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O nu de Clarice Lispector

Resumos

Reavaliação da noção de epifania na leitura da obra de Clarice Lispector, retomando o contexto teológico de onde provém, via James Joyce. Leitura de textos-chave de Lispector, desentranhando neles uma certa linhagem messiânica, em que a fábula literária coincide com a sua abolição, em um real que ao mesmo tempo destitui a literatura e é irremediavelmente ligado a ela.

Clarice Lispector; epifania; James Joyce; Marcel Proust


Réévaluation de la notion d'épiphanie dans la lecture de l'oeuvre de Clarice Lispector, reprenant le contexte théologique d'où elle provient, par l'intermédiaire de James Joyce. Lecture de textes-clés de Lispector, dégageant en eux un certaine lignage méssianique, dans lequel la fable littéraire coïncide avec son abolition, dans un réel qui dépossède la littérature en lui étant tout à la fois irremédiablement lié.

Clarice Lispector; épiphanie; James Joyce; Marcel Proust


Reevaluation of the notion of epiphany in the reading of Clarice Lispector's work, taking into account the theological context where it is originated, through James Joyce. Reading of certain key texts by Lispector, uncovering in them a certain messianic trend, in which the literary fable coincides with its abolition in a real which at the same time disowns literature and is indissolubly attached to it.

Clarice Lispector; epiphany; James Joyce; Marcel Proust


O nu de Clarice Lispector

João Camillo Penna

RESUMO

Reavaliação da noção de epifania na leitura da obra de Clarice Lispector, retomando o contexto teológico de onde provém, via James Joyce. Leitura de textos-chave de Lispector, desentranhando neles uma certa linhagem messiânica, em que a fábula literária coincide com a sua abolição, em um real que ao mesmo tempo destitui a literatura e é irremediavelmente ligado a ela.

Palavras-chave: Clarice Lispector; epifania; James Joyce; Marcel Proust.

ABSTRACT

Reevaluation of the notion of epiphany in the reading of Clarice Lispector's work, taking into account the theological context where it is originated, through James Joyce. Reading of certain key texts by Lispector, uncovering in them a certain messianic trend, in which the literary fable coincides with its abolition in a real which at the same time disowns literature and is indissolubly attached to it.

Key-words: Clarice Lispector; epiphany; James Joyce; Marcel Proust.

RÉSUMÉ

Réévaluation de la notion d'épiphanie dans la lecture de l'oeuvre de Clarice Lispector, reprenant le contexte théologique d'où elle provient, par l'intermédiaire de James Joyce. Lecture de textes-clés de Lispector, dégageant en eux un certaine lignage méssianique, dans lequel la fable littéraire coïncide avec son abolition, dans un réel qui dépossède la littérature en lui étant tout à la fois irremédiablement lié.

Mots-clés: Clarice Lispector; épiphanie; James Joyce; Marcel Proust.

Conta-se que Clarice, sempre procurada por jornalistas ou pessoas interessadas em conversar com ela, teria se desculpado com a frase: "sou muito ocupada. Eu cuido do mundo."

"Clarice Lispector e suas epifanias", "Clarice, a escritora das epifanias". Quantas vezes já não ouvimos essas frases, repetidas como um bordão, a que atribuímos a função de resumir o sentido de uma obra inteira, ligando-a toda ao momento epifânico. Os termos de "ritual", "instante exemplar" ou "decisivo", "momento existencial", "espanto", "êxtase", "flash", tantas variantes, como o próprio "instante-já", expressão que Clarice adota em Água viva, para nomear o seu método- são todas derivadas de epifania. Foi Benedito Nunes quem introduziu o motivo, ainda sem designá-lo como tal, nos dois primeiros ensaios que dedicou a Clarice, mas já nos seguintes nomeando-o.1 1 NUNES, Benedito. O mundo de Clarice Lispector. Governo do Amazonas, 1966, p. 56; "O mundo imaginário de Clarice Lispector", in: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976, terceira edição (primeira edição, 1969); Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edições Quíron, 1973, p.123; O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.125. Este quarto livro incorpora o terceiro acrescentando-lhe capítulos sobre a obra subsequente de Clarice publicada após 1971. Também Affonso Romano de Sant'Anna, em Análise estrutural de romances brasileiros (Petrópolis: Ed. Vozes, 1973), dá à epifania um grande destaque em sua leitura das coletâneas de contos, Laços de família e Legião estrangeira. Os diversos estudos monográficos de Benedito Nunes dedicados a Clarice deram os termos de uma leitura filosoficamente informada da sua obra que marcaram profundamente a sua recepção universitária e não universitária. É nesse contexto que a epifania se estabelece como uma das vertentes dominantes de leitura dessa obra. Trata-se de um impressionante lugar-comum da crítica clariciana. É chegada talvez a hora de desconstruí-lo, identificando o tronco teológico em que se situa, e a maneira pela qual é transplantado para a crítica de Clarice. Eis a pergunta a ser formulada agora: o conceito de epifania constitui ainda uma perspectiva aceitável de leitura das narrativas de Clarice? Qual o interesse de utilizá-lo e de que maneira ele sobredetermina a leitura dos textos? No ponto em que estamos, ele elucida ou obscurece aspectos essenciais de suas narrativas, e em ambos os casos, de que maneira?

Olga de Sá já procedeu a um levantamento extenso do tratamento da epifania pela crítica, resumindo seu significado, sua história, e a relevância da utilização do conceito para pensar a obra de Clarice.*1 *1 (SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979. ) Passarei rapidamente pelos pontos já estudados por ela, remetendo para maiores detalhes ao seu estudo, para chegar à questão que interessa.

O termo epifania provém do vocabulário teológico; epipháneia, "manifestação, aparição". No calendário cristão costuma-se chamar o 6 de janeiro, o "Dia de Reis", a Twelveth Night de Shakespeare (a décima segunda noite após o nascimento de Cristo), de "festa da epifania", significando a exposição do menino Jesus recém-nascido aos outros povos, ali representados, segundo quer o texto bíblico, pelos três reis magos. O termo é recorrente no léxico grego do Novo Testamento, mais especificamente nas epístolas do apóstolo Paulo, ou seja, no material teórico-prático da cristologia. Aparece na 2ª epístola de Paulo aos Tessalonicenses, na 1ª e 2ª epístola a Timóteo, na epístola a Tito. Por exemplo, na 2ª epístola a Timóteo (capítulo 1, versículo 9-10): "Essa graça [kháris], que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos termos eternos foi manifestada agora pela aparição [epipháneia] de nosso Salvador, o Cristo Jesus."*2 *2 ( A Bíblia de Jerusalém. 3ª imp. 1ª ed., 1980. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994: 2232. ) O termo, portanto, é explicitamente associado à encarnação e redenção de Deus em sua figura humana.

O caminho até chegar a Clarice é sinuoso. O termo aparece em James Joyce, via Walter Pater e D'Annunzio, isto é, via a secularização da experiência mística no sentimento do belo feita pela estética decadentista e simbolista. A noção é teorizada em uma versão intermediária não publicada de O retrato do artista enquanto jovem, Stephen Hero, escrita entre 1904 e 1906. A ligação com Clarice é dada por ela própria: o título de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem (1943), é retirado de uma passagem famosa de O retrato do artista enquanto jovem (1914-1915; 1916), citado em epígrafe no livro de Clarice. "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."

A cena de O retrato do artista... consiste no episódio da menina-pássaro na praia da ilha de Bull em Dublin:

Ela parecia com alguém a quem a mágica mudara na semelhança de um estranho e belo pássaro do mar. As suas longas e esguias pernas nuas eram delicadas como as de um grou, e puras, salvo no lugar em que um fio esmeralda de algas se conformara como um sinal sobre a sua pele. Suas coxas, cheias e matizadas como marfim, estavam nuas quase que até a cintura, onde as franjas brancas de seus calções eram como plumagens de uma penugem branca e macia.

*3 *3 (JOYCE, James. The Portrait of The Artist as a Young Man. Text, Criticism, and Notes. Editado por Chester Anderson. New york: Penguin Books, 1968: 171. )

2 2 As traduções de Joyce são minhas.

A metamorfose da menina em pássaro é realizada pela intervenção miraculosa da metáfora, a operação estética literária por excelência, sublinhada aqui pelo traço insistente das símiles, fazendo Stephen explodir em "alegria profana".

A imagem dela entrara em sua alma para sempre e nenhuma palavra quebrara o silêncio do seu êxtase. Os olhos dela o chamaram e sua alma pulara diante do chamado. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida. Um anjo selvagem lhe aparecera, o anjo da juventude e da beleza mortais, um enviado das belas cortes da vida, para escancarar diante dele em um instante de êxtase os portões de todos os modos de erro e de glória.

*4 *4 (Idem: 172.)

A transformação da menina em símbolo, a aparição do "anjo selvagem", é uma visão silenciosa e extática que demonstra a Stephen in loco a técnica de recriação alquímica da vida pela arte, da "vida pela vida", que possibilita a resolução ambígua do erro e da glória em imagem redimida. Entretecido na metamorfose, há ressonâncias prováveis da lenda celta de Aoife, amante do deus do mar, Manannan mac Lir, transformada em grou por uma rival ciumenta, e eventualmente em uma bolsa feita da pele do grou.*5 *5 (GREGORY, Lady. Gods and Fighting Men. Citado em Clannada na Gadelica, o artigo de Iaian Macan Tsaoir, "Crane Magic". http://www.clannada.org/culture_crane.php. Acessado em 22 de janeiro de 2010. ) 3 3 Desenvolvo aqui uma ideia de David Lloyd. É nessa cena que se confirma para Stephen o destino do narrador: no momento em que "só" e "desapercebido" (unheeded) diante do mar, ele ouve o "chamado", e se descobre o "grande artífice" da literatura, ele que portava o nome de Dédalo, o grande artesão da mitologia grega, metamorfoseando-se ele próprio no símbolo de seu nome, Stephen Daedalus, em que se inscreve ainda o nome do mártir cristão, São Estevão. A epígrafe do Retrato, et ignotas animun dimittit in artes, "e ele voltou seu espírito para uma arte desconhecida", é retirada do episódio das Metamorfoses de Ovídio que narra a aventura de Dédalo e Ícaro. A arte desconhecida, no caso, é a arte de voar com o auxílio de penas emprestadas aos pássaros, evocando para Joyce o artesanato da escrita. Maneira encontrada por Dédalo de fugir de Minos, o rei de Creta que o mantinha prisioneiro, e o forçara a construir seu labirinto, interrompendo o longo exílio que o mantinha longe de sua terra natal. O mesmo exílio, em Tristia ou em Trieste, que levou o poeta romano a escrever suas Metamorfoses e o escritor irlandês a escrever seu romance, fazendo-os voar por intermédio das mágicas asas da técnica da escrita à terra natal ausente. A menina-pássaro, mito celta, e o homem-pássaro, mito grego, mesclado ao elemento martirológico cristão, compõem a tessitura mitológica das três tradições que norteiam até este ponto o projeto de Joyce. A menina e o rapaz, ambos sós, diante um do outro, ela submetida ao olhar do escritor-mártir e sua arte, transformando-a em pássaro, e transformando-se no mesmo gesto em artista. Esta a mágica da metamorfose da beleza.

Na versão intermediária de O retrato..., Stephen Hero, a cena trivial de um flerte num final de tarde fornece o exemplo realizado e o pretexto para refletir sobre a epifania. Stephen ouve um fragmento entrecortado de diálogo entre uma jovem parada sobre os degraus de uma casa de tijolos marrons, a "própria encarnação da paralisia irlandesa", e um rapaz que parece tentar seduzi-la, o que o leva a "compor alguns versos ardentes que chamou 'Villanelle da tentadora'". "Essa trivialidade fê-lo pensar em colecionar muitos momentos como esse em um livro de epifanias. Por epifania ele queria dizer uma repentina manifestação espiritual, seja na vulgaridade da fala ou do gesto ou em uma fase memorável do próprio espírito".*6 *6 (JOYCE, James. Stephen Hero. New york: New Directions, 1963: .211. ) Um pouco adiante se explicita o mecanismo preciso do ajuste visual: "um olho espiritual que procura ajustar sua visão em um foco exato. No momento em que se atinge o foco o objeto é epifanizado."*7 *7 (Idem, ibidem.)

