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Jacques Rancière, leitor de Erich Auerbach

Jacques Rancière, reader of Erich Auerbach

Resumo

O artigo discute o aproveitamento crítico da obra de Erich Auerbach no pensamento de Jacques Rancière desde a década de 1990, com ênfase na reflexão em torno da prosa de ficção moderna. Para ilustrar decorrências do modo como Rancière reafirma percepções e refuta juízos de Auerbach a respeito do tratamento do cotidiano na literatura, são comentados seus ensaios a propósito de Stendhal e Guimarães Rosa.

Palavras-chave:
Erich Auerbach; Jacques Rancière; Stendhal; Guimarães Rosa; cotidiano

Abstract

This article discusses how Jacques Rancière thought critically explores Erich Auerbach’s work since the 1990s with an emphasis on the reflection about modern fiction prose. To illustrate how Rancière reaffirms perceptions and refutes Auerbach´s judgments regarding the treatment of daily life in literature we will consider Rancière’s essays on Stendhal and Guimarães Rosa.

Keywords:
Erich Auerbach; Jacques Rancière; Stendhal; Guimarães Rosa; daily life

Résumé

L'article traite de l'utilisation critique de l'œuvre d'Erich Auerbach chez Jacques Rancière depuis les années 1990, ayant pour objet privilégié la réflexion sur la fiction moderne. Pour illustrer la manière dont Rancière réaffirme les perceptions et réfute les jugements d'Auerbach quant au traitement de la vie quotidienne en littérature, on prend en compte ses essais sur Stendhal et Guimarães Rosa.

Mots-clés :
Erich Auerbach; Jacques Rancière; Stendhal; Guimarães Rosa; la vie quotidienne

Jacques Rancière tem feito menções a Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidentalAUERBACH, Erich. Epilegômenos a Mimesis. Tradução Rainer Patriota. In: AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. São Paulo: Perspectiva, 2021b. p. 607-620. em uma série de trabalhos publicados desde os anos 1990, de modo que o estudo de Erich Auerbach sobre modalidades de expressão realista tornou-se referência importante em seu pensamento, participando da formulação de proposições a respeito da dimensão política da arte na modernidade organizadas em torno de noções como política da ficção, partilha do sensível, democracia literária etc. Primeiro, em O excesso de palavrasRANCIÈRE, Jacques. O excesso de palavras. In: RANCIÈRE, Jacques.Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014 [1992]. p. 37-63. e Teologias do romanceRANCIÈRE, Jacques. Teologias do romance. Tradução Raquel Ramalhete e Lígia Vassalo. In: RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo: Ed. 34, 1995 [1995]. p. 47-73. , Rancière pôs em xeque mais de uma passagem do capítulo 2 de Mimesis (“Fortunata”, que trata do Satyricon, dos Anais de Tácito e do Novo Testamento). Mas já no segundo desses ensaios seu diálogo com Auerbach se desloca da Antiguidade para a prosa de ficção moderna, e em textos subsequentes gira em torno de transformações da narrativa desde Stendhal até o século XX. Vamos nos concentrar neste momento mais recente, quando estão em pauta os capítulos 18 e/ou 20 de Mimesis (“Na mansão de La Mole” e “A meia marrom”).1 1 Os trabalhos nos quais Rancière recorre a Auerbach para discutir autores dos séculos XIX e XX foram publicados entre 2009 e 2019. As datas das publicações originais estão indicadas entre colchetes nas referências bibliográficas.

Motivos determinantes no movimento de aproximação e divergência em relação a Auerbach se evidenciam desde O excesso de palavras, quando Rancière parte de um “comentário magistral” de seu predecessor para em seguida refutar seus juízos. O objeto em comum é passagem dos Anais na qual Tácito relata o discurso de Percênio (líder de uma rebelião de legionários no século I), e se põe em questão a retórica com que o historiador registra a fala do personagem de classe baixa. As conclusões se opõem, como deixa claro o próprio Rancière logo depois de resumir a argumentação exposta em Mimesis: “o que nos interessa no discurso de Tácito não é o seu efeito de exclusão, ressaltado por Auerbach, mas, ao contrário, seu poder de inclusão: o lugar que ele mesmo atribui a quem ele declara sem lugar” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. O excesso de palavras. In: RANCIÈRE, Jacques.Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014 [1992]. p. 37-63. , p. 43, grifos nossos). De fato, Auerbach toma o trecho como ilustração de um limite do realismo antigo: ainda que “motivos práticos-cotidianos” referentes à experiência dos legionários sejam expostos com vivacidade pelo historiador, sua retórica desqualifica os detalhes sobre o trabalho exaustivo e insalubre, a remuneração precária, o ressentimento com o tratamento dispensado pelos superiores etc. - o que se afirma é a perspectiva aristocrática de quem escreve. O relato explica as causas do motim de modo estritamente moralista, negando qualquer legitimidade aos dados objetivos, apresentados como mero palavrório de um insubordinado. Para Auerbach, o discurso do subalterno fica rebaixado na transposição da fala ao texto, porque o moralismo da historiografia antiga não reconhece nos acontecimentos mundanos forças motrizes da história (cf. AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 39-41).

