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La Quintrala: uma perspectiva de leitura do colonial

La Quintrala: a reading perspective of the colonial

Resumo

Nesse trabalho analisamos a figura histórica do período colonial Catalina de los Rios y Lisperguer, La Quintrala, a partir do ensaio histórico Los Lisperguer y La Quintrala, escrito no séc. XIX por Benjamín Vicuña Mackenna com o objetivo de examinar as formas de leitura do período colonial que se traduzem nos escritos desse intelectual chileno. A título de ilustração estabelecemos, ao final, uma breve comparação entre o paradigma, criado por Mackenna, para La Quintrala e duas outras leituras dessa personagem escritas no séc. XX. Observa-se nesse processo detalhes da reelaboração da história colonial que colocam em perspectiva as possibilidades dos estudos/leituras coloniais.

Palavras-chave:
estudos coloniais; La Quintrala; Benjamin Vicuña Mackenna; literatura chilena

Resumen

En este trabajo analizamos la figura histórica del período colonial Catalina de los Ríos y Lisperguer, La Quintrala, tomando como base el ensayo histórico Los Lisperguer y La Quintrala, escrito en el siglo XIX por Benjamín Vicuña Mackenna con el objetivo de examinar las formas de lectura del período colonial que se traducen en los escritos de este intelectual chileno. A modo de ilustración, finalmente hacemos una breve comparación entre el paradigma de Mackenna para La Quintrala y otras dos lecturas de este personaje escritas en el siglo XX. En este proceso observamos detalles de la reelaboración de la historia colonial que ponen en perspectiva las posibilidades de los estudios / lecturas coloniales.

Palabras-clave:
estudios coloniales; La Quintrala; Benjamin Vicuña Mackenna; literatura chilena

Abstract

In this work we analyze the historical figure of the colonial period Catalina de los Rios y Lisperguer, La Quintrala -as portrayed in the historical essay Los Lisperguer y La Quintrala, written in the 19th century by Benjamín Vicuña Mackenna- in order to examine the forms of reading the colonial period that are reflected in the writings of this Chilean intellectual. By way of illustration, we draw a brief comparison between Mackenna's paradigm for La Quintrala and two other readings of this character written in the 20th century. In this process we observe details of the reworking of colonial history that put into perspective new possibilities of colonial studies / readings.

Keywords:
colonial studies; La Quintrala; Benjamin Vicuña Mackenna; Chilean Literature

O campo dos estudos coloniais americanos constitui um espaço curioso cujo objeto parece extremamente delimitado e que, no entanto, extrapola constantemente o que seria seu núcleo. Se por um lado o colonial referir-se-ia, ao período específico em que o continente americano figurava como colônia; por outro, os estudos concretos ultrapassam esse período tanto voltando ao passado anterior à configuração das colônias como ao tempo posterior as independências. Nesse sentido, tais estudos dispõem o colonial como certo marco fundacional, não tanto no sentido de haver fundado o espaço geográfico, mas indicando a fundação de uma unidade discursiva que se refere a esse espaço geográfico, o que se articula um tanto com o argumento do já clássico estudo de O’Gorman, La invención de AméricaO’GORMAN, Edmundo. A Invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido de seu devir. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. . Seguindo essa trilha de estudo marco, que extrapola seu tempo porque atribuí (muitas vezes impõe) novos sentidos ao passado e opera, na projeção do futuro, como um referente ao qual sempre se retorna, em geral para fazê-lo significar de formas distintas, podemos identificar uma série de objetos/textos que permitem uma leitura transversal e significativa dos estudos coloniais.

A leitura transversal se apresenta como eixo constante na América Latina, mas, em épocas específicas, configura-se como uma questão central. Esse seria o caso do século XIX; considerando a transição do período colonial para a conformação de nações independentes, o movimento entre o passado colonial (ou anterior), revisão desse passado pelo presente e a projeção de elementos para o futuro irão manifestar-se como foco das produções intelectuais da época. Assim, nesse momento, os estudos do passado colonial revelam muito das configurações e desejos do séc. XIX; o que talvez não seja tão evidente é que essas visões decimonônicas se infiltram, muitas vezes, nas formas como consensualmente passamos a (re)ver o período colonial. Betancourt Mendieta afirma que “los escritos históricos participaron de la creación de una conciencia histórica nacional que en la segunda mitad del siglo XIX actuó como un catalizador de la política y las relaciones sociales” (2003BETANCOURT MENDIETA, Alexander. La nacionalización del pasado. Los orígenes de las “historias patrias” en América Latina. In: SCHMIDT-WELLE, Friedhelm (ed.). Ficciones y silencios fundacionales: literaturas y culturas poscoloniales en América Latina (siglo XIX). Madrid: Iberoamericana, 2003., p. 87).

O ensaio histórico-social de Bejamín Vicuña Mackenna, Los Lisperguer y La Quintrala, publicado em 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , assemelha-se a vários escritos históricos do seu século ao revisitar uma suposta lenda do passado colonial sob o impulso de seu esclarecimento histórico. No entanto, o autor extrapola esse fator já que dá conta e ao mesmo tempo funda a lenda sobre La Quintrala. Dá conta, pois, como historiador, Mackenna se propõe a investigar a origem da história que já transcorria pela tradição oral popular de Santiago. De igual modo, funda essa lenda por ser esse o primeiro registro escrito da história, narrando a trajetória da Quintrala com riquezas de detalhes e escrevendo-a definitivamente no campo do demoníaco, porém esse demoníaco reinscreve-se no seu discurso com um novo matiz - o do mal associado ao passado de colônia. O intelectual chileno, em seu texto, aparentemente só repete a lenda, no entanto, essa repetição agrega um novo sentido ao associar o aspecto maligno da personagem histórica a distorções do período colonial.

