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Corpos tribais e memória imemorial

Corpos tribais e memória imemorial

Michel Maffesoli* * Sociólogo. Professor da Sorbonne – Paris V. Diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano (CEAQ). Edita a revista Sociétés. A maioria dos seus livros está publicada no Brasil.

RESUMO

O tribalismo pós-moderno não obedece às práticas a que estamos habituados. De fato, à pulsão política se sobrepõe uma atitude contemplativa; às associações reflexivas se sobrepõe a intuição nas relações sociais. O que toma corpo é o conhecimento do laço íntimo entre todas as coisas, e o que predomina é uma alegre forma de imoralidade. As intuições de Bergson ajudam a iluminar, teoricamente, todas essas situações empíricas em que não se procuram singularidades, nem se afirmam especificidades. O que se busca, concretamente, é um sentimento de pertença, evidente, por exemplo, na utilização de signos e marcas, que são a expressão de afinidades eletivas. A questão do espaço se impõe no tribalismo pós-moderno como sendo, de certa maneira, o tempo vivido: o das pequenas histórias, o dos momentos (bons e maus), que por sedimentações sucessivas constituem, justamente, a cultura concreta – uma memória partilhada, uma ligação carnal.

Palavras-chave: corpo, memória, espaço

Toda instauração de um novo laço social é uma transfiguração. É exatamente esse o caso do tribalismo pós-moderno, que convoca outras figuras nas quais o ideal comunitário se reconhece e se contempla. É simples perceber que as práticas contemporâneas obedecem a uma lógica parecida. As "formas" utilizadas podem ser, sem dúvida, transgressoras, mas nem por isso são menos fundadoras, se soubermos apreciá-las pelo que são e não pelo que gostaríamos que fossem.

Podemos referir-nos ao exemplo religioso. De fato, é surpreendente notar que essas novas formas de sociabilidade, por um lado, são atravessadas por uma intensidade própria à religiosidade e pela importância que, nela, possui a memória; por outro, expressam uma intensidade transbordante na relação com o outro. Intensidade e densidade que, présentéisme oblige, sendo efêmeras, nem por isso são menos reais.

A atitude "contemplativa" que prevalece sobre a pulsão política, própria às gerações precedentes; o fato de a intuição nas relações sociais predominar sobre as associações reflexivas (partidos, sindicatos); a constatação de se privilegiarem todas as ocasiões de "exaltação" (exaltação festiva, efervescências diversas), tudo isso cria uma atmosfera específica em que o sujeito substancial, que, na tradição ocidental, era-nos familiar, não tem mais muita importância. O subjetivo tende a ceder lugar ao "trajetivo" (G. Durand), ou seja, ao conhecimento direto do íntimo laço entre todas as coisas.

Correspondência holística, intuitiva conexão com os outros e com a natureza ao redor, tudo isso se traduz, trivialmente falando, pelo fato de "exaltar-se", de "explodir de prazer" ou de ter "feeling". A lista de expressões que traduzem a extrapolação de uma lógica discursiva é longa e sublinha a calma violência do fluxo vital. Podemos sem dúvida nos espantar, mas a verdade é que o imperativo categórico da moral estabelecida dá, cada vez mais, lugar à prática de pequenas liberdades intersticiais em que domina uma forma de alegre imoralidade. É isso a "ordo amoris" (M. Scheler), causa e efeito dos múltiplos êxtases societários.

Podemos aproximar essa idéia das intuições de Bergson – a passagem do estático ao dinâmico, do fechado ao aberto, de uma vida rotineira à vida mística –, que muito esclarecem, teoricamente, todas as situações empíricas em que a fórmula conceitual (política, social) cede lugar a uma forma operatória. Uma forma comunitária em que cada um não mais procura sua singularidade, não mais afirma sua especificidade, mas busca, concretamente, ser um só com o objeto que lhe pertence ou ao qual pertence.

Véu islâmico, kipa judaica, lenço Hermès, cuecas Calvin Klein, poderíamos, por simples lazer, multiplicar os signos e as marcas, que podem ser considerados manifestações do sentimento de pertença, sentimento de pertença enraizado na memória coletiva. Stricto sensu, "somos algo" no momento em que o ostentamos como um emblema de reconhecimento. Mesmo e, sobretudo, se tal afirmação provoca ou choca os que não o "são". O umbigo exposto de maneira "sexy", a circuncisão religiosa e o "piercing" íntimo favorecem os êxtases comunais. São como outros tantos rituais anódinos ou exacerbados pelos quais as microtribos contemporâneas expressam suas afinidades eletivas; pelos quais essas mesmas tribos transfiguram um cotidiano dominado pela lógica de mercado em uma realidade espiritual que, apesar de se proteger atrás da máscara da transcendência, não deixa de ser profundamente humana, sempre: o que vivo, com outros, aqui e agora.

Práticas encarnadas. Encarnação que precisa ser compreendida em seu sentido preciso: prazer da carne, mortificação da carne, a diferença tem pouca importância, como meio de redizer a importância do corpo individual no contexto do corpo coletivo. Corpo místico que, em todo caso, não mais se reconhece pelos mecanismos de abstração racional, mas tende a se afirmar na organicidade dos grupos emocionais. O orgânico, não o esqueçamos, é essencialmente feito de memória.