A divergência de Rancière nesse ponto é dupla. Primeiro porque Auerbach vê no realismo sério - objeto de sua empreitada historiográfica - a expressão de uma “compreensão da realidade como evolução de forças” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 44), compreensão manifesta em tratamentos estilísticos que conferem relevância ao cotidiano da gente comum (como é o caso, no capítulo 2 de Mimesis, da cena da negação de Pedro no Evangelho de Marcos, em que elementos os mais prosaicos participam de uma narrativa que diz respeito ao destino da humanidade). Já Rancière põe em xeque tanto a “história como narrativa da inteligibilidade” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. O excesso de palavras. In: RANCIÈRE, Jacques.Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014 [1992]. p. 37-63. , p. 63) quanto a vantagem de se observar os textos do ângulo da correspondência aristotélica entre gêneros e pessoas representadas. Em lugar disso, propõe retomar a vertente platônica das categorias poéticas e considerar o relato de Tácito do ponto de vista da léxis, atentando para os efeitos das modalidades de enunciação. Desse ângulo, o estilo indireto no trecho dos Anais poderia ser reconhecido como feito libertário em mais de um sentido: ao assimilar a fala do legionário, a escrita revoga a separação entre falantes legítimos (o escritor de elite) e ilegítimos (o subalterno rebelde); esse fica incluído na comunidade dos que dispõem do poder do discurso porque, a despeito da desqualificação lançada sobre sua fala, ela de qualquer maneira ecoa, a ponto de o estilo indireto acabar por forjar um “modelo de eloquência subversiva para os oradores e para os simples soldados do futuro” (RANCIÈRE, 2014RANCIÈRE, Jacques. O excesso de palavras. In: RANCIÈRE, Jacques.Os nomes da história: ensaio de poética do saber. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2014 [1992]. p. 37-63. , p. 42-45).

Em suma: Auerbach procura detectar relações homológicas entre vida social e expressão verbal (determinações objetivas da ordenação de uma sociedade sedimentadas na forma literária); Rancière enfatiza um potencial revolucionário da enunciação que rompe com a estratificação social no ato de linguagem.2 2 Outras conclusões sobre as divergências entre Auerbach e Rancière a respeito de Tácito encontram-se em Parker, 2009. Esse andamento (retomada de objetos, reafirmação de questões, refutação de juízos) e essas divergências de base (relacionadas à abordagem historiográfica e à relação entre matéria social e linguagem) perpassam a leitura que Rancière faz de Auerbach quando se trata da prosa de ficção, de Stendhal a Guimarães Rosa.

Mimesis e Aisthesis: questões de método e consideração da matéria cotidiana

Mesmo em textos de Rancière nos quais a referência a Auerbach não é explícita, são evidentes os interesses afins e dissonâncias entre os dois, como se subliminarmente ecoasse em contraponto a voz do autor de Mimesis. Um exemplo disso é “A pintura no texto”, que gira em torno da ruptura da arte moderna com o regime representativo, com a mimesis. Ao contrário de Auerbach - que não costuma propor definições, cabendo ao leitor depreender da própria argumentação a respeito das obras o sentido em que emprega o termo grego -, Rancière oferece no ensaio uma espécie de verbete que rejeita concepções redutoras (“imperativo da semelhança”, “obrigação exterior que pesava sobre as artes”, “relação de uma cópia com seu modelo”), destacando o que considera essencial para compreender transformações operadas pela modernidade artística: mimesis designa um regime da semelhança que se tornou próprio da Arte há pouco mais de dois séculos, “uma maneira de fazer as semelhanças funcionarem no interior de um conjunto de relações entre modos de fazer, modos da palavra, formas de visibilidade e protocolos de inteligibilidade” (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. A pintura no texto. In: RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução Monica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012 [2003]. p. 79-100., p. 83-84).

Rancière localiza o sustentáculo decisivo da ordem mimética na razão ficcional fundada com a Poética, de Aristóteles, “um modo específico de causalidade” que comanda a representação da realidade não só na tradição literária, mas também nas ciências sociais, uma vez que ambas apresentam a sucessão dos acontecimentos como um encadeamento de causas e efeitos, sequência verossímil (RANCIÈRE, 2021aRANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. Tradução Fernando Scheibe. São Paulo: Ed. 34 , 2021a [2017]. , p. 7). O epicentro da destruição do regime representativo corresponderia, portanto, à revogação dessa lógica a partir do século XIX, quando emerge o regime estético das artes - “outra articulação entre práticas, formas de visibilidade e modos de inteligibilidade” (RANCIÈRE, 2012RANCIÈRE, Jacques. A pintura no texto. In: RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução Monica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012 [2003]. p. 79-100., p. 86). Tal avaliação, em certa medida, equivale a uma das “ideias norteadoras” sumariadas no “Epílogo” de Mimesis, segundo a qual a ruptura com a doutrina clássica dos níveis estilísticos de representação literária é uma condição para a emergência do realismo sério. Auerbach (2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 599-600) também reconhece no século XIX uma “total ruptura” com paradigmas poéticos herdados da Antiguidade greco-latina e, como Rancière, localiza no romance do entreguerras um momento de radicalização tributário do anterior. Mas a equivalência formal nos argumentos de base (lógica aristotélica x regime estético das artes / doutrina dos níveis x realismo sério) não garante conclusões convergentes. Para Auerbach, entre o realismo do século XIX e a ficção do início do XX, processa-se uma coerente reconfiguração de procedimentos miméticos, pari passu ao andamento da vida social na Europa. Já Rancière afirma que a insubordinação em relação à razão ficcional clássica tem implicações para além da suspensão do condicionamento entre matéria e gênero, interceptando o próprio princípio de causalidade que rege a representação (e também o pensamento do filólogo). Voltaremos a isso adiante.

