Acessibilidade / Reportar erro

A farsa do vilão arrependido: François Villon e o teatro burlesco medieval na França

The repentant villain’s farce: François Villon and medieval comic theatre in France

Resumo

A imagem contemporânea de François Villon remonta ao final do século XIX, quando o poeta medieval foi considerado pela historiografia literária o criador do lirismo moderno na França. No entanto, há diversas evidências de que os testamentos de Villon pertencessem ao gênero do teatro burlesco medieval chamado de “monólogo dramático”. Essas evidências são de três tipos: as evidências materiais, como a história da transmissão de seus manuscritos e edições juntamente com outros dramas burlescos; as evidências textuais, como os recursos dramáticos utilizados pelo monólogo; e as evidências históricas, como a sua imitação por diversas composições burlescas da época, bem como a unanimidade dos testemunhos e anedotas se referindo a Villon como um “farseur”. Mas como um testamento poderia ser encenado por um ator, se é um gênero escrito por definição? Defende-se que, ao vestir a máscara da personagem do testador morto, o ator transmite as palavras enunciadas do além pelo espectro do vilão arrependido. Dessa perspectiva, a farsa do vilão arrependido (encenada nesse monólogo dramático) parodia as formas poéticas do testamento amoroso da época por um lado, e a estrutura narrativa das Sagradas Escrituras por outro.

Palavras-chave:
Teatro burlesco medieval; François Villon; paródia

Abstract

François Villon’s contemporary image comes from the late nineteenth century, when the medieval poet was elected by literary historiography as the creator of modern lyricism in France. But there are many evidences showing that Villon’s testaments would belong to a genre of the medieval burlesque theatre called “dramatic monologue”. These evidences can be divided into three different groups: the material evidences, such as the history of the transmission of his manuscripts and editions along with other burlesque dramas; the textual evidences, such as the dramatic resources used in the monologue; and the historical evidences, such as his imitation by various burlesque compositions of the time, and the testimonies and anecdotes referring to Villon as a farceur. But how could a testament be played by an actor, if it is a written genre by definition? We argue that, as soon as the actor puts on the mask of the deceased testator character, he simply transmits the words actually spoken in the first person by the repentant villain’s phantom that lies beyond. From this point of view, the repentant villain’s farce (which is played in this dramatic monologue) is, on the one hand, a parody of the poetic forms of the lovers’ testament from the time, and on the other hand, a parody of the Bible’s narrative structure.

Keywords:
Medieval comic theatre; François Villon; parody

Résumé

L’image contemporaine de François Villon remonte à la fin du XIXe siècle, quand le poète médiéval a été consideré par l’historiographie littéraire le createur du lyrisme moderne en France. Néanmoins, il y a plusieurs évidences qui montrent que les testaments de Villon appartiennent au genre burlesque médiéval du « monologue dramatique ». Ces évidences sont divisées en trois groupes différents: les évidences matérielles, comme l’histoire de la transmission de ses manuscrits et éditions avec d’autres pièces burlesques; les évidences textuelles, comme les ressources dramatiques utilisées par le monologue; et les évidences historiques, comme l’imitation des testaments par plusieurs compositions burlesques de l’époque, ainsi que les témoignages et anecdotes qui appellent Villon un « farseur ». Mais comment un testament pourrait être joué par un acteur, si il est un genre écrit par définition? Nous soutenons que, en portant le masque du personnage du testateur défunt, l’acteur transmet les paroles énoncées d’au-delà par le spectre du vilain repenti. De ce point de vue, la farce du vilain repenti (qui est jouée dans ce monologue dramatique) est la parodie des formes poétiques du testament amoureux de l’époque, d’un coté, et de la structure narrative de la Bible, de l’autre coté.

Mots-clés:
Théâtre burlesque medieval; François Villon; parodie

O corpus atribuído ao poeta francês medieval François Villon (1431-?) é constituído por dois poemas longos em forma de testamento e por aproximadamente vinte baladas esparsas, incluindo seis Ballades en jargon [Baladas em jargão]. Desde as suas primeiras edições modernas na primeira metade do século XIX, os seus editores consideraram a atribuição tradicional do corpus a “François Villon” como autoevidente e, de acordo com a concepção moderna de autor, pressupuseram que esse indivíduo fosse o criador empírico da obra. Com base nessa identidade entre a persona da enunciação e o suposto autor das obras poéticas, a historiografia literária do final do século XIX, por sua vez, consolidou a imagem de Villon como poeta lírico, ao elegê-lo o criador do lirismo moderno na França.

Oriunda da recepção da sua obra pelos seus editores e historiadores modernos, essa leitura anacrônica de Villon como “o primeiro poeta moderno francês”, no entanto, isolou-o da tradição poética medieval. A fim de restituir o corpus atribuído a Villon ao contexto literário da sua época, procurou-se estudá-lo (no âmbito de uma longa pesquisa) à luz dos gêneros, preceitos e modelos que orientavam a invenção das letras na França da segunda metade do século XV. Neste artigo, pretende-se apresentar alguns dos principais resultados dessa pesquisa que, considerando os seus dois poemas longos um monólogo dramático, interpreta-os como uma paródia das formas poéticas do testamento amoroso da época por um lado, e da estrutura narrativa das Sagradas Escrituras por outro.

Uma parte grave e outra burlesca

O corpus atribuído ao poeta francês François Villon foi objeto de uma recepção extremamente diversificada, desde que foi publicado pela primeira vez no final do século XV até a sua recente entrada para a prestigiosa coleção da Plêiade (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. ). Apesar da enorme diversidade da sua recepção, ela poderia ser dividida, grosso modo, em dois grandes grupos, os quais não apenas oferecem duas imagens aparentemente opostas da persona poética, como também classificam a obra de François Villon em gêneros inteiramente distintos: um grupo a insere na lírica cortês, e o outro no teatro burlesco. Cada um desses dois grupos, por sua vez, confere destaque a uma parte diferente de sua obra: enquanto a primeira insiste na parte grave - como os Regrets do Testament e diversas baladas esparsas -, a segunda destaca a parte burlesca - como as sequências de legados dos dois testamentos.

