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Os irmãos Goncourt: homens de letras

The Goncourt brothers: men of letters

CABANÈS, Jean-Louis; DUFIEF, Pierre-Jean. . Les frères Goncourt: Hommes de lettres.Paris: Fayard, 2020

Si quelqu’un fait un jour ma biographie, qu’il se persuade qu’il serait d’un haut intérêt, pour l'histoire littéraire et la réconfortation des victimes de la critique des siècles futurs, de donner sur chacun de nos livres les extraits les plus violents, les plus forcenés, les plus négateurs de notre talent, et des premiers jusqu’aux derniers livres. (GONCOURTGONCOURT, Edmond e Jules de. Journal des Goncourt. Paris: Robert Laffont, 1989. (T. I (1851-1865), t. II (1866-1886), t. III (1887-1896))., Journal, 11 décembre 1886).

Embora o célebre Prêmio atribuído pela Academia Goncourt seja a forma pela qual o nome Goncourt subsiste hoje fora do meio acadêmico, esta instituição e a própria honraria por ela concedida são frutos de cerca de meio século de atuação de Edmond (1822-1896) e Jules (1830-1870) de Goncourt no campo literário francês. Biógrafos de si, os irmãos Goncourt registraram em seu diário íntimo (juntos entre 1851 e 1870, e somente por Edmond até 1896) suas memórias, que compõem o título dos nove volumes do Journal des Goncourt - Mémoires de la vie littéraire (Diário dos Goncourt - Memórias da vida literária)GONCOURT, Edmond e Jules de. Journal des Goncourt. Paris: Robert Laffont, 1989. (T. I (1851-1865), t. II (1866-1886), t. III (1887-1896))., publicados entre 1887 e 1896. Contudo, se por um lado o Journal apresenta um número quase inesgotável de informações sobre o campo literário francês daquele período, ele oferece apenas uma visão restrita e particular da vida dos irmãos Goncourt, deixando, assim, uma lacuna a ser preenchida pelos biógrafos.

Dessa forma, para suprir a falta de um registro mais completo sobre a vida dos irmãos Goncourt, o crítico literário Alidor Delzant (1848-1905) publica, em 1889, sob a supervisão do próprio Edmond de Goncourt, Les GoncourtDELZANT, Alidor. Les Goncourt. Paris: Charpentier, Éditeurs, 1889. (Bibliothèque Charpentier)., uma obra de escrita caleidoscópica que reúne capítulos sobre aspectos puramente biográficos além de críticas às principais obras dos dois escritores. A biografia será reformulada dentro das características deste gênero somente décadas depois, em 1954, pelo romancista e membro da Academia Goncourt André Billy (1882-1971), com o título de Les Frères Goncourt: la vie littéraire à Paris pendant la seconde moitié du XIXBILLY, André. Les frères Goncourt: la vie littéraire à Paris pendant la seconde moitié du XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1954. (Coll. Les Grandes Biographies). e siècle. Sendo um sólido estudo sobre duas vidas dedicadas à literatura, a biografia escrita por Billy não pôde contar com a reunião e indexação farta dos documentos referentes à obra dos irmãos Goncourt, tampouco com a reflexão sobre esse material proveniente de pesquisas acadêmicas, realizadas com maior expressividade a partir das últimas décadas do século XX. Em 1994, a lista de títulos que versam sobre a vida de Edmond e de Jules torna-se mais extensa com Les frères Goncourt, « un déshabillé de l’âmeCAFFIER, Michel. Les frères Goncourt: un déshabillé de l’âme. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1994.», obra de feição biográfica na qual o jornalista e crítico literário Michel Caffier (1930-2021) organiza e dá certa narratividade aos eventos descritos no Journal. Em 3 de janeiro de 2020, na esteira de um relativo crescimento do interesse pela obra dos irmãos Goncourt, vem à luz Les infréquentables frères GoncourtMENARD, Pierre. Les infréquentables frères Goncourt. Préface de Michel Winock. Paris: Éditions Tallandier, 2020., biografia escrita pelo tradutor e biógrafo Pierre Ménard, que apresenta um sobrevoo opinativo sobre a vida de Edmond e de Jules em pouco mais de 400 páginas. Esta biografia, que nas palavras de Robert Kopp (2020KOPP, Robert. “Ces infréquentables Goncourt”. Revue des Deux Mondes, p. 156-163, out. 2020., p. 163) seria um esboço da vida dos escritores direcionado ao grande público, obteve, no ano de seu lançamento, a menção especial do Prêmio Goncourt da Biografia Edmonde Charles-Roux. Contudo, ela não foi a única a ser reconhecida pelo júri da Academia Goncourt.

