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Entre cantos e poesias a voz de uma mulher indígena ecoa e resiste: entrevista com Márcia Kambeba

Between song and poetry the voice of an indigenous woman echoes and resists: interview with Márcia Kambeba

Resumo

Esta entrevista nasce a partir das discussões provocadas no decorrer da disciplina “Fundamentos em Leitura do Texto Literário: Poesia e Etnopoesia”, que discutiu a importância da literatura indígena por meio da poesia, em especial como instrumento de resistência e de preservação do pensamento do povo originário. A entrevista tem como objetivo conhecer um pouco mais da realidade da poeta e ativista indígena Márcia Kambeba, bem como suscitar debates a partir de seus textos e averiguar como eles refletem sua cultura, suas crenças e suas vivências. As perguntas foram elaboradas com base na vida da escritora e ativista, além de suas obras, que falam desse contexto indígena, dando destaque para a contribuição de suas obras no processo educacional de pessoas indígenas e não indígenas. A entrevista foi realizada de forma remota, em que foram realizadas perguntas abertas que geraram respostas que corroboram com as discussões acerca da exclusão, marginalização e resistência do povo indígena no contexto atual.

Palavras-chave:
etnopoesia; mulher indígena; literatura indígena

Abstract

This interview is born from the discussions arisen during the course: “Fundamentals in Reading the Literary Text: Poetry and Ethnopoetry”, which highlighted the importance of indigenous literature through poetry, especially as an instrument of resistance and preservation of thought of the native people. The interview aims to get to know a little more about the reality of the indigenous poet and activist Márcia Kambeba, as well as to provoke debates based on her texts and to find out how they reflect her culture, her beliefs and her experiences. The questions were prepared based on the life of the writer and activist, in addition to her works that speak of this indigenous context, highlighting the contribution of her works in the educational process of indigenous and non-indigenous people. The interview was carried out remotely, in which open questions were asked that generated answers that corroborate the discussions about the exclusion, marginalization and resistance of the indigenous people in the current context.

Keywords:
ethnopoetry; indigenous woman; indigenous literature

Resumen

Esta entrevista nace de las discusiones suscitadas durante el curso: “Fundamentos de la Lectura del Texto Literario: Poesía y Etnopoesía”, que discutió la importancia de la literatura indígena a través de la poesía, especialmente como instrumento de resistencia y preservación del pensamiento. de los nativos. La entrevista tiene como objetivo conocer un poco más sobre la realidad de la poeta y activista indígena Márcia Kambeba, así como provocar debates a partir de sus textos y averiguar cómo reflejan su cultura, sus creencias y sus vivencias. Las preguntas fueron elaboradas a partir de la vida de la escritora y activista, además de sus obras que hablan de este contexto indígena, destacando el aporte de sus obras en el proceso educativo de indígenas y no indígenas. La entrevista se realizó a distancia, en la que se realizaron preguntas abiertas que generaron respuestas que corroboran las discusiones sobre la exclusión, marginación y resistencia de los indígenas en el contexto actual.

Palabras llave:
etnopoesía; mujer indígena; literatura indígena

Não é de hoje que a resistência é um imperativo na vida das comunidades indígenas que sempre precisaram lutar pelo direito básico de existir, morar e viver. No Brasil, desde a colonização, os povos que aqui estavam buscam se manter presente com sua cultura e seus costumes. Resistir se torna, então, não uma opção, mas uma necessidade para manter seu povo vivo e sua história presente. Assim, a literatura indígena se torna uma forma de resistir, anunciar e denunciar. Dorrico et al. (2018DORRICO, Julie et al. Considerações iniciais. In: DORRICO, Julie et al. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi , 2018. p. 11-14., p. 13), nos apresenta a “situação de exclusão, de marginalização e de violência”, como principais elementos presentes nessa literatura que resiste. É importante saber que a literatura se constitui como uma ferramenta de luta a partir da realidade, pois como nos apresenta Perrone-Moisés (2016PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.), ela tem como função apresentar o real, mesmo que por meio de histórias que para muitos podem parecer irreais.

