante, o memorialista “ficcionaliza” essa viagem no tempo, somando uma metáfora3 3 Em “The Function of Fiction in Shaping Reality” (1979: 134), Ricoeur arguiu que a função última da imagem, inclusive ficcional, não se limita à difusão de significados através de diversos campos sensoriais, para “alucinar” o pensamento de algum modo, mas, ao contrário, a imagem efetua um tipo de cristalização do real no tempo, suspendendo nossa atenção, pondo-nos em um estado de não engajamento atinente à percepção ou ação. Em suma, a imagem suspende o significado na atmosfera neutralizada que poderia ser chamada a dimensão da ficção. Nesse estado de não engajamento, experimentam-se novas ideias, novos valores e modos de ser no mundo. A imaginação dá livre curso a tais possibilidades. Nesse estado, a ficção pode refigurar fato e criar a “redescrição” do real, assim como a metáfora pode refigurar o literal. poética à referência sobre a valsa-canção que emoldura a passagem biográfica da avó materna, agora bem casada:

Começou para minha avó uma vida de novela. Que noite para a menina de Santa Bárbara. Fizera mesuras ao Imperador e à Imperatriz, vira os ministros, os senadores, os conselheiros, os diplomatas, os titulares, os reposteiros, os moços fidalgos, as camareiras, as açafatas. Achatara com suas joias e o rangido de sua roupa as primas da Corte e tivera o momento mais alto de sua vida ao romper numa valsa com o Conde d’Eu... Coitado do Inácio Gama, tocando violão na Rua do Sapo! (NAVA, 1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 145, grifo nosso).

Baú de ossos divide-se em quatro seções. “Rio Comprido” é o título da última. A segunda parte dessa seção apresenta a noção de “chaves da memória” e a súmula de um sistema poético-mnemônico de recuperação do passado. Tal seção reúne duas epígrafes. A primeira foi retirada do “Capítulo LX/ Querido opúsculo”, de Dom Casmurro (1899):

Vês que não pus nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos,pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor. (ASSIS, 1978ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978.: 255).

No plano (auto)biográfico da obra, referente ao narrador machadiano, seria possível inferir uma teoria sobre a recepção do texto literário, a partir desta digressão: se lembranças relacionadas à vida de alguém, “[...] são ainda uma parte da pessoa (...) como a pedra da rua, a porta da casa, um assobio particular, um pregão de quitanda”, elas seriam mais significativas num livro quando identificadas ao repertório de leituras ou à experiência de vida do leitor, de outro modo dissolver-se-iam na indeterminação - caso o leitor “não achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades”. Nesse caso, seria inútil que o autor fornecesse documentação de apoio àquelas memórias: “Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura” (ASSIS, 1978ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978.: 255).

A resolução de excluir do capítulo certo “pregão das cocadas”, depois de “fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música” porque “[...] outro músico (...) confessou ingenuamente não achar no texto escrito nada que lhe acordasse saudades” pressuporia para o gênero memórias o mesmo leitor de romances, contos e novelas folhetinescos?

O narrador de Dom Casmurro consagraria à memória afetiva o papel de iluminar a estrutura dramática e metafórica da linguagem literária e de outras muitas expressões simbólicas que “encerrem casos, pessoas e sensações”. Essa passagem ilustra a seguinte, extraída por Nava d’O tempo redescoberto (1927). A hipótese proustiana sobre o vínculo da percepção sensorial com as “reminiscências” complementaria a que ressalta na educação estética o valor da experiência - de ter “conhecido e padecido no tempo”:

Uma das obras-primas da literatura francesa, Sylvie, de Gérard de Nerval, encerra, tal como o volume das Mémoires d’outre tombe relativo a Combourg, uma sensação do mesmo gênero que o gosto da Madeleine e o “trinado do tordo”. Em Baudelaire, enfim, tais reminiscências, ainda mais numerosas, são evidentemente menos fortuitas e, portanto, em minha opinião, decisivas. É o próprio poeta quem, com mais requinte e indolência, busca deliberadamente no cheiro da mulher, por exemplo, em seus cabelos e em seu seio, as analogias inspiradoras que lhe evocarão “l’azur du ciel immense et rond” e “un port rempli de flammes et de mâts”. Tentava eu lembrar-me dos poemas de Baudelaire assim baseados numa sensação transposta, a fim de, de uma vez por todas, filiar-me a uma nobre linguagem... (PROUST, 2013PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Tradução de Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2013.:

Por sua vez, Nava dedica-se a expandir os argumentos dos narradores em Dom Casmurro e O tempo redescoberto, atribuindo definições e finalidades à memória a fim de elucidar o sentido poético da composição artística. As reminiscências integrariam um corpus ou acervo dinâmico de emoções, imagens e sensações ativadas pelo inconsciente - agindo em uníssono com operações de “analogias”, “substituições” e “transposições”:

Há assim uma memória involuntária que é total e simultânea. Para recuperar o que ela dá, basta ter passado, sentindo a vida; basta ter, como dizia Machado, “padecido no tempo”. A recordação provocada é antes gradual, construída, pode vir na sua verdade ou falsificada pelas substituições cominadas, pela nossa censura. É ponto de partida para as analogias e transposições poéticas que Proust aponta em Baudelaire ... l’azur du ciel immense et rond... - ... un port rempli de flammes et de mâts...(NAVA, 1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 306).

Os versos citados de Baudelaire (2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 169-171) pertencem, respectivamente, aos poemas “La chevelure”: “Tu contiens, mer d’ébène, un éblouissant rêve / De voiles, de rameurs, de flammes et de mâts (...) Cheveux bleus, pavillon de ténèbres tendus, / Vous me rendez l’azur du ciel immense et rond”; e “Parfum exotique”: “Guidé par ton odeur vers de charmants climats, / Je vois un port rempli de voiles et de mâts” (167).4 4 Na tradução de Ivan Junqueira: “Dentro de ti guardas um sonho, negro mar, De velas, remadores, flâmulas e mastros: (...) Coma azul, pavilhão de trevas distendidas, / Do céu profundo dai-me a esférica amplidão” (BAUDELAIRE, 2012: 171-173); e “Guiado por teu perfume a tais paisagens belas, / Vejo um porto a ondular de mastros e de velas” (BAUDELAIRE, 2012: 169).

Como notou Melvin Zimmerman (1968ZIMMERMAN, Melvin. Charles Baudelaire: Petits poèmes en prose. Manchester: Manchester University Press, 1968.), exaltado por ser fonte de sinestesias para o poeta, o cheiro dos cabelos da amante é tema familiar para o leitor de Baudelaire, com outras “correspondances” em As flores do mal: “O perfume” e “A serpente que dança”. Nos Pequenos poemas em prosa, o tema ressurge em “As vocações”. Ao editar As flores do mal, Jacques Crépet e Georges Blin (1950: 335 apud Zimmerman, 1968ZIMMERMAN, Melvin. Charles Baudelaire: Petits poèmes en prose. Manchester: Manchester University Press, 1968.: 112) exploraram as analogias entre “A cabeleira”, “Perfume exótico” e “Um hemisfério numa cabeleira”. Para os editores, “as mesmas imagens, mesmas notas e tônicas” poderiam manifestar uma sonoridade com nuances diferentes em verso e prosa.5 5 A partir da conexão entre “A cabeleira”, “Perfume exótico” e “Um hemisfério numa cabeleira”, Maria Célia de Moraes Leonel (1999) fez um estudo detalhado sobre as relações de pertinência prosa e poesia. Porém, em acréscimo às variações estilísticas da linguagem suscitadas pelas “mesmas imagens, mesmas notas e tônicas” desses poemas, caberia notar a ideia de uma memória poética, configurada esteticamente pelas associações de uma sensibilidade engenhosa e refinada.

Contudo, à diferença de “A cabeleira”, “Perfume exótico”, “O perfume” e “A serpente que dança”, “Um hemisfério...” não se inicia por um encômio (“Ó tosão que até a nuca se encrespa em cachoeira!”), por uma reflexão (“Quando, cerrando os olhos, numa noite ardente,”), por uma indagação (“Leitor, tens já por vezes respirado/ Com embriaguez e lenta gostosura/ O grão de incenso que enche uma clausura, / Ou de um saquinho o almíscar entranhado?”) ou por uma explanação (“Em teu corpo, lânguida amante,/ Me apraz contemplar,/ Como um tecido vacilante,/ A pele a faiscar.”), mas sim por um convite àquela que seria poeticamente comparável ao emblema de Mnemosine:

Me deixe respirar, por longo, longo tempo, o cheiro de seus cabelos, neles mergulhar todo o meu rosto, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com minha mão como a um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar. (...) Seus cabelos contêm todo um sonho, repleto de velas e mastros; contêm grandes mares, cujas monções me levam a encantadoras regiões, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelas frutas, pelas folhas e pela pele humana. No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas, recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso, onde se estira o eterno calor. Nas carícias de sua cabeleira, reencontro os langores de longas horas passadas num sofá, no quarto de um belo navio, embaladas pela arfagem imperceptível do porto, entre os vasos de flores e as moringas refrescantes. Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo mesclado de ópio e açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do azul tropical; nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco. Me deixe morder, por longo tempo, suas tranças pesadas e negras. Quando mordisco seus cabelos elásticos e rebeldes, me parece estar comendo lembranças.(BAUDELAIRE, 2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 93-95).