Essa distinção foi proposta desde a primeira metade do século XVI pelo principal editor antigo de François Villon - o poeta lírico cortês Clément Marot. Ele realizou a primeira edição exclusivamente dedicada à sua obra, intitulada Œuvres de François Villon de Paris (1532). No prefácio de sua edição, Marot amplifica o delicado engenho do poeta de Paris, mas seleciona apenas a parte grave como digna de ser emulada pela lírica cortês da época. A parte burlesca, inversamente, é considerada indigna de ser imitada pelos jovens poetas cortesãos, em particular o desenvolvimento dos dois testamentos, chamado de “a indústria dos legados” (VILLON, 1533, p. 73VILLON, François. Les Œuvres de François Villon de Paris. Paris: Clément Marot, 1533. ). Essa parte comporta matéria baixa e se refere a pessoas reais e a casos particulares que, ocorridos em Paris na segunda metade do século XV, não podiam mais ser suficientemente compreendidos à época de Marot.

Por outro lado, Marot elogia as sentenças, as descrições e a verve heroica de suas baladas, bem como o grande artifício das suas descrições, a sua elocução plena de mil belas flores e a sua boa doutrina. Essa parte grave da obra foi efetivamente imitada não apenas por poetas como Henri Baude e Coquillart, mas também pelo próprio Marot, que pode ser considerado como um dos principais representantes da lírica cortês da primeira metade do século XVI, ao lado de Saint-Gelais, Salel, Héroët e Scève. Villon foi incluído no elenchus auctorum [elenco de autoridades] de diversos tratados retóricos da época, como, por exemplo, Le Quintil Horacien, de Barthélémy Aneau (GOYET, 1990GOYET, Francis. Traités de poétique et de rhétorique de la Renaissance. Paris: Librairie Générale Française, 1990.). Foi preciso esperar pela ascensão dos jovens poetas da Plêiade, em meados do século XVI, para que Villon fosse destituído do cânone da lírica cortês, juntamente com todos os poetas de língua francesa (COSTA, 2014bCOSTA, Daniel Padilha Pacheco (da). Antiga poesia renovada: a tradução do soneto LXII dos Regrets como exemplo da poética de Du Bellay. Revista Itinerários, v. 38, 2014b, p. 163-175.).

Essa imagem de Villon como um poeta lírico foi consolidada pela crítica moderna no século XIX na França, sob a perspectiva oferecida pela disciplina de historiografia literária. O mais utilizado de todos os manuais de literatura francesa da primeira metade do século XX, Histoire de la littérature française (1894), de Gustave Lanson, baseia-se na vida de Villon para explicar a sua obra. Considerando que a carga pessoal da sua poesia lhe tivesse permitido emancipar-se dos temas poéticos medievais, Lanson (1923LANSON, Gustave. Histoire de la Littérature Française. Paris: Hachette, 1923. , p. 133) elegeu Villon o criador do lirismo moderno na França, segundo a concepção romântica de poesia como expressão da subjetividade do poeta: “Par le fond de sa poésie, Villon n’est plus du Moyen Âge: il est tout moderne, le premier qui soit franchement, complètement moderne. Il porte en lui tout le lyrisme”1 1 Pelo fundamento de sua poesia, Villon não é mais da Idade Média: todo ele é moderno, francamente o primeiro a ter sido completamente moderno. Ele carrega em si todo o lirismo (tradução nossa). .

Dessa perspectiva, as duas partes do corpus de Villon foram atribuídas a períodos distintos da biografia do poeta. Para Ítalo Siciliano (1973SICILIANO, Italo. Mésaventures Posthumes de Maître Françoys Villon. Paris: Picard, 1973. , p. 286), o mais importante crítico biográfico do poeta, o “bon folâtre” da juventude teria sido sucedido pelo “pauvre Villon” da idade adulta. Embora essa hipótese biográfica tenha sido posteriormente complementada pela análise textual realizada a partir dos anos 70 da construção ficcional da persona poética, tanto a crítica biográfica quanto a nova crítica postulam a autoria empírica de Villon na origem da enunciação (COSTA, 2014aCOSTA, Daniel Padilha Pacheco (da). Autor e personagem: François Villon e a nova crítica na França. Revista Criação & Crítica, v. 12, 2014a, p. 76-87.). No entanto, esse postulado é arbitrário, já que é impossível determinar quem teria sido o suposto autor empírico daquele corpus poético com base nas informações históricas atualmente existentes. Com efeito, nenhum dos seus manuscritos é autógrafo (escrito pelo próprio autor), e todas as suas edições são póstumas.

Abaixo, pretende-se mostrar que, ao contrário da imagem consagrada pelos editores e críticos modernos de Villon, os seus dois poemas longos em forma de testamento pertenciam ao gênero burlesco medieval chamado monologue dramatique [monólogo dramático]. Essa hipótese se apoia em três tipos de evidências complementares entre si: 1) em evidências materiais, como a história da transmissão dos seus manuscritos e edições juntamente com outros dramas burlescos; 2) em evidências textuais, como os recursos dramáticos utilizados nos poemas; 3) e, sobretudo, em evidências históricas, como a imitação dos testamentos por diversos gêneros burlescos da época, além da unanimidade dos testemunhos e anedotas referindo-se a Villon como um farseur.

Evidências materiais

A longa história da transmissão do corpus atribuído a François Villon desde o final do século XV dependeu basicamente de dois suportes materiais: os manuscritos e as edições impressas. Os seus manuscritos e edições antigas não foram organizados em torno da noção moderna de autor, mas possuíam outros critérios de seleção, em particular o gênero poético. Com efeito, a própria noção de autor era entendida na época como “autoridade” (auctoritas) e designava a excelência em determinado gênero de discurso (QUINTILIEN, 1933QUINTILIEN, - . Institution oratoire. Paris: Garnier Frères, 1933. t. II , p. 38). Há quatro manuscritos principais do seu corpus. Em um deles, o ms. 1661, f. 236 (BNF, Paris), o Lais foi copiado com o Sermon joyeux de la Choppinnerie. Da mesma forma, o manuscrito da Bibliothèque Royale Albert 1 er contém, além de poemas de Villon, mais três sermões jocosos: o Sermon Plaisant, o Sermon de Saint Hareng e o Sermon de Saint Oignon.