A referência de Stephen é S. Tomás de Aquino; sua estética é chamada por ele ironicamente de "S. Tomás aplicado [applied Aquinas]". Pontificando para seu amigo Cranly em uma rua de Dublin, ele explica: "Você sabe o que diz S. Tomás: as três coisas necessárias à beleza são: integridade, a inteireza, simetria e radiação."*8 *8 (Idem: 212.) O sentimento do belo diante de um objeto consiste em primeiro lugar em retirá-lo do seu entorno, criando um vácuo à sua volta, transformando-o em uma coisa íntegra. Em seguida, consideram-se as relações internas e externas a ele, contemplando-se o equilíbrio e a simetria entre suas partes. E finalmente, a terceira qualidade, a claritas, a claridade, ou irradiação, o momento propriamente epifânico, em que as partes da coisa brilham num alumbramento, quando "reconhecemos que [a coisa] é essa coisa que ela é. A sua alma, o seu o quê, pula em nós da vestimenta de sua aparência. A alma do objeto mais comum, cuja estrutura é ajustada dessa maneira, parece-nos radiante. O objeto chegou à sua epifania."*9 *9 (Idem: 213.)

Stephen resume o procedimento em latim escolástico: "claritas é quidditas"; "a claridade é a quididade". A captura da essência, da alma da coisa, o que ela é (o seu "o quê", quid), é assinalada pela luminosidade radiosa que dela emana.4 4 Sabemos que Joyce estudara S. Tomás de Aquino em sua primeira estada em Paris, em 1903, quando passava até altas horas lendo na Biblioteca Sainte-Geneviève, e lá descobrira um resumo de filosofia aristotélica tomista, destinado a seminaristas, o Synopsis Philosophiae Scholasticae ad mentem divi Thomae. (Cf. Jacques Aubert. Introduction à l'esthétique de James Joyce. Paris: Klincksieck, 1973, p. 159. ) Há traços desse resumo no Paris Notebook. Sua formação tomista vem também de um outro compêndio, History of Aesthetics, de Bernard Bosanquet, de que há traços no Pola Notebook, anotações feitas já no exílio, na cidade de Pola, Austro-Hungria, atual Croácia, onde dava aulas de inglês, em 1904. (SC-HOLES, Robert e KAIN, M. (Ed.) "The Pola Notebook". In: The Worshop of Daedalus: James Joyce and the Raw Materials of A Portrait of The Artist as a Young Man. NorthWestern University Press, 1965. ) Sabemos ainda que a primeira versão malograda de O retrato..., de 1904, consistia em uma espécie de ensaio de estética, transformado depois em ficção, ainda precariamente distinto da filosofia, em Stephen Hero. Toda essa tentativa de fundamentar a escrita no momento de seu início em uma ciência estética é abandonada entre Stephen Hero e O retrato..., o seu abandono determinando a diferença entre o fracasso do primeiro e o sucesso do segundo livro, com o esclarecimento para Joyce da especificidade literária do que queria fazer.

Detenhamo-nos ainda um pouco sobre a referência filosófica que o texto indicia. Trata-se basicamente de uma combinação de reminiscências de Do ente e da essência com uma passagem de A Suma teológica. No trecho revisto por Stephen de Do ente e da essência, Tomás comenta a distinção estabelecida no livro Zeta da Metafísica de Aristóteles entre dois sentidos principais do ser: o seu "o quê" (tóde ti em grego, quid em latim), a substância (ousía em grego), ou essência, ou seja, o que lhe confere a sua individualidade; e a sua formatação categorial (qualidade, quantidade, etc.), o que a escolástica medieval denominará substâncias segundas, que dizem o ser de outras tantas maneiras.*10 *10 (Aristóteles. Metafísica, livro Z (1028 a, 10-20). Trad. Hugh Tredennick. Cambridge: Loeb Cassical Library, 1996 (1933), vol. 1: 310311; Tomás de Aquino. Do ente e da essência. De ente et essentia. On being and essence. Capítulo 1. Trad. Robert T. Miller. In Medieval Source Book. In: http://www.fordham.edu/halsall/basis/aquinas-esse.html. Acessado em 22 de janeiro de 2010. ) A quididade, o que Stephen chama de "alma da coisa", consiste no processo de individuação das coisas, que faz com que distingamos diante de nós este homem, este cavalo. Muito diferente de dizer se eles são bons, medem 5 pés de altura, são altos ou baixos, etc.

Joyce retoma ainda ponto por ponto uma passagem da Suma teológica (parte 1, questão 39, artigo 8): "Que atributo é apropriado a cada pessoa?" O objeto é a formulação da analogia hierárquica entre Deus, suas três pessoas e seus atributos. Tomás parte da afirmação a seu ver inaceitável de Santo Hilário de que a eternidade está no Pai; a beleza na imagem, nome próprio do Filho; e o gozo no presente da dádiva, nome próprio do Espírito Santo. A crítica de Tomás demonstra que é preciso pensar esses atributos como analógicos às propriedades do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. A eternidade não está no Pai, como queria Santo Hilário, mas oferece uma "analogia para com a propriedade do Pai, princípio sem princípio". A dedução do deus criador é feita indiretamente por meio da consideração da criatura. Só chegamos à substância absoluta por meio da substância materializada, por um processo de maximização. Somos uma versão imperfeita de Deus, participamos de seus atributos (o tema da methéxis, da "participação" platônica), que nos permite uma analogia para com a sua perfeição. É este o ponto em que Joyce acha a fórmula da decomposição tripartite da visão da beleza em integritas, consonantia e claritas. Justamente ao falar da beleza da imagem, analogia do Filho.

A espécie ou beleza oferece por sua vez uma analogia com a propriedade do Filho. Pois a beleza requer três condições. Em primeiro lugar, a integridade ou perfeição: as coisas truncadas são feias por si próprias. Em segundo lugar, as proporções desejadas ou a harmonia. Por fim, o brilho: as coisas que têm cores brilhantes, dizemos de bom grado que são belas.

*11 *11 (AQUINO, Santo Tomás de. Première partie, Question 39, "Article 8: Quel attribut faut-il approprier à chaque Personne?" Somme Théologique. In: http://docteurangelique.free.fr/index.html. Acessado em 22 de janeiro de 2010. )

A fórmula-síntese "a claritas é a quidditas" concilia portanto a metafísica com a estética de Tomás, ao condensar na revelação da beleza encarnada de Cristo a revelação da essência da coisa.

Ao reescrever essa passagem no Retrato do artista enquanto jovem, Joyce filtra um pouco das filigranas escolásticas da discussão, omitindo o termo "epifania", o que não é sem importância. Mantém, no entanto, o essencial do episódio, expressando, por intermédio de Stephen, uma ressalva a respeito justamente do termo claritas, a irradiação. O termo sempre lhe pareceu excessivamente vago, apontando para uma dimensão simbólica ou idealista problemática em Tomás, ao atribuir a beleza a uma claridade transcendente, vinda do além, como sinal da finalidade divina das coisas. Mas não há nada de transcendente na beleza: a essência das coisas, o seu quid, aparece como irradiação, ao ser "sentido pelo artista quando a imagem estética é primeiro concebida em sua imaginação".*12 *12 (JOYCE, James. Portrait of the Artist, loc.cit.: 213.) Entre as duas versões do romance desaparece um certo entusiasmo tomista da juventude. O desconcerto que lhe causava ("it baffled me") a impropriedade terminológica de Tomás marca uma definitiva secularização do belo, já inteiramente despojado de qualquer harmônico religioso, e um abandono parricida da religião de seus pais e de seu país, inscrito na distância exilar, como condição para a construção da obra. A omissão do termo "epifania", demasiado marcado pelo léxico bíblico, e por uma ciência estética, ou seja, pela filosofia, coincide com a transformação da cena em experiência estética: a metamorfose do mundo pela escrita, pelo artesanato de Dédalo, condensando-o em carvões incandescentes no instante de se apagarem, segundo a imagem de Shelley citada por Stephen. Como demonstra Jacques Aubert, o projeto de escrever um "livro de epifanias", como um colar composto desses momentos evanescentes, definidos pela "coincidência" ou "ajuste" entre manifestação e "alma da coisa", fracassa por uma incompreensão da especificidade artística do processo. Na cena epifanizada do flerte entre os dois jovens dublinenses, de Stephen Hero, por exemplo, escapa a Stephen que o essencial de sua arte, a arte do significante, se encontrava na relação entre o incidente e a pequena canção "Vilanelle da tentadora" que compusera na hora, e não na captura da "alma" da cena, demasiadamente marcada pela fórmula filosófica.*13 *13 (AUBERT, Jacques. Loc. cit.: 168.) 5 5 Cf. também a apresentação de Aubert no seminário 23 de Jacques Lacan, O sinthoma. LACAN, Jacques. O sinthoma. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007: 166-185. Na cena da metamorfose da menina-pássaro, ao contrário, já se estabelecera com clareza para Stephen, entre a visão instantânea na praia de Bull e a escrita de O retrato..., o trabalho da escrita, a transposição da mágica alquímica da visão em mágica metafórica, ou seja, em mágica literária. O desaparecimento da epifania, portanto, significa na prática o distanciamento do automatismo filosófico e religioso, ainda não inteiramente secularizado, substituído pela técnica da escrita, condição para que a obra afinal se escreva. O "anjo selvagem", o símbolo que "aparece" a Stephen, não é mais a encarnação material do conteúdo transcendente. A menina-pássaro é o "anjo da juventude e da beleza mortais": a imagem esculpida pela imaginação é vazada pelo tempo, este é o método que transpõe a aparição em escrita.

Clarice não fala em epifanias. Em Perto do coração selvagem, seu livro de estreia e, como em O retrato do artista enquanto jovem de Joyce, um Künstlerroman, uma variante do Bildungsroman, do romance de formação, que trata da formação do artista, pouco há na verdade de uma discussão sobre arte, ao contrário do de Joyce. O artista posto em tela aqui em sua juventude não é no entanto menos artista por causa disso. Inaugura-se aqui um programa especificamente literário e artístico de apagamento do trabalho específico da literatura e da arte, em uma escrita que se tece ocultando-se como tal, construindo uma experiência nua, desficcionalizada, que não só não se nomeia arte, como explicitamente nega este nome.6 6 O insight sobre a desficcionalização na escrita de Clarice provém de José Américo Pessanha, em carta de 5 de março de 1972 à própria, sobre Objeto gritante, livro depois publicado, em forma modificada, como Água viva. Pessanha referese naquele ponto da obra de Clarice ao movimento de "afastamento do universo artístico", a uma escrita "a-literária", uma "não-ficção", em que Clarice parece "querer rejeitar os artifícios da arte". Minha hipótese é que esse é o método de Clarice, modificando-se e radicalizando-se com o tempo, mas presente desde o início. (Ver a citação de longos trechos da carta em GOTLIB, Nádia Battela. Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995: 404-406. ) Entender o nó enigmático do paradoxo desta nudez, de uma técnica que consiste em se ocultar, é tocar no cerne da questão de sua escrita, e ao mesmo tempo abordar a raiz do equívoco em torno do consenso epifânico da crítica.