Em “A cabeleira”, Baudelaire (2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 171), relacionou ao “Extase!” a imagem “Das lembranças que dormem”. De acordo com Julien Zanetta (2018ZANETTA, Julien. Will and Indolence: “Proust, Reader of Baudelaire”. Em: Sætra, Lars; Lombardo, Patrizia; Linkis, Sara Tanderu: (eds.). ExploringText, Media, andMemory. Finlandsgade: Aarhus University Press, 2018: 467-492.: 267-269), os eventos momentâneos que despertam as lembranças do narrador de Em busca do tempo perdido (o pavimento desnivelado do pátio da residência dos Guermantes, a batida de uma colher num prato, o deslizar de um guardanapo sobre os lábios) ao projetá-lo no passado ativam revelações que resultam na decisão de começar a escrever. Mergulhado em reflexões inspiradas pela sucessão de enleios ou “extases”, ele traz à mente formas analógicas de comunicar impressões estéticas, “des impressions vraiment esthétiques”.

Tais impressões reconfiguram, inclusive, a noção de espaço, conforme sugerido em “Um hemisfério...”, “[...] contêm todo um sonho (...) cujas monções (...) levam a encantadoras regiões, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada”. Baudelaire e Proust reflexionam sobre a dimensão espacial da memória em várias instâncias, explorando os planos biográfico, estético e filosófico, que interrogam “sensações” e “reminiscências” capitais na reconstrução do passado, do “lugar distante”, da “visão inefável”, presentificados pelas “analogias inspiradoras” de um “lugar atual”:

Sempre, nessas ressurreições, o lugar distante, engendrado em torno da sensação comum, agarrava-se por um instante, como um lutador, ao lugar atual. Sempre este saía vencedor; sempre o vencido me parecia o mais belo, tanto que ficara em êxtase sobre as pedras desiguais como ante a xícara de chá, tentando reter quando surgiam, invocar se me escapavam, aquele Combray, aquela Veneza, aquela Balbec invasores e sopitados que se erguiam para abandonar-me em seguida no seio desses lugares novos, mas permeáveis ao passado. (...) essas ressurreições do pretérito, durante sua fugaz duração (...) Forçam-nos as narinas a respirar a atmosfera de sítios todavia remotos, a vontade a optar entre os diversos projetos que nos sugerem, a pessoa inteira a crer-se em seu âmago, ou pelo menos a tropeçar entre eles e os locais presentes, na vertigem de uma incerteza semelhante à que nos provoca por vezes, ao adormecermos, uma visão inefável. (PROUST, 2013PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Tradução de Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2013.

Buscar as fugazes vias de expressão da evocação mnemônica, “ressurreições do pretérito” para “respirar a atmosfera de sítios todavia remotos” é o que se propõe ao leitor de “O perfume”: respirar, “Com embriaguez e lenta gostosura”. Nesses versos de Baudelaire (2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 229), a atuação da memória associativa engendra “Sutil e estranho encanto [que] transfigura/ Em nosso agora a imagem do passado”. Respirar é também engrenagem comum às memórias associativa e voluntária em “Um hemisfério...”: “Me deixe respirar, por longo, longo tempo (...) para sacudir lembranças no ar”, entrever cenas, lugares e “cantos melancólicos”, “carícias”, “langores” “cheiros combinados” “de todas as formas” (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 93-95). Em Dom Casmurro, o espaço enseja o desejo de apreender “Dans le présent le passé restauré!, como expôs Baudelaire (2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 229):

A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. (...) O mais é também análogo e parecido. (...) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. (ASSIS, 1978ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1978.: 178).