A dinâmica de aproximação e distanciamento em relação a Auerbach se mostra de modo especialmente esclarecedor em Aisthesis: cenas do regime estético da arteRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. - a começar pelo título. Porém, mais uma vez, conforme o autor reitera no “Prelúdio”, em seu livro os termos gregos não designam categorias internas à arte, e sim regimes de identificação dessa. Aisthesis concentra-se em um período (segunda metade do século XVIII à década de 1940) que abarca um ponto de inflexão no arco temporal mais extenso percorrido em Mimesis (de Homero e o Velho Testamento ao romance do início do século XX). Entretanto, ainda que postos em ordem cronológica, os objetos estéticos de Rancière não são tomados como representativos de contextos históricos, como acontece com os textos comentados por Auerbach. O que está em questão não são mudanças internas à arte que permitam refletir sobre diferentes configurações da experiência social; os episódios ou cenas de pensamento selecionados em Aisthesis são microcosmos nos quais se flagra a formação e transformação do regime estético da arte, metamorfoses que envolvem “os modos de percepção, os afetos e as formas de interpretação que definem um paradigma” (RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 9).

Por outro lado, Aisthesis retoma de Mimesis um procedimento expositivo. Cada capítulo parte de uma citação e os fragmentos emblemáticos são analisados e postos em relação com outros elementos (estéticos ou contextuais), de modo que se forma uma constelação na qual parte e conjunto se iluminam reciprocamente. A sucessão de capítulos constitui um todo “a um só tempo completo e inacabado” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Tradução Inês Oseki-Dépré. Belo Horizonte: Relicário, 2021c [2019]. b, p. 12), porque outros momentos poderiam integrar a sequência - o que Auerbach (1965AUERBACH, Erich. Introduction: Purpose and Method. In: AUERBACH, Erich. Literary language and its public in the late Latin Antiquity and in the Middle Ages. Tradução Ralph Manheim. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1965. p. 5-24., p. 22, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 529) também admite a propósito de seu livro. Já em termos de métodos e objetivos de cada um não há tantas semelhanças.

No final do último capítulo de Mimesis, “A meia marrom”, Auerbach afirma que os “motivos da história da representação da realidade [...] devem poder ser encontrados em qualquer texto realista escolhido ao acaso” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 592-593). Isso não significa que inexista um princípio a comandar a escolha dos fragmentos, que resulta daquilo que Leopold Waizbort (2007WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia, filosofia. São Paulo: Cosac Naify , 2007., p. 148) indicou como elemento estruturante da prática do autor: a operação com Ansätze, espécie de problemas-chave ou pontos de partida para a reflexão:

A peculiaridade de um bom ponto de partida [Ansatz] reside, por um lado, em sua concretude e precisão e, por outro, em sua capacidade de irradiação. Ele pode estar na significação de um termo, numa fórmula retórica, num torneio sintático, na interpretação de uma frase ou numa série de declarações feitas em determinadas ocasiões; mas é necessário que tenha sempre uma capacidade de irradiação que o vincule à história mundial. [...]

O ponto de partida não deve ser qualquer coisa de ordem geral que se aproxime de fora do objeto, ele deve nascer deste último, deve ser um elemento do próprio objeto. (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. Trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos M. de Macedo. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Editora 34, 2012. p. 357-373., p. 370-371).

Por meio do Ansatz, Auerbach não só discute particularidades estilísticas que respondem por determinada modalidade de efeito realista, mas também procura obter a partir delas um vislumbre da estrutura histórica na qual a composição se inscreve, procura aproximar-se da forma de consciência do mundo vigente em dada ordem social, que se encontra condensada no modo como se forja uma concepção da realidade na obra. Conforme uma passagem de Literatursprache und Publikum, o Ansatz conduz ao “conhecimento de nexos tais, que a luz que deles irradia como que ilumina toda uma paisagem histórica”, permitindo “chegar à síntese mediante o desdobramento do que é caracteristicamente singular” (AUERBACH, 1965AUERBACH, Erich. Introduction: Purpose and Method. In: AUERBACH, Erich. Literary language and its public in the late Latin Antiquity and in the Middle Ages. Tradução Ralph Manheim. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1965. p. 5-24., p. 18).3 3 A tradução dos trechos citados foi extraída de Waizbort, 2007, p. 148.

De maneira equivalente, Rancière, em Aisthesis, opera com cenas nas quais também articula elementos de ordens diversas, desde condições materiais (como circulação e reprodução das obras de arte) até direcionamentos da percepção, emoção, interpretação e valoração que configuram uma “comunidade sensível”. Cena a cena, um acontecimento singular (no âmbito da literatura, do teatro, das artes plásticas ou do cinema) é situado em uma rede interpretativa armada pelo autor para explicitar “deslocamentos na percepção do que significa arte”, de modo que se evidencie a dinâmica pela qual algo é (ou passa a ser) sentido e pensado como tal, numa sucessão de momentos que identifica como “episódios de uma contra-história da ‘modernidade artística’”. O “contra”, aqui, marca sua posição em face de uma noção central no pensamento histórico e filosófico sobre a arte moderna. Rancière refuta sua associação a uma dupla autonomia (da própria esfera estética e dessa em relação a convenções do passado), definindo seu movimento mais característico como tendência ao “apagamento de fronteiras que separam tanto modalidades de arte quanto a arte da experiência ordinária”, graças à dissolução do modelo hierárquico que regulava o discurso artístico e seus sentidos até o final do século XVIII, organizando “o discurso como um corpo de membros bem ajustados, o poema como uma história e a história como um ordenamento de ações” (RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 9-13).

