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Psicanálise existencial: a autópsia sartriana de Flaubert - o eremita de Croisset

Existential psychoanalysis: The sartrian autopsy of Flaubert - the hermit of Croisset

Resumo

Nas interlocuções do literário e do biográfico, interessa-nos lançar luz sobre o conceito sartriano de “psicanálise existencial” - método que visa compreender a constituição psíquica do indivíduo a partir de sua realidade sócio-histórica. O caso concreto sobre o qual Sartre se debruça no minucioso esforço de demonstração do seu tratado é Gustave Flaubert. O menino Gustave resiste a todas as incursões dos que se aventuram no difícil propósito de lhe ensinar a ler. Apontado como incapacitado: “você será o idiota da família”, escolherá a passividade e a inércia como meio de se adaptar a um mundo que se lhe apresentava como execrável. Agindo como um ator, o menino mergulha no mundo imaginário da representação, tanto em sua vida quanto em seus projetos, encarnando a máxima sartriana expressa no estudo de Jean Genet: “o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos daquilo que fizeram da gente”.

Palavras-chave:
Sartre; Flaubert; imaginário; psicanálise existencial

Abstract

In the interchanges of the literary and the biographical, we are interested in shedding light on the Sartrian concept of “existential psychoanalysis” - a method that aims to understand the psychic constitution of the individual from his socio-historical reality. Gustave Flaubert is the concrete case on which Sartre focuses in the meticulous effort to demonstrate his “treatise”. The little Gustave resists all the attempts of those who set about the difficult task of teaching him to read. Regarded as incapable: “you will be the idiot in the Family”, he chooses passivity and inertia as a means of adapting to a world that appears hateful to him. Acting as an actor, the boy plunges into the imaginary world of representation, both in his life and in his projects, embodying the Sartrian maxim expressed in Jean Genet’s study: “what matters is not what they make of us, but what we ourselves make of what they have made of us”.

Keywords:
Sartre; Flaubert; imaginary; existential psychoanalysis

Résumé

Dans les échanges entre le littéraire et le biographique, nous nous intéressons à éclairer le concept sartrien de “psychanalyse existentielle” − méthode qui vise à comprendre la constitution psychique de l'individu à partir de sa réalité socio-historique. Le cas particulier dont s’occupe Sartre dans l'effort de démonstration de son traité est Gustave Flaubert. Le petit Gustave résiste à toutes les incursions de ceux qui se lancent dans la difficile tâche de lui apprendre à lire. Pointé du doigt comme inapte: “vous serez l'idiot de la famille”, l’écrivain choisira la passivité et l'inertie comme moyen de s’adapter à un monde qui se présentait comme exécrable. Acteur, le garçon plonge dans le monde imaginaire de la représentation, à la fois dans sa vie et dans ses projets, incarnant la maxime sartrienne exprimée dans l'étude de Jean Genet: “L'important n'est pas ce qu'on fait de nous, mais ce que nous faisons nous-même de ce que l'on fait de nous”.

Mots-clés:
Sartre; Flaubert; imaginaire; psychanalyse existentielle

O desenvolvimento dos romances flaubertianos ancora-se em quatro eixos fundamentais: a preocupação excessiva com uma reprodução exata da vida, a exclusão de quase todos os elementos românticos, a representação de heróis de tamanho ordinário e, sobretudo, o desvanecimento do romancista por trás dos fatos que nos reporta. A objetividade e a genialidade de Flaubert, todavia, brotam de um movimento de rotação de 180º promovido pelo autor, cujo talento literário é produto de uma vocação contrariada: diferentemente do pai e do irmão, não se torna médico, mas ator amador antes de se revelar escritor.

Nesse ensaio, propomo-nos a percorrer as reentrâncias de sua produção literária pelo viés do olhar vesgamente privilegiado do filósofo Jean-Paul Sartre, criador de uma metodologia própria - a psicanálise existencial - para a compreensão de escritores e artistas que analisa a partir do método progressivo-regressivo, isto é, do estudo versando alternadamente sobre tudo o que condiciona o indivíduo e sobre a maneira como o indivíduo transforma esse condicionamento.

A aplicação da técnica sartriana ao escrutínio de Flaubert no Magnum opus O idiota da família, exame minucioso composto em três tomos, contendo aproximadamente três mil páginas, mostra-se completamente inovador e nos permite compreender não somente a indagação-chave que o escritor existencialista adverbializa no incipit do seu projeto: “o que podemos saber de um homem hoje?” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 7), como também desnuda toda a endentação que transforma o pequeno Gustave em Flaubert, isto é, no grande iniciador do romance moderno.

A gênese da escrita flaubertiana

O processo da escrita flaubertiana oculta uma longa paciência para o trabalho do observador na difícil busca da palavra justa, insubstituível, ao mesmo tempo em que marca a rejeição absoluta de imprecisões e termos abstratos, como o escritor demonstra numa carta enviada a Ernest Feydeau (19 de dezembro de 1858), sobre o processo de desenvolvimento de Salambô: “Em dezoito dias, escrevi dez páginas. Acho que nunca abordei um assunto de estilo tão difícil. A cada linha, a cada palavra, sinto falta da língua e a insuficiência de vocabulário é tal que sou obrigado a mudar os detalhes com muita frequência.”