A epígrafe de Joyce, "estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida", adaptada no título da obra, interpreta o sentido do livro, fornecendo elementos para se compreender as experiências (as "epifanias") de Joana, a protagonista do romance, do ponto de vista da "vida", precisamente o termo omitido no título. Conforme dirá um dia Guimarães Rosa, segundo relata Clarice: "[Guimarães Rosa] disse que me lia, 'não pela literatura, mas para a vida'."*14 *14 (LISPECTOR, Clarice. Crônica de 14 de setembro de 1968. In: A descoberta do mundo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984: p. 194. ) A frase de Guimarães Rosa mobiliza um grande mal-entendido, que interessa a Clarice construir em torno de sua obra, ao separar vida e literatura, quando seria preciso unir os dois termos. Lê-la "para a vida", e não "para a literatura", como se fosse possível separar uma coisa da outra, significa respeitar o segredo mantido por Clarice a quatro chaves de que a sua arte é, sim, uma maneira de escrever a vida, por meio de uma técnica que consiste em ocultar-se enquanto tal. Não menos interessado na partilha, Guimarães Rosa estabelece-se no terreno seguro da "literatura", decidindo-se desta forma as vocações opostas, e judiciosamente autoproclamadas, dos dois maiores prosadores brasileiros do século XX, quando tanto um quanto o outro sabiam que as coisas são bem mais complicadas. Entendamo-nos portanto sobre o sentido das experiências narradas no livro de Clarice. Tudo o que se convencionou chamar de "epifanias" no primeiro romance são desdobramentos de uma única experiência: a revelação da unicidade das coisas.

Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um...., entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma...

*15 *15 (LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 7ª ed. (1a ed., 1943) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 47. )

A revelação da verdade do mundo se encontra na rede de ligações que entrelaçam as coisas num conjunto único, o ponto enigmático de sua "confusão". A fórmula ontológica enunciada com simplicidade e rigor pela autora aos vinte anos consiste no sentimento de que as coisas remetem a algo que não é propriamente elas, mas à ligação, ao enlaçamento que as liga. A densidade filosófica da frase "tudo é um", a única proposição ontológica, longamente analisada pela narradora, consiste em descobrir um ponto radicalmente não hierárquico de nivelamento de tudo o que existe, que iguala o mais pequeno ao mais grande, a partir do enquadramento único que revela a aparência das coisas sem distinguirse destas mesmas aparências.

Entre ela e os objetos havia alguma coisa, mas quando agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois espiava - mesmo tomando cuidado para que nada escapasse - só encontrava a própria mão, rósea e desapontada. Sim, eu sei o ar, o ar! Mas não adiantava, não explicava. Esse era um de seus segredos.

*16 *16 (Idem: 14.)

Observe-se aqui também, como em Joyce, a presença do motivo escolástico da "coisa", a res, mas tratado de uma maneira completamente diferente. A "coisa", isto é, o segredo, aquilo que mais importa, e que no entanto Joana silencia, o mote de seu livro, sua grande descoberta, é a ligação aérea, incorpórea, porém perceptível, que une todas as coisas em uma rede unívoca. Aqui repousa a essência da descoberta de Joana. A sua "coisa" não é a aparição radiosa do sentido das coisas encarnado na coisa, como para Stephen, mas a descoberta imaterial e desencarnada do ponto real a partir do qual tudo pode ser visto como uma coisa só, a ligação ou estrutura, que poderíamos chamar, emprestando um termo carregado de ressonâncias kantianas, transcendental (por oposição a transcendente), do mundo. Entre O retrato... e Perto do coração selvagem, desaparece, antes de mais nada, o motivo estético da beleza, substituído pelo motivo ontológico do "tudo é um". Não se trata mais de colher a beleza do mundo em sua encarnação material, mas de perscrutar a rede imaterial na qual a matéria das coisas se dissolve e se resolve.

Para circunscrever esse ponto insondável e centro de toda a sua obra, Clarice faz uma troca significativa de referência filosófica: o papel que S. Tomás de Aquino desempenhava na estética joyciana é ocupado em seu livro, com idêntica distância, meio irônica meio séria, por Spinoza. Perto do coração selvagem é um pouco um "Spinoza aplicado", para parafrasear a fórmula de Stephen. Com efeito, Otávio, o marido de Joana, advogado e curioso de filosofia, é leitor de Spinoza. Ele cita e comenta longamente trechos da Ética. Por exemplo: "No topo do estudo colocaria in litteris Spinoza traduzido: 'Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância'."*17 *17 (Idem: 131. Apud Espinosa. Ética, II, proposição 13, lema 1. Trad. Tomas Tadeu. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008: 99. A tradução que usa Clarice é ligeiramente diferente.) 7 7 Na página anterior: "Que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha. [...] Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na ideia por exemplo de que não pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de S. Tomás..." (Idem: 130). Ao contrário da formulação da distinção analógica por graus hierarquicamente ordenados entre substância e atributos, de S. Tomás, Spinoza formula a abissal hipótese de o mundo, isto é, Deus, ser uma substância única e infinita dotada de modos igualmente infinitos. No interior da substância única os seres são os modos ou distinções internas a Deus, sem qualquer hierarquia de grau.

É o que Otávio diz com acuidade: "Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado." Daí o equívoco das religiões, continua o marido de Joana, ao instituírem descontinuidades no contínuo do mundo: a criação, isto é, um início antes do qual nada existia; ou o milagre, intervenção divina que determina zonas de presença de Deus no mundo, por oposição a zonas de ausência. Tudo isso corresponderia a um "Deus humanizado", injusto, errado. "Nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus, diz Spinoza. Isso me faz mais feliz e me deixa mais livre. Porque a ideia da existência de um Deus consciente nos torna horrivelmente insatisfeitos."*18 *18 (Idem:131.) A referência filosófica, distinta porém análoga em Joyce e em Clarice, não devidamente absorvida em Stephen Hero, mas já integrada no tecido literário em O retrato..., no caso de Joyce, e desde sempre deslocada (é o marido de Joana e não ela própria quem fala de Spinoza), como cifra do método literário, perfeitamente dissolvida no texto, no caso de Clarice, marca duas estratégias distintas de apropriação do discurso filosófico.

O fato de Clarice ter afirmado que não tinha lido o romance de Joyce quando escreveu Perto do coração selvagem, e que Lúcio Cardoso lhe mostrara apenas o trecho utilizado na epígrafe, de onde retira o título, cumpre um rito denegativo recorrente em suas declarações a respeito de sua obra: sempre negar a leitura de obras de referência, com o objetivo evidente de driblar a crítica de influências. O sentido da denegação, no entanto, deve ser recolocado em perspectiva: trata-se antes de mais nada de salvaguardar a nudez da experiência, protegê-la da submissão à literatura e à parafernália a ela associada, purificá-la da intromissão referente. Verdade ou mentira, pouco importa, provavelmente mentira, a afirmação funciona como um logro ou pequeno furto (do livro não lido, ou de sua leitura). Exatamente como a protagonista do romance, Joana, que rouba um livro porque "pode tudo", e será por isso punida pela tia com o orfanato, sedimentando o destino do "abandono" nomeado pela epígrafe de Joyce.

Um dos imensos méritos da resenha que Antonio Candido publicou no calor da hora da primeira recepção da autora estreante, na Folha da Manhã, em 1943, situa-se precisamente nesse ponto. Candido descarta por uma decisão de princípio a crítica de influências no tratamento da obra em questão, resolvendo-se a se ater ao campo estrito da literatura brasileira, como maneira de se contrapor ao diagnóstico feito na mesma resenha sobre o caráter derivado e periférico da literatura brasileira. O que possibilita, ato contínuo, a constituição de um patamar brasileiro para uma "grande" literatura.8 8 "A crítica de influências me mete certo medo pelo que tem de difícil e, sobretudo, de relativa e pouco concludente. Em relação a Perto do coração selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é performance da melhor qualidade." Antonio Candido. "Uma tentativa de renovação". In: Brigada ligeira. São Paulo: Livraria Martins editora, 1945: 103, 104, 108. Candido realiza na crítica, no início de sua obra crítica, e precisamente na crítica dessa obra de iniciante, o mesmo logro do roubo do livro narrado pela narradora. Logro este associado ao que ele designou, com idêntica acuidade e propriedade terminológica, a "ética da unicidade" de Joana. Isto é, a sabedoria da proposição ontológica emprestada de Spinoza, e aplicada por uma romancista judia brasileira à constituição do material romanesco, como distinções internas a uma substância única independente, que não comporta mais a exterioridade dos modelos de exportação-importação de influências.

Em outro artigo bem posterior, Candido formulará a estratégia de superação da dependência direta de modelos estrangeiros, adaptando os termos da Teoria da dependência, criada pelos economistas latino-americanos, para tratar do fenômeno literário, como o estabelecimento de uma "causalidade interna", isto é, de obras de referência de alto nível para a geração subsequente, que pode então organizar hierarquicamente os empréstimos estrangeiros a partir de um núcleo sedimentado brasileiro. Desta forma, explica Candido, por exemplo, a geração modernista "deriva" diretamente das vanguardas europeias, mas já é a referência primeira para os poetas da geração seguinte - Drummond e Murilo. Assim, seguindo o mesmo modelo, é verdade um pouco "mecânico", Cabral será marcado pelos dois poetas da geração anterior, o que não o impedirá de ler Valéry e os espanhóis, mas já inseridos no contexto de uma densa leitura das fontes brasileiras das gerações anteriores. Nos termos da Teoria da dependência, teremos neste ponto consolidado a "substituição de importações".*19 *19 (CANDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento". In: Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989: 145, 146. ) Ora, Clarice realiza de chofre a mesma operação, despindo-a da sequência histórica geracional, ao localizar uma espécie de "causalidade intrínseca" na fórmula ontológica, vital, nem importada nem nacional, fixando-a solidamente em um solo singular, em uma terra sem nome, nem universal nem particular, poderíamos dizer neutra, para emprestar um termo de Maurice Blanchot, sem descurar de nada da nacionalidade brasileira, mas situando-se em uma terra qualquer, e, por que não?, brasileira.9 9 Ver a respeito do neutro, neste mesmo volume da Alea, o ensaio de Christophe Bident, "Les mouvements du neutre". A troca da referência literária pela filosófica é estratégica: trata-se da vida, e não de literatura, com o objetivo que já expliquei. Desta forma, configura-se com rigor um novo paradigma independente da literatura brasileira, por oposição ao caráter sistemicamente periférico de muito do que antecedeu a Perto do coração selvagem, e que Candido interpelara com violência na resenha do romance.10 10 A resenha de Candido contém, em sua primeira parte, um diagnóstico terrível sobre o caráter tributário da literatura brasileira e portuguesa, escrito na mesma veia de "A elegia de abril" de Mário de Andrade, publicada originalmente na revista Clima, organizada pela geração de Candido, em 1941 (ANDRADE, Mário. "A elegia de abril". In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, 5ª edição). A resenha, originalmente publicada em duas partes na Folha da Manhã, aparece na íntegra na primeira edição de Brigada Ligeira, de 1945, com o título de "Tentativa de renovação", mas terá em seguida a primeira parte elidida nas edições subsequentes, publicada sob o título de "No raiar de Clarice Lispector", em Vários escritos (São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, 2ª edição). Candido explica que a parte republicada é a que considera "aproveitável" da primeira edição (idem: 7). Na reedição de Brigada Ligeira, de 2004, a resenha é restituída em sua integridade. Candido num segundo momento recua, portanto, em seu juízo inicial particularmente violento contra a literatura brasileira, e a língua portuguesa em geral, segundo ele, não suficientemente polidas por uma escrita de alto nível. É nesse contexto que Clarice aparece ao crítico, no raiar de sua carreira de crítico, como uma resposta à altura ao "ramerrão" - a expressão é de Candido - de nossas letras.