São dois modos distintos de relacionar fatura estética e experiência social. Em Mimesis, a leitura cerrada do texto literário desdobra-se no esforço de compreender determinações que informam a matéria social, a forma literária é encarada como cifra com que se produzem na linguagem vetores da dinâmica de uma sociedade em determinado momento histórico. Em Aisthesis, o pensamento estético dobra-se sobre si mesmo e cada episódio da modernidade artística é observado como gesto configurador do próprio campo da arte moderna, concebido como território fértil para a experimentação sensível de modelações utópicas da vida em comum, a ponto de Rancière proclamar: “A revolução social é filha da revolução estética” (2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 15). Auerbach procura, do ângulo de seu perspectivismo histórico, distinguir um processo objetivo - “conferir às várias épocas e culturas suas próprias pressuposições e visões, empregar todos os esforços para desvendá-las, e descartar como não histórica e diletante aquelas avaliações que adotem um ponto de vista extrínseco aos próprios fenômenos”, como propõe nos “Epilegômenos a Mimesis” (2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 619). Rancière valoriza performances prospectivas, ou, no caso da literatura, o que entende como “uma cumplicidade mais essencial entre um modo do discurso e um modo da comunidade, entre literalidade e democracia” (RANCIÈRE, 1995RANCIÈRE, Jacques. Teologias do romance. Tradução Raquel Ramalhete e Lígia Vassalo. In: RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo: Ed. 34, 1995 [1995]. p. 47-73. , p. 15). É para essa direção que aponta sua contra-história da modernidade artística: desvia-se do “foco no efeito de realidade” para a compreensão da arte moderna como “construção de uma sensibilidade de igualdade radical” (RANCIÈRE, 2010RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Tradução Carolina Santos. Novos Estudos, São Paulo, n. 86, p. 75-90, mar. 2010 [2009]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/4twwjzzkqthnjsyhxvnwttp/?lang=pt . Acesso em: 10 set. 2022.
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, p. 77, 90).

As divergências com relação à perspectiva do autor de Mimesis ficam bem explícitas em “Auerbach and the contradictions of realism”. Aí, Rancière reafirma que foi um achado do filólogo identificar no tratamento sério do cotidiano de personagens das classes baixas uma conquista decisiva do realismo literário. Mas questiona seus juízos, por serem determinados pelo método que “apresenta o todo no microcosmo do fragmento” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. Auerbach and the contradictions of realism. Critical Inquiry, Chicago, v. 44, p. 227-241, winter 2018. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/695379?journalCode=ci . Acesso em: 10 set. 2022.
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, p. 240; ver também RANCIÈRE, 2021aRANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. Tradução Fernando Scheibe. São Paulo: Ed. 34 , 2021a [2017]. , p. 11-12). Põe em xeque a totalização operada por Auerbach, o fato de esse tomar a vida cotidiana figurada na ficção como expressão condensada do processo social, num movimento interpretativo equivalente às “sínteses obtidas mediante o esgotamento de um tema cotidiano”, apontadas no capítulo “A meia marrom” como peculiaridade de romances do início do século XX: “em qualquer fragmento escolhido ao acaso do curso de uma vida e em qualquer um de seus momentos, encontra-se toda a substância de seu destino e a possibilidade de representá-lo” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a.a, p. 592). Esse procedimento - a integração de “farrapos de acontecimentos” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 589) na totalidade de um processo social -, segundo Rancière, negligenciaria a potência de ruptura com o estado das coisas própria da valorização moderna de qualquer instante vivido por qualquer pessoa, a abertura para a experiência igualitária promovida por uma imaginação estética “capaz de dar ressonância infinita ao instante mais ínfimo da vida mais banal” (RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 12). É algo que ele valoriza no último capítulo de Mimesis: a aspiração a “uma vida humana comum sobre a terra”, tornada “mais visível e concreta” com a exploração ficcional do instante qualquer, que “ressalta o caráter elementar e comum de nossa vida” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 597).4 4 Essa passagem de Mimesis talvez não seja tão otimista em relação ao significado da representação de “momentoso aleatórios da vida de diferentes pessoas” como faz crer a leitura de Rancière (e de outros bons leitores de Auerbach, como Siegfried Kracauer). As últimas palavras de “A meia marrom” sugerem um problema: “indícios da uniformização e da simplificação que se prenunciam” (AUBERBACH, 2021a, p. 597). Pode-se enxergar aí menos uma aposta na efetivação de ordem igualitária do que uma crítica à estandardização da cultura, similar à que se encontra em carta a Walter Benjamin de 3 de janeiro de 1937: “torna-se, para mim, cada vez mais claro que a situação do mundo contemporâneo não mostra senão o ardil da Providência que, por um caminho sangrento e doloroso, nos conduz à internacional da trivialidade e a uma cultura-esperanto” (AUERBACH, 1989, p. 73). Sobre os comentários de Kracauer a respeito da mesma passagem de Mimesis, ver Corpas (2019, p. 190-191). O problema, para Rancière, é que o pensamento de Auerbach acaba por recuar diante do “poder de expansão encapsulado nos eventos microscópicos que qualquer um pode experienciar em qualquer momento da realidade cotidiana” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. Auerbach and the contradictions of realism. Critical Inquiry, Chicago, v. 44, p. 227-241, winter 2018. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/695379?journalCode=ci . Acesso em: 10 set. 2022.
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, p. 240), reacomodando na órbita do processo histórico dado aquilo que a teoria da partilha do sensível reconhece como irrupção transgressora, vislumbre de efetiva democracia.