Como afirma Paul Zumthor (1972ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Le Seuil, 1972), no caso de Villon, as suas edições impressas são frequentemente anteriores aos manuscritos. A primeira edição de Villon, realizada por Pierre Levet, foi intitulada Le grant testament Villon et le petit. Son codicille. Le jargon et ses balades (1489). A edição Levet é uma coletânea que reúne outras quatro composições: uma arte poética, a Farce de Pierre Pathelin, e dois testamentos burlescos - o Testament de Barreiz, capitaine de Bretons e o Testament de Tastevins, roi de Pions (VILLON, 1489VILLON, François. Le grant testament Villon et le petit, son codicile, le jargon et ses balades. Paris: Pierre Levet, 1489. ). A primeira edição de Villon por Pierre Levet é ilustrativa, não apenas porque é mais antiga do que os seus manuscritos, mas também porque possui uma longa tradição editorial, tendo sido reeditada aproximadamente vinte vezes entre o fim do século XV e o início do século XVI (DOP-MILLER, 1991DOP-MILLER, Catherine. Clément Marot et l’édition humaniste des Œuvres de François Villon. Romania, Paris, n. 112, v. 1-2, 1991, p. 217-242. ).

Desde a sua primeira edição, o corpus de Villon foi incluído em diversas coletâneas reunindo obras pertencentes ao teatro burlesco medieval. Essa prática persistiu até as suas últimas edições antigas, como testemunha a edição Galliot du Pré (VILLON, 1532VILLON, François. Les Œuvres de Maistre Françoys Villon. Paris: Galliot du Pré, 1532. ). Essa coletânea também inclui o monólogo dramático Franc Archer de Baignollet, avec son epitaphe, o diálogo burlesco Messieurs de Mallapaye et de Baillevant e o sermão jocoso Les repues franches de François Villon et ses compagnons (1995KOOPMANS, Jelle ; VERHUYCK, Paul. (eds.). Le recueil des Respues Franches de François Villon et de ses compagnons. Genebra: Droz, 1995.). Essa coletânea serviu como modelo para a edição das Œuvres de François Villon (1723VILLON, François. Les Œuvres de François Villon. Paris: Antoine-Urbain Coustelier, 1723. ), realizada dois séculos depois por Antoine-Urbain Coustelier. Essa edição não apenas reúne todos os dramas burlescos presentes na edição Galliot du Pré, mas inclusive os atribui a François Villon, incluindo todas aquelas composições sob a sua autoridade.

Outro exemplo pode ser encontrado em uma edição impressa em Lyon por Jacques Moderne contendo sermões jocosos, como o Sermon du pouet de la puce e o Sermon joyeux de Saint Belin. Nessa edição, o sermão de Saint Belin contém setenta e cinco versos e está incompleto, juntando-se na última página à Ballade de l’appel, atribuída a Villon desde a edição Levet. Nessa página, em que as duas composições se sobrepõem, faltam nove linhas do início dessa balada, que é precedida por treze linhas daquele sermão. Essa edição foi estudada e reeditada por Jelle Koopmans e Paul Verhuyck (1987KOOPMANS, Jelle; VERHUYCK, Paul. Sermon joyeux et Truanderie (Villon-Nemo-Ulespiègle). Amsterdam: Rodopi, 1987.), que explicam a sobreposição dos dois poemas não como um acidente editorial, mas como uma montagem intertextual efetivamente representada na época. Esta é uma hipótese difícil de ser verificada, mas a publicação da Ballade de l’appel juntamente com sermões jocosos da época provavelmente não foi gratuita.

A inclusão do corpus atribuído a Villon em manuscritos e edições dedicadas ao teatro burlesco medieval revela o critério classificatório adotado pelos seus editores antigos e copistas. Nesse sentido, alguns dos seus principais editores e copistas provavelmente consideraram os testamentos e as baladas de Villon como composições pertencentes ao teatro burlesco medieval. Desde a edição Levet, as composições agrupadas em torno da etiqueta “Villon” são designadas com o nome da personagem assumida nos testamentos, como aconteceu com o próprio testamento “de Barreiz” e o “de Tastevins”. Como a coletânea de Levet é essencialmente constituída por testamentos burlescos, a etiqueta “Villon” também permitiu distinguir os seus testamentos dos demais. À diferença dos testamentos de Barreiz e de Tastevins, os de Villon constituem um gênero específico de paródia, pois são inteiramente constituídos por formas poéticas da lírica cortês da época.

Aliás, foi justamente o domínio formal por Villon da sofisticada arquitetura estrófica da oitava quadrada e da balada comum que chamou a atenção de escritores modernos, como Michel Butor (1974BUTOR, Michel. La prosodie de Villon. In: Répertoire IV. Paris: Minuit, 1974.) e Ezra Pound (1970POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1970.). No entanto, o uso das formas líricas prediletas de Alain Chartier (o mais imitado poeta cortês de meados do século XV) não significa necessariamente que Villon fosse um lírico, como concluíram um pouco rapidamente os seus editores e críticos modernos. O teatro do século XV era inteiramente composto em versos. O dístico de octossílabos com rimas planas é o verso mais comum nas composições dramáticas da época, mas essas também emprestavam com frequência formas poéticas próprias da lírica (KOOPMANS; VERHUYCK, 1987KOOPMANS, Jelle; VERHUYCK, Paul. Sermon joyeux et Truanderie (Villon-Nemo-Ulespiègle). Amsterdam: Rodopi, 1987., p. 7). O sermão jocoso Les Repues Franches de Maistre François Villon et de ses compagnons, por exemplo, é composto principalmente por dísticos de octossílabos, e inclui também baladas.

Villon parodia os testamentos amorosos pertencentes ao ciclo da Belle dame sans mercy, em particular La confession et testament de l’amanttrespassé de deuil (1982), de Pierre de HautevilleHAUTEVILLE, Pierre de. La confession et testament de l’amant trespassé de deuil. Édition par Rose M. Bidler. Paris: Ceres, 1982.. Assim, não é nem um pouco surpreendente que o poeta retome as próprias formas poéticas utilizadas pela tradição poética parodiada, como a oitava quadrada e a balada comum, que foram consagradas por Alain Chartier, autor da célebre Belle dame sans mercy. A exploração, com intenção paródica, da estrutura estrófica - ou, no caso das canções musicadas, da melodia - de uma composição lírica era então chamada de contrafactum [contrafação]. Os espectadores do teatro burlesco eram capazes de reconhecer as formas líricas emprestadas à poesia cortês e, portanto, a intenção paródica do poeta. A contrafação por Villon da rigorosa estrutura estrófica daquelas formas líricas visa conferir um efeito irônico à sua paródia do testamento amoroso da época.