***

Há um recorrente motivo messiânico na obra de Clarice, que frequentemente empresta termos da cristologia, sobretudo a partir de sua obra de transição, A maçã no escuro, redigida em Washington, entre 1950 e 1956, publicada apenas em 1961, e que contém em germe toda a sua produção posterior. Judia brasileira não praticante, de uma família de imigrantes que falava iídiche em casa, não especialmente religiosa, interessada em religiosidades heterodoxas, como a umbanda, frequentadora de sortistas, a mística de Clarice tem algo de bastante brasileiro. Sem pretender esgotar aqui o tema, e sobretudo aberto à sua imensa complexidade, valeria uma olhada sistemática no motivo bíblico em sua obra, onde são maciças as referências tanto ao Velho quanto ao Novo Testamento. É sem dúvida a presença dessas referências que justifica por associação a prevalência do motivo epifânico na crítica, mas não necessariamente a sua propriedade ou acerto. Para tirar a teima, leiamos uma de suas mais conhecidas "epifanias", com óbvias ressonâncias teológicas, "O estado de graça", publicado como trecho numa crônica do Jornal do Brasil, de 6 de abril de 1968, e em Uma aprendizagem, ou o livro dos prazeres (1969):

Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.

O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.*20 *20 (Clarice Lispector, A descoberta do mundo, loc. cit: 119; Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 7ª ed. (1969, 1ª edição) Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980: 147.)

A definição ou descrição do estado de graça não é transmissível de maneira evidente, não se presta bem ao exercício pedagógico. Ou ele foi vivido, e nesse caso reconhece-se o que está sendo descrito, ou seu sentido nos escapará definitivamente. O procedimento que preside ao texto é metódico. É preciso judiciosamente distinguir o estado de graça de experiências semelhantes, mas em quase tudo distintas, como a inspiração artística, a experiência mística etc. A arte consiste na produção de uma obra exterior à experiência, resultado portanto rigoroso de um uso, condensado no objeto, e que permite a repetição da experiência por outros, apreciadores da obra de arte. Ao contrário, o estado de graça não serve para nada, embora tampouco seja justo dizer que seja inútil. A graça serve para que saibamos que existimos. Ao vivermos a experiência do estado de graça sabemos lucidamente, levemente, sem trabalho, que existimos. Nada mais do que isso.

A experiência é associada a todos os termos do léxico místico-religioso: a irradiação, algo como a claritas de Joyce, a lucidez, a bem-aventurança. No entanto, a bem-aventurança de que se fala aqui é "física"; a irradiação e a lucidez ocorrem "nas pessoas e coisas", revelando-se afinal e simplesmente que "se existe". Precaução essencial: não se trata de uma experiência metafísica, trata-se tão somente da existência, da dádiva do corpo, quando se recebe o dom de "existir materialmente". Adiante, o motivo artístico-religioso reaparece com insistência: no estado de graça surge a beleza antes inatingível de outra pessoa, as coisas ganham um nimbo que "vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas", quando se sente um "finíssimo resplendor de energia". Ao mesmo tempo, mais uma vez, é preciso metodicamente distinguir; o procedimento é aristotélico: esse estado de graça não é o estado de graça dos santos, do qual nós, pessoas comuns, estamos necessariamente excluídos. "É como uma anunciação", retoma a cronista, porém uma anunciação que não fosse precedida por anjos, como supõe-se ser a anunciação dos santos, mas simplesmente a anunciação "do mundo".

Ela suspeita que os animais sejam mais dotados do que os humanos para o estado de graça. Aos animais é dado o acesso direto à graça, eles que não são perturbados por toda sorte de empecilhos que se entrepõem entre nós e ela, como "raciocínio, lógica, compreensão". E são esses mesmo obstáculos, nosso inferno e nosso céu, que nos permitem saber do estado de graça, ao contrário dos animais, que nele se encontram embora não saibam disso.

O estado de graça não é destituído de perigo: ele vicia, e, como fumadores de ópio, não conseguiríamos mais sair dele, se o vivêssemos o tempo todo. Daí a sabedoria do mundo que nos confere a graça apenas raramente: se experimentássemos com excessiva frequência a sua felicidade, passaríamos definitivamente para "o outro lado da vida", e não seríamos mais entendidos, perderíamos o acesso à linguagem comum que nos permite a comunicação. Tornaríamo-nos egoístas. Clarice alerta para a tentação infantil de querer penetrar nos mistérios da Natureza (com "n" maiúsculo), e transformar a graça em algo intencional. O que bastaria para que ela se furtasse a nós. Pois, explica ela, sendo "dádiva", não exigindo nada, desapareceria se passássemos a exigir que ela acontecesse.

Chegamos ao nó ético da experiência: o estado de graça é apenas uma "abertura" para "uma espécie de calmo paraíso", não uma "entrada", e, sobretudo, não permite que permaneçamos nele: não "dá direito de se comer os frutos dos seus pomares". No estado de graça redime-se a "condição humana", mas ao mesmo tempo revelam-se os limites dessa condição, ela que é, na verdade, o próprio limite. A plenitude apresentada contém portanto a apresentação do limite: a graça revela o seu contrário, a "pobreza implorante" da condição humana. De modo que o resultado é o contrário do egoísmo, da inconsciência animal, do vício, do ensimesmamento em um idioma individual. Aprende-se a "amar mais, a perdoar mais, a esperar mais".

Na versão do Jornal do Brasil, Clarice acrescentou o seguinte postscriptum: "Estou solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil." A referência aqui é o assassinato pela repressão militar, do estudante Edson Luís Lima Souto, ocorrido no restaurante de estudantes, Calabouço, em 28 de março de 1968, oito dias antes da publicação da crônica.*21 *21 (Cf. VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988: 97-105. )

Importante frisar esse ponto, contra aqueles que apostam no apolitismo de Clarice (a escrita interiorizada, etc.). A nota final não deixa dúvidas: o estado de graça, ao revelar a plenitude pela fresta do paraíso e dar-nos como prêmio irônico a insuspeita "confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis", nos engaja na condição humana, como tragédia. A tragédia política que ocorria então no Brasil, da qual o assassinato de Edson Luís foi um de seus primeiros emblemas, e que desembocaria no final daquele mesmo ano no Ato Institucional número 5. Estar "solidária, de corpo e alma, com a tragédia dos estudantes do Brasil" significa, portanto, estar engajada na condição humana, com o corpo e a alma que o estado de graça revela, ao nos preparar para o exercício maior de nossa limitação humana: a solidariedade, isto é, a participação em um corpo social e humano que sofre a tragédia política da morte de um estudante, no momento em que se anuncia a grande tragédia da radicalização do estado de exceção da ditadura brasileira. O PS acrescido ao trecho, retirado do romance ainda não publicado, encarna a cena no corpo histórico brasileiro. É a encarnação que politiza o estado de graça, ao nomear o "sofrimento e [...] seus caminhos tantas vezes intoleráveis", que conferem limite e verdade à janela aberta ao pomar do paraíso. É aqui que se delimita a "bem-aventurança física", arrematando a "dádiva indubitável de existir materialmente", tornando física a revelação metafísica da plenitude, ao ancorá-la em uma figura humana - embora essa figura tampouco seja atribuível a alguém: Jesus Cristo, Clarice Lispector, ou qualquer outro nome, instituindo-se tão somente enquanto gesto de despojamento, dádiva ao comum da linguagem, a "condição humana". O PS destitui o estado de graça ao situá-lo no drama do estado brasileiro: dissolvendo-o ao mesmo tempo em que o realiza.

A leitura do fragmento "Estado de graça" só fará sentido, no entanto, se a complementarmos com a de outros textos mais longos, em que o percurso messiânico é apresentado em seu contorno completo e mais explícito. Tentemos então atravessar brevemente este romance imenso que é A maçã no escuro (1961). Não por acaso, a sugestão da leitura da epifania na obra de Clarice parte de uma observação sobre ele feita por Benedito Nunes.*22 *22 (NUNES, Benedito. Uma leitura de Clarice Lispector, loc.cit.: 123.) O narrador do romance fala de "descortínio", explica Benedito Nunes, um sinônimo de epifania disseminado na obra de Clarice pelas abundantes inscrições do termo "glória", diretamente ligado à "aparição, [à] manifestação ou [à] epifania do ser divino", tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.11 11 Benedito Nunes (idem, ibidem) cita em nota de rodapé o Vocabulaire de Théologie Biblique de Xavier Leon. Vejamos então em que o "descortínio" não é bem uma epifania.

O romance narra, em modo dostoievskiano, a história de um fugitivo da lei, Martim, que se refugiara numa fazenda habitada por três mulheres, após ter assassinado a esposa. No interior deste espaço autárquico, fechado, da fazenda, que duplica o sistema ou laboratório experiencial da fábula imitativa, Martim atravessa cada nível da existência vital - o estrato mineral, o vegetal, o animal, e o humano - em uma construção imanente do mundo como sequência evolutiva não hierárquica, em que se inclui a construção de si mesmo como herói, destinado a salvar o mundo e a humanidade, que permitiram o crime que o forçou a fugir desse mundo e dessa humanidade. Esses estágios o narrador chama de cinco maneiras ao longo do romance: "perspectivas", "lugares comuns", "símbolos", "descortínios", ou "passos". A construção do mundo é obtida pela "cópia" ou "imitação" de cada plano biológico que compõe o mundo, em um processo de conscientização ou objetivação, na "criação do que já existe".*23 *23 (LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. 5ª ed. (1961, 1ª ed.) Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978: 152. ) O projeto heroico de construção do mundo, no entanto, fracassa; fracassa o programa de objetivação ou concreção, do devir coisa - motivo que acompanha Clarice em toda a sua obra.

No romance o fracasso é marcado pela reintegração de Martim à sociedade da qual fugira, para pagar o crime que cometera, rompendo o círculo autárquico "milagroso", de fabricação e salvação do mundo. Os representantes da sociedade oficial que o levam à prisão - o prefeito, os dois investigadores e o professor -, reintroduzindo-o no mundo da representação que a imitação existencial havia abolido, revelam, ao final, que ele de fato não matara a mulher como pensara. O princípio genético da construção do mundo, o ato exemplar que dera origem ao seu nascimento enquanto herói, fabricante de concreções puras, des-subjetivadas, esvaziadas do trambolho da consciência, o fazer puro que moldara toda a construção do mundo no laboratório da fazenda, o assassinato da esposa, não passava de um simulacro. Sua esposa estava viva. Ele será então reconduzido ao mundo de que saíra sem que nada de fato tivesse ocorrido no mundo que motivasse a sua expulsão, e sem nada tampouco que justificasse agora a sua punição ou reinclusão neste mundo, exceto um vestígio absurdo de senso de justiça, que julgaria sua intenção de matar a esposa.

Pune-se portanto aqui exclusivamente a consciência, precisamente aquilo que fora abolido no processo de construção fabular do mundo imanente da fazenda. Ele era agora expulso do mundo construído, "o outro lado da vida", de que falara o fragmento "Estado de graça", que não acrescentara nada ao mundo existente, da mesma forma como o assassinato não ocorrera. Mas virado ao avesso, no entanto, os simulacros do assassinato e do mundo fabricado são o real, já que a experimentação na construção do mundo conduziu à construção do mundo tal qual ele é. Nada é de fato acrescentado ao mundo: Martim não matou a sua mulher, e o mundo que ele fez na fazenda é o mundo que conhecemos. A experimentação não era de fato nada, ou melhor, ela se confunde com a experiência do mundo. A obra que neste momento acabamos de ler consiste portanto na pura repetição do mundo enquanto autoconstrução, como apagamento de si mesma, não acrescentando nada ao mundo ou - retomando Clarice - acrescentando ao que existe algo mais: "a imaterial adição de si mesmo."*24 *24 (Idem: 249.) O acréscimo de si mesmo, do reflexo do sujeito enquanto algo que se apaga, é imaterial diante da imanência da existência, mas contém a existência, enquanto fábula desnudada de si mesma. E é isso afinal que o romance dá a ler em seu fim, quando, em modo proustiano - voltaremos a esse ponto adiante - descobrimos que Martim iniciará na prisão a escrita do livro que estamos acabando de ler, e que consiste de fato no imaterial acréscimo da escrita à existência do mundo, por meio da qual acessamos o mundo material do que é.