De Stendhal a Guimarães Rosa

O principal eixo da tese de Rancière a respeito do tratamento da matéria cotidiana na ficção dos séculos XIX e XX pode ser resumido da seguinte maneira: a partir do realismo do século XIX, desloca-se o centro de gravidade da prosa de ficção, tradicionalmente constituído pelo enlace causal de acontecimentos cruciais, impulsionadores do enredo. Microeventos banais na vida de sujeitos das mais diversas posições sociais figuram como “momento vazio que oscila entre a reprodução do mesmo e a possível emergência do novo”. Na democracia literária que a prosa de ficção moderna instaura, confere-se relevância humana a qualquer acontecimento na existência de qualquer personagem, mesmo a mais secundária e socialmente rebaixada. Assim, se vê suspensa a hierarquia da temporalidade da poética clássica, na qual as ações decisivas de um destino heroico são privilégio das personagens aristocráticas, cabendo às classes baixas a reprodução da vida cotidiana, esse “mundo obscuro das atividades materiais” sem interesse dramático. Quando o cotidiano deixa de ser tomado como “universo repetitivo das coisas e dos acontecimentos materiais que simplesmente se sucedem uns após os outros” e qualquer instante vivido por qualquer um mostra-se pleno em suas possibilidades de afeto, imaginação, fruição, sofrimento, experiências de todas as ordens, o dia a dia pode ser reconhecido como terreno em que se mantêm em tensão a continuidade do estado das coisas e a perspectiva de uma outra configuração da vida social (cf. RANCIÈRE, 2021aRANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. Tradução Fernando Scheibe. São Paulo: Ed. 34 , 2021a [2017]. , p. 9-13).

Por outro lado, Rancière adverte que a democracia romanesca não é isenta de contradições: se a valorização do instante qualquer na narrativa abre espaço para a imaginação de uma sociedade igualitária, ao mesmo tempo, “os indivíduos aleatórios são alienados da preciosidade dos momentos aleatórios, cujo conhecimento só pertence aos escritores que contam sua história” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. Auerbach and the contradictions of realism. Critical Inquiry, Chicago, v. 44, p. 227-241, winter 2018. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/695379?journalCode=ci . Acesso em: 10 set. 2022.
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, p. 240). Essa seria a possivelmente interminável dialética da ficção moderna: “Ela se apropriou da capacidade inédita das vidas anônimas para forjar seu próprio poder, o poder impessoal da escrita. Mas ela também forjou, ao mesmo tempo, um poder de ruptura da lógica consensual que mantém as vidas anônimas em seu devido lugar” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Tradução Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017 [2013]. , p. 77). De qualquer modo, Rancière coloca em segundo plano a historicidade do cotidiano enfatizada por Auerbach - o caráter problemático do processo histórico tornado inteligível pelo realismo sério, que “faz com que destinos individuais coincidam com a sabida representação das forças sociais e políticas” (RANCIÈRE, 2010RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Tradução Carolina Santos. Novos Estudos, São Paulo, n. 86, p. 75-90, mar. 2010 [2009]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/4twwjzzkqthnjsyhxvnwttp/?lang=pt . Acesso em: 10 set. 2022.
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, p. 87). Ou, nos termos de As margens da ficção: “O indivíduo engajado na realidade global de uma história em plena evolução e o indivíduo qualquer capaz dos sentimentos mais intensos e mais complexos não formam um único e mesmo tema” (RANCIÈRE, 2021aRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 12). Em contrapartida, o que ressalta na inscrição do cotidiano na ficção moderna é a suspensão da inteligibilidade e da causalidade, pois as possibilidades latentes no momento qualquer abrem margem para o indeterminado da experiência sensível, convidam ao devaneio e à imaginação de uma interação que descortine outro horizonte para a vida social. Assim, a seu ver, as formas da ficção moderna, com seus desregramentos em relação à razão ficcional de matriz aristotélica, permitem refletir sobre relações entre “as repetições do passado e as projeções do futuro, o sentido do real e do possível, do necessário e do verossímil do qual se tecem as formas da experiência social e da subjetivação política” (RANCIÈRE, 2017RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Tradução Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017 [2013]. , p. 14).

Em várias ocasiões, O vermelho e o negro emblematiza essa política da ficção moderna pensada por Rancière como democracia literária. O Ansatz de sua argumentação sobre o romance de Stendhal é o movimento final do livro, quando o protagonista Julien Sorel, preso por atirar na amada Madame de Rênal, já prestes a ser julgado, dispensa todos os estratagemas que lhe são propostos para se salvar e ocupa o tempo com o ócio e o amor, com a fruição de sentimentos e sensações. Rancière chama atenção para isso que considera uma esquisitice do enredo, esse encaminhamento para o desfecho que atentaria contra a verossimilhança da ação, antes determinada pelo calculismo do personagem arrivista (cf. RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 56). De fato, mesmo enquanto caminha para o cadafalso, Julien se entrega plenamente ao devaneio, e o narrador comenta: “Nunca esta cabeça fora tão poética quanto no momento em que ia cair. Os mais doces momentos que tivera outrora nos bosques de Vergy voltavam-lhe à mente, aos montes e com uma extrema energia.” (STENDHAL, 2003STENDHAL, -. O vermelho e o negro. Tradução Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003., p. 543).