Para Gaston Bachelard (2000BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.: 20-21), o “eu” subsiste no ato de rememorar, ato que pode ser configurado por meio de uma arquitetura metafórica, erigida no âmbito do espaço recordado.“Cada um guarda a paisagem de um ano, de um mês, uma semana, um dia, uma hora! - pedaço de espaço em que se comprimiu o Tempo - de que a memória vai construir sua eternidade”, segundo Nava (1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 203). Preenchidos pela imaginação, alguns espaços mnemônicos constituem para a literatura um manancial de impressões, intuições e conceitos abstratos sobre a realidade, acervo “cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética” (NAVA, 1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 17).

Em “O crepúsculo da tarde”, Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.:121) descreve a contemplação da “sinistra ululação (...) do negro hospício encarapitado sobre a montanha” em contraste ao “repouso do imenso vale, eriçado de casas de que cada janela diz: ‘Aqui agora existe paz, aqui existe a alegria da família’”. Recorrendo à expressão de Guimarães Rosa (1976ROSA, João Guimarães. “Aletria e Hermenêutica”. Em: Tutameia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio , 1976: 3-12.: 3), “instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência”, esse contraste esboça um traço barroco na imagem com que Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 121) reveste a ideia de “embalar [o] pensamento atônito nesta imitação das harmonias do inferno”.

Similar à noção roseana (1976ROSA, João Guimarães. “Aletria e Hermenêutica”. Em: Tutameia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio , 1976: 3-12.: 3) de chiste, a justaposição dos paradigmas antitéticos de edificações simbólicas (o hospício ululante e a casa onde “existe paz”), “[...] escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento”, assim expostos na composição das Memórias:

Os mortos... Suas casas mortas... Parece impossível sua evocação completa porque de coisas e pessoas só ficam lembranças fragmentárias. Entretanto, pode-se tentar a recomposição de um grupo familiar desaparecido usando como material esse riso de filha que repete o riso materno; essa entonação de voz que a neta recebeu da avó, a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas há muito abafadas por um punhado de terra (- tinham uma língua, tinham... Falavam e cantavam...); esse jeito de ser hereditário que vemos nos vivos repetindo o retrato meio apagado dos parentes defuntos; o fascinante jogo da adivinhação dos traços destes pela manobra de exclusão. Um exemplo, para esclarecer a frase obscura: minha prima Teresa Albano Ferreira Machado - que não se parece com o pai, nem com a mãe, tampouco com os irmãos - é ver nosso parente Sílvio Froes Abreu. Eles nem se conheceram e nunca explicariam tal semelhança. Mas eu subo anos afora, partindo de Teresa. Chego a sua mãe Maria Alice, a sua avó Maria Luna, a sua bisavó Cândida, a sua tataravó Ana Cândida, a sua quarta-avó Maria de Barros Palácio, a seus quintos-avós Manoel Joaquim Palácio e Antônia Teresa de Barros. Desço à outra filha deles, mulher de José Bonifácio Abreu, pais de João da Cruz Abreu, pai de Sílvio Froes Abreu, que não se parece com este, nem com a mãe Froes, nem com o irmão Mário - mas que reproduz traço por traço o rosto de uma prima no sexto grau civil e no décimo canônico. Máscara comum que eles tiraram magicamente do Tempo. Máscara aquilina, dolicocéfala e rara que eu coloco nos Barros porque, por técnica idêntica, dela posso excluir os Palácio que repontam com mais frequência em outros parentes braquicéfalos e de cara angulosa. Como motivo musical de sonata - longamente oculto mas sempre pressentido - surge, depois de dois séculos, a cabeça de D. Antônia Teresa de Barros prosseguindo, incorruptível, imutável e eterna nas suas reencarnações. Agora, neste preciso e transitório instante, a órbita do cometa tocou seus descendentes Sílvio e outra Teresa. Com mão paciente vamos compondo o puzzle de uma paisagem que é impossível completar porque as peças que faltam deixam buracos nos céus, hiatos nas águas, rombos nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se abrem no vácuo - como vitrais fraturados (onde no burel de um santo vemos - lá fora! - céus profundos, árvores ramalhando ao vento, aviões, nuvens e aves fugindo), como aqueles recortes que suprimem os limites do real e do irreal nas telas oníricas de Salvador Dali. Um fato deixa entrever uma vida; uma palavra, um caráter. Mas que constância prodigiosa é preciso para semelhante recriação. E que experiência... (NAVA, 1974NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.: 40)

A ideia da obra como catedral, imenso edifício de recordações, é muito presente em Proust, notou Valentina Corbani (2012CORBANI, Valentina. Saggi sparsi su Proust. Napoli: LaRecherche Edizioni, 2012.: 73-74). É provável que “as tristes janelas em que a chuva traçou sulcos na poeira” do quarto descrito por Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.:45) em Le Spleen de Paris e “la monumental cattedrale proustiana”, segundo definiu Corbani, “una cattedrale solidíssima”, tivessem, como nas Memórias, “vitrais fraturados” em face da perda e do esquecimento, porém compensados pela beleza de suas imagens, com a visão de “céus profundos, árvores ramalhando ao vento, aviões, nuvens e aves fugindo”.