Ora, esse apagamento sacrificial do sujeito é ao mesmo tempo o fracasso da objetivação na construção do mundo e a última etapa da objetivação, já que ao sacrificar-se como sujeito transcendente pela e para que a imanência do mundo se faça, Martim consuma o que chama de "mímica da ressurreição" - o último "símbolo" - precisamente ao ajoelhar-se diante de Virgínia, a dona da fazenda, realizando o "melodrama da genuflexão". Como cada descortínio, símbolo ou passo anterior, esse também obedece a um programa preestabelecido desconhecido, que se persegue sem saber de seu modelo, e que a realização materializa e faz desaparecer, ao preparar o próximo passo. Porém este último tem a característica de consumar-se, fazendo desaparecer a "perspectiva" como um todo, ao mesmo tempo que produzia o mundo todo, como algo que se confunde com a própria perspectiva destituída.

Na correspondência com Fernando Sabino, em que os dois discutem o romance ainda sob a forma de manuscrito, Clarice confessa ao amigo que a cena do "ajoelhamento e pedido de perdão" de Martim a constrangera, ao mesmo tempo que a emocionara "terrivelmente" a cada releitura, dando-lhe a certeza de que era assim mesmo que ela "tinha que ser".*25 *25 (SABINO, Fernando. "Carta de Washington, 21 de Setembro de 1956". In: Cartas perto do coração. 3ª ed. Rio de Janeiro. Record, 2001: 141. ) A reação ambígua da primeira leitora do livro, de constrangimento e emoção simetricamente intensas diante do que escrevera, narrada por ela a Sabino, à margem de seu livro, no momento em que hesita diante do que escrevera, submetendo o manuscrito a minuciosas correções, encontrando inclusive sérios problemas para publicar o volume, espelha o rito do ajoelhamento narrado no romance, ela se colocando no papel de Martim, e o amigo, no de Virgínia. O espelhamento reinscreve "a imaterial adição de si mesmo", em que a fábula do romance se dissolve, ao nível da leitura e da recepção do mesmo, chamando a atenção para o efeito que o livro programa, o que Clarice denomina o seu "tom maior",*26 *26 (idem, ibidem) problemático como o crime de Martim, e diante do qual é de bom-tom pedir perdão. Este programa, inscrito neste ponto de sua obra com amplitude e firmeza até então inéditas, consiste no seguinte: a partir de agora, tratar-se-á, tão simplesmente, de reescrever a Bíblia, interpretada como fábula literária maior, grande plano de enquadramento da história do corpo. A Bíblia significando precisamente a fábula desse despojamento ou desficcionalização, o paradoxal despojamento da fábula, que a escrita clariciana sempre buscou, desde o início. Ato de hybris absoluta, que não pode passar impune, de inscrição e simultânea elisão do referente bíblico. Inscrição enquanto elisão, crime da inscrição excessiva, infração contra a lei mosaica de interdição de representação de Deus e sua fábula, e crime pela elisão dessa referência. Repetir a Bíblia, portanto, de maneira absolutamente despojada das referências explícitas ao conteúdo bíblico, elidindo-o, ou inscrevendo-o como cifra da escrita, da mesma maneira como sempre fizera com qualquer outra referência, segundo o programa de despojamento literário que descrevi acima. Reescrever a fábula bíblica, o corpo da literatura, portanto, situando-a em um chão absolutamente prosaico, menor - é essa a contrapartida do "tom maior" da fábula -, no cotidiano mais simples e despretensioso, frequentemente o universo doméstico feminino. Repetir a Bíblia sem dizê-lo, como linguagem nua, e despojamento da Bíblia.

Então vejamos, com mais detalhe: no momento em que a imitação do mundo construído na fazenda se abre para o mundo fora dele, o sistema fechado da imanência transcendente - da encarnação, em termos teológicos, da objetivação do sujeito, subjetivação ou espiritualização do mundo, diria o tomista Joyce -, ao acrescentar a ele o que lhe é exterior, mas precisamente tornandose mundo, indistintamente exterior, constrói uma nova forma de imanência do mundo, em que a transcendência (o espírito) do sujeito se apaga deixando o mundo ser o que é e sempre foi. É precisamente isso que, em trajetória semelhante, no romance que se segue a A maçã no escuro, A paixão segundo G.H. (1964), retomando o mesmo percurso cristológico, fará dizer a G.H., o protagonista do romance, no fim de sua paixão: "A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. ______."*27 *27 (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. 7a ed. (1a ed., 1964) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1979: 175. ) G.H. conclui o seu programa de compreensão ou entendimento abissal da vida, deixando a vida ser o que é, e assim renunciando definitivamente a entendê-la. Da mesma maneira que Martim coloca, em A maçã no escuro, a fábula do mundo autárquico dentro do mundo aberto que o circunda, integrando-o a um novo sistema assistemático, não fabular, aberto.

O programa autárquico de concretização, o projeto de devir coisa, que arma tanto a trajetória de A maçã no escuro quanto a de A paixão segundo G.H., é estritamente martirológico. Vejamos como isso se dá no romance de 1961. Logo no início de sua estada na fazenda, Martim descobre no interior da cabana onde morava uma gravura de "papelão duro e sem moldura", representando o martírio de dois santos medievais, padroeiros dos sapateiros, os gêmeos São Crispim e São Crispiniano.*28 *28 ( A maçã no escuro, loc. cit.:61.) No quadro, os santos são vistos em dois estágios de suas vidas: costurando sapatos, e "dentro de um círculo esfumaçado", convenção que lhes sinaliza o destino futuro, os dois fervem em uma caldeira. Segundo a hagiografia medieval, esses santos romanos foram perseguidos por Diocleciano e se instalaram na cidade francesa de Soissons, onde aprenderam o ofício da sapataria e, presos por ordem do imperador, foram submetidos ao suplício tradicional da paixão dos mártires.*29 *29 (RÉAU, Louis. Iconographie de l'art chrétien. Tome III, I. Paris: PUF, 1958: 350. ) O motivo do crime, fundamental para Martim e, no caso dos santos, o crime da fé, é punido sacrificialmente pelo martírio. Martírio este que se consumará no final do percurso de Martim, quando, preso, ele descobre o sentido de seu nome, Martim/mártir, isto é, testemunho (martyr, do grego, "testemunho") da salvação do mundo, que ele sacrificialmente dá em dádiva ao próprio mundo, ao despir-se do projeto da construção da imagem do mundo, como maneira de restituí-la. É a visão deste quadro que fornece a Martim o que o narrador chama de "símbolo", ou "perspectiva", o enquadramento imagístico que embute "o grande espaço que cabe numa igreja", conforme escreve, dentro do mundo.*30 *30 ( A maçã no escuro, loc. cit.: 62.) Este símbolo ou perspectiva é que dá ao herói a sensação de "fazer parte daquela coisa maior que às vezes chega a se exprimir na tragédia".*31 *31 ( A maçã no escuro, loc. cit.: 252.)

Salvo engano, a matriz figural desta mecânica da encarnação, encontra-se em Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, que Clarice lera por volta de 1946, quatro anos antes de iniciar a escrita de A maçã no escuro, em 1950.12 12 Em carta sem data a Lúcio Cardoso, Clarice escreve: "Estou lendo À sombra das rap'rigas eim floire, como traduziram os portugueses, estou lendo em francês naturalmente. Eu pensava que ia gostar de Proust como se gosta de coisas esmagadoras; mas com grande surpresa vejo que tenho um prazer enorme e sincero em lê-lo, acho-o naturalíssimo, nada cacete, nada imponente, pelo contrário, de uma modéstia intelectual, que nunca se sacrifica por um brilho, por uma imagem..." (Carta publicada em fac-símile em Remate de males. Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP, 9. Revista do Departamento de Teoria Literária. UNICAMP: Campinas, 1989: 218. ) Obviamente, não se trata em absoluto aqui, como no caso de Joyce, de influência, mas de confluência de projetos literários. Em No caminho se Swann, Marcel menciona, a propósito de uma criada de cozinha grávida, a alegoria da Caridade, uma das "figuras simbólicas de Giotto, de que o sr. Swann me dera fotografias".*32 *32 (PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução: Mário Quintana. 2ª ed., 3ª imp. Porto Alegre: Editora Globo, 1972: 74. ) Trata-se das quatorze alegorias das virtudes e dos vícios em esmalte de Giotto, situadas na praça da Arena romana, em Pádova, dentre as quais, de especial interesse, a Caridade e a Inveja, que Proust visitara em 1900, e descobrira através do crítico de arte inglês John Ruskin.*33 *33 (PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Volume 1. Du côté de chez Swann. Notas de Antoine Compagnon. Paris: Gallimard/Folio: 480. ) As criadas nunca permaneciam no serviço mais de dois anos; elas correspondiam a funções domésticas fixas, "atribuições invariáveis", "encarnadas" em uma "sucessão de formas passageiras". Nessa ocasião específica, quando chegaram a Combray depois da páscoa, a criada encarregada de pelar os aspargos que com frequência comiam era uma "pobre criatura doentia, já em adiantado estado de gravidez", de tal maneira que carregava "com dificuldade adiante de si, o misterioso cesto, cada dia mais cheio, de que se adivinhava a magnífica forma sob suas vastas blusas". Precisamente como a Caridade de Giotto, que também carrega um cesto cheio de frutos com uma das mãos. Fora Swann quem lembrara a semelhança, ao ponto de que quando pedia notícias da criada perguntar-lhe: "E como vai a Caridade de Giotto?"Marcel acrescenta que a criada de cozinha se assemelhava às Virtudes e Vícios de Giotto ainda de uma outra maneira:

Da mesma forma que a imagem daquela rapariga era acrescida pelo símbolo adicional que ela carregava adiante do ventre sem parecer compreender-lhe o sentido e sem que nada em seu rosto lhe traduzisse a beleza e o espírito, como se fora tão somente um simples e pesado fardo, é assim, sem o suspeitar, que a possante comadre que está representada na Arena debaixo do nome 'Caritas' (e cuja reprodução se achava pendurada à parede da minha sala de estudos em Combray) encarna a referida virtude sem que nenhum pensamento de caridade haja alguma vez passado pelo seu rosto enérgico e vulgar.

*34 *34 (PROUST, Marcel. No caminho de Swann, loc. cit.: 74-75.)

A rede de homologias visuais que o texto tece gira em torno da analogia entre o filho que a criada grávida carrega na barriga, o cesto que a Caritas de Giotto porta nas mãos, e o símbolo, i.e., a Caridade que as modelos de Giotto, "as possantes comadres" italianas que lhe serviram de modelo, alegorizam. O símbolo é acrescido, adicionado, como que de fora, em uma relação de absoluta exterioridade e incompreensão entre o significado, o "sentido", o "pensamento" alegorizado, e a mulher que o representa. Nada da "beleza e do espírito" do símbolo parece transparecer no modelo, que carrega o símbolo como um "simples e pesado fardo". Trata-se aqui nada mais nada menos da doutrina da encarnação segundo Proust. O que é descrito é uma absoluta vulgaridade do estojo da carne se equiparado com a beleza do significado, com o qual parece entreter uma relação forçada, um "simples e pesado fardo". A importância da figura não deve ser minimizada: sabemos que Proust planejava dar o título de "Os 'Vícios e as virtudes' de Pádua e de Combray" a um capítulo do terceiro e último volume da Recherche, na versão de 1913.*35 *35 (PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu, loc. cit.: 480.) Por meio da estética de Ruskin, retrabalhada por Proust, o que se pensa aqui é a relação entre a letra, a escrita do romance, e o invólucro corporal de que necessita para ser criado, a partir da metáfora materna. A carne é, nesse caso, serva, homóloga à relação entre criada-mãe e senhor, o filho-símbolo que sobra e que o corpo mal comporta. Figura da relação do autor do longo romance de sete volumes com a sua escrita, cujo corpo doente, como o da criada, se sustenta apenas até fazer vir à lume o conteúdo que tinha que parir, ele também mártir, como Joyce.