Para fundamentar seu estudo, o autor lança mão de documentos históricos que comprovam os fatos apresentados, atribuindo, assim, veracidade ao narrado e transformando a história de Catalina de los Ríos, La Quintrala, num compilado de crimes. Sua imagem passa a ser, então, a de uma mulher transgressora, que terminou suspensa nas portas do inferno pelos cabelos (final contado na lenda). A imparcialidade e a fidelidade aos fatos que ele garante aos seus leitores devem-se, sobretudo, ao uso das fontes primárias. Após explicar o seu fazer histórico, ainda nas justificativas para sua pesquisa, Vicuña elenca o inventário dos documentos utilizados, a fim de não apenas autorizar, mas de fundamentar seu discurso. Os arquivos mencionados são:

  1. El archivo jeneral onde estava o testamento de Catalina;

  2. El archivo de la cúria eclesiástica, onde foram encontrados seis testamentos da família Lisperguer;

  3. La historia de Chile (inédita) por el padre Diego de Rosales;

  4. La breve noticia de la vida i virtudes de la señora doña Catalina Amanza i Lisperguer;

  5. Papeles de la familia Cerda;

  6. Papeles de la familia Hurtado de Mendonza;

  7. Papeles de la familia Cortés i Azúa; Papeles diversos, en posesion del señor don Francisco de Paula Figueroa;

  8. Papeles inéditos del Obispo Salcedo;

  9. Correspondencia inédita del gobernador de Chile Alonso de Ribera con el rei de España;

  10. Colecciones varias de documentos inéditos que existen en nuestro poder.

Ao apresentar essa lista o autor ratifica a credibilidade de seu relato situando como base as fontes primárias, na maior parte das vezes oficiais (registros de cartórios), claramente delimitadas para que o leitor possa saber a origem/procedência dos arquivos utilizados e “verificar” caso deseje comprovar a autenticidade. A verificação, claro, não era uma possibilidade aberta e raramente um cidadão comum conseguiria acesso para confirmar esses dados, porém o listado de documentos com as indicações precisas de onde se encontram confere ao material um peso discursivo que atribui veracidade necessária. Sobre esse método historiográfico, Bello já havia orientado em “Modos de escribir la historia”, assim como outros historiadores do séc. XIX que tentavam estabelecer as bases para um modo não só uniforme, mas também mais acertado de tratar e apresentar os dados históricos.

O debate sobre a importância, ou primazia, das fontes primárias sobre as secundárias foi um elemento crucial nas disputas entre intelectuais do período. A polêmica em torno das formas de escrever a história entre Bello e José Victorino Lastarria esteve, de muitas formas, ancorada nessa questão. “A força dos documentos originais produzidos por autores que viveram os tempos passados também é um dos pontos defendidos por Bello, pois parecem ser esses documentos as formas, evidências, capazes de captar cada povo em suas especificidades locais e temporais.” (ANDRADE, 2018ANADRADE, Brenda Carlos de. Traçado de uma história: ficção e realidade nas narrativas hispano-americanas do século XIX. Recife: Ed. UFPE, 2018. , p. 81). Indicar no início do texto os documentos oficiais teria como objetivo atribuir ao leitor a independência de interpretação e de julgamento sobre os fatos relatados.

Ao “fundar” esses passados, os intelectuais estariam instituindo, também, desde a sua leitura do tema e o seu contexto cultural, um discurso próprio, podendo ele conservar e (re)produzir novos discursos. Certamente, essas reconstruções estariam ligadas à argumentação empregada nesses escritos. Uma vez que a leitura do passado (e, consequentemente, sua construção também) depende de uma conjuntura atual, a organização narrativa dele estaria impregnada de valores também atuais. Logo, ao escrever criticamente sobre a Quintrala, aos moldes dos historiadores do século XIX, Mackenna estaria também imprimindo seus valores pessoais, ainda que pretendesse imparcialidade. Para esses novos intelectuais, o historiador necessitaria ter um conhecimento amplo para analisar o objeto histórico eleito:

Por eso tan difícil va haciéndose ya el papel del historiador, que necesita en nuestra época, más que en ninguna otra, extensos y variados conocimientos en todas las ciencias, pues todas ellas llegan a enlazarse para mostrar los diferentes factores que han producido el nacimiento, el desarrollo, las desgracias, las glorias y la desaparición de las razas, de los pueblos y de las nacionalidades; y en vano pretenderá llamarse historia la narración de los acontecimientos de un pueblo, si no va acompañada del concienzudo estudio de las evoluciones antropológicas, morales, religiosas y políticas de ese pueblo, ni fruto alguno sacará de ella la ciencia por más que la engalane la gallardía del bien decir, la belleza de las figuras retóricas, la exactitud de las fechas y el interés de los acontecimientos que se relatan. (PALACIO, 2004PALACIO, Vicente Riva. Hernán Cortés: ensayo histórico y filosófico. [S.I.]: Antorcha, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/hernan/hernan.html >. Acesso em: 10 fev. 2013.
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)

Além de criticar o método histórico anterior, que dava mais importância à eloquência da retórica que aos fatos narrados, em “Hernán Cortés. Ensayo histórico y filosófico”, Vicente Riva Palacio, intelectual mexicano do século XIX, chama atenção para a necessidade de preparação dos autores e para a sensibilidade necessária no entendimento das circunstâncias temporais que influenciam a construção histórica, sem perder, entretanto, a objetividade de tal empreendimento:

Narrar los sucesos, colocarlos escrupulosamente por su orden cronológico, pintar con mano maestra las costumbres, describir con brillante colorido batallas, intrigas, fiestas, epidemias, llevar la exactitud hasta consignar los nombres de los fundadores de instituciones de beneficencia, de constructores de grandes edificios, de poseedores de las mayores riquezas, todo esto es laudablemente laborioso en un historiador (PALACIO, 2004PALACIO, Vicente Riva. Hernán Cortés: ensayo histórico y filosófico. [S.I.]: Antorcha, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/hernan/hernan.html >. Acesso em: 10 fev. 2013.
http://www.antorcha.net/biblioteca_virtu...
, s/p)

Assim como Riva Palacio, Andres Bello defendeu também essa nova postura. No já citado “Modos de escribir la historia”, fala da necessidade daquele século em explicar os fatos da história, da importância em utilizar as fontes primárias e de como o trabalho historiográfico deveria ser calcado nessa estratégia. Comenta, ainda, sobre a conservação (ou aproximação) da linguagem original desses documentos e de como elegia a narração para relatar suas histórias. Segundo Bello, essa escolha servia para que não houvesse um choque, na leitura, em relação aos fatos antigos e os comentários modernos. Defendia também a análise criteriosa dos acontecimentos para que não houvesse distorção e para que os leitores pudessem ter independência quanto à interpretação e o julgamento: “Cito siempre sus autoridades para poner al lector imparcial en estado de verificar mi trabajo, y de formar su juicio con los mismos datos que me han servido para el mío” (BELLO, 2003BELLO, Andrés. Modos de escribir la historia. 2003. In: Biblioteca Virtual Universal. Disponível em: <Disponível em: http://www.biblioteca.org.ar/libros/1906.pdf >. Acesso: 14 fev. 2012.
http://www.biblioteca.org.ar/libros/1906...
, p.4).

Com esse trabalho, que compõe um grupo de escritos elaborados em meio a sua disputa com Lastarria, Bello acaba por instituir um tratado de elaboração do fazer histórico. A partir dele, fica clara a estruturação similar de outras narrativas historiográficas e o eco delas na sociedade. Aliado a isso, a seleção prévia do objeto histórico fala muito sobre seu pesquisador, pois, todos os fatos representam, em circunstâncias próprias, ideais específicos.

A polêmica protagonizada por Bello e Lastarria, assim como a protagonizada por José Antonio de Plaza e José Manuel Groot na Colômbia, refletem as tensões nas formas de traduzir o passado colonial para a história que se formava. Em geral, os que repudiavam o período colonial abdicavam do uso extensivo de fontes primárias e tinham uma visão profundamente negativa desse colonial. O movimento de Vicuña Mackenna é interessante porque constantemente se refere e referenda seu relato pelas fontes primárias, mas sutilmente incute no discurso uma desvalorização das práticas coloniais, que seriam responsáveis por criar e nutrir um (mau) exemplo de mulher como a Quintrala.

É desse modo que pode ser vista a atuação de Benjamín Vicuña Mackenna no ensaio histórico que analisamos. Nascido em Santiago do Chile, em 25 de agosto de 1831, defendeu desde os dezoito anos suas convicções democráticas nas lutas armadas e nos movimentos revolucionários, exilou-se nos Estados Unidos e na Inglaterra. Foi na estada na Europa, inclusive, que conseguiu uma quantidade considerável de documentos sobre o Chile, que depois lhe serviram como base para seus estudos. Denominado ainda Intendente de Santiago, assumiu com êxito e deixou em cinquenta e cinco anos de vida uma vasta produção literária e historiográfica, dentre as quais estão: La independencia en el Perú (1860), La guerra a muerte: memoria sobre las últimas campañas de la independencia en Chile 1819-1824 (1868), Historia crítica de la ciudad de Santiago (1541-1868) (1869), Historia de Valparaíso: crónica política, comercial y pintoresca de su ciudad y de su puerto desde su descubrimiento hasta nuestros días, 1536-1868 (1869), Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos) (1877).

Como um retrato dos intelectuais da época, utilizava da narrativa histórica para revisitar o passado colonial forjando um eixo coerente que mostrasse a evolução desse passado que, revisto e ancorado em projetos de modernidade contemporâneos ao autor, ajudassem na projeção em direção a um futuro. Em Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos), a intenção dessas forças também é evidenciada. Esse relato histórico-social, segundo seu autor, nasce da necessidade de conhecer as verdades sobre a lenda de La Quintrala, uma dama da alta aristocracia de Santiago, pertencente a uma das famílias mais tradicionais do século XVII, Los Lisperguer, cuja história circulava pelos territórios chilenos. A ela, são atribuídas várias contravenções, algumas assombrosas para os costumes da época, e, por isso, permaneceu no imaginário popular mesmo após duzentos anos. Como sua história era notadamente de tradição oral e não existiam, até então, registros escritos sobre essa personagem, questionava-se a veracidade de sua existência. Movido pelo impulso dessa curiosidade, Mackenna se propõe a pesquisar sobre a lenda dessa mulher, lançando, em janeiro de 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , a primeira edição do ensaio. A segunda edição sai um mês após, já que novos arquivos são rapidamente localizados permitindo reconstruir também a juventude da Quintrala.