Evidências textuais

Para que os críticos e especialistas começassem propriamente a valorizar a parte burlesca dos testamentos de Villon, foi preciso esperar que a nouvelle critique [nova crítica] na França deslocasse o interesse da biografia para a construção ficcional da persona nos poemas. Um dos principais promotores dessa guinada foi o filólogo Pierre Guiraud - o primeiro crítico a ter questionado o pressuposto da crítica biográfica sobre a autoria empírica do corpus pelo célebre malfeitor da época chamado François Villon. Embora esse indivíduo histórico seja, sem dúvida, a fonte de inspiração para a criação poética, qualquer poeta poderia ter assumido a persona desse indivíduo. Com base no detalhado exame dos calembours disseminados na obra, Guiraud sugeriu que o autor empírico pudesse ter sido um membro da basoche, cujas relações com o teatro burlesco da época são conhecidas (KOOPMANS; VERHUYCK, 1987KOOPMANS, Jelle; VERHUYCK, Paul. Sermon joyeux et Truanderie (Villon-Nemo-Ulespiègle). Amsterdam: Rodopi, 1987., p. 47).

O parentesco entre Villon e a poesia dramática fora completamente negligenciado pela crítica literária até então, tendo sido notado apenas por alguns historiadores do teatro medieval, como, por exemplo, o bibliófilo Paul Lacroix Jacob (1859JACOB, Paul Lacroix. Recueil de Farces, Soties et Moralités du quinzième siècle. Paris: Adolphe Delahays, 1859., p. 22): “Les jeunes poètes, à l’exemple de Villon et de Clément Marot, avaient surtout un penchant irrésistible pour le théâtre”2 2 Os jovens poetas, como Marot e Villon, tinham um pendor irresistível para o teatro (tradução nossa). . A partir dos estudos de Guiraud, diferentes críticos procuraram se concentrar na construção ficcional da persona poética de Villon. O principal representante dessa nova crítica, o medievalista Jean Dufournet (1993, p. 24)DUFOURNET, J. Villon: ambiguïté et carnaval. In: DERENS, Jean , DUFOURNET, J; FREEMAN, Michael (Orgs.). Villon hier et aujourd’hui. Actes du Colloque pour le cinq-centième anniversaire de l’impression du Testament de Villon, Bibliothèque historique de la Ville de Paris, 15-17 déc. 1989, Paris, 1993, p. 9-25., conferiu destaque à análise dos subentendidos jocosos disseminados na indústria dos legados do Lais e do Testament, interpretando os testamentos de Villon como uma inversão paródica dos ideais da tradição poética cortês, como o amor, a religião, a cavalaria, segundo a concepção bakhtiniana de “carnaval” na Idade Média (BAKHTIN, 1987BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.).

Dufournet concluiu que os testamentos de Villon pertencessem ao gênero burlesco medieval chamado de dit: “Les deux œuvres suivis de Villon, le Lais et le Testament, [...] appartiennent au genre du dit”3 3 As duas obras em sequência de Villon, o Lais e o Testament [... ] pertencem ao gênero do dit (tradução nossa). (VILLON, 1992VILLON, François. Poésies. Paris: Flammarion, 1992., p. 10). Dufournet vinculou, com razão, os testamentos de Villon a este gênero representado desde o século XIII pelos jongleurs, que enunciavam em primeira pessoa o discurso de uma personagem ficcional, como, por exemplo, o Dit de l’herberie, de Rutebeuf, que representa um vendedor charlatão de remédios. No entanto, o gênero do dit [dito] passou dois séculos mais tarde a ser praticado por atores, que emprestaram diversos recursos à arte teatral, como a dicção, a expressão, o gesto, a mímica e o figurino, como afirma Pauphilet (1987PAUPHILET, Albert. Jeux et sapience du Moyen Age. Paris: Gallimard, 1987.). No século XV, esse gênero do teatro burlesco da época representado por um único ator foi chamado de monologue dramatique [monólogo dramático].

Dessa perspectiva, os testamentos de Villon seriam um discurso em primeira pessoa destinado a ser enunciado por um ator. Ao assumir a primeira pessoa da enunciação, o ator vestia a máscara da personagem do célebre malfeitor no papel de testador. A hipótese de que os testamentos de Villon pertencessem ao gênero do monólogo dramático é reforçada pela sua exploração de formas próprias do teatro burlesco da época, como a sottie, o sermão jocoso, o debate e o exemplo. A subseção do Testament intitulada Belle leçon aux enfants perdus [Bela lição aos meninos perdidos], bem como as célebres Ballades en jargon podem ser consideradas como sermões jocosos que parodiam a peroração dos sermões sérios em que se exortava o destinatário à virtude. No início do Testament, o exemplum [exemplo] de Alexandre, o grande, imita a vida dos santos utilizada como modelo de conduta no desenvolvimento dos sermões sérios.

Os testamentos de Villon também fazem uso de diversos recursos dramáticos que vinculam as suas circunstâncias de desempenho às de uma peça teatral. O efeito dramático é evidente no recurso frequente à interpelação dos espectadores pela personagem, que utiliza repetidamente figuras retóricas como a antecipação e a interrogação, como mostrou o crítico Tony Hunt (1996HUNT, Tony. Villon’s last Will. Oxford: Clarendon Press, 1996.). No entanto, o mais evidente recurso dramático reside, sem dúvida, na utilização do epílogo tanto no Lais quanto no Testament. Assim como o prólogo, o epílogo é um discurso extradramático de caráter expositivo em que um ator abandona a sua personagem e, rompendo a verossimilhança dramática, fala diretamente com o público. O uso de prólogos e epílogos é muito comum em gêneros dramáticos medievais, como mistérios e moralidades, pois permite explicitar o sentido moralizante dos enredos, enquadrados pelo início e pelo fim da peça.