A mais recente biografia dos irmãos Goncourt, Les frères Goncourt: Hommes de lettres, publicada no dia 11 de março de 2020, obteve a mesma recepção dos 10 Acadêmicos que compõem o júri do Prêmio Goncourt, além do apoio do Centre National du Livre (CNL). Ao contrário das biografias que a precedem, esta obra é resultado de pesquisas empreendidas já há alguns anos por Jean-Louis Cabanès e Pierre-Jean Dufief, professores eméritos da Université Paris Nanterre e membros associados da Equipe Goncourt, grupo de pesquisa afiliado ao Centre de Recherche sur les Poétiques du XIXe siècle(Centro de Pesquisa sobre as Poéticas do século XIX>) (CRP19), da Université Sorbonne Nouvelle- Paris III. Nas quase 800 páginas do volume, Cabanès e Dufief redesenham a atuação dos irmãos Goncourt nas letras francesas com maestria. A já esgotada perspectiva que compreende que vida e obra são objetos independentes, comum às biografias anteriores, foi finalmente descartada. Há, portanto, nesta obra, não somente um olhar acurado sobre a vida dos irmãos Goncourt, que não os reduz a clichês correntes em obras não acadêmicas, mas também, uma leitura original da trajetória de dois polígrafos das letras francesas, que participaram de debates estéticos, fomentando-os intensamente tanto no âmbito literário quanto artístico.

Os 42 capítulos que compõem Les frères Goncourt: Hommes de lettres integram duas partes que dão conta de momentos-chave da carreira dos escritores. A primeira parte, intitulada “Jules-Edmond en quête de notoriété” (“Jules-Edmond em busca de notoriedade”), volta-se sobretudo para a entrada dos bichons- como Gustave Flaubert costumava chamá-los - no campo literário francês, recuando no tempo e abarcando desde a origem do sobrenome Goncourt até a morte de Jules, em 20 de junho de 1870. A segunda parte, “Le sacre d’Edmond” (“A coroação de Edmond”), por sua vez, perfaz o processo de reconhecimento de Edmond de Goncourt no campo literário francês, que o consagrou como um dos “mestres” do naturalismo, finalizando-se após a morte de Edmond, no dia 16 de junho de 1896, com o momento de criação da Academia que leva seu sobrenome. Essa divisão, já observada em biografias anteriores, garante sua singularidade por não se ater à simples apresentação dos fatos. Cabanès e Dufief ampliam as informações com rigor, a fim de observar detalhes até então desconhecidos ou pouco explorados, o que eleva esta biografia à posição de obra imprescindível para se entender o funcionamento do campo literário francês durante a Segunda República (1848-1851), ao longo do Segundo Império (1851-1870) e no regime da Terceira República (1870-1940).