Apoiados em Denner, Dorrico e Denner (2018DORRICO, Julie et al. Considerações iniciais. In: DORRICO, Julie et al. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi , 2018. p. 11-14.), verificamos que por meio da literatura, o indígena assume a voz para denunciar e apresentar sua realidade para a sociedade. Realidade de um povo marginalizado e silenciado durante muito tempo. A voz-práxis rompe com o ideal hegemônico imposto pela sociedade, em que muitas vezes o povo não indígena fala pelo indígena, negando-lhe a liberdade de se expressar, expor sua realidade e sua vivência.

É interessante perceber neste permear de fala indígena, que nem toda literatura que fala dos indígenas é realmente feita por eles, o que muitas vezes acaba dificultando que as pessoas tenham conhecimento de sua identidade. Desta forma, Romero (2010ROMERO, Francisco Javier. La literatura indígena mexicana en búsqueda de uma identidad nacional. In: Congreso Internacional Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana Independencias: Memoria y Futuro, 38, 2010, Washington D.C. Anais [...]. Georgetown University, George Washington University, University of Maryland. Disponível em: Disponível em: http://studylib.es/doc/7067098/la-literatura-ind%C3%ADgena-mexicana-en-b%C3%BAsqueda-de-una-identidad . Acesso em: 14 dez. 2021.
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), nos apresenta três períodos que refletem essa diferença, sendo dois sem a participação do indígena na produção literária, que foi a literatura indianista e indigenista; o outro período é o da literatura indígena, em que a produção é fruto do próprio indígena baseado em sua história, sua cultura e suas lutas.

Como defende Schneider (2006SCHNEIDER, Liane. Mulheres e Resistência: poesia indígena em foco no Canadá e no Brasil. In: SHNEIDER, Liane; MACHADO, Charliton (org.). Mulheres no Brasil: Resistências, Lutas e Conquistas. João Pessoa: UFPB, 2006. p. 37-52., p. 38), é importante dar voz aos poetas indígenas, de forma particular “as mulheres dos tempos atuais que se definem como indígenas[...]”, pois elas apresentam uma poesia e, de forma geral, uma literatura baseada em suas experiências que “[...] dialoga com saberes e visões de mundo que se inspiram na tradição oral”. É por meio dessa voz indígena que as pessoas realmente podem ter um verdadeiro conhecimento de sua realidade, de suas lutas e seus sentimentos, sem nenhum tipo de silenciamento ou mesmo de distorção da sua realidade.

Dessa forma, nesta entrevista quem ocupa o espaço é uma mulher indígena, que tem sido uma voz ressonante e resistente na luta e na perpetuação da cultura indígena. Por meio das palavras da entrevistada é possível não apenas conhecer um pouco mais de sua cultura, seus costumes e suas lutas, mas também seu engajamento por uma educação indígena que alcance diversos povos e assim possa despertar a população não indígena para a importância histórica dos povos originários.

Márcia Wayna Kambeba, nome artístico de Márcia Vieira da Silva, uma ativista indígena, artista, escritora, poeta, compositora, apresentadora, atriz e palestrante dedicada à causa dos povos originários, levando, especialmente pela poesia, um pouco da cultura de seu povo em busca de respeito e reconhecimento. Nasceu em Belém dos Solimões (AM), em uma aldeia Tikuna (1979), e pertence à etnia Omágua/Kambeba. Mudou-se aos oito anos com sua avó, que era professora, para São Paulo de Olivença. Nesta cidade estudou até concluir o Ensino Médio. Começou a escrever poesia aos 14 anos, mas desde criança já recitava para os turistas os poemas feitos pela avó.