Na estrofe de conclusão do Lais, a narração não é feita em primeira pessoa pela personagem de François Villon, mas em terceira pessoa pelo próprio ator responsável por representá-la: “Fait au temps de la dite datte/ Par le bien renommé Villon”4 4 Feito na referida data/ Pelo bem chamado Villon (tradução nossa). (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 24). O epílogo do Lais imita os testamentos reais da época, que eram concluídos com a data de composição e assinatura do testador. A expressão “dita data” retoma o seu prólogo, cujo primeiro verso determina que o Lais foi escrito em 1456. A assinatura realizada pelo testador autentica a autoria do seu testamento; porém, em vez da primeira pessoa do prólogo - iniciado por “Eu, François Villon” (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 28) -, o epílogo utiliza a terceira pessoa: “o bem chamado Villon”. O epílogo do Lais rompe, assim, com a narração em primeira pessoa pelo testador, pois o ator assume a palavra para descrever, em terceira pessoa, a data e a assinatura que anunciam o fim da representação.

Na balada de conclusão do Testament, o ator também abandona a máscara da personagem de Villon para concluir em terceira pessoa a obra. À diferença do Lais, a conclusão do Testament coincide com o momento em que o testador expira: “Icy se clost le testament/ Et finist du povre Villon”5 5 Aqui se encerra o testamento/ E termina o pobre Villon (tradução nossa). (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 165). Assim, a conclusão do Testament é o próprio anúncio da morte de Villon. Como os testamentos só podem ser lidos depois da morte do testador, o fim do Testament coincide com o seu início, em uma mise en abîme [disposição em cascata]. Na conclusão dos dois poemas, o ator rompe a verossimilhança do discurso em primeira pessoa pela personagem de Villon para anunciar, em terceira pessoa, o fim da representação. Nessas passagens, o ator abandona a máscara da personagem de Villon, assumindo-se como tal, como no metateatro contemporâneo (ABEL, 1963ABEL, Lionel. Metatheatre: A new view of dramatic form. New York: Hill and Wang, 1963.).

Evidências históricas

Villon foi um modelo poético não apenas da lírica cortês, como também da literatura burlesca. Em sua “primeira recepção” (JAUSS, 1979JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aesthesis e Katharsis. In: LIMA, Luis Costa (Org.). A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. , p. 21), já na segunda metade do século XV, os testamentos e baladas esparsas de Villon foram imitados por diversas composições burlescas do final do século XV e início do século XVI, como Les repues franches de maistre François Villon et de ses compagnons, a Vie et trepassement de Caillette, a Legende de maistre Pierre Faifeu, Les motz dorez du grand et sage Caton, Le testament de Pathelin e Les vigiles Triburet. Essas composições imitam diversos elementos do corpus de Villon, desde a personagem do vilão até passagens específicas, como, por exemplo, os legados burlescos dos dois testamentos, o seu Epitáfio na conclusão do Testament e, sobretudo, as Ballades en jargon.

Como nome da personagem poética, “Villon” não apenas a identifica a um indivíduo histórico, mas também representa o principal atributo dela: a vileza, sugerida pela paranomásia com vilain [vilão]. Tendo entrado para a língua comum nos termos villonerie [trapaça] e villoner [trapacear], o nome próprio “Villon” tornou-se sinônimo de fripon [charlatão]. No epílogo do Lais (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 24), o poeta rima o nome próprio da personagem com “billon” (uma moeda sem valor). Essa rima foi imitada pela primeira vez no sermão jocoso Les repues franches de François Villon et de ses compagnons: “Venez y d’amont et d’aval/ Les hoirs du deffunct Pathelin/ Quis avez jargon jobelin/ Capitaine du pont a baillon/ Tous les subjectz François Villon”6 6 Venham de toda parte/ Herdeiros do finado Pathelin/ E o capitão da ponte do câmbio/ Iniciados no jargão/ Fiéis a Franco Vilão (tradução nossa). (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 367). Essa passagem cristaliza as principais características associadas à personagem de Villon.

Em primeiro lugar, a passagem retoma a rima entre Villon e billon, segundo a variante baillon. O “capitão da ponte do câmbio” é uma metáfora para o conjunto das práticas criminosas associadas à falsificação de dinheiro. A mesma rima foi explorada por diversas composições da época, como Les motz dorez du grand et sage Caton, que compara alguém muito hábil em conseguir dinheiro com Villon: “Et ne visoit a acquérir billon/ Si fin ne fut qu’estoit François Villon”7 7 E não procurava adquirir nenhum tostão/ Senão fosse de modo tãofino quanto François Villon (tradução nossa). (apudGUIRAUD, 1970GUIRAUD, Pierre. Le Testament de Villon ou le Gai savoir de la Basoche. Paris: Gallimard, 1970., p. 122). A Legende de maistre Pierre Faifeu joga com a associação da personagem de Villon com o poeta, cuja capacidade de rimar com a palavra billon [tostão] é uma metáfora para a habilidade linguística do trapaceiro de enganar as suas vítimas: “Maistre François nommé Villon/ Bien sçavoit rimez sur billon/ Tout jours ouvriers comme dimanches/ Quant il cerchoit ses Repues Franches”8 8 Mestre François, chamado Villon/ Bem sabia rimar com tostão/ Todos os dias úteis, bem como domingos/ Quando buscava almoços de graça (tradução nossa). (apudGUIRAUD, 1970GUIRAUD, Pierre. Le Testament de Villon ou le Gai savoir de la Basoche. Paris: Gallimard, 1970., p. 122).