Invertendo o dito popular, o hábito faz o monge. A "vestimenta", seja sobre o corpo ou no corpo, torna-se, dessa forma, hieróglifo. Signo sagrado fazendo participar de uma espécie de transcendência imanente. Pedras vivas de um templo imaterial em que "se sente" bem. Construção simbólica onde tudo junto ganha corpo. Lugar real ou virtual que assegura proteção e reconforto. Os apaixonados por jogos eletrônicos bem sabem que procuram perdidamente nas redes da internet uma forma de comunhão e que, assim, criam comunidades não menos "reais" que os grupamentos sociais, logo racionais, propostos pela sociedade. Nesse sentido, os pseudônimos utilizados são como marcas sobre o próprio corpo, permitindo integrar um corpo coletivo. Vê-se aí, muitas vezes, uma "dependência" inegável, mas essa não é mais do que um signo de embriaguez coletiva: deixar seu rastro na trágica impermanência do dado mundano.

Isso nos convida a seguir as pistas do nomadismo tribal contemporâneo, feito, paradoxalmente, de enraizamento e exílio. Do desejo de estar e viver aqui, tendo ao mesmo tempo a nostalgia do que está para além. Não seria, então, o caso de ver nesse paradoxo a falência de uma moral de imposição de domicílio, de uma existência fechada nela mesma e, ao mesmo tempo, a emergência de uma ética dinâmica capaz de aliar contrários? Ao menos, é nisso que nos faz pensar.

Quando se elaborou a noção de "proxemia" na escola californiana de Palo Alto, pensava-se, na linha de uma sensibilidade ecologista, na consideração do que está próximo, mas em interação com o ambiente global. Dupla necessidade, incluindo o real vivido no vasto contexto de uma realidade total. Encontra-se aí como que um eco da noção de domus, própria do pensamento antigo. Importância da "casa" não mais limitada aos quatro muros de uma habitação, e ganhando sentido em função da fauna, da flora, e até mesmo dos parentes próximos. Por uma espécie de concatenação mágica, ou quase mística, o laço social se constrói, simbolicamente, por uma apropriação de lugares sucessivos. Outro modo da memória partilhada!

O termo espanhol immediaciones, que descreve o entorno de um ponto central, de uma cidade importante, é, nesse sentido, esclarecedor, ao evidenciar que o que está próximo vive em osmose, sem mediações, por contigüidade com a cidade que lhe dá sentido. Existe uma espécie de imediação absoluta entre os diversos elementos de um todo. Uma co-presença que torna cada elemento indispensável e o conjunto, específico ou original.

É esse "doméstico" e essa "imediação", ou seja, essa maneira de interagir por contaminações sucessivas, por irradiações, que nos podem ajudar a entender a passagem progressiva da moral para a ética. Enquanto a primeira é um pouco abstrata, desenraizada, a última é, acima de tudo, encarnada, proxêmica.

Tendo como referência a etimologia do termo, ela é, primordialmente, concreta (cum-crescere). Ela cresce com o entorno: o ambiente social só tem sentido em função do ambiente natural. Ela acentua o espaço, o território, o terreno..., permitindo-lhe ser. A ética como modo de vida, como maneira de existir tendo como base um lugar que é partilhado com outros. A cultura, a partir daí, torna-se particular e deixa de ser a pretensão universal da civilização.

Nessa perspectiva, o espaço é, de certa maneira, o tempo vivido. O das pequenas histórias, o dos momentos (bons e maus), que por sedimentações sucessivas fazem, justamente, a cultura concreta: uma memória partilhada, um laço carnal. Nesse sentido, a ética doméstica, poder-se-ia dizer tribal, é uma ética da situação. Ligada a uma estada, a uma paisagem particular.

De diversas maneiras, Heidegger chamou a atenção para um tal "Ethos" como maneira de habitar: "a ética deve supor que ela pensa a morada do ser humano". Estamos longe da afetação moral das belas almas responsáveis pela humanidade como um todo, e atormentadas pelas desgraças do gênero humano.

A ética de situação é, mais modestamente, mais humanamente, logo, mais humildemente, uma justaposição de rituais cotidianos, que criam um estado de espírito coletivo. Ela é tributária de um lugar, seja ele real ou simbólico, e é atravessada pela preocupação com o lugar, e pela memória que o constitui como tal.

A partir de então, esse solo, essa terra, esse mundo se tornam, por círculos sucessivos, importantes. "Interessam" porque se está dentro (inter esse). Assim, como diz Merleau-Ponty, é "porque nele moro" que posso levar a sério este mundo. Nesse sentido, nessa ética que se desenha, estamos longe do atemporal e do universal, mas bem no coração de um humanismo presente.

Recebido em: 30/03/2006

Aprovado em: 22/05/2006

Tradução: Daniela Cerdeira

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    Sociólogo. Professor da Sorbonne – Paris V. Diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano (CEAQ). Edita a revista Sociétés. A maioria dos seus livros está publicada no Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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