Márcia Kambeba é graduada em licenciatura plena em geografia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), especialista em Educação Ambiental para o Desenvolvimento Sustentável pela Faculdade Salesiana Dom Bosco, mestre em geografia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e atualmente doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

A ativista e poeta contribui muito com a valorização e manutenção da cultura indígena, especialmente do seu povo, por meio de palestras em várias instituições e pelas suas publicações, que envolvem canto, poesia e fotografia. Sua presença nas redes sociais é constante, o que permite que sua voz seja mais ressonante. Exemplo disso é seu programa no canal do YouTube chamado “Amazoniando”, que aborda temas relevantes no contexto indígena, permitindo que várias pessoas conheçam um pouco mais da cultura e lutas dos povos originários. O Instagram também tem sido uma ótima ferramenta de comunicação, principalmente com os jovens, em que Márcia interage com a população.

No ano de 2020 Márcia Kambeba se candidatou pela primeira vez ao cargo público de vereadora de Belém (PA), somando mais uma experiência de luta pelo povo em sua trajetória. Atualmente, a ativista e poeta ocupa o cargo de gestora da Ouvidoria Geral de Belém, sendo a primeira mulher indígena a ocupar uma posição de primeiro escalão na prefeitura da capital paraense.

Suas produções autorais evocam um pensar-crítico-reflexivo imbuídos em uma luta descolonizadora e engajada a favor do seu povo, mostrando a realidade indígena, suas lutas, suas culturas e místicas. A escritora e poeta tem em seu percurso diversos materiais publicados e registrados, alguns de sua autoria e outros em parceria com outros autores. Destacamos aqui seus livros, que retratam por meio de poemas, contos e ensaios essa realidade indígena vivenciada pela autora. O primeiro livro foi o Ay Kakyri Tama: eu moro na cidade, lançado em 2013 e com segunda edição em 2018; também no ano de 2018 a autora lançou o livro Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção; no ano de 2020DANNER, Leno Francisco; DORRICO, Julie; DANNER, Fernando. Literatura indígena como descatequização da mente, crítica da cultura e reorientação do olhar: sobre a voz-práxis estético-política das minorias. In: DORRICO, Julie et al. (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 315-358. foi lançado o Saberes da floresta; em 2021 foram lançadas duas publicações: Kumiça Jenó: narrativas poéticas dos saberes da floresta e O lugar do saber ancestral.

Márcia Kambeba também contribui com as discussões que atravessam a educação indígena, defendendo a importância do território para a subsistência da cultura de um povo, pois carrega toda a forma de educação que perpassa pelo sagrado e pelas relações sociais que acontecem na aldeia. Para a autora, tudo isso se apresenta de forma mágica e poética, tudo isso é sabedoria.

Pereira Junior, Edileuza Araújo & Eliane Testa: Márcia Kambeba, você poderia nos contar um pouco da sua infância? Quando e onde nasceu? Há algum fato que tenha marcado sua infância?

Márcia Kambeba: Eu nasci em Belém do Solimões, aldeia do povo Tikuna em 1979, ano em que se vivia ainda a Ditadura. Um fato que marcou minha infância foi a solidariedade que existia na aldeia. Lembro de, ainda menina, andando pela aldeia, me darem um peixe e eu arrastei aquele peixe enorme pela rua até nossa casa, chegou cheio de terra, mas chegou. Minha avó Assunta pegou o peixe e lavou. Ele foi nosso jantar. Lembro de muita coisa boa, das aulas da minha avó, de como ela recebia os turistas e eu era quem recitava as poesias que ela fazia, e também cantava as músicas compostas por ela ainda com meus sete anos. Mas lembro de receber saberes de meu pai sobre o rio, do alto de um barranco cedo do dia.

PJ, EA & ET: Márcia, sabemos que você é geógrafa de formação universitária, ativista, pesquisadora, compositora, autora de livros e textos que estão contribuindo com a literatura indígena contemporânea brasileira. Você poderia nos contar como foi seu primeiro contato com a poesia?