Em segundo lugar, a passagem acima associa Villon à personagem do advogado charlatão Pierre Pathelin. Como foi visto anteriormente, a Farce de Pierre Pathelin chegou até mesmo a ser atribuída a Villon pela edição Coustelier. Essa associação se tornou muito comum na época, sendo realizada, por exemplo, na Vie et Trespassement de Caillette, onde, sobre a lápide de Pathelin, os seus feitos são ironicamente elogiados pela comparação nada honrosa com os de Villon: “Soubz le fardeau de cette dure Pierre/ Voyez gesir le plaisant Maistre Pierre/ Qui en ses faits passa partout Villon/ Et Pathelin, partant a reveillon”9 9 Sob o fardo desta dura pedra/ Vede jazer o bom Mestre Pedro/ Cujos feitos superaram Villon/ E Pathelin, ao partir para o novo ano (tradução nossa). (apudGUIRAUD, 1970GUIRAUD, Pierre. Le Testament de Villon ou le Gai savoir de la Basoche. Paris: Gallimard, 1970., p. 123). Os testamentos de Villon são os principais modelos do Testament de Pathelin, que também é uma paródia na qual o advogado charlatão lega os seus bens burlescos. Villon e Pathelin podem ser considerados como as duas principais personagens do teatro burlesco medieval na França.

Em terceiro lugar, a passagem acima vincula a língua falada pela personagem de Villon ao jargon jobelin [jargão jobelin]. Retirado do jargão secreto utilizado por uma quadrilha de malfeitores da época chamada “os Coquillards”, o léxico utilizado nas Ballades en jargon permite caracterizar a personagem de Villon como um membro dos Coquillards. As Ballades en jargon são o principal modelo imitado pelo sermão jocoso Les repues franches de maistre François Villon et de ses compagnons. Além disso, o seu léxico foi retomado por vários mistérios do século XV, como o Mystère du Viel Testament, o Mystère de la Passion, o Mystère des Actes des Apôtres e o Mystère de la Vie de saint Christophle. As Ballades en jargon foram as composições de Villon mais imitadas pela poesia dramática da época, tendo sido decisivas para a consolidação de Villon como a mais célebre representação medieval da personagem do vilão.

Uma das mais conhecidas anedotas vinculando Villon à poesia dramática está no capítulo XIII do livro IV do Pantagruel, de Rabelais (1946RABELAIS, - . Le quart livre des faicts et dicts héroïques du noble Pantagruel. Paris: Les Belles Lettres, 1946. ). Nela, Villon é identificado a um poeta dramático que, em seus dias de velhice, retira-se a Saint-Maixent (em Poitiers) para representar, na feira de Niort, Le Mistère de la Passion. Em vez do “Mistério da Paixão” de Cristo, Villon realiza uma “diabrura” para se vingar do sacristão, que se recusara a emprestar uma estola para a representação cênica da personagem de Deus. A anedota de Rabelais tematiza claramente a paródia das Sagradas Escrituras pelos dois testamentos de Villon, como será discutido abaixo; além disso, ela ridiculariza a perseguição pela Igreja do teatro burlesco medieval que, considerado como prejudicial aos “bons costumes”, foi frequentemente objeto de censura pelo poder real durante todo o século XV na França.

Como aconteceu desde as suas primeiras edições antigas, o nome “Villon” foi frequentemente utilizado como metonímia para designar o próprio poeta, segundo a tópica do ofício. Utilizado para designar o autor dos testamentos, Villon sempre foi associado, nos séculos XV e XVI, a um “farseur”, isto é, a um ator ou autor de farsas, já que ambas as noções são recobertas pelo termo farseur em francês médio. Em uma crônica, Philippe de Vigneulles elogia um habilidoso farseur da época chamado Jean Mangin, definindo-o como um “segundo mestre François Villon de Paris”: “C’estoit ung passe toutte pour juer fairce et mommerie, et estoit homme pour resjoier toute une cité. [...] Brief, un second maistre Françoys Willon de Perris”10 10 Enfim, ele era muito habilidoso em encenar farsa e paródia, e era um homem capaz de divertir uma cidade inteira. [... ] Em uma palavra, ele era um segundo Mestre François Villon de Paris (tradução nossa). (apudKOOPMANS; VERHUYCK, 1987, p. 51KOOPMANS, Jelle; VERHUYCK, Paul. Sermon joyeux et Truanderie (Villon-Nemo-Ulespiègle). Amsterdam: Rodopi, 1987.).

Finalmente, uma descrição notável da obra de Villon foi realizada por Éloy d’Amerval na Grand Deablerie, na qual o poeta foi definido como um clérigo muito original e experiente em fatos e ditos que se deleitava em representar farsas: “Maistre Françoys Villon jadis/ Clerc expert en faictz et en ditz/ Comme fort nouveau qu’il estoit/ Et a farcer se delectoit/ Fist a Paris son testament”11 11 Mestre François Villon/ Clérigo experiente em fatos e ditos/ Que era muito original/ E se deleitava em representar farsas/ Fez seu testamento em Paris (tradução nossa). (apudGUIRAUD, 1970GUIRAUD, Pierre. Le Testament de Villon ou le Gai savoir de la Basoche. Paris: Gallimard, 1970., p. 122). Como paródias do testamento amoroso, os testamentos de Villon são definidos na época como farsas destinadas a deleitar os espectadores do teatro burlesco medieval. Assim como na passagem citada, o nome François Villon é frequentemente precedido pelo qualificativo “maistre” [mestre] em edições do seu corpus posteriores a 1500, como acontece na edição Galliot du Pré: Les Œuvres de Maistre Françoys Villon (1532). Utilizado pelos tratadistas para designar autoridades poéticas da época, esse qualificativo é indício de que, no início do século XVI, Villon já se transformara em uma das principais autoridades do teatro burlesco, antes mesmo de se tornar um modelo da lírica cortês e entrar para o cânone poético, como foi visto acima.

Representação fantástica

A hipótese de que o corpus de Villon pertencesse ao gênero do teatro medieval burlesco chamado de “monólogo dramático” coloca a seguinte questão: como é que um testamento poderia ser representado por um ator, se é um gênero escrito por excelência? Mais do que qualquer outro testamento poético, Villon imita as fórmulas jurídicas utilizadas nos testamentos reais da época, como demonstrou Van Zoest (1974)VAN ZOEST, Aart. Structures de deux Testaments fictionnels - Le Lais et le Testament de François Villon. Paris-La Hague: Mouton, 1974. . A forte insistência nessas fórmulas visa produzir verossimilhança na ficção testamentária. Essa verossimilhança estava fundada na crença de que o ator que representava o testamento era o próprio Villon, não um simples ator a ler para os espectadores as palavras deixadas por escrito pelo testador morto. É justamente para fortalecer essa crença que diversas passagens descrevem o contexto de composição dos testamentos, com base na função referencial da linguagem (JAKOBSON, 1969JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.).