A observação do processo de busca dos irmãos Edmond e Jules pelo reconhecimento dos pares e do público leitor, assim como do projeto de permanência do nome Goncourt empreendido apenas por Edmond, apoia-se em suas singularidades enquanto indivíduos. Para os biógrafos, isso significa, em um primeiro momento, recuar significativamente no tempo, a fim de conhecer a formação do patrimônio amealhado pela família dos irmãos Goncourt, o que lhes permitiu investir maiores esforços na produção literária e criar para si uma imagem de aristocratas e diletantes das artes. O leitor conhecerá, assim, dois literatos que se valeram de sua fortuna para publicar suas primeiras obras, após uma série de fracassos no teatro e no jornalismo; dois estetas comprometidos sobretudo com o romance, gênero no qual se firmaram, tendo desenvolvido na prosa um estilo particular de escrita, a écriture artiste (escrita artista), em que o trivial, o prosaico e o vulgar são convertidos em objetos estéticos, graças a formas literariamente valorizadas; dois colecionadores de obras de arte oriental e de arte europeia do século XVIII, pelas quais eram aficionados e que servirão de tema para séries de críticas de arte, assim como para estudos históricos e monográficos. Ou ainda, dois homens de letras que criaram um nome em torno do qual se reuniram figuras ilustres como Émile Zola, Alphonse Daudet e Joris-Karl Huysmans, que constituem não somente um grupo de expoentes do naturalismo em literatura, mas também um grupo que dará origem à Academia Goncourt. Conhecerá, finalmente,

[...] [a] miséria e grandeza de dois homens de letras que teriam sido apenas homens de letras se não tivessem sido capazes de criar, em sua maneira de apreender a cena literária, um mito do artista crucificado por seus nervos, um estilo de vida que participa de um esteticismo generalizado e, ao final, se não tivessem inventado, movidos por seu desejo de glória, uma escrita com uma verdadeira marca pessoal (2020, p. 713, tradução do autor).

A biografia escrita por Jean-Louis Cabanès e Pierre-Jean Dufief, fruto de anos de pesquisa, ao contrário das anteriores, tem como trunfo tomar como base uma profusão de documentos, sobretudo de fontes primárias. Os autores concentram-se, portanto, na quase totalidade dos manuscritos, cartas e documentos iconográficos que estão ligados à produção literária dos irmãos Goncourt, bem como em outras fontes preciosas para a reconstituição da recepção de suas obras, como aquelas veiculadas na imprensa. Dentre os manuscritos que utilizaram nesta biografia, destacam-se não somente a correspondência1 1 Desde 2004, a correspondência dos irmãos Goncourt vem sendo restabelecida, editada e anotada por Pierre-Jean Dufief. Ver: Goncourt, Edmond e Jules de. Correspondance générale (1843-1862). Tome I. Édition établie, présentée et annotée par Pierre-Jean Dufief. Paris: Honoré Champion, 2004. , mas sobretudo os originais do Journal, conservados na Biblioteca Nacional da França (BnF). Cabe lembrar que a primeira edição do Journal (1887-1896), da Editora Charpentier, está longe de ser a versão integral do texto, tanto pelas omissões de passagens que Edmond julgou comprometedoras, quanto por acréscimos retroativos de fatos que o escritor incorporou aos primeiros anos do diário. Já a edição dirigida por Robert Ricatte (1989) combina a transcrição dos manuscritos com esta primeira edição 2 2 Desde 2005, o texto dos manuscritos do diário vem sendo restabelecido sob a direção de Jean-Louis Cabanès, sendo esta a versão mais fidedigna do Journal. Ver: Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1851-1857). Tome I. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris: Honoré Champion, 2005; Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1858-1860). Tome II. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris : Honoré Champion, 2008; Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1861-1864). Tome III. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris : Honoré Champion, 2013. Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1865-1868). Tome IV. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris: Honoré Champion, 2019. . É possível igualmente mencionar uma série de documentos ainda pouco explorados nos estudos goncourtianos, como aqueles do patrimônio arquivístico da Comédie Française e da Ópera de Paris, assim como da Biblioteca Municipal de Nancy, que conservam, respectivamente, documentos sobre as representações das peças de teatro escritas pelos irmãos Goncourt e sobre a criação da Academia Goncourt. Somam-se às fontes primárias estudos recentes sobre a produção literária dos irmãos Goncourt, sobretudo aqueles publicados no Cahiers Edmond et Jules de Goncourt, revista anual criada em 1994 - cujos editores-chefes são Cabanès e Dufief - e editada pela Société des Amis des frères Goncourt (Sociedade dos amigos dos irmãos Goncourt), da qual este último é presidente.