Espécie de testemunho da gênese de Madame Bovary, a vasta correspondência trocada entre Flaubert e Louise Colet, “a mulher que ele mais amou” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 705), permite apreender a concepção flaubertiana de arte, de romance, de crítica, ao longo dos 53 meses de gestação do seu romance mais célebre. Considerando-se o gigantesco trabalho de precisão realizado pelo escritor, esta correspondência, que contém uma verdadeira poética do romance, permite-nos levantar os tapumes da maquete, tão poderosamente articulada, para melhor observar a engenhosidade dos procedimentos adotados, no movimento silencioso das engrenagens: “Não é fácil ser simples. Tenho medo de cair em Paul de Kock ou de fazer um Balzac chateaubrianizado. Todavia, sei como fazer. Oh meu Deus! Se eu escrevesse o estilo que tenho na cabeça, que escritor eu seria! Sem lirismo, sem reflexões, a personalidade do autor ausente” (VERSAILLE, 1991VERSAILLE, André. La bêtise l’art et la vie - en écrivant Madame Bovary. Paris: Editions Complexe, 1991., p. 44).

Aceitando o conselho de seus amigos Louis Bouilhet e Maxime Du Camp, que lhe sugeriram o tema de Madame Bovary, depois de terem ouvido consternados a merencória leitura da primeira versão da Tentação de Sainte-Antoine, o “eremita de Croisset” convida-nos a estudar um caso concreto - a história do casal Delamare. Esse tema realista promete ser capaz de controlá-lo de “digressões ou divagações, belas em si mesmas, mas que são aperitivos desnecessários ao desenvolvimento de [sua] concepção e tediosos para o leitor” (VERSAILLE, 1991VERSAILLE, André. La bêtise l’art et la vie - en écrivant Madame Bovary. Paris: Editions Complexe, 1991., p. 11).

Com efeito, para se tornar um romancista de pleno direito, diz Flaubert, é preciso desaparecer atrás de seu trabalho, “como Deus no universo, presente em toda parte e visível em lugar nenhum” (VERSAILLE, 1991VERSAILLE, André. La bêtise l’art et la vie - en écrivant Madame Bovary. Paris: Editions Complexe, 1991., p. 13). Aparentemente, nada mais improvável do que aproximar a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre desta reflexão. Todavia, a obra sartriana O idiota da família conglomera todas as obras, todos os métodos, todos os gêneros precedentes no âmbito da produção sartriana, conforme demonstra a biógrafa Annie Cohen-Solal (1985, p. 599), que chama atenção para a coerência extrema dessa investigação, apesar das aparências.

Não é, portanto, fortuito que o caso concreto no qual Sartre se apoia no árduo esforço de demonstrar o seu tratado sobre a “psicanálise existencial”, visando responder à pergunta: “o que podemos saber de um homem hoje?”, seja o próprio Flaubert. É ele a pedra angular a partir da qual o filósofo tentará demonstrar, consoante a Questão do Método, que o homem é um “universal singular”: “universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 7).

O filósofo também justifica sua escolha com base em três razões fundamentais: o reconhecimento de uma conta a ser acertada com um escritor por quem sentiu, no início, apenas um sentimento de antipatia; o fato de Flaubert ter se “objetificado” em seus livros, o que torna a pesquisa sartriana em si mesma mais pragmática e, em última instância, a identificação de Flaubert como o criador do romance moderno, estando na encruzilhada de todos os problemas literários que surgiram nas críticas da época, requisitando, por conseguinte, uma análise pormenorizada da relação do homem com a obra.

Tal investimento alicerça enorme projeto (auto)biográfico de Sartre, na medida em que a elaboração de biografias de escritores constitui parte significativa de sua fecunda produção intelectual, como o filósofo afirma em carta enviada ao “Castor”, Simone de Beauvoir: “Dificilmente me interesso por outra coisa senão pela vida de grandes homens. Eu quero tentar encontrar nelas uma profecia da minha” (SARTRE, 1983SARTRE, Jean-Paul. Lettres au Castor 1. Paris: Gallimard , 1983., p. 14).

Figura 1.
Caricatura de Sartre escrevendo seu Flaubert - Desenho de J. Redon publicado no Figaro littéraire, 7 de maio de 1971. Arquivos Gallimard.

Flaubert passa, assim, de consciência observante a objeto observado, de analista preciso a alvo visado. Seria possível penetrar no interior do mecanismo da complexa máquina fabricada por Sartre para desentranhar os aspectos dialéticos entre o individual e o social na compreensão do indivíduo Gustave e seus projetos? Em outras palavras, o fio condutor dessa reflexão questiona se, por meio do método progressivo/regressivo e pelo viés do naturalismo científico, seria possível capturar o projeto flaubertiano ultrapassando essas condições em direção à finalidade que lhe concede sentido.