Como afirma no epílogo (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 25), é o testador quem escreve o Lais com “pena” e “tinta”. Já o Testament é ditado a um redator oficial que, chamado de “Firmino” (VILLON, 2014VILLON, François. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 2014. , p. 82), redige as últimas vontades do testador antes de ele expirar em seu leito de morte. As referências à escrita, no Lais, e ao ditado, no Testament, permitem colocar em cena o próprio contexto de composição da obra. No entanto, o Testament introduz, além da escrita, um novo intermediário entre a composição e o destinatário, fortalecendo o efeito paródico da composição. Por outro lado, os testamentos reais da época eram efetivamente ditados em voz alta a um oficial de justiça. Assim, a referência a Firmino confere verossimilhança à composição, pois a leitura do ator aos espectadores das últimas vontades deixadas por escrito pelo testador imita o ditado do testador ao oficial responsável pela redação do seu testamento.

Um testamento real é um gênero escrito por definição, como a epístola e o epitáfio. Assim como nesses gêneros escritos, no testamento há uma distância entre o contexto de composição e o seu destinatário real. O testador relaciona-se com o seu destinatário por meio da escrita, estabelecendo uma espécie de diálogo in absentia [na ausência]. Como um testamento só passa a ter validade jurídica depois da morte do testador, ao abrir um testamento, está-se diante das palavras de um morto. Segundo a narrativa implícita na representação dramática dos testamentos, as palavras que o ator lê em voz alta para os espectadores foram as palavras deixadas por escrito pelo testador morto. No monólogo dramático, o ator assumia a primeira pessoa da enunciação e, portanto, vestia a máscara da personagem do testador François Villon.

Se o ator assume a personagem do testador para “representar” (no sentido jurídico e dramático do termo) o autor morto, a representação estava fundada na imitação pelo ator da personagem de um morto, segundo o tipo de personagem chamado por Prisciano (1863PRISCIANO, - . Praeexercitamina ex Hermogene versa. In: HALM, Carl. Rethores latini minores. Leipzig: Teubner, 1863., p. 557) de eidolopopeia [personificação do morto]. No canto XI da Odisseia (HOMERO, 2011HOMERO, -. Odisseia. São Paulo: Editora 34, 2011.), por exemplo, Ulisses dialoga no Hades com a sombra de personagens míticas, como Sísifo e Narciso. A Nékuia [descida ao Hades] homérica foi parodiada na antiguidade pelo Diálogos dos mortos, de Luciano de Samósata, que encena o filósofo cínico Diógenes a conversar no Hades com as personagens mortas de heróis, filósofos e tiranos. Na Idade Média, a personificação de mortos foi retomada pela Divina Comédia, de Dante, cuja viagem ascendente pelas três partes em que se divide o além permite narrar o seu encontro com a alma imortal dos mortos.

A personificação do autor morto nos testamentos de Villon é um monólogo dramático, sendo assim comparável à aparição do espectro no início de Hamlet, de Shakespeare. No entanto, o pai de Hamlet, assassinado repentinamente, não teve tempo de se confessar, sendo lançado no purgatório, enquanto Villon arrependeu-se antes da morte, como demonstra a sua confissão no início do Testament. Foi precisamente esse arrependimento que teria permitido a salvação da sua alma, segundo a doutrina cristã. Nesse sentido, o ator veste a máscara do testador apenas para pronunciar as palavras que, enunciadas do além pelo espectro do autor morto, situam o presente da enunciação na eternidade. A representação pelo ator das palavras deixadas por escrito pelo autor confere à enunciação dramática a aparência de um discurso feito pelo eidolon [espectro] de François Villon - no corpo morto, mas viva a alma.

Conclusão

Desde a primeira metade do século XIX, François Villon foi considerado, por seus primeiros editores e críticos, um poeta lírico, e sua obra foi unificada em torno da concepção moderna de autor empírico. No entanto, a reconstituição feita acima da estrutura interna (evidências textuais), da tradição manuscrita e do editorial (evidências materiais) e da primeira recepção (evidências histórias) dos seus testamentos e baladas esparsas indica que essas obras foram compostas no gênero do monólogo dramático. O seu corpus anônimo é unificado não em torno do seu suposto autor empírico pressuposto na origem da enunciação, mas da personagem dramática do vilão arrependido, cujo espectro narra da perspectiva do além a sua vida exemplar em primeira pessoa.

Os dois poemas longos em forma de testamento possuem uma unidade narrativa que, apesar de ser evidente para os espectadores do teatro burlesco medieval, passou despercebida aos seus editores e críticos modernos. O Lais foi composto pelo testador ainda jovem, mas foi deixado inacabado, pois ele precisou fugir para o exílio depois do assalto ao colégio de Navarra. Situado cinco anos mais tarde, o Testament foi composto antes da morte do testador, condenado ao enforcamento pelo mesmo assalto. Na confissão introduzida no início do Testament, ele se arrepende pelos erros cometidos na juventude. O Testament completa a composição anterior, incorporando o Lais à sua estrutura narrativa, como o testador deixa claro antes de iniciar os seus legados.

Portanto, não há oposição entre a parte grave e a burlesca do seu corpus, que, como uma paródia, é justamente a mistura entre o grave e o burlesco. Além de parodiar as formas poéticas da lírica cortês do ciclo da Belle dame sans mercy, os testamentos de Villon parodiam a estrutura narrativa das Sagradas Escrituras. Assim como o Velho Testamento foi corrigido pelo Novo, o Lais foi completado pelo Testament. Segundo a cosmologia cristã, o Lais representaria a queda (iniciada no Gênesis), e o Testament a redenção (selada na “nova aliança” dos evangelhos). No entanto, os testamentos de Villon narram a história da salvação da perspectiva do bom ladrão crucificado ao lado de Cristo (LUCAS, 23/32BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Rideel, 1997.). A esperança do bom ladrão na salvação da sua alma é o acontecimento originário que, justificando a própria escrita dos dois testamentos de François Villon, permite conferir unidade ao enredo da “farsa do vilão arrependido”.