É, tudo indica, essa passagem que forneceu a Clarice a ideia do quadro dos mártires S. Crispim e São Crispiniano, como figura acabada da alegoria que A maçã no escuro realiza. É emprestada da Recherche também a estrutura circular: descobrimos ao final da leitura do romance que ele foi escrito por Martim na prisão. Com uma grave e profunda diferença, no entanto: ao contrário de Proust, em Clarice o processo de simbolização, a martirologia, a figuração do mundo, fracassa. E isso ainda não é tudo: por uma reversão do processo de simbolização, o fracasso do símbolo consiste em um derradeiro símbolo, um símbolo por assim dizer destituído e nu, aberto, neutro, e não heroico, que se confunde com a vida como ela é. Clarice faz uma leitura desmitologizante da encarnação crística, que percorre os passos da figuração mítica da paixão, para chegar a um sentido depurado, não excepcional, não subjetivo dela, como desconstrução do cerne de sua figura. Salvar o mundo, já que disso se trata, ou "cuidar" dele, conforme a anedota que se conta de Clarice em vida, consiste no projeto mítico-heroico de subjetivação do mundo: é o que descobrem conformados e surpreendentemente alegres os protagonistas dessa saga, em suas versões mais completas. Pois o fracasso desse programa quem sabe seja a maneira possível de realizar o projeto a que se propunha inicialmente. A encarnação não é nada, nada ocorre nela, e disso se trata. Mas ao aceitar-lhe o nada quem sabe nos salvemos.

Ora, este não-acontecimento resume rigorosamente o acontecimento messiânico, como o descreve, por exemplo, o apóstolo Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios (capítulo 7, versículo 17-22). Aproveito aqui a hipótese de Giorgio Agamben em Il tempo che resta:

De resto, viva cada um segundo a condição que o senhor lhe assinalou em partilha e na qual se encontrava quando Deus chamou. [...] Permaneça cada um na condição em que se encontrava quando foi chamado. Eras escravo quando foste chamado? Não te preocupes com isto. Ao contrário, ainda que te pudesses tornar livre procura antes tirar proveito de tua condição de escravo. Pois aquele que era escravo quando chamado no Senhor é um liberto no Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, é um escravo de Cristo. [...] Irmãos, cada um permaneça diante de Deus, na condição em que se encontrava quando foi chamado.

*36 *36 ( A Bíblia de Jerusalém, loc. cit.: 2156.)

Difícil mensagem a de Paulo, que aconselha aparentemente a submissão completa e conservadora ao statu quo da limitada existência humana, ordenando, ao que tudo indica, que não se faça absolutamente coisa alguma. Mas não é de maneira nenhuma esse o mandato messiânico. A última frase, en te klesei he ekléthé, ou in vocatione vocatus est, nos termos da Vulgata, "que cada um permaneça no chamado no qual foi chamado", contém a fórmula messiânica do chamado. Estranho imperativo, de não fazer absolutamente nada. Atender ao chamado messiânico, à vocação, é permanecer exatamente como se estava antes do chamado. Esta, a vocação e o chamado messiânicos. Este, o acontecimento messiânico descrito pelo termo grego klésis, que nomeia a transformação particular que sofre "todo estado jurídico e toda condição mundana quando postos em relação com o acontecimento messiânico", como escreve Agamben.*37 *37 (AGAMBEN, Giorgio. Le temps qui reste. Trad. Judith Revel. Paris: éditions Rivages, 2000: 42. ) A vocação messiânica é a revogação de toda vocação, sem ser com isso uma nova vocação. Trata-se da mesma vocação, radicalmente transformada em si mesma, sem com isso mudar aparentemente em nada. Este, o achatamento do tempo que o acontecimento messiânico descreve: o tempo de antes do chamado, e o tempo depois. Entre os dois, nada.

Lembremo-nos de alguns textos emblemáticos de Clarice, relacionados ao tema do chamado, como "Amor" ou "Onde estiveste de noite", em que aparentemente, ao final, nada ocorre, mas na verdade tudo de fato (já) ocorreu. Ana volta para casa, após a aventura do Jardim Botânico, não mais suscetível ao chamado periclitante do cego, aparentemente se conformando à sua realidade doméstica, burguesa, menor e conservadora. Nada então ocorreu? E no entanto, tudo ocorreu. "O que faria se seguisse o chamado do cego?" A que se opõe o chamado do filho de Ana: "Tenho medo." Já em casa pergunta-se: "O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? [...] Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago." E a frase que condensa os dois mundos: "O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico." Prova disso: o estouro do fogão, o marido deixou ferver o leite, marca da "moral do jardim" no interior de sua casa, transposição do alargamento do mundo para a forma exígua do apartamento.*38 *38 (LISPECTOR, Clarice. "Amor". In: Laços de família. 13ª ed. 1960, 1ª ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1983: 28-31. )

Ou o cortejo de personagens heteróclitos da missa negra de "Onde estivestes de noite". Ao acordarem depois da noite orgiástica, de manhã, parece que nada aconteceu e, no entanto, tudo aconteceu.

Quando começou a raiar o dia todos estavam na cama sem parar de bocejar. Quando acordavam, um era sapateiro, um estava preso por estupro, uma era dona-de-casa, dando ordens à cozinheira, que nunca chegava atrasada, outro era banqueiro, outro era secretário etc. Acordavam, pois, um pouco cansados, satisfeitos pela noite tão profunda de sono. O sábado tinha passado e hoje era domingo.

*39 *39 (LISPECTOR, Clarice. "Onde estivestes de noite" In: Onde estivestes de noite. 2ª ed. 1974, 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 68. )

Em todos estes textos portanto ocorre rigorosamente a revelação do nada, diferente da não revelação. Revelação de que nada ocorre - e esse é o acontecimento. Não uma epifania, mas o achatamento do tempo de que fala Paulo. Os textos de Clarice vão nomear esse acontecimento messiânico, a revelação não da "coisa", como espírito encarnado, objetivado, mas do nada; o grau zero do acontecimento, que apenas uma escrita que apaga a si mesma, deixando transparecer o reverso da linguagem, pode transcrever.

É o esquema do percurso narrado, por exemplo, em A paixão segundo G.H.. Comer a barata, como negativo da hóstia crística, anticomunhão, equivalente ao "beijar o leproso" do Evangelho, consuma o programa de espiritualização da matéria.*40 *40 (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H., loc. cit.: 164.) Já de início as coisas não são tão simples quanto poderia parecer: a barata não deve ser percebida como algo abjeto, mas como um dos modos no contínuo do ser, de que faz parte o eu assim como a barata. Comer da barata, portanto, não é nenhuma bondade, explica com radicalidade impressionante a narradora, já que a barata é um modo de ser igual ao dela, ambas fazendo parte da "autorrealidade". Reconhecemos mais uma vez aqui o plano imanente spinoziano, que nivela todas as coisas como modos de uma substância infinita. E, no entanto, justamente esse programa fracassa. G.H. descobre com aguda consciência ao final de sua paixão o fato de que no momento da atualização da matéria, em que a matéria deveria se conscientizar de si mesma, como fusão da matéria com a consciência, imanência e transcendência, no momento precisamente da encarnação, ela não estava consciente de comer a barata. O ligeiro desmaio da consciência, cesura, ou síncopa ínfima, inscrição da distância infinita entre sujeito e objeto, que o romance insere como sutil espaçamento entre parágrafos, substitui o instante preciso da espiritualização da coisa. A encarnação portanto não ocorreu de fato. E a razão do fracasso de G.H., como do de Martim, em A maçã no escuro, é o heroísmo contido no programa estabelecido por seus protagonistas. O desaparecimento da mediação do sujeito na espiritualização da matéria revela ironicamente ser ainda uma subjetivação da coisa. É preciso despojar-se ainda mais, uma segunda vez, dar uma última volta na des-subjetivação do sujeito, despir-se da ambição desmedida, da hybris propriamente trágica do herói, em sua faina de desaparecer no objeto. É preciso que a encarnação fracasse, demonstrando a natureza egoica de sua estrutura ainda demasiadamente devedora de uma noção de individualidade, para que se chegue ao destino comum. A despersonalização é a "destituição do individual inútil"; "A deseroização é o grande fracasso de uma vida", escreve G.H.*41 *41 (Idem: 170, 171.) Desistir desta ambição, despersonalizarse, é, descobre G.H., precisamente a condição humana, e "a condição humana é a paixão de Cristo".*42 *42 (Idem, ibidem.) A paixão de Cristo não se dá, assim, na encarnação da matéria, mas no fracasso desmitologizante do projeto de encarnação. Esta a verdadeira paixão. É preciso, no entanto, atravessar o processo, buscar a encarnação para que ela inevitavelmente fracasse, e para que ao fracassar ela aponte para o mundo encarnado tal qual ele é, e que se chama paixão. Ou, como sintetiza G.H., "mas é de buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço".*43 *43 (Idem: 172.) A encarnação é a fábula religiosa e literária que deve desfazer-se de si mesma, e ao desfazer-se deixar como resto o mundo. Qual é o resultado do trabalho de apagamento da religião e da literatura? O que resta, uma vez destituída a fábula religiosa e literária, é literatura?

***

Neste ponto podemos avaliar o significado geral da insistência do termo "epifania" para a compreensão da obra de Clarice. A epifania está ligada a uma leitura fenomenológica da obra, que acaba por privilegiar os contos, ou a forma curta, como desdobramento narrativo do instante, em detrimento dos romances, em que o procedimento, distendido ao longo do texto, não pode ser explicado como uma soma de instantes. Clarice, de fato, é considerada tradicionalmente pela crítica não especializada ou até pela especializada, como melhor contista, ou autora de contos exemplares, e como romancista idiossincrática, até "estranha". O que se entende por epifania é uma experiência sempre ao mesmo tempo real e trabalhada por uma rede simbólica, onde ela se insere, e que faz com que a nudez mediada por ela seja construída pela destituição da própria mediação. Que a vida desficcionalizada, desliteralizada, ou des-subjetivada, instituída como programa maior de sua obra, seja o resultado da abolição da literatura e da abolição desta abolição; que o messianismo de Clarice nos faça descobrir o acontecimento de nada, e que como tal nos perguntemos se o que sobra é ou não literatura, eis o nó do problema literário que Clarice coloca à literatura, que possibilita que ela seja lida "não pela literatura", conforme a fórmula de Guimarães Rosa.

A "perspectiva" fornecida pelo "quadro de papelão e cartolina" representando o martírio de São Crispim e São Crispiniano, que Martim encontra em sua cabana, enquadra o mundo da fazenda de A maçã no escuro a partir de um plano único, nivelando todas as coisas em uma dimensão "maior". Dimensão esta, heroica, que culmina na "mímica da ressurreição" e, como vimos, dá a Martim a sensação de "fazer parte daquela coisa maior que às vezes chega a se exprimir na tragédia".*44 *44 ( A maça no escuro, loc. cit.: 252.) Da mesma forma, a trajetória da paixão de Cristo, em A paixão segundo G.H., enquadra o quarto de G.H. a partir de um centro único em torno do qual se dispõem os elementos à sua disposição, eu e a barata, como modos distintos do ser, na trajetória de conversão trágica da carne em espírito, e do espírito em carne, isto é, da encarnação. Há nesses dois exemplos - mas poderíamos fazer a mesma operação em grande parte das narrativas de Clarice (o mito de Ulisses e da sereia Loreley em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres...) - na maneira como nos romances se embute algo como "o grande espaço que cabe numa igreja", na realidade mais comezinha, na fazenda no interior do Brasil, ou no quarto de empregadas na zona sul do Rio de Janeiro, um procedimento que está no cerne da arte de Clarice Lispector. O que ela denominou de "tom maior", e que lhe permite utilizar esquemas "intratáveis", como a tragédia, a Bíblia, os grandes planos da tradição ocidental, não como temas, mas como perspectivas para enquadrar a realidade mais simples e cotidiana, não especificamente brasileira.