No tomo 1 de O idiota da família, Sartre escrutina um conto de juventude de Flaubert, redigido entre 15 e 16 anos, intitulado Le parfum à sentir, cujo enredo traz à cena a história de boêmios miseráveis e a fealdade da protagonista. Mãe de dois filhos, após enfrentar toda sorte de dores e dissabores, a heroína vê seu marido, Pedrillo, trocá-la por Isabellada, uma bela amante muito mais jovem que atua como um elemento suplementar na engrenagem trágica que conduz Marguerite - a protagonista - ao suicídio. O conto se encerra com a autópsia dessa mulher infeliz, assim descrita por Sartre:

Estudantes de medicina se apoderam do corpo de Marguerite, desnudam-na e a cortam em pequenos pedaços: obscena aquela carne aberta e tão precavidamente picada não seria uma evocação da sua [de Gustave] proto-história? Ela não se assemelharia ao consentimento passivo do bebê moldado pelas mãos estritas e severas de sua mãe? Com certeza não se trata de uma recordação: no entanto, os estudantes desfazem uma passividade com tanta solicitude e indiferença quanto Caroline [mãe de Flaubert] utilizou para fazer o filho caçula [Gustave]. Acima de tudo, essa fábula significa: meu pai [Dr. Achille] me dissecará, ele me disseca todos os dias em outros corpos. (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 477).

Para uma abordagem mais objetiva do “caso Flaubert”, Sartre volta, efetivamente, à sua “proto-história”, ou seja, aos antigos antecedentes que muitas vezes reaparecem e que ninguém conhece, “à profunda ferida sempre escondida”, à que Flaubert alude quando escreve a Mlle Leroyer de Chantepie, em outubro de 1864, permitindo-nos considerar o naturalismo flaubertiano nos seus primeiros borbotões.

Examinando todos os eventos significativos que marcaram a infância do escritor - epilepsia, dificuldade em aprender a ler, ingenuidade mental e até uma espécie de credulidade patológica refletindo uma “idiotia contínua” - Sartre demonstra como esse condenado do abecedário teve uma péssima relação inicial com a linguagem. Conta a avó da narradora, sobrinha de Flaubert, que, aos seis anos, um velho criado que chamavam de Pierre divertia-se com a sua inocência quando o menino o incomodava, dizendo: “Vá ver... se estou lá na cozinha”. E a criança ia perguntar à cozinheira: “Pierre me disse para vir ver se ele estava aqui” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 15).

Nessa incompreensão infantil, uma primeira pista: “a desgraça do pequeno Gustave é que algo o impede de apreender as palavras como meros sinais. [...] O significado não importa para ele, é a materialidade verbal que o fascina” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 21). A idiotia, o temor do pai, os anos estéreis em Paris, o isolamento voluntário, a ociosidade e, o maior dos males, a crise do Pont-l’Évêque, prossegue Sartre: “todos esses infortúnios pareciam ligados por um fio secreto: no cérebro do pequeno alguma coisa se desordenara, talvez desde o nascimento; a epilepsia - o nome que davam à doença - era, em suma, a continuação da idiotia” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 16).

No artigo “Alucinação e criação literária em Flaubert”, Chiara Pasetti confronta o projeto de Achille-Cléophas de ver o filho tornar-se advogado ao de Gustave de poder dedicar-se exclusivamente à sua paixão pela literatura. Segundo a crítica literária italiana, o argumento capaz de sepultar as aspirações do pai, permitindo-lhe retornar a Rouen, estaria bem fundamentado num problema de saúde, já que, matriculado na universidade de direito em Paris, desde novembro de 1841, Gustave foi reprovado em vários exames, amaldiçoando a instituição.

O sofrimento do escritor se prolonga até 1843 quando, retornando de Deauville, em companhia do irmão Achille, entre o Pont-l’Évêque e Rouen, sua cidade natal, tem sua primeira grande crise e cai fulminado por uma apoplexia. O irmão o considera morto por dez minutos e o conduz, após várias sangrias aplicadas na casa mais próxima e num estado cadavérico, a Rouen. Recobrada a consciência, a família imaginava que os ataques não mais ocorreriam. Contudo, outras quatro “crises de nervos” aconteceriam nas duas semanas seguintes, segundo relato de Maxime Du Camp. A partir da segunda crise, Flaubert abandona o curso de direito em Paris para ir viver e se cuidar em Croisset, em residência adquirida por seu pai nesse mesmo ano:

Após as revelações de Maxime Du Camp, muitos críticos apoiaram a tese da epilepsia e, nos textos dos médicos contemporâneos, a questão parece ter sido considerada resolvida: as convulsões foram consecutivas a uma lesão cerebral, em particular a uma lesão occipital-temporal de seu hemisfério cerebral esquerdo, como diz o texto mais acreditado, o de Henri Gastaut. (PASETTI, 2012PASETTI, Chiara. Hallucinations et création littéraire chez Flaubert. Revue Flaubert, n. 12, 2012.Disponível em: https://flaubert.univ-rouen.fr/revue/article.php?id=