Referências bibliográficas

  • ABEL, Lionel. Metatheatre: A new view of dramatic form. New York: Hill and Wang, 1963.
  • BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
  • BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Rideel, 1997.
  • BUTOR, Michel. La prosodie de Villon. In: Répertoire IV Paris: Minuit, 1974.
  • COSTA, Daniel Padilha Pacheco (da). Autor e personagem: François Villon e a nova crítica na França. Revista Criação & Crítica, v. 12, 2014a, p. 76-87.
  • COSTA, Daniel Padilha Pacheco (da). Antiga poesia renovada: a tradução do soneto LXII dos Regrets como exemplo da poética de Du Bellay. Revista Itinerários, v. 38, 2014b, p. 163-175.
  • DOP-MILLER, Catherine. Clément Marot et l’édition humaniste des Œuvres de François Villon. Romania, Paris, n. 112, v. 1-2, 1991, p. 217-242.
  • DUFOURNET, J. Villon: ambiguïté et carnaval. In: DERENS, Jean , DUFOURNET, J; FREEMAN, Michael (Orgs.). Villon hier et aujourd’hui Actes du Colloque pour le cinq-centième anniversaire de l’impression du Testament de Villon, Bibliothèque historique de la Ville de Paris, 15-17 déc. 1989, Paris, 1993, p. 9-25.
  • GOYET, Francis. Traités de poétique et de rhétorique de la Renaissance Paris: Librairie Générale Française, 1990.
  • GUIRAUD, Pierre. Le Testament de Villon ou le Gai savoir de la Basoche Paris: Gallimard, 1970.
  • HAUTEVILLE, Pierre de. La confession et testament de l’amant trespassé de deuil Édition par Rose M. Bidler. Paris: Ceres, 1982.
  • HOMERO, -. Odisseia São Paulo: Editora 34, 2011.
  • HUNT, Tony. Villon’s last Will Oxford: Clarendon Press, 1996.
  • JACOB, Paul Lacroix. Recueil de Farces, Soties et Moralités du quinzième siècle Paris: Adolphe Delahays, 1859.
  • JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aesthesis e Katharsis In: LIMA, Luis Costa (Org.). A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
  • JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação São Paulo: Cultrix, 1969.
  • KOOPMANS, Jelle; VERHUYCK, Paul. Sermon joyeux et Truanderie (Villon-Nemo-Ulespiègle). Amsterdam: Rodopi, 1987.
  • KOOPMANS, Jelle ; VERHUYCK, Paul. (eds.). Le recueil des Respues Franches de François Villon et de ses compagnons Genebra: Droz, 1995.
  • LANSON, Gustave. Histoire de la Littérature Française Paris: Hachette, 1923.
  • LONGNON, Auguste. Étude biographique sur François Villon d’après les documents inédits conservés aux Archives nationales Paris: Menu, 1877.
  • PAUPHILET, Albert. Jeux et sapience du Moyen Age Paris: Gallimard, 1987.
  • POUND, Ezra. ABC da Literatura São Paulo: Cultrix, 1970.
  • PRISCIANO, - . Praeexercitamina ex Hermogene versa. In: HALM, Carl. Rethores latini minores Leipzig: Teubner, 1863.
  • QUINTILIEN, - . Institution oratoire Paris: Garnier Frères, 1933. t. II
  • RABELAIS, - . Le quart livre des faicts et dicts héroïques du noble Pantagruel Paris: Les Belles Lettres, 1946.
  • SICILIANO, Italo. Mésaventures Posthumes de Maître Françoys Villon Paris: Picard, 1973.
  • VAN ZOEST, Aart. Structures de deux Testaments fictionnels - Le Lais et le Testament de François Villon Paris-La Hague: Mouton, 1974.
  • VILLON, François. Le grant testament Villon et le petit, son codicile, le jargon et ses balades Paris: Pierre Levet, 1489.
  • VILLON, François. Les Œuvres de Maistre Françoys Villon Paris: Galliot du Pré, 1532.
  • VILLON, François. Les Œuvres de François Villon de Paris Paris: Clément Marot, 1533.
  • VILLON, François. Les Œuvres de François Villon Paris: Antoine-Urbain Coustelier, 1723.
  • VILLON, François. Poésies Paris: Flammarion, 1992.
  • VILLON, François. Œuvres complètes Paris: Gallimard, 2014.
  • ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale Paris: Le Seuil, 1972
  • 1
    Pelo fundamento de sua poesia, Villon não é mais da Idade Média: todo ele é moderno, francamente o primeiro a ter sido completamente moderno. Ele carrega em si todo o lirismo (tradução nossa).
  • 2
    Os jovens poetas, como Marot e Villon, tinham um pendor irresistível para o teatro (tradução nossa).
  • 3
    As duas obras em sequência de Villon, o Lais e o Testament [... ] pertencem ao gênero do dit (tradução nossa).
  • 4
    Feito na referida data/ Pelo bem chamado Villon (tradução nossa).
  • 5
    Aqui se encerra o testamento/ E termina o pobre Villon (tradução nossa).
  • 6
    Venham de toda parte/ Herdeiros do finado Pathelin/ E o capitão da ponte do câmbio/ Iniciados no jargão/ Fiéis a Franco Vilão (tradução nossa).
  • 7
    E não procurava adquirir nenhum tostão/ Senão fosse de modo tãofino quanto François Villon (tradução nossa).
  • 8
    Mestre François, chamado Villon/ Bem sabia rimar com tostão/ Todos os dias úteis, bem como domingos/ Quando buscava almoços de graça (tradução nossa).
  • 9
    Sob o fardo desta dura pedra/ Vede jazer o bom Mestre Pedro/ Cujos feitos superaram Villon/ E Pathelin, ao partir para o novo ano (tradução nossa).
  • 10
    Enfim, ele era muito habilidoso em encenar farsa e paródia, e era um homem capaz de divertir uma cidade inteira. [... ] Em uma palavra, ele era um segundo Mestre François Villon de Paris (tradução nossa).
  • 11
    Mestre François Villon/ Clérigo experiente em fatos e ditos/ Que era muito original/ E se deleitava em representar farsas/ Fez seu testamento em Paris (tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2017
  • Aceito
    15 Jun 2017
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com