Márcia: Meu primeiro contato com a poesia foi ainda na aldeia com minha avó Assunta, que foi quem me criou desde que nasci. Ela fazia poesias e músicas e eu as recitava e cantava para os turistas que iam visitar a aldeia. Então, ela foi a primeira poeta que conheci, e também quem me apresentou a poesia. Depois fui para a cidade de São Paulo de Olivença, e lá a escola que estudei fortaleceu em nós o amor pela poesia e as linguagens da arte, unindo à educação, de forma que tive uma diretora poeta chamada tia Sueli Maria Tiurinho de Souza, que cantava e tocava violão de sala em sala. Isso foi fundamental na minha fase de aluna. A poesia foi se fortalecendo em mim; com 14 anos comecei a escrever meus primeiros poemas motivada por minha avó que ouvia todos eles.

PJ, EA & ET: Márcia, no seu livro O lugar do saber, verificamos que além de perspectivar uma relação com a natureza e com o místico, você também articula um pensamento de denúncia, reafirmando o seu engajamento nas causas indígenas. Você poderia comentar um pouco deste seu engajamento?

Márcia: Eu digo que comecei meu ativismo na causa indígena do momento em que nasci. Resistir a doenças trazidas pelo contato não foi fácil. Dizia a minha avó que peguei pneumonia muito forte com meses de vida que quase morro, mas fui curada com ervas da mata por mulheres Tikunas, mas ela teve que sair da aldeia comigo para que pudesse me tratar com remédio da farmácia. Cresci vendo minha avó na aldeia fazendo lutas e ela não me deixava esquecer que esse seria meu legado e que um dia, me dizia ela, deveria voltar a aldeia que nasci para ajudar aos que lá iam continuar vivendo. Que eu não esquecesse de onde vim e nem o bem que os Tikunas me fizeram. Ela dizia ainda que eu ia estudar e que meu estudo teria que ser uma forma de atuação na luta pelo bem comum de muitos povos. Acredito que ela, como pajé que era, sabia o rumo que eu ia percorrer e espero que de onde ela estiver esteja feliz com minha atuação. Com 15 anos eu já tinha espaço de voz nas reuniões dos caciques e lideranças indígenas. E ela me mandava estar em todas as reuniões e me dizia: “dê sua opinião sempre”. Daí para frente foi muita luta, e agradeço a soma que estamos construindo de povos resistentes.

PJ, EA & ET: No Brasil, como um violento e triste fato do processo histórico, por muito tempo as(os) indígenas foram silenciadas(os). Você poderia nos contar sobre os desafios de ser uma poetisa indígena no cenário literário brasileiro?

Márcia: Os desafios são muitos, primeiro encontrar editoras que queiram apostar nessa linha de escrita. Muitos me falavam para escolher outra forma de escrita porque poesia não dava venda e não tinha muita aceitação de público, mas o que me importa não é ter recorde em vendas, mas sim promover ou instigar reflexões, e o estilo que escolhi foi poesia, mas também escrevo texto em prosa, contos, textos acadêmicos e jornalísticos. Eu insisti na minha escrita poética, acreditei nela e segui em frente. Hoje tenho livro lançado por editora nos EUA, que é o Kumiça Jenó só de contos. Mas ainda enfrentamos desafios como ter nossa literatura indígena adentrando as salas de aula e universidades de forma convidar para um pensar crítico.

PJ, EA & ET: A cultura indígena apresenta vários saberes diferentes da não indígena, a exemplo do uso de plantas medicinais, dos mitos e da cosmologia etc. Para você, essa literatura, em especial a poesia, pode contribuir para a manutenção dos saberes, para valorização e/ ou a revitalização da cultura?