Rancière enfatiza que essa reviravolta põe em xeque a leitura efetuada em Mimesis, segundo a qual a representação da vida cotidiana em O vermelho e o negro estaria encharcada de historicidade, exprimindo filigranas do andamento da política, da economia e da estratificação social francesas no entorno da Revolução de Julho de 1830, das quais o sentido do romance seria indissociável (cf. AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 486-487). Afirma que o foco final no cotidiano ocioso do protagonista socialmente rebaixado suspende a causalidade própria da lógica das intrigas, intercepta a razão ficcional e assim rompe com a coerência entre ficção e processo social, desfazendo “a esperada correspondência entre a estrutura ficcional, a lógica de um caráter e a história dos mecanismos sociais” (RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 59).

Podemos colocar de outra forma: a distribuição tradicional do sensível opunha o reino da ação aristocrática ao reino da fabricação plebeia. O “fazer nada” do plebeu é a inversão da oposição entre agir e fazer. Qualquer um pode gozar do estado ocioso do devaneio. [...] Como a estrutura ficcional de concatenação de fins e meios ou causas e efeitos tende a identificar-se com a luta das forças sociais, ela é mutilada por uma força de inércia. Em O vermelho e o negro, a força de inércia é a força do devaneio plebeu contra as hierarquias sociais. (RANCIÈRE, 2010RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Tradução Carolina Santos. Novos Estudos, São Paulo, n. 86, p. 75-90, mar. 2010 [2009]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/4twwjzzkqthnjsyhxvnwttp/?lang=pt . Acesso em: 10 set. 2022.
https://www.scielo.br/j/nec/a/4twwjzzkqt...
, p. 85-86).

O autor de “O céu do plebeu” argumenta ainda que, afora o desfecho, ao longo de todo o romance de Stendhal uma série de pequenos acontecimentos (a contemplação de miudezas da natureza, o prazer com pequenos gestos da amada etc.) suspendem o encadeamento de causas e efeitos, meios e fins, dando margem ao puro gozo das sensações e sentimentos. Com isso, estaria impressa em O vermelho e o negro a força subversiva do far niente dos trabalhadores, implodindo a hierarquia social correspondente à lógica ficcional aristotélica, que reservava às figuras aristocráticas tanto o ócio - que conforme a tradição clássica eleva o espírito - quanto o agir, a ação significativa, que determinaria o curso do destino. Se aos plebeus cabia apenas o fazer, o trabalho que garante a reprodução da vida material, a atitude final de Julien Sorel se insurge contra esse regime, confirmando a inclinação da estrutura ficcional integrada por pequenos acontecimentos que não impactam os planos de ascensão social condutores do enredo, ocasiões avulsas nas quais o protagonista “partilha simplesmente a igualdade de uma emoção”. Por tudo isso, segundo Rancière, o romance menos representa um momento histórico no processo de constituição da sociedade burguesa, como pretende Auerbach (2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 487), do que irrompe como cisão no curso dessa história, encenando, pela partilha do sensível, uma promissora revolução igualitária, promovida pela abolição da hierarquia das ocupações (cf. RANCIÈRE, 2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 61-63).

É possível especular que, do ângulo de Auerbach, teria outro sentido a esquisitice do enredo apontada por Rancière. Uma passagem de “Na mansão de La Mole” chama atenção para a conservação de “instintos do século XVIII” por parte do autor de O vermelho e o negro: “A liberdade do coração grande, a liberdade da paixão ainda têm, no caso de Stendhal, muito daquela elevada postura aristocrática e do jogo com a vida que pertencem mais ao Ancien Régime que à burguesia do século XIX” (AUERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 517). À luz dessa observação, em vez de gesto libertário ou revolucionário, o não fazer de Julien teria um quê de heroico-aristocrático. A recusa a qualquer ação para salvar-se da pena de morte não guarda algo do motivo clássico da autoimolação do herói? A convicção altiva de quem se entrega ao carrasco “sem a menor afetação” (STENDHAL, 2003STENDHAL, -. O vermelho e o negro. Tradução Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003., p. 544), a valorização do amor sublime, traduzida em desapego em relação à vida terrena, são comportamentos dignos de um protagonista de tragédia. Além disso, um pequeno acontecimento relacionado ao desfecho do romance inscreve nele uma marca do típico destino do herói trágico-aristocrático. Está no final do capítulo 5 da primeira parte, quando Julien deve apresentar-se à casa do Sr. de Rênal para trabalhar como preceptor de seus filhos. Ainda em dúvida quanto à utilidade desse emprego para seu projeto de fazer fortuna, entra na igreja de Verrières:

Achou-a sombria e solitária. Por ocasião de uma festa, todas as janelas do edifício haviam sido cobertas com tecido carmesim. O resultado, com os raios de sol, era um efeito de luz resplandecente, do mais imponente e religioso caráter. Julien estremeceu. Sozinho na igreja, instalou-se no banco que lhe pareceu mais bonito. Ostentava o brasão do sr. de Rênal.