Numa vocação bastante ao gosto das escritas da história que se desenvolve durante o séc. XIX hispano-americano, Mackenna reconstrói toda a realidade social da família, desde as suas origens germânicas, ibéricas e indígenas até o último dos Lisperguer. Ou seja, essa investigação não trataria apenas de um episódio isolado, mas um recorte biográfico de uma das famílias mais prestigiadas da era colonial na região do Chile, Los Lisperguer, principalmente, sobre a filosofia histórica e social marcada pelos cruzamentos sanguíneos e influência política. O estudo, na verdade, projeta para além do seu próprio objeto específico já que, ao tentar entender o fenômeno Catalina/Quintrala, ele busca fundamentar-se nos contextos familiar e social, o que permite que uma leitura da sociedade chilena durante o período colonial na trilha da família Lisperguer. Vicuña Mackenna, inclusive, defende que seu estudo poderia servir como referência para o aprendizado de outros historiadores e para a reflexão de filósofos sociais, justamente por tratar-se de um retrato fiel da realidade.

Conta-se que Catalina de Los Ríos y Lisperguer, La Quintrala, haveria cometido seis grandes crimes. O primeiro teria sido o envenenamento do próprio pai, que estava doente e aos seus cuidados; o segundo, o assassinato do cavalheiro de Malta, após convidá-lo para uma visita à sua alcova, culpando ainda um escravo pelo crime, que acaba condenado e enforcado em praça pública; o terceiro diz respeito aos açoites que ela praticava nos escravos e índios com as próprias mãos; o quarto crime teria sido a tentativa de assassinato de um padre que havia sido convocado para exorcizá-la; o quinto, que teria acontecido quando já estava casada, foi a ordem para matar outro eclesiástico pelo mesmo motivo do anterior, sua catequização; o sexto e último crime teria sido a expulsão da imagem do Cristo da Agonía de sua casa, sob a escusa de que não lhe agradava que lhe olhassem em sinal de reprovação. Cometeu ainda outros assassinatos, de escravos principalmente, que, no entanto, não tiveram tanta repercussão. Apesar de o historiador afirmar que os crimes cometidos pela Quintrala são horripilantes e demoníacos, percebe-se, nesse mapeamento, que seus atos não diferem tanto de um criollo padrão que administrava bens e propriedades no período colonial em qualquer parte das colônias.

Algo a ser sinalizado é o gênero marcado nessa frase anterior, Catalina de Lisperguer não cometeu nenhum crime que não houvesse sido cometido por um criollo, por um homem. Nesse caso, o diabólico insurge, parcialmente, pela uma atuação de D. Catalina fora do esperado para uma mulher no período colonial. Algo que se relaciona, respeitado os devidos anacronismos e diferenças temporais e suas consequências, com o argumento de Phyllis Chesler em Women and madness (1989) ao demonstrar, a partir de levantamentos de casos, que a maior parte das mulheres diagnosticadas como loucas eram aquelas que repetiam uma espécie de comportamento fora do padrão esperado do feminino, especialmente quando esse comportamento, além de sair do padrão, repetia as formas de comportamento masculino. Embora a autora esteja falando do contexto dos Estados Unidos a partir da segunda metade do século XX, existe algo de um padrão geral que aceita, por exemplo, que um homem castigue violentamente seus escravos, mas vê na mulher que pratica a mesma ação um indício diabólico.

O discurso do historiador produz uma imagem desse feminino relacionada ao diabólico e reproduz os conceitos pré-estabelecidos acerca da mulher. Seu posicionamento crítico deixa claro, então, os jugos sociais da época, o que ocorre tanto na adjetivação empregada no relato, quanto nas comparações feitas a Catalina. Nas primeiras linhas do prólogo é evidenciado esse tratamento:

Entre las tradiciones i leyendas de pasados siglos que ha conservado indelebles la memoria de las jeneraciones, existe una, sombria, terrible, espantosa todavia, i digna por lo mismo de ser investigada i de ser dada a luz.

Esa tradicion es la de la siniestra “Quintrala”, la azotadora de esclavos, la envenenadora de su padre, la opulenta e irresponsable Mesalina, cuyos amantes pasaban del lecho de lascivia a sótanos de muerte, la que volvió la espalda e hizo enclavar los ojos al Señor de Mayo, la Lucrecia Borgia i la Margarita de Borgoña de la era colonial, en una palabra. (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p.7)

Essa é a apresentação da personagem com tratamento histórico que almeja Vicuña Mackenna. Não há espaço para dúvida, para observação das motivações de D. Catalina: ela é a priori demoníaca - a capa do livro, que remete a lenda da Quintrala suspensa por um fio de cabelo no inferno indicaria isso, assim como essa abertura da obra. Mackenna não pretende revisitar a lenda para desfazer seu sentido maligno e atribuir elementos de humanidade a essa protagonista; ele parte da conclusão já estabelecida - o caráter maligno da personagem - para ratificá-la a partir do que se consideravam fatos históricos. A suplementação do significado residirá, nesse caso, não na maldade intrínseca nem no elemento sobrenatural que poderia estar vinculado à lenda, mas na correlação entre esse paradigma de maldade e as formas insidiosas/pérfidas que a estrutura do governo colonial forjou em seus territórios. Catalina de los Ríos y Lisperguer como lenda/figura histórica se apresenta como manifestação dos desvios e desmandos sociais e governamentais que caracterizaram o período colonial. Quatro pontos parecem mais relevantes nessa crítica ao período colonial simbolizado pela Quintrala: condenação de gênero, ou condenação por um gênero comportar-se como outro; a herança indígena, que representava o atraso da colônia; relações nepotistas ou de favorecimento de agregados entre governo e espanhóis/criollos; e, por último, a corrupção da Igreja. Os dois últimos reforçam mais enfaticamente a condenação do sistema colonial costumeiramente feita pelos intelectuais do XIX.