A formação em Letras de Cabanès e Dufief somada aos anos dedicados ao estudo da literatura francesa do século XIX lhes permitem dar uma atenção especial às técnicas e ao estilo de escrita, trazendo para discussão a gênese e o desenvolvimento de noções como a de documento humano, que está na base do naturalismo, e de escrita artista, estandarte levantado pelos irmãos Goncourt dentro desta corrente estética. Relacionadas a essas ideias caras a Edmond e Jules, o leitor encontrará, disseminadas ao longo do texto, informações sobre a transposição de registros pessoais e de documentos sociais e históricos para a ficção, sobretudo para os romances, em um processo no qual o diário íntimo funciona frequentemente como um lugar de experimentação de escrita - podendo ser igualmente lido como uma obra literária. Les frères Goncourt: Hommes de lettres é, assim, uma biografia que revisita a trajetória de Edmond e Jules de Goncourt por diferentes ângulos, em interface com diferentes áreas das Ciências Humanas e Sociais, como a História e a Sociologia. Esta obra magistral, baseada nos aportes da crítica genética, como Jean-Louis Cabanes e Pierre-Jean Dufief (2020CABANÈS, Jean-Louis; DUFIEF, Pierre-Jean. Les frères Goncourt: hommes de lettres. Paris: Fayard, 2020., p. 15) assinalam na introdução, além de ser certamente a biografia mais completa dos irmãos Goncourt, é igualmente um estudo indispensável para as pesquisas sobre estes escritores, o naturalismo e a literatura francesa do século XIX.

Referências

  • BILLY, André. Les frères Goncourt: la vie littéraire à Paris pendant la seconde moitié du XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1954. (Coll. Les Grandes Biographies).
  • CABANÈS, Jean-Louis; DUFIEF, Pierre-Jean. Les frères Goncourt: hommes de lettres. Paris: Fayard, 2020.
  • CAFFIER, Michel. Les frères Goncourt: un déshabillé de l’âme. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1994.
  • DELZANT, Alidor. Les Goncourt Paris: Charpentier, Éditeurs, 1889. (Bibliothèque Charpentier).
  • GONCOURT, Edmond e Jules de. Journal des Goncourt Paris: Robert Laffont, 1989. (T. I (1851-1865), t. II (1866-1886), t. III (1887-1896)).
  • KOPP, Robert. “Ces infréquentables Goncourt”. Revue des Deux Mondes, p. 156-163, out. 2020.
  • MENARD, Pierre. Les infréquentables frères Goncourt Préface de Michel Winock. Paris: Éditions Tallandier, 2020.
  • 1
    Desde 2004, a correspondência dos irmãos Goncourt vem sendo restabelecida, editada e anotada por Pierre-Jean Dufief. Ver: Goncourt, Edmond e Jules de. Correspondance générale (1843-1862). Tome I. Édition établie, présentée et annotée par Pierre-Jean Dufief. Paris: Honoré Champion, 2004.
  • 2
    Desde 2005, o texto dos manuscritos do diário vem sendo restabelecido sob a direção de Jean-Louis Cabanès, sendo esta a versão mais fidedigna do Journal. Ver: Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1851-1857). Tome I. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris: Honoré Champion, 2005; Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1858-1860). Tome II. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris : Honoré Champion, 2008; Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1861-1864). Tome III. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris : Honoré Champion, 2013. Goncourt, Edmond et Jules de. Journal des Goncourt (1865-1868). Tome IV. Sous la direction de Jean-Louis Cabanès. Paris: Honoré Champion, 2019.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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