Márcia: Claro que sim, tudo que escrevo tem memória, história, sagrado porque não faço algo sozinha, tenho inspiração que vem da minha conexão com meu mundo espiritual e ancestral. Tudo que escrevo volta para a aldeia e as crianças usam em sala de aula e não só do meu povo, mas de vários povos. Quando falo da Matinta não estou me referindo a um mito, pois cresci na aldeia ouvindo a Matinta assobiar sempre à meia noite e já sabíamos que era hora de dormir. Meu avô nos dizia, ao contar suas narrativas, que era neto de boto e que nós éramos descendentes dos habitantes do fundo das águas. Minha avó Assunta quase foi levada por botos enquanto tomava banho no rio, grávida da minha mãe, enfim, muitos fatos que não posso chamar de MITO porque acredito neles e permeiam meu ser como pessoa. Em 2016, enquanto gravava meu clip musical, pois sou compositora e canto o que componho, um boto branco deu um salto próximo à minha canoa onde eu cantava remando, e um senhor da comunidade quilombola disse: “ele veio pelo seu canto”. Então lembrei de meu avô falando que somos bisnetos de boto e, portanto, filhos das águas. Tudo isso meus poemas falam e isso fortalece nas crianças indígenas sua territorialidade.

PJ, EA & ET: Em seu livro Ay kakyry Tama: eu moro na cidade (2018), você fala das lutas dos povos indígenas, da ancestralidade, das ascendências dos povos originários. Qual é a importância de tratar destes temas para a sociedade não indígena?

Márcia: Acredito que a importância, se dado o devido olhar e atenção, é grande porque buscamos criar com a cidade uma ponte que interliga saberes por meio do diálogo com respeito. Buscamos mostrar que quem vive na cidade não perdeu seu legado, memória, história por sair de sua aldeia e também começar uma vida em centros urbanos. Ao contrário, territorializamos os espaços por onde andamos com nossos corpos, formas de pensar e sentir tudo à nossa volta. Partilhamos nossos saberes esperando que se crie um elo de fortalecimento entre povos. Aprendemos a andar no mundo do não indígena, mas esse, por conseguinte, não aprendeu a andar no mundo das aldeias, dos indígenas. É preciso entender que nada é meu, tudo é nosso, no sentido de partilha, de bem-viver e criar identidade, pertença com nosso lugar. E fazer dele nosso lugar do saber.

PJ, EA & ET: Márcia, com quatro livros literários publicados e outras produções intelectuais, você alcança uma projeção (inter)nacional importante, inclusive sendo citada como inspiração por diversos leitores, de forma particular nas redes socias, onde você é muito presente. Desta forma, você consegue mensurar o impacto da sua obra?

Márcia: Já são quatro livros lançados, sendo três no Brasil e um no exterior, EUA. A venda em todos os países é por plataformas como Estante Virtual, Submarino e Amazon. Esse ano de 2022 lançaremos o quinto, que se chama O povo Kambeba e a gota d’água, que conta como nasceu meu povo e vem todo ilustrado para um público infanto-juvenil pela editora Edebê. Essa é uma pergunta que não tenho uma resposta formada porque como escritora, eu sei o que me apresentam de informações, mas não é tudo. Então sei que tem três dissertações com o Ay kakyri Tama, e ele já foi usado em duas teses de doutorado, mas deve ter mais ações com ele e os outros. Sei que ele está sendo usado em universidades como Geórgia, Sorbone, uma no México, em Londres, onde tive a grata alegria de ir pessoalmente, mas deve ter mais espaços que meus trabalhos adentram. Isso me agrada muito porque a missão de cada livro que escrevo é romper barreiras e ir a lugares que ainda não pisei como pessoa física, mas quero que ele chegue e faça diferença no saber que quem o tiver.

PJ, EA & ET: Márcia, na sua obra Saberes da floresta (2020), além dos textos que evocam a riqueza e sabedoria da floresta, encontramos, também, a presença de grafismos. Você poderia nos dizer um pouco como você vê essa relação entre palavra e imagem (grafismos)?