É igualmente provável que elementos (auto)biográficos tenham participado dos “Pequenos poemas em prosa”, encerrados pelo trabalho da imaginação e da linguagem poética em “lembranças fragmentárias”. Dessa mesma maneira, alguns personagens de Proust e Nava, a exemplo, respectivamente, de Albertine Simonet e Lenora, são reconstituições líricas e ficcionais da realidade. “A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso”, como sentenciou Rosa (1976ROSA, João Guimarães. “Aletria e Hermenêutica”. Em: Tutameia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio , 1976: 3-12.: 4), e muitas vezes as ausências deixadas pelos mecanismos da memória evocativa levam o escritor a usar métodos análogos aos do historiador empenhado em reconstituir a narrativa do passado, sondando, feito quem desperta de um sonho, “os manuscritos rasurados ou incompletos; a folhinha em que o lápis marcou as datas sinistras!”, notados por Baudelaire (2007BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.: 45).

Tal esforço encontra obviamente os próprios limites; e, mais do que a experiência, ele deve contar com a memória e a sensibilidade de quem lê, “sem o que tudo é calado e incolor”. A composição da obra literária é, de certa forma, um trabalho nostálgico cujo “cortejo de Lembranças, Desgostos, Espasmos, Medos, Angústias, Pesadelos, Raivas e Neuroses” é conduzido no Tempo pela elaboração estética da memória evocativa.