Com relação ao primeiro, a questão do gênero, a desconformidade entre seu comportamento e o esperado para uma mulher da elite nas colônias, três elementos insurgem no texto. No primeiro, e mais abordado, vê-se o gosto de Catalina pela violência, especialmente contra os seus escravos. Apesar da questão de gênero não ser apontada diretamente no texto de Mackenna no que se refere a esse ponto, um olhar a partir do olhar contemporâneo permite distinguir uma diferença entre gêneros. O trato atroz dos escravos que, se não lícito, era, ao menos, aceitável quando seu perpetrador era homem, está categorizado como um dos seus grandes crimes, possivelmente por ser uma mulher. O segundo elemento já traduz um desvio mais claro, pois trata de associar alguns comportamentos com atitudes masculinas. Em momentos distintos da narrativa, por exemplo, Mackenna menciona com tons de recriminação as vestimentas masculinas que a Quintrala usava para cavalgar e o fato de ela ser o verdadeiro senhor da casa. Por último, a lasciva é trazida à tona (um de seus crimes foi tentar matar um possível amante). Essa associação de fatores leva o historiador a fazer uma comparação, no mínimo curiosa, entre a chilena e Lucrécia Bórgia. O traço curioso reside no fato de Lucrécia Bórgia ter concentrado em sua figura durante muito tempo uma ideia do maligno feminino, imagem essa que vem sendo ressignificada nas últimas décadas. No exemplo abaixo podemos ver uma dos momentos em que a comparação é feita.

En cuanto a emprender a la postre de este escrito una condensacion filosófica de las condiciones de su carácter i de las tendencias que dominaron su espíritu i su carne, nos bastaría definirlas diciendo con toda propiedad moral que es dable alcanzar en la diversidad de las épocas i de las sociedades, que doña Catalina de los Rios fue la “Lucrecia Borgia” de Chile. (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p. 147-148)

Segundo Maria Lígia Coelho Prado, em América Latina no século XIX: Tramas, telas e textos (2004PRADO, Maria Ligia Coelho. A participação das mulheres na luta pela independência política da América Latina. In: América Latina no século XX. Tramas, telas e textos. São Paulo: EDUSP, 2004.), a linguagem empregada nos textos historiográficos do século XIX evidenciava seus objetivos edificantes e apresentava um modelo de mulher ideal, arquitetado para servir de exemplo para as gerações contemporâneas e futuras. Em geral, as mulheres eram singelas, delicadas, generosas e dedicadas. Em volta disso, haveria sido moldado um padrão de respeitabilidade a partir do qual elas passariam a ocupar um lugar de dignidade naquela concepção social. Ao transgredir todas as convenções, Catalina também foi colocada em lugar de modelo inverso. Sua história de vida e sua condenação eterna serviriam de exemplos para o negativo, para o diabólico. Por isso, ainda que a passagem temporal seja significativa, a lenda da Quintrala resiste pungente e é mote para várias produções literárias e artísticas, porque ainda hoje a voz feminina “desmodelada” causa estranhamento.

O segundo ponto de crítica ao período colonial está no juízo negativo sobre a herança indígena da Quintrala. Embora essa seja uma espécie de mote reiterado ao longo da história da América Latina, a degeneração a partir das miscigenações é um tema importante durante o século XIX, tanto porque remete ao debate das referências que se deveriam tomar para construir os modelos das novas nações independentes como retrata disputas sobre as heranças negativas advindas de povos considerados bárbaros ou atrasados. No fragmento abaixo, observamos um desses momentos.

I era precisamente entre aquellos infelices, dispersos, hambrientos, desnudos, sin amparo alguno social, donde la cruel Quintrala ejercitaba en la vejez las pasiones rencorosas de su alma. Trocados con el hielo de los años los humores de la lascivia en el veneno ácre del odio, la encomendera de la Ligua tenia por deleite el látigo i por entretenimiento la muerte. No padecia su alma propiamente el mal epidémico de la codicia, aneurisma moral de nuestro clima, i ántes al contrario, era dadivosa con los fuertes, i ademas, si hacia morir a sus manos a sus indios i a sus esclavos, no cuidaba perder así su caudal vivo, a trueque de satisfacer el apetito dominante de su naturaleza de india: la crueldad. (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p. 113)

Vemos que, nesse ponto, sua sede por sangue e violência está diretamente relacionada com a herança indígena. De acordo com Mackenna, o lado materno era descendente dos índios Talagante. Ao explicar a origem da família, ficamos sabendo que a avó da Quintrala, Agueda Flores, é uma criolla, filha de alemão e de uma índia. Assim essa linha, em determinados momentos é trazida a tona como que para sugerir uma má genética, embora Agueda em si nunca seja acusada de nada vil. Da mesma forma, o autor também ressalta o fato de as tias da Quintrala terem sido acusadas de bruxaria, fato que ele também tenta sutilmente vincular com essa herança.

O terceiro ponto vincula a impunidade de Catalina com seus contatos familiares e de amigos entre os poderosos. Apesar dos reiterados pedidos, principalmente da parte do padre Salcedo, Catalina nunca é julgada e, finalmente, quando se dá procedimento ao julgamento, falece no processo.