Márcia: Nesse livro é importante dizer que as fotos, bem como os desenhos de grafismos nele contido, são todos feitos por mim, alguns grafismos fiz com base nos achados de cerâmica que encontrei nos sítios arqueológicos. As fotos, como fotógrafa, tenho registrado na aldeia de meu povo e em outras aldeias que me permitem registrar. Digo isso porque a editora deu os créditos para a pessoa que fez a arte gráfica e eu pedi que eles arrumassem isso se for ser feito a 2ª edição dele. Sobre os grafismos, é importante falar desse assunto, muitos acham que se trata de tatuagem e não é isso. Grafismos são signos de comunicação estabelecidos entre povos e representam um momento ritualístico do povo, além de fortalecer a conexão entre o mundo físico e espiritual, por isso, usamos em nossa pele como forma de mostrar o que estamos sentindo e vivendo no momento e nossa relação com a natureza. Gosto dessa relação da imagem com a escrita, uma não anula a outra e sim se completam. Os desenhos, fotografias, são formas de linguagem, comunicação, e precisam ser lidos como um texto escrito, as frases são desenhos do pensamento. Aprendemos com os não indígenas a desenhar a palavra e hoje a literatura fortalece nossos saberes e registra a memória dos anciões.

PJ, EA & ET: O livro Saberes da floresta (2020), além de poemas, conta com ensaios, imagens e outros saberes que dizem da rotina da floresta. Você poderia contar como pensou essas relações na obra?

Márcia: Gosto dessa diversidade de escrita, a ideia era criar um material que pudesse contribuir com os educadores da aldeia e da cidade. Então, muita coisa que não se pode dizer em rimas, uso do texto em prosa para apresentar aos leitores. E sempre, se formos ver desde meu primeiro livro, trago essa combinação entre poesia e imagem como forma de dialogar com o leitor(a). Tem um mestrado em que a pessoa está analisando as imagens contidas nos livros que escrevi. Cada bloco de poemas traz um texto dialogando com as poesias, isso no Saberes da floresta.

PJ, EA & ET: Márcia, como você vê a presença da literatura indígena na escola?

Márcia: Penso que a literatura na sala de aula é fundamental. Convidar o aluno para refletir um livro, seja poesia, romance ou outro estilo saindo do livro didático, é importante para que amplie a visão de mundo dos alunos. Como aluna, a professora recitava poemas e nos motivava a escrever também poesias. Pensar a relação com a natureza por meio de um texto que pode ser conto, poesia etc, é maravilhoso e dá para o professor explorar bastante a criatividade de suas crianças ou jovens. É preciso que o educador seja ousado, criativo, tenha amor no que faz e saiba que estamos contribuindo, porque sou educadora também, para um mundo mais humano.

PJ, EA & ET: Márcia, a literatura indígena é composta de narrativas míticas, em que figuras não humanas convivem na sociedade não indígena sempre trazendo um ensinamento. Assim, você poderia nos dizer o que motivou a escolha da temática do livro Kumiça Jenó (2021), composto por 25 poemas e trata de figuras presentes em diferentes culturas nativas?

Márcia: Como falei anteriormente, para nós, povos indígenas, esses seres como curupira, matinta, boto entre outros, de fato estão para nos ajudar a cuidar da natureza. Em minha dissertação de mestrado colhi algumas narrativas de curupira de uma mesma anciã Kambeba. E numa das narrativas ela conta que o curupira vem informar a pajé sobre o que está por vir na aldeia, de bom e ruim, para tomarem providências. Sobre a Matinta, uma mulher que faz curas físicas nas pessoas, mas também espanta quem vem violentar a natureza, e assim esses seres buscam solucionar as causas que o homem humano racional faz de ruim ao ambiente. O que me motivou nessa escolha do tema Kumiça Jenó foi buscar dialogar com o leitor por meio de contos em que esses seres fossem os protagonistas da narrativa, claro que são textos autorais, uns vão chamar de ficção, eu quero de verdade proporcionar reflexão.