Theodor Adorno, ao analisar a ópera de Schönberg, Moisés e Aarão, explica que Schönberg tornou visível a antinomia entre tema e obra de arte, originada no equívoco de que a grande obra de arte é aquela que captura o conteúdo fugidio que uma vez habitou o tema. Conclui Adorno que tematizar os grandes conteúdos na obra significa hoje projetar-lhe a imagem depois do acontecimento artístico; tornados presentes como temas, eles não fazem contato com a obra de arte.*45 *45 (ADORNO, Theodor. "Sacred Fragment". In: Quasi una fantasia. Trad. Rodney Livingstone. Londres/New york: Verso, 1992: 243. ) Assim, Clarice, movendo-se em um terreno análogo ao da ópera de Schönberg, mas fornecendo uma resposta distinta, não tematiza a fábula bíblica: ela a converte em "perspectiva" alegórica e enquadramento do real.

O procedimento lembra esquematicamente, em outro tom, o da dialética do particular e do universal, que estrutura o processo da formação da literatura brasileira para Antonio Candido.*46 *46 (CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 10ª ed. revisada. 1957, 1ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006: 25. ) O enquadramento do grande plano da cultura ocidental como perspectiva para figurar a realidade brasileira descreve em linhas gerais a "dupla fidelidade" candidiana, isto é, a maneira pela qual os autores brasileiros no período de formação mantêm um olho na referência textual europeia e o outro na realidade nacional, produzindo uma síntese literária que superpõe uma na outra.*47 *47 (Idem: 436.) Podemos dizer que a perspectiva clariciana se assemelha a uma referência universal, embora não seja isso que mais importa nela, mas teríamos dificuldade de enxergar uma particularidade nacional no real que povoa suas narrativas. Seus textos são dimensionados a uma escala íntima, ao mesmo tempo intrínseca e exterior, nem geral nem particular. A grande descoberta de Clarice consiste em haver circunscrito esse grande plano exterior ao sistema de referências literárias, como enquadramento de seus textos, situando-o como mediação alegórica no chão sólido e imediato do real.

Mas isso ainda não é tudo: esse nivelamento de todas as coisas a partir de um plano único fracassa! O fracasso do plano acrescenta uma nova dobra exterior a ele, na verdade ampliando-o e mostrando que era o fracasso o seu conteúdo único e profundo. A encarnação epifânica é a desencarnação de um mundo messiânico, nem belo nem feio, mas neutro. Não epifania, mas mundo afinal apresentado em sua nudez. É esse fracasso imperceptível que determina uma dupla característica de seus textos: sua irredutível modernidade, ao transformar a crise da tradição em procedimento interno à construção e "salvamento" do mundo; e a desconstrução ou destruição da figura, sua radical secularização dos motivos da encarnação, como condição humana da literatura. Sua grandeza inegável, um dos lances importantes do processo de alçar a literatura brasileira ao patamar de uma "grande literatura", está em transformar em literatura a narrativa da destituição da literatura como experiência nua.

Recebido em 01/03/2010

Aprovado em 15/03/2010

João Camillo Penna

Tem mestrado e Diplômes d'Études Approfondies em Letras Modernas pela Université de Paris VIII-Vincennes/Saint Denis; e doutorado em Literatura Comparada pela University of California, Berkeley. É professor de Literatura Comparada e Teoria Literária da UFRJ. Co-organizou e cotraduziu, com Virginia de Figueiredo, Imitação dos modernos de Philippe Lacoue-Labarthe; e "Homenagem a Philippe Lacoue-Labarthe. 1940-2007". Terceira Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Participou de duas coletâneas organizadas por Adauto Novaes: Mutações. Ensaios sobre as novas configurações do mundo, e A condição humana. É autor de inúmeros artigos sobre violência contemporânea no Brasil.