Ahora bien, ese correjidor de Quillota era nada ménos que un sobrino de doña Catalina de los Rios, don Pedro de Iturgoyen Amasa i Pastene (dueño del vínculo de Purutun, que fue mas tarde de Cañada Hermosa), que se había casado por aquel mismo tiempo con una hija de Juan Rodulfo Lisperguer, primo hermano de doña Catalina. Ah! Los parientes mas que el oro han sido siempre en este pais de parientes i de oro los grandes encubridores de la justicia. I por esto doña Catalina de los Rios “se alababa que se había de salir con todo, porque tenia dinero i los oidores eran sus amigos”. (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p. 123)

O quarto ponto vincula-se com a corrupção da Igreja - discurso que se faz presente em boa parte dos escritos decimonônicos, especialmente os que se relacionam ao processo de emancipação. Apesar dos atos considerados pela lenda como diabólicos, Catalina nunca é condenada pela sociedade e continua fazendo doações para a ordem de Santo Augustinho (ordem com a qual sua família possuía laços mais estreitos), inclusive após sua morte, pois deixa de herança bens para agostinhos e é enterrada no convento deles.

Aliás, essas doações finais aos agostinhos, soam ainda mais impressionantes considerando que talvez seu maior pecado, segundo o autor, seja a expulsão da imagem do Cristo da Agonía de sua casa, uma imagem altamente reverenciada e que ficava, normalmente, sob a custódia dessa ordem e estava na casa de Catalina devido à proximidade entre sua família e os agostinhos. A expulsão do Cristo é a heresia maior de Catalina, porque simbolicamente é uma forma de expulsar a Igreja de sua casa e, ao mesmo tempo, de tratar o Cristo como mais um dos homens (não o filho de Deus) por quem não queria ser recriminada. Tal doação aparece descrita por Mackenna como um ato inexplicável da Quintrala, mas que isso, para o leitor atual, insurge como um traço incoerente da personalidade que o historiador pretende construir como se pode observar na primeira citação abaixo.

¿Fué aquella oblacion un tributo de arrepentimiento de doña Catalina por sus ultrajes a la venerada imájen que dejamos recordada? Fué una esperanza de induljencia? Fue el reflejo de su propia i cercana agonía, caido sobre su pecho desde aquellos ojos enclavados en la cruz i que eternamente agonizan, de aquella boca entreabierta que acaba de dar paso al postrero i duro aliento? (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p. 139)

No debió pagar precio de mercader doña Catalina de los Rios, estando ya vieja i enferma, por hacer suya la voluntad de un gobernante tan orgulloso i tan avaro de bienes mal habidos como lo fué el presidente don Francisco de Menéses. Era mujer jenerosa. I en esto descubria una de las nobles dotes que fué comun a su raza, porque si azotaba i hacia rnorir sus esclavos no era por el sabor del oro sino por el deleite horrible de la sangre i del ronco chasquido que el túmido látigo produce en las carnes laceradas… Era mujer infinitamente cruel. I no se fijaba por esto, devorada por su apetito de castigos, en que así diezmaba su caudal, cálculo que de seguro habria hecho si hubiera sido avara. Cada cadáver de negro esclavo le valia de seiscientos a mil pesos: los de indio o india, la mitad del precio… (MACKENNA, 1877MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877. , p. 128)

A segunda citação surge no texto como outro traço incoerente dentro da personalidade que o historiador pretende desenhar. Se, por um lado, reforça o caráter violento, por outro ressalta seu caráter não avaro. Parece claro que há uma intenção retórica, pois se mostraria tão sanguinária que não teria problemas em gastar seu caudal. No entanto, na citação que fala de sua herança indígena negativa, vemos uma outra referência a essa “generosidade” - “[n]o padecia su alma propiamente el mal epidémico de la codicia, aneurisma moral de nuestro clima, i ántes al contrario, era dadivosa con los flertes”. Sua generosidade seria para com os fortes, ou talvez com aqueles que ela considerava dignos dela. Vemos sair outro elemento positivo, quando somos informados que a cobiça não fazia parte de seus traços. Entretanto, uma das referências imediata de mal no imaginário chileno ainda é a Quintrala. Em alguns lugares, ao falar seu nome, as pessoas batem três vezes na madeira, como superstição. Em Pichidangui, um balneário da Região de Coquimbo, existe um marco histórico chamado de “Cueva de la Quintrala” e, segundo a lenda local, esse seria o local onde Catalina fazia a “própria justiça” (DELGADO, 2013DELGADO, Mathias Ernesto Ordenes. La Quintrala en la memoria colectiva chilena: construcción y representación simbólica. In: Jornadas Interescuelas/Departamentos DE Historia, 14, 2013, Mendonza, Memorias... Mendoza: UNCuyo, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://cdsa.aacademica.org/000-010/1034.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015.
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). Com todo esse estigma, a Quintrala converte-se em uma personagem polêmica e bastante atraente para outras produções artísticas, o que é observável no grande número de reproduções da sua imagem.

Em 1955, Hugo del Carril, diretor de cinema, levou para as telas chilenas La Quintrala. Em 1986, Vicenti Sabatini dirigiu a minissérie La Quintrala, escrita por Telmo Meléndez. Por volta de 2013, outra minissérie foi estreada, dessa vez, intitulada La doña. Nas produções literárias posteriores ao ensaio histórico de Vicuña Mackenna, aparecem predominantemente as reproduções da imagem de Catalina tal qual a da obra do séc. XIX, entre elas pode-se destacar: Belleza del demônio, La Quintrala (1914), de Antonio Bórquez Solar; La tragedia de los Lisperguer (1963), de Armando Arriaza; Doña Catalina: un reino para La Quintrala (1972), de Lautaro Yankas; La Quintrala (1932), de Magdalena Petit; e La tragedia sexual de La Quintrala (1966), de Olga Arratia. Nessa vertente de disseminar a má fama de Catalina, aparecem também os artigos publicados por Joaquín Edwards Bello, “La belleza de la Quintrala” (1949); “La Quintrala en el cine” (1956) e “La Quintrala o tiempos sin hombres” (1947). Apenas em 1991, há uma releitura de Catalina, com o romance Maldita yo entre las mujeres, de Mercedes Valdivieso (DELGADO, 2013DELGADO, Mathias Ernesto Ordenes. La Quintrala en la memoria colectiva chilena: construcción y representación simbólica. In: Jornadas Interescuelas/Departamentos DE Historia, 14, 2013, Mendonza, Memorias... Mendoza: UNCuyo, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://cdsa.aacademica.org/000-010/1034.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015.
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). A última reescrita de Catalina dataria de 1996, uma peça teatral em dois atos, de Mirian Balboa Echeverría, Doña Catalina. Desses romances, dois destacam-se pela releitura e repercussão: o La Quintrala (1932), de Magdalena Petit, e Maldita yo entre las mujeres (1991VALDIVIESO, Mercedes. Maldita yo entre las mujeres. Santiago: Planeta, 1991.), de Mercedes Valdivieso.