PJ, EA & ET: Márcia, você é a primeira mulher indígena a ocupar um cargo relevante na prefeitura de Belém (PA). Este fato contribui no seu ativismo pelos povos indígenas?

Márcia: Contribuiu e ainda contribui muito, o prefeito Edmilson Rodrigues já me conhecia de atuações nos movimentos indígenas. Estive palestrando na Câmara dos Deputados em Brasília quando ele era Deputada Federal e ele foi até nós, indígenas, deu sua fala a nosso favor e sempre esteve apoiando nossa luta. Quando ganhou para prefeito ele me convidou para esse cargo no qual estou aprendendo muito e fazendo o meu melhor para honrar essa confiança dele em mim. E o ativismo só aumenta, pois precisamos resistir em todos os espaços. E atuante nas ações sempre, seja pela escrita, seja presencialmente.

PJ, EA & ET: Márcia, você poderia nos contar o que te inspira a criar/escrever. O que significa a poesia indígena para você?

Márcia: O que me inspira é a luta, o movimento, as formas duras das pessoas se referirem a nossa essência de ser, ao nosso território tão violentado, enfim, tudo me inspira poesia. Um menino ao pular no rio, uma remada de uma criança, um fruto que estala na água ao cair da árvore, um ancião que se senta para contar narrativas, um grafismo feito na pele, tudo é poesia porque a poesia está em tudo que se vê e sente. E a poesia indígena é a soma de todas as formas de olhar, ver e sentir o lugar, o sagrado, a memória, e contribuir com as novas gerações para continuidade da nossa história.

PJ, EA & ET: Márcia, sabemos que ainda falta investimento para haver um amplo acesso às obras indígenas nas escolas. Assim, o que você diria aos professores diante dos desafios do ensino da literatura indígena?

Márcia: Diria e digo que levem livros de autores indígenas para sua sala de aula, sejam ousados, atrevidos e desbravadores de outros saberes que a escola muitas vezes torna invisível aos olhos dos alunos e alunas, como por exemplo saberes indígenas.

PJ, EA & ET: E, para finalizarmos esta entrevista, você poderia nos contar se há algum novo projeto e/ou livro em andamento?

Márcia: Como já falei, um livro saindo esse ano de 2022 já finalizado e pronto a ser lançado: O povo Kambeba e a gota d’água.

Referências

  • DANNER, Leno Francisco; DORRICO, Julie; DANNER, Fernando. Literatura indígena como descatequização da mente, crítica da cultura e reorientação do olhar: sobre a voz-práxis estético-política das minorias. In: DORRICO, Julie et al (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 315-358.
  • DORRICO, Julie et al Considerações iniciais. In: DORRICO, Julie et al (org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção Porto Alegre: Editora Fi , 2018. p. 11-14.
  • PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • ROMERO, Francisco Javier. La literatura indígena mexicana en búsqueda de uma identidad nacional. In: Congreso Internacional Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana Independencias: Memoria y Futuro, 38, 2010, Washington D.C. Anais [...]. Georgetown University, George Washington University, University of Maryland. Disponível em: Disponível em: http://studylib.es/doc/7067098/la-literatura-ind%C3%ADgena-mexicana-en-b%C3%BAsqueda-de-una-identidad Acesso em: 14 dez. 2021.
    » http://studylib.es/doc/7067098/la-literatura-ind%C3%ADgena-mexicana-en-b%C3%BAsqueda-de-una-identidad
  • SCHNEIDER, Liane. Mulheres e Resistência: poesia indígena em foco no Canadá e no Brasil. In: SHNEIDER, Liane; MACHADO, Charliton (org.). Mulheres no Brasil: Resistências, Lutas e Conquistas. João Pessoa: UFPB, 2006. p. 37-52.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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