Sobre o genuflexório Julien notou um pedaço de papel impresso, desdobrado ali como para ser lido. Olhou-o e viu: Detalhes da execução e dos últimos momentos de Louis Jenrel, executado em Besançon no dia... O papel estava rasgado. Liam-se no verso as palavras iniciais de uma linha: “O primeiro passo...”.

“Quem teria posto este papel aqui?”, disse Julien. “Pobre infeliz”, acrescentou com um suspiro, “seu nome acaba como o meu...” E amassou o papel.

Ao sair, acreditou ver sangue perto da pia; era água benta que se derramara: o reflexo das cortinas vermelhas que cobriam as janelas fazia com que parecesse sangue.

Por fim, Julien teve vergonha de seu terror secreto.

- Serei um covarde? - disse. - Às armas!

Essa expressão, repetida sempre nos relatos de batalha do cirurgião-mor, parecia heroica a Julien. Levantou-se e caminhou rapidamente para a casa do sr. de Rênal. (STENDHAL, 2003STENDHAL, -. O vermelho e o negro. Tradução Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003., p. 43).

No fluxo da leitura, o que resta do episódio é seu desfecho, a decisão de aceitar o emprego. Se essa “parecia heroica a Julien”, mais heroico ainda é o caráter de que se reveste a mera casualidade de encontrar um papel rasgado no banco do Sr. de Rênal - um detalhe que pode passar desapercebido a princípio (o próprio Julien acaba por descartar o papel). Mas o leitor mais atento não deixará de perceber que a notícia da execução de Louis Jenrel não está ali por acaso. O ambiente “imponente e religioso”, a sucessão de coincidências - escolha do banco do futuro patrão, semelhança entre os nomes Jenrel e Sorel, a água benta que parece sangue -, tudo conspira para transformar o incidente em vaticínio do fim que aguarda o protagonista. Tanto o relato do narrador quanto o solilóquio de Julien sugerem que há intencionalidade no incidente, que há sentido no pedaço de papel “desdobrado ali como para ser lido”. Quem o teria posto lá? A resposta à pergunta que se faz Julien pode ser: a mão do destino. Ou, a mão do escritor que traça as linhas de um destino trágico para seu personagem, com direito a oráculo e tudo. O próprio Rancière nota que, a par dos pequenos acontecimentos que não se encaixam no encadeamento de causas e efeitos da trama, há no romance outros que servem a ele (2021bRANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Ed. 34 , 2021b [2011]. , p. 61) - é o caso deste, que antecipa o fim de O vermelho e o negro e aproxima o rapaz pobre do modelo clássico do herói trágico. Em vista de tal concatenação, o comportamento do protagonista no final do romance não parece tão disruptivo em relação à razão ficcional.

Com essa ressalva não queremos dizer que a ênfase de Rancière na projeção emancipatória da narrativa de Stendhal seja descabida. O fato de aspectos como os indicados acima contradizerem a potência libertária sublinhada pelo crítico não implica que a anulem. O que interessa é o que se ganha e o que se perde com a adoção de um viés de abordagem da obra que recusa relevância ao modo como especificidades do contexto social se decantam na forma ficcional, concentrando-se em linhas de força mais gerais, compartilhadas por narrativas surgidas em diferentes solos históricos, seja a França de Stendhal, seja o sertão de Guimarães Rosa.

No Brasil, é especialmente interessante pensar o alcance e o limite do ângulo adotado por Rancière levando em conta seus recentes ensaios sobre Primeiras estórias (ROSA, 1962ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.). Em primeiro lugar, vale notar que, embora sem recorrer à fortuna crítica local, sua leitura guarda pontos de interseção com as de críticos brasileiros que pensaram particularidades da formação do país e enxergaram, sobretudo em Grande sertão: veredas, figurações de “oportunidade política da emancipação e o sentimento de comunidade” (STARLING, 1999STARLING, Heloísa. Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revan; UCAM; IUPERJ, 1999., p. 18) ou “amplas possibilidades históricas de transformação” (BOLLE, 2004BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004., p. 45).5 5 Sobre essa e outras tendências na recepção do romance de Rosa, ver Corpas, 2015. Sem ter em seu horizonte qualquer peculiaridade nacional, Rancière chega a conclusões semelhantes, também ressalta nos contos de Rosa a figuração de alternativas libertárias. Em A ficção à beira do nada, afirma que o escritor, conciliando composição erudita moderna, filosofia mística e formas da cultura popular, põe em evidência a “presença da arte e do insólito nas vidas mais ordinárias”. Por isso considera Rosa um expoente da revolução literária moderna inaugurada por Stendhal: em sua avaliação, a obra escritor mineiro explora intensamente o poder de transgressão próprio da ficção, fazendo-se indissociável da “capacidade que tem a vida, entre os mais humildes e os mais ordinários, de se elevarem além dela mesma” (2021cRANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Tradução Inês Oseki-Dépré. Belo Horizonte: Relicário, 2021c [2019]. , p. 28-29 e p. 52).

Imbricação entre erudição e oralidade, projeção mística, superação do ordinário pela poesia e o faz de conta, nada disso, sabemos, é novidade na recepção de Guimarães Rosa. Também é recorrente o descarte programático da matéria social brasileira6 6 Ver, por exemplo, Santiago, 2017. em prol de uma aproximação à obra conduzida pela fruição do alumbramento - esse efeito tão caro a Guimarães Rosa e que, segundo Rancière, abre margem para a partilha do sensível, fazendo da leitura uma experiência que convida à imaginação de possibilidades inusitadas de sociabilidade.