Referências bibliográficas

  • ASSIS, Machado. Dom Casmurro São Paulo: Abril Cultural, 1978.
  • BACHELARD, Gaston. A poética do espaço São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
  • BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa [O spleen de Paris] .Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Hedra, 2007.
  • BAUDELAIRE, Charles. “The Double Bedroom”. Em: Paris Spleen: Little Poems in Prose. Translation, preface and notes by Keith Waldro: Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2009: 9-11.
  • BONNEFOY, Yves. Baudelaire: La tentation de l’oubli Paris: Bibliothèque nationale de France, 2000.
  • COMPAGNON, Antoine. Baudelaire devant l’innombrable Paris: Presses de L’ Université de Paris-Sorbonne, 2003.
  • CORBANI, Valentina. Saggi sparsi su Proust Napoli: LaRecherche Edizioni, 2012.
  • HEERSMINK, Richard. “The narrative self, distributed memory, and evocative objects”,Synthese: International Journal for Epistemology, Methodology and Philosophy of Science, 194 (8), Dordrecht: Springer Netherlands, 2017: 3135-3151.
  • LEONEL, Maria Célia de Moraes. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra São Paulo: Editora Unesp, 1999.
  • NAVA, Pedro. Baú de ossos Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1974.
  • PROUST, Marcel. O tempo redescoberto Tradução de Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2013.
  • RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli Paris: Seuil, 2000.
  • RICOEUR, Paul. “The Function of Fiction in Shapig Reality”, Man and World, XII/2, Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, June 1979: 123-141.Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF01252461 Acesso em: 12/01/2019.
    » https://doi.org/10.1007/BF01252461
  • RICOEUR, Paul. Time and Narrative Volume I. Translated by Kathleen McLaughlin and David Pellauer. Chicago and London: The Universityof Chicago Press, 1990.
  • ROSA, João Guimarães. “Aletria e Hermenêutica”. Em: Tutameia Rio de Janeiro: Livraria José Olympio , 1976: 3-12.
  • SCHECHTMAN, Marya. “Personal identity and the past”,Philosophy, Psychiatry and Psychology, 12 (1), Baltimore, Maryland: John Hopkins University Press, 2005: 9-22.
  • ZANETTA, Julien. Will and Indolence: “Proust, Reader of Baudelaire”. Em: Sætra, Lars; Lombardo, Patrizia; Linkis, Sara Tanderu: (eds.). ExploringText, Media, andMemory Finlandsgade: Aarhus University Press, 2018: 467-492.
  • ZIMMERMAN, Melvin. Charles Baudelaire: Petits poèmes en prose Manchester: Manchester University Press, 1968.
  • 1
    O conceito de mimesis desenvolvido por Ricoeur (1990RICOEUR, Paul. Time and Narrative. Volume I. Translated by Kathleen McLaughlin and David Pellauer. Chicago and London: The Universityof Chicago Press, 1990., p. 45-46) a partir da Poética de Aristóteles propõe que a mimesis não contém apenas uma função de ruptura entre o domínio real, alusivo à “ética”, e o imaginário, respectivo à “poética”. A função de ruptura instaura o espaço de ficção, mas há também uma função coesiva, responsável pela transposição “metafórica” do campo prático ao domínio do mito. Neste caso, a definição primeira de mimesis preconizada por Ricoeur refere-se ao estado que precede à composição poética. A segunda foi denominada mimesis-criação e possui função basilar em relação às outras duas. A terceira, por seu caráter dinâmico de atividade mimética, não se restringe ao texto poético, mas alcança o espectador ou leitor. As operações envolvidas nos estados que antecedem e sucedem a mimesis-invenção da composição poética efetuam a reconfiguração do passado na esfera do imaginário.
  • 2
    Na transcrição de recordações, impressões da consciência e devaneios, a mimesis não é somente objeto de análise das ciências da linguagem. A neurofisiologia da memória é campo de pesquisa amplo. Neste, o conceito basilar de memória evocativa refere-se à capacidade de evocar a imagem de algo ausente naquele momento. Na linha dos estudos de Marya Schechtman (2005), cujo enfoque “neolockeano” da identidade pessoal destaca a narrativa como critério de persistência da individualidade ao longo do tempo, Richard Heermink (2017HEERSMINK, Richard. “The narrative self, distributed memory, and evocative objects”,Synthese: International Journal for Epistemology, Methodology and Philosophy of Science, 194 (8), Dordrecht: Springer Netherlands, 2017: 3135-3151.) defende uma abordagem narrativa da identidade pessoal. Nesta acepção, entende-se por narrativa a história pessoal e subjetiva de uma série de eventos conectados e de experiências consideradas essenciais pela pessoa. Heermink arguiu que objetos evocativos, os quais estariam ligados à experiência pessoal, ativam e constituem emocionalmente memórias (e narrativas) autobiográficas. Logo, o eu (self) seria parcialmente formado por uma teia de objetos evocativos acumulados na existência, perspectiva que reconhece a memória como parte essencial da individualidade. Cabe notar que, após o terceiro volume de Tempo e Narrativa (1984-1988), Ricoeur desenvolveu um influente modelo teórico de narrativização do passado, apresentando o conceito de “identidade narrativa”.
  • 3
    Em “The Function of Fiction in Shaping Reality” (1979RICOEUR, Paul. “The Function of Fiction in Shapig Reality”, Man and World, XII/2, Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, June 1979: 123-141.Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF01252461 . Acesso em: 12/01/2019.
    https://doi.org/10.1007/BF01252461...
    : 134), Ricoeur arguiu que a função última da imagem, inclusive ficcional, não se limita à difusão de significados através de diversos campos sensoriais, para “alucinar” o pensamento de algum modo, mas, ao contrário, a imagem efetua um tipo de cristalização do real no tempo, suspendendo nossa atenção, pondo-nos em um estado de não engajamento atinente à percepção ou ação. Em suma, a imagem suspende o significado na atmosfera neutralizada que poderia ser chamada a dimensão da ficção. Nesse estado de não engajamento, experimentam-se novas ideias, novos valores e modos de ser no mundo. A imaginação dá livre curso a tais possibilidades. Nesse estado, a ficção pode refigurar fato e criar a “redescrição” do real, assim como a metáfora pode refigurar o literal.
  • 4
    Na tradução de Ivan Junqueira: “Dentro de ti guardas um sonho, negro mar, De velas, remadores, flâmulas e mastros: (...) Coma azul, pavilhão de trevas distendidas, / Do céu profundo dai-me a esférica amplidão” (BAUDELAIRE, 2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 171-173); e “Guiado por teu perfume a tais paisagens belas, / Vejo um porto a ondular de mastros e de velas” (BAUDELAIRE, 2012BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.: 169).
  • 5
    A partir da conexão entre “A cabeleira”, “Perfume exótico” e “Um hemisfério numa cabeleira”, Maria Célia de Moraes Leonel (1999LEONEL, Maria Célia de Moraes. Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo: Editora Unesp, 1999.) fez um estudo detalhado sobre as relações de pertinência prosa e poesia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2019
  • Aceito
    01 Abr 2019
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com