Magdalena Petit, romancista da década de quarenta do Chile, fez parte da geração criollista. Importava, para esse grupo, o conjunto de valores e tradições e as formas como podiam constituir os arquétipos nacionais. Na escrita de Petit, “los temas históricos y leyendas del patrimonio cultural se convierten en materia ficcional, donde el pasado y las figuras históricas se incorporan al discurso literario” (LLANOS, 1994LLANOS, Bernadita. Tradición e historia en la narrativa femenina en Chile: Petit y Valdivieso frente a la Quintrala. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, vol. LX, n. 168-169, p. 1025-137, jul.-dez. 1994, Disponível em: <Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6456 >. Acesso em: 10 jan. 2016.
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, p. 1027). Assim, ao revisitar a lenda da Quintrala, a autora relaciona seu discurso histórico ao de Mackenna, articulando suas construções literárias com as do historiador.

A Quintrala criada na década de trinta é lida sob a égide de valores católicos e suas transgressões são encaradas pela autora como um desvio de comportamento característico de pessoas possuídas pelo demônio. Dentro do contexto social da história, seu envolvimento com a bruxaria tem início com Josefa, escrava que havia salvado Catalina menina da paralisia nas pernas e dos ataques epiléticos (sinais associados à possessão demoníaca). A partir de então, a protagonista usaria seus conhecimentos de feitiçaria na sedução e na morte das suas vítimas. Assim como na construção de Mackenna, Petit atribui à sua personagem beleza e força sexual; parece residir nisso a razão dos seus desvios psicológicos e o grande perigo que ela oferece à sociedade:

La brujería en este contexto está estrechamente vinculada al cuerpo y su fuerza sexual, y al poder que las mujeres que la practican, ejercen sobre éste. El poder sexual de las Lisperguer, parece sugerir el relato, no tiene límites ni resistencias posibles. Aquí radica su gran peligro social, pues no hay poder masculino capaz de frenar una feminidad que se manifiesta como fuerza instintiva. Así, el poder sexual de la mujer queda inscrito como una fuerza sobrenatural que trae la muerte, puesto que queda fuera de las instituciones y los sentimientos de in mujer civilizada. (LLANOS, 1994LLANOS, Bernadita. Tradición e historia en la narrativa femenina en Chile: Petit y Valdivieso frente a la Quintrala. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, vol. LX, n. 168-169, p. 1025-137, jul.-dez. 1994, Disponível em: <Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6456 >. Acesso em: 10 jan. 2016.
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, p. 1029)

Por não ser controlada pela força masculina, essa Quintrala agiria de acordo com seus instintos e vontades, seduzindo os homens e despertando-lhes o desejo. A ostentação do corpo converte-se em sadismo, uma vez que o exercício do prazer estava intimamente ligado ao dos assassinatos. Na escrita de Petit, a Quintrala possuiria uma personalidade perturbada e instável, evidente nas mudanças abruptas de comportamento, cuja motivação era o gosto pela violência e pela destruição alheia, nesse caso, sempre masculina. A própria consciência do prazer distancia Catalina dos preceitos cristãos. Há, então, uma inversão de valores: ao invés de adorar a santidade pregada pela Igreja católica, a Quintrala tinha uma devoção pelo mal, e, segundo a narrativa de Magdalena Petit, de forma consciente: “- Ud. ignora el placer del mal. Yo lo conozco y le aseguro que compensa... Ser mala; darles razón a quienes nos vituperan, con actos cada vez peores. ¡Perderse, embriagarse, en una beatitud del mal!” (PETIT, 1946PETIT, Magdalena. La Quintrala. Santiago: Zig-Zag, 1946., p.80).

Os valores católicos e supersticiosos da época da colônia são atualizados, aqui, de acordo com a perspectiva de Magdalena Petit, que indicava ser contra a emancipação feminina. Nessa trama, a personagem continua prisioneira da moral que regia os costumes sociais da colônia, mas traz o agravante de transtornos psicológicos que a conduziriam ao mal. O discurso histórico positivista de Vicuña Mackenna transforma-se aqui em uma histeria patológica, que contribui tanto para o descontrole emocional quanto para desordem sexual da Quintrala.

Para Mercedes Valdivieso, no entanto, essa relação inverte-se. As duas escritoras diferem por completo nas interpretações das leituras da figura lendária. Para Valdivieso, a má fama de Catalina seria o saldo consequente da sua independência moral e social enquanto mulher. A bruxaria, por sua vez, seria uma forma de marginalizá-la, uma repressão ao enfrentamento do masculino. Essa Quintrala é apresentada como uma mulher independente, consciente da posição bastarda que ocupa, e cujos crimes se justificariam como um ato de rebeldia em relação ao sistema patriarcal que tentava dominá-la.