Acontece que esse movimento interpretativo, para trazer ao primeiro plano o alumbramento, rebaixa contradições também presentes na ficção rosiana, que passam pelo obscurantismo próprio do mistério místico e por uma espécie de coação operada pelo estilo inebriante, que muitas vezes coopta o leitor para um enleio apaziguante, culminando em desfechos nos quais parecem estar superados, ao menos provisoriamente, os entraves à constituição plena de uma comunidade sensível.

Vejamos muito rapidamente um exemplo entre os contos de Primeiras estórias: “Substância”, história de amor, com inusitado final feliz, entre um jovem fazendeiro e uma moça pobre, espécie de Gata Borralheira empregada na exaustiva tarefa de quebrar polvilho nas lajes. Rancière reitera a idealização operada pelo escritor, que extrai do trabalho duro um signo do maravilhoso: “A brancura deslumbrante do polvilho basta aqui para fazer as vezes de carruagem e vestido brilhante a fim de que o príncipe reconheça a princesa na criada e que os dois se unam sem se mexer, no lugar e no tempo que convêm à felicidade do viver verdadeiro” (RANCIÈRE, 2021cRANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Tradução Inês Oseki-Dépré. Belo Horizonte: Relicário, 2021c [2019]. , p. 166). Note-se o contraste com uma leitura do mesmo conto que toma a operação rosiana com o mito e o conto de fadas como questão formal em face da matéria brasileira:

onde o avanço do capital não se choca com a aura mítica que remanesce na cultura e na religiosidade locais, a lógica salvadora da narrativa romanesca torna-se possível e a Providência, pela via amorosa ali urdida, pode, simbolicamente, solapar determinações de classe intransponíveis. (PACHECO, 2006PACHECO, Ana Paula. O lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias. São Paulo: Nankin Editorial, 2006., p. 177).

Se a abordagem de Rancière tem o mérito de destacar horizontes imaginários de transformação rumo à vida social igualitária, no caso de Rosa, essa perspectiva parece encontrar um limite - no próprio modus operandi de uma ficção na qual a redenção imaginada tem como condição de possibilidade problemas da ordem social que precisam ser superados.

Referências

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  • STENDHAL, -. O vermelho e o negro Tradução Raquel Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia, filosofia. São Paulo: Cosac Naify , 2007.
  • 1
    Os trabalhos nos quais Rancière recorre a Auerbach para discutir autores dos séculos XIX e XX foram publicados entre 2009 e 2019. As datas das publicações originais estão indicadas entre colchetes nas referências bibliográficas.
  • 2
    Outras conclusões sobre as divergências entre Auerbach e Rancière a respeito de Tácito encontram-se em Parker, 2009PARKER, Andrew. Impossible Speech Acts: Jacques Rancière's Erich Auerbach. In: Rockhill, G.; Watts, P. (org.) Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics. Durham: Duke University Press, 2009. p. 249-257..
  • 3
    A tradução dos trechos citados foi extraída de Waizbort, 2007WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia, filosofia. São Paulo: Cosac Naify , 2007., p. 148.
  • 4
    Essa passagem de Mimesis talvez não seja tão otimista em relação ao significado da representação de “momentoso aleatórios da vida de diferentes pessoas” como faz crer a leitura de Rancière (e de outros bons leitores de Auerbach, como Siegfried Kracauer). As últimas palavras de “A meia marrom” sugerem um problema: “indícios da uniformização e da simplificação que se prenunciam” (AUBERBACH, 2021aAUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 7. ed. rev. e amp. Tradução George Bernard Sperber et al. São Paulo: Perspectiva, 2021a., p. 597). Pode-se enxergar aí menos uma aposta na efetivação de ordem igualitária do que uma crítica à estandardização da cultura, similar à que se encontra em carta a Walter Benjamin de 3 de janeiro de 1937: “torna-se, para mim, cada vez mais claro que a situação do mundo contemporâneo não mostra senão o ardil da Providência que, por um caminho sangrento e doloroso, nos conduz à internacional da trivialidade e a uma cultura-esperanto” (AUERBACH, 1989AUERBACH, Erich. Cinco cartas de Erich Auerbach a Walter Benjamin. Tradução Luiz Costa Lima. 34 Letras, n. 5/6, p. 68-74, set. 1989., p. 73). Sobre os comentários de Kracauer a respeito da mesma passagem de Mimesis, ver Corpas (2019CORPAS, Danielle. Siegfried Kracauer e Erich Auerbach: pontos de contato. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, v. 22, n. 37, p. 182-198, maio-ago. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/pg/article/view/155124 . Acesso em: 10 set. 2022.
    https://www.revistas.usp.br/pg/article/v...
    , p. 190-191).
  • 5
    Sobre essa e outras tendências na recepção do romance de Rosa, ver Corpas, 2015CORPAS, Danielle. O jagunço somos nós: visões do Brasil na crítica de Grande sertão: veredas. Campinas: Mercado de Letras, 2015..
  • 6
    Ver, por exemplo, Santiago, 2017SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Recife: Cepe, 2017..
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
  • Declaração de financiamento

    : O artigo que agora Alea publica é resultado de pesquisa financiada por bolsa de produtividade do CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2022
  • Aceito
    09 Out 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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