  • *1 (SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector Petrópolis: Ed. Vozes, 1979.
  • *2 (A Bíblia de Jerusalém. 3Ş imp. 1Ş ed., 1980. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994: 2232.
  • *3 (JOYCE, James. The Portrait of The Artist as a Young Man. Text, Criticism, and Notes. Editado por Chester Anderson. New york: Penguin Books, 1968: 171.
  • *5 (GREGORY, Lady. Gods and Fighting Men. Citado em Clannada na Gadelica, o artigo de Iaian Macan Tsaoir, "Crane Magic". http://www.clannada.org/culture_crane.php. Acessado em 22 de janeiro de 2010.
  • *6 (JOYCE, James. Stephen Hero. New york: New Directions, 1963: .211.
  • *10 (Aristóteles. Metafísica, livro Z (1028 a, 10-20). Trad. Hugh Tredennick. Cambridge: Loeb Cassical Library, 1996 (1933), vol. 1: 310311;
  • Tomás de Aquino. Do ente e da essência. De ente et essentia On being and essence Capítulo 1. Trad. Robert T. Miller. In Medieval Source Book. In: http://www.fordham.edu/halsall/basis/aquinas-esse.html Acessado em 22 de janeiro de 2010.
    » link
  • *11 (AQUINO, Santo Tomás de. Première partie, Question 39, "Article 8: Quel attribut faut-il approprier à chaque Personne?" Somme Théologique. In: http://docteurangelique.free.fr/index.html. Acessado em 22 de janeiro de 2010.
  • *14 (LISPECTOR, Clarice. Crônica de 14 de setembro de 1968. In: A descoberta do mundo. 2Ş ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984: p. 194.
  • *15 (LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 7Ş ed. (1a ed., 1943) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 47.
  • *19 (CANDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento". In: Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989: 145, 146.
  • *21 (Cf. VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988: 97-105.
  • *23 (LISPECTOR, Clarice. A maçã no escuro. 5Ş ed. (1961, 1Ş ed.) Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978: 152.
  • *25 (SABINO, Fernando. "Carta de Washington, 21 de Setembro de 1956". In: Cartas perto do coração. 3Ş ed. Rio de Janeiro. Record, 2001: 141.
  • *27 (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. 7a ed. (1a ed., 1964) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1979: 175.
  • *29 (RÉAU, Louis. Iconographie de l'art chrétien. Tome III, I. Paris: PUF, 1958: 350.
  • *32 (PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução: Mário Quintana. 2Ş ed., 3Ş imp. Porto Alegre: Editora Globo, 1972: 74.
  • *33 (PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Volume 1. Du côté de chez Swann. Notas de Antoine Compagnon. Paris: Gallimard/Folio: 480.
  • *37 (AGAMBEN, Giorgio. Le temps qui reste. Trad. Judith Revel. Paris: éditions Rivages, 2000: 42.
  • *38 (LISPECTOR, Clarice. "Amor". In: Laços de família. 13Ş ed. 1960, 1Ş ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1983: 28-31.
  • *39 (LISPECTOR, Clarice. "Onde estivestes de noite" In: Onde estivestes de noite. 2Ş ed. 1974, 1Ş ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 68.
  • *45 (ADORNO, Theodor. "Sacred Fragment". In: Quasi una fantasia. Trad. Rodney Livingstone. Londres/New york: Verso, 1992: 243.
  • *46 (CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 10Ş ed. revisada. 1957, 1Ş ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006: 25.
  • 1 NUNES, Benedito. O mundo de Clarice Lispector. Governo do Amazonas, 1966, p. 56;
  • O mundo imaginário de Clarice Lispector, in: O dorso do tigre São Paulo: Perspectiva, 1976, terceira edição (primeira edição, 1969);
  • Leitura de Clarice Lispector São Paulo: Edições Quíron, 1973, p.123;
  • O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.125.
  • Este quarto livro incorpora o terceiro acrescentando-lhe capítulos sobre a obra subsequente de Clarice publicada após 1971. Também Affonso Romano de Sant'Anna, em Análise estrutural de romances brasileiros (Petrópolis: Ed. Vozes, 1973),
  • 4 Sabemos que Joyce estudara S. Tomás de Aquino em sua primeira estada em Paris, em 1903, quando passava até altas horas lendo na Biblioteca Sainte-Geneviève, e lá descobrira um resumo de filosofia aristotélica tomista, destinado a seminaristas, o Synopsis Philosophiae Scholasticae ad mentem divi Thomae. (Cf. Jacques Aubert. Introduction à l'esthétique de James Joyce. Paris: Klincksieck, 1973, p. 159.
  • ) Há traços desse resumo no Paris Notebook Sua formação tomista vem também de um outro compêndio, History of Aesthetics, de Bernard Bosanquet, de que há traços no Pola Notebook, anotações feitas já no exílio, na cidade de Pola, Austro-Hungria, atual Croácia, onde dava aulas de inglês, em 1904. (SC-HOLES, Robert e KAIN, M. (Ed.) "The Pola Notebook". In: The Worshop of Daedalus: James Joyce and the Raw Materials of A Portrait of The Artist as a Young Man NorthWestern University Press, 1965.
  • 5 Cf. também a apresentação de Aubert no seminário 23 de Jacques Lacan, O sinthoma. LACAN, Jacques. O sinthoma. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007: 166-185.
  • 6 O insight sobre a desficcionalização na escrita de Clarice provém de José Américo Pessanha, em carta de 5 de março de 1972 à própria, sobre Objeto gritante, livro depois publicado, em forma modificada, como Água viva. Pessanha referese naquele ponto da obra de Clarice ao movimento de "afastamento do universo artístico", a uma escrita "a-literária", uma "não-ficção", em que Clarice parece "querer rejeitar os artifícios da arte". Minha hipótese é que esse é o método de Clarice, modificando-se e radicalizando-se com o tempo, mas presente desde o início. (Ver a citação de longos trechos da carta em GOTLIB, Nádia Battela. Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995: 404-406.
  • 8 "A crítica de influências me mete certo medo pelo que tem de difícil e, sobretudo, de relativa e pouco concludente. Em relação a Perto do coração selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é performance da melhor qualidade." Antonio Candido. "Uma tentativa de renovação". In: Brigada ligeira. São Paulo: Livraria Martins editora, 1945: 103, 104, 108.
  • 10 A resenha de Candido contém, em sua primeira parte, um diagnóstico terrível sobre o caráter tributário da literatura brasileira e portuguesa, escrito na mesma veia de "A elegia de abril" de Mário de Andrade, publicada originalmente na revista Clima, organizada pela geração de Candido, em 1941 (ANDRADE, Mário. "A elegia de abril". In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, 5Ş edição).
  • A resenha, originalmente publicada em duas partes na Folha da Manhã, aparece na íntegra na primeira edição de Brigada Ligeira, de 1945, com o título de "Tentativa de renovação", mas terá em seguida a primeira parte elidida nas edições subsequentes, publicada sob o título de "No raiar de Clarice Lispector", em Vários escritos (São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, 2Ş edição).
  • 12 Em carta sem data a Lúcio Cardoso, Clarice escreve: "Estou lendo À sombra das rap'rigas eim floire, como traduziram os portugueses, estou lendo em francês naturalmente. Eu pensava que ia gostar de Proust como se gosta de coisas esmagadoras; mas com grande surpresa vejo que tenho um prazer enorme e sincero em lê-lo, acho-o naturalíssimo, nada cacete, nada imponente, pelo contrário, de uma modéstia intelectual, que nunca se sacrifica por um brilho, por uma imagem..." (Carta publicada em fac-símile em Remate de males. Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP, 9. Revista do Departamento de Teoria Literária. UNICAMP: Campinas, 1989: 218.
  • *1
    (SÁ, Olga de.
    A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979. )
  • *2
    (
    A Bíblia de Jerusalém. 3ª imp. 1ª ed., 1980. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1994: 2232. )
  • *3
    (JOYCE, James.
    The Portrait of The Artist as a Young Man.
    Text, Criticism, and Notes. Editado por Chester Anderson. New york: Penguin Books, 1968: 171. )
  • *4
    (Idem: 172.)
  • *5
    (GREGORY, Lady.
    Gods and Fighting Men. Citado em
    Clannada na Gadelica, o artigo de Iaian Macan Tsaoir, "Crane Magic".
    http://www.clannada.org/culture_crane.php. Acessado em 22 de janeiro de 2010. )
  • *6
    (JOYCE, James.
    Stephen Hero. New york: New Directions, 1963: .211. )
  • *7
    (Idem, ibidem.)
  • *8
    (Idem: 212.)
  • *9
    (Idem: 213.)
  • *10
    (Aristóteles.
    Metafísica, livro Z (1028 a, 10-20). Trad. Hugh Tredennick. Cambridge: Loeb Cassical Library, 1996 (1933), vol. 1: 310311; Tomás de Aquino. Do ente e da essência.
    De ente et essentia.
    On being and essence. Capítulo 1. Trad. Robert T. Miller. In Medieval Source Book. In:
    http://www.fordham.edu/halsall/basis/aquinas-esse.html. Acessado em 22 de janeiro de 2010. )
  • *11
    (AQUINO, Santo Tomás de. Première partie, Question 39, "Article 8: Quel attribut faut-il approprier à chaque Personne?"
    Somme Théologique. In:
    http://docteurangelique.free.fr/index.html. Acessado em 22 de janeiro de 2010. )
  • *12
    (JOYCE, James.
    Portrait of the Artist, loc.cit.: 213.)
  • *13
    (AUBERT, Jacques. Loc. cit.: 168.)
  • *14
    (LISPECTOR, Clarice. Crônica de 14 de setembro de 1968. In:
    A descoberta do mundo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984: p. 194. )
  • *15
    (LISPECTOR, Clarice.
    Perto do coração selvagem. 7ª ed. (1a ed., 1943) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 47. )
  • *16
    (Idem: 14.)
  • *17
    (Idem: 131.
    Apud Espinosa.
    Ética, II, proposição 13, lema 1. Trad. Tomas Tadeu. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008: 99. A tradução que usa Clarice é ligeiramente diferente.)
  • *18
    (Idem:131.)
  • *19
    (CANDIDO, Antonio. "Literatura e subdesenvolvimento". In:
    Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989: 145, 146. )
  • *20
    (Clarice Lispector,
    A descoberta do mundo, loc. cit: 119;
    Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. 7ª ed. (1969, 1ª edição) Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980: 147.)
  • *21
    (Cf. VENTURA, Zuenir. 1968.
    O ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988: 97-105. )
  • *22
    (NUNES, Benedito.
    Uma leitura de Clarice Lispector, loc.cit.: 123.)
  • *23
    (LISPECTOR, Clarice.
    A maçã no escuro. 5ª ed. (1961, 1ª ed.) Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978: 152. )
  • *24
    (Idem: 249.)
  • *25
    (SABINO, Fernando. "Carta de Washington, 21 de Setembro de 1956". In:
    Cartas perto do coração. 3ª ed. Rio de Janeiro. Record, 2001: 141. )
  • *26
    (idem, ibidem)
  • *27
    (LISPECTOR, Clarice.
    A paixão segundo G.H.. 7a ed. (1a ed., 1964) Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1979: 175. )
  • *28
    (
    A maçã no escuro, loc. cit.:61.)
  • *29
    (RÉAU, Louis.
    Iconographie de l'art chrétien. Tome III, I. Paris: PUF, 1958: 350. )
  • *30
    (
    A maçã no escuro, loc. cit.: 62.)
  • *31
    (
    A maçã no escuro, loc. cit.: 252.)
  • *32
    (PROUST, Marcel.
    No caminho de Swann. Tradução: Mário Quintana. 2ª ed., 3ª imp. Porto Alegre: Editora Globo, 1972: 74. )
  • *33
    (PROUST, Marcel.
    À la recherche du temps perdu. Volume 1. Du côté de chez Swann. Notas de Antoine Compagnon. Paris: Gallimard/Folio: 480. )
  • *34
    (PROUST, Marcel.
    No caminho de Swann, loc. cit.: 74-75.)
  • *35
    (PROUST, Marcel.
    À la recherche du temps perdu, loc. cit.: 480.)
  • *36
    (
    A Bíblia de Jerusalém, loc. cit.: 2156.)
  • *37
    (AGAMBEN, Giorgio.
    Le temps qui reste. Trad. Judith Revel. Paris: éditions Rivages, 2000: 42. )
  • *38
    (LISPECTOR, Clarice. "Amor". In:
    Laços de família. 13ª ed. 1960, 1ª ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1983: 28-31. )
  • *39
    (LISPECTOR, Clarice. "Onde estivestes de noite" In:
    Onde estivestes de noite. 2ª ed. 1974, 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980: 68. )
  • *40
    (LISPECTOR, Clarice.
    A paixão segundo G.H., loc. cit.: 164.)
  • *41
    (Idem: 170, 171.)
  • *42
    (Idem, ibidem.)
  • *43
    (Idem: 172.)
  • *44
    (
    A maça no escuro, loc. cit.: 252.)
  • *45
    (ADORNO, Theodor. "Sacred Fragment". In:
    Quasi una fantasia. Trad. Rodney Livingstone. Londres/New york: Verso, 1992: 243. )
  • *46
    (CANDIDO, Antonio.
    Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. 10ª ed. revisada. 1957, 1ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006: 25. )
  • *47
    (Idem: 436.)
  • 1
    NUNES, Benedito.
    O mundo de Clarice Lispector. Governo do Amazonas, 1966, p. 56; "O mundo imaginário de Clarice Lispector", in:
    O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976, terceira edição (primeira edição, 1969);
    Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edições Quíron, 1973, p.123;
    O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989, p.125. Este quarto livro incorpora o terceiro acrescentando-lhe capítulos sobre a obra subsequente de Clarice publicada após 1971. Também Affonso Romano de Sant'Anna, em
    Análise estrutural de romances brasileiros (Petrópolis: Ed. Vozes, 1973), dá à epifania um grande destaque em sua leitura das coletâneas de contos,
    Laços de família e
    Legião estrangeira. Os diversos estudos monográficos de Benedito Nunes dedicados a Clarice deram os termos de uma leitura filosoficamente informada da sua obra que marcaram profundamente a sua recepção universitária e não universitária. É nesse contexto que a epifania se estabelece como uma das vertentes dominantes de leitura dessa obra.
  • 2
    As traduções de Joyce são minhas.
  • 3
    Desenvolvo aqui uma ideia de David Lloyd.
  • 4
    Sabemos que Joyce estudara S. Tomás de Aquino em sua primeira estada em Paris, em 1903, quando passava até altas horas lendo na Biblioteca Sainte-Geneviève, e lá descobrira um resumo de filosofia aristotélica tomista, destinado a seminaristas, o
    Synopsis Philosophiae Scholasticae ad mentem divi Thomae. (Cf. Jacques Aubert.
    Introduction à l'esthétique de James Joyce. Paris: Klincksieck, 1973, p. 159. ) Há traços desse resumo no
    Paris Notebook. Sua formação tomista vem também de um outro compêndio,
    History of Aesthetics, de Bernard Bosanquet, de que há traços no
    Pola Notebook, anotações feitas já no exílio, na cidade de Pola, Austro-Hungria, atual Croácia, onde dava aulas de inglês, em 1904. (SC-HOLES, Robert e KAIN, M. (Ed.) "The Pola Notebook". In:
    The Worshop of Daedalus: James Joyce and the Raw Materials of A Portrait of The Artist as a Young Man. NorthWestern University Press, 1965. ) Sabemos ainda que a primeira versão malograda de
    O retrato..., de 1904, consistia em uma espécie de ensaio de estética, transformado depois em ficção, ainda precariamente distinto da filosofia, em
    Stephen Hero.
  • 5
    Cf. também a apresentação de Aubert no seminário 23 de Jacques Lacan,
    O sinthoma. LACAN, Jacques.
    O sinthoma. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007: 166-185.
  • 6
    O
    insight sobre a desficcionalização na escrita de Clarice provém de José Américo Pessanha, em carta de 5 de março de 1972 à própria, sobre
    Objeto gritante, livro depois publicado, em forma modificada, como
    Água viva. Pessanha referese naquele ponto da obra de Clarice ao movimento de "afastamento do universo artístico", a uma escrita "a-literária", uma "não-ficção", em que Clarice parece "querer rejeitar os artifícios da arte". Minha hipótese é que esse é o método de Clarice, modificando-se e radicalizando-se com o tempo, mas presente desde o início. (Ver a citação de longos trechos da carta em GOTLIB, Nádia Battela.
    Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995: 404-406. )
  • 7
    Na página anterior: "Que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha. [...] Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na ideia por exemplo de que não pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de S. Tomás..." (Idem: 130).
  • 8
    "A crítica de influências me mete certo medo pelo que tem de difícil e, sobretudo, de relativa e pouco concludente. Em relação a
    Perto do coração selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é
    performance da melhor qualidade." Antonio Candido. "Uma tentativa de renovação". In:
    Brigada ligeira. São Paulo: Livraria Martins editora, 1945: 103, 104, 108.
  • 9
    Ver a respeito do neutro, neste mesmo volume da
    Alea, o ensaio de Christophe Bident, "Les mouvements du neutre".
  • 10
    A resenha de Candido contém, em sua primeira parte, um diagnóstico terrível sobre o caráter tributário da literatura brasileira e portuguesa, escrito na mesma veia de "A elegia de abril" de Mário de Andrade, publicada originalmente na revista
    Clima, organizada pela geração de Candido, em 1941 (ANDRADE, Mário. "A elegia de abril". In:
    Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, 5ª edição). A resenha, originalmente publicada em duas partes na
    Folha da Manhã, aparece na íntegra na primeira edição de
    Brigada Ligeira, de 1945, com o título de "Tentativa de renovação", mas terá em seguida a primeira parte elidida nas edições subsequentes, publicada sob o título de "No raiar de Clarice Lispector", em
    Vários escritos (São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, 2ª edição). Candido explica que a parte republicada é a que considera "aproveitável" da primeira edição (idem: 7). Na reedição de
    Brigada Ligeira, de 2004, a resenha é restituída em sua integridade. Candido num segundo momento recua, portanto, em seu juízo inicial particularmente violento contra a literatura brasileira, e a língua portuguesa em geral, segundo ele, não suficientemente polidas por uma escrita de alto nível. É nesse contexto que Clarice aparece ao crítico, no raiar de sua carreira de crítico, como uma resposta à altura ao "ramerrão" - a expressão é de Candido - de nossas letras.
  • 11
    Benedito Nunes (idem, ibidem) cita em nota de rodapé o
    Vocabulaire de Théologie Biblique de Xavier Leon.
  • 12
    Em carta sem data a Lúcio Cardoso, Clarice escreve: "Estou lendo À sombra das rap'rigas eim floire, como traduziram os portugueses, estou lendo em francês naturalmente. Eu pensava que ia gostar de Proust como se gosta de coisas esmagadoras; mas com grande surpresa vejo que tenho um prazer enorme e sincero em lê-lo, acho-o naturalíssimo, nada cacete, nada imponente, pelo contrário, de uma modéstia intelectual, que nunca se sacrifica por um brilho, por uma imagem..." (Carta publicada em fac-símile em
    Remate de males. Instituto de Estudos da Linguagem - UNICAMP, 9. Revista do Departamento de Teoria Literária. UNICAMP: Campinas, 1989: 218. )
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      01 Mar 2010
    • Aceito
      15 Mar 2010
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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