Ao longo da narrativa, Catalina tem visões com a mãe e com a avó já mortas, também consideradas bruxas por Mackenna no relato histórico, que a orientam como agir em uma sociedade que tenta aprisioná-la e que a condena à reclusão. As duas senhoras ensinam-lhe, ao final, como não se subjugar ao poder masculino. Segundo Llanos, elas “constituyen una especie de memoria colectiva (que incluye a otras mujeres de la familia), donde se acumula la experiencia y el conocimiento de quienes han querido ser ‘sus propias dueñas’, y no sirvientas del hombre.” (1994LLANOS, Bernadita. Tradición e historia en la narrativa femenina en Chile: Petit y Valdivieso frente a la Quintrala. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, vol. LX, n. 168-169, p. 1025-137, jul.-dez. 1994, Disponível em: <Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6456 >. Acesso em: 10 jan. 2016.
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, p.1033). Para Valdivieso, a bruxaria seria, ao final, uma postura política assumida, com a qual se lutava pela independência pessoal, sexual e social da mulher.

Desse modo, Mercedes revisita o passado histórico e o transforma em uma produção literária que relaciona sua perspectiva feminista, para discutir as representações de gênero e a identidade mestiça do Chile colonial. Assim como Vicuña Mackenna, a autora discute as projeções do passado na contemporaneidade, centrando na figura de Catalina a representação social para as análises. No entanto, o texto da escritora chilena apresenta seu caráter moderno ao mostrar outras possibilidades de leitura para a mesma lenda, questionando o valor determinante do discurso histórico de Mackenna. Isso se dá porque Valdivieso pertence a uma geração de escritoras mais contemporâneas, feministas, que, ao contrário de Magdalena Petit, analisam o papel da mulher em uma sociedade patriarcal que tende a anulá-la. O rechaço a Quintrala e seu estigma convertem-se, então, na luta das mulheres que buscam, ainda nos dias de hoje, autonomia nas relações sociais de dominação.

A postura discursiva assumida por Mackenna teria relação com o passado e a sua reestruturação. Para ele, o relato tem valor didático, por isso, constrói a imagem de maldita, vinculando suas ações a práticas viciosas da sociedade colonial ao mesmo tempo em que condena comportamentos femininos considerados desviantes, frutos da decadência colonial. Magdalena Petit possui um raciocínio semelhante no que concerne à condenação de Catalina, porém dedica-se ainda a intensificar os elementos que aproximam a Quintrala ao demoníaco, reproduzindo aversão da sociedade chilena de sua época à emancipação feminina (COELHO, 2010COELHO, Maria Josele Bucco. Las trampas de lo maldito: a representação do feminino na ficção histórica contemporânea no Chile. In: Seminário de Estudos Literários (SEL), 10, 2010, Assis, Anais... Assis: UNESP, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://sgcd.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/SEL/anais_2010/mariajosele.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015.
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). Valdieso, por outro lado, ao refletir sobre a construção da identidade da Quintrala, levando em consideração as estratégias discursivas utilizadas, terminou por descontruir (ao menos tentou) o processo discursivo hegemônico e apresentou novas perspectivas de construção da personagem que aparece com voz própria e pode discutir como igual com a sociedade que a tomou por bruxa e a condenou ao rechaço.

A imagem da Quintrala ainda hoje se vincula ao demoníaco; um estigma que atravessou os séculos e resiste no imaginário chileno como algo que atrai má sorte. Outras mulheres também foram rechaçadas e compõem esse rol de malditas, como: Inés de Suárez, concubina de Pedro Valdivia; Guacolda, a esposa de Lautaro; Fresia, a mulher de Caupolican; e a monja Úrsula de Súarez. No entanto, a força com que a Quintrala alcança o repertório popular faz com a imagem dela permaneça incomodando. O local das diferenças que se impõem e se estruturam ao longo dos séculos sobre essas histórias aventam possibilidades para os estudos coloniais contemporaneamente; nas fronteiras das reconstruções históricas do passado colonial, habitam interpelações fundamentais para entender as representações do continente americano. As formas como relemos em diferentes épocas, as representações coloniais também se referem ao espectro desses estudos coloniais e oferecem alternativas de repensar esse passado.

Referências

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  • COELHO, Maria Josele Bucco. Las trampas de lo maldito: a representação do feminino na ficção histórica contemporânea no Chile. In: Seminário de Estudos Literários (SEL), 10, 2010, Assis, Anais... Assis: UNESP, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://sgcd.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/SEL/anais_2010/mariajosele.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015.
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  • DELGADO, Mathias Ernesto Ordenes. La Quintrala en la memoria colectiva chilena: construcción y representación simbólica. In: Jornadas Interescuelas/Departamentos DE Historia, 14, 2013, Mendonza, Memorias... Mendoza: UNCuyo, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://cdsa.aacademica.org/000-010/1034.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015.
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  • LLANOS, Bernadita. Tradición e historia en la narrativa femenina en Chile: Petit y Valdivieso frente a la Quintrala. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, vol. LX, n. 168-169, p. 1025-137, jul.-dez. 1994, Disponível em: <Disponível em: https://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/6456 >. Acesso em: 10 jan. 2016.
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  • MACKENNA, B. Vicuña. Los Lisperguer y La Quintrala (Doña Catalina de los Ríos). Valparaíso: Imprenta del Mercurio, 1877.
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  • VALDIVIESO, Mercedes. Maldita yo entre las mujeres Santiago: Planeta, 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2019
  • Aceito
    30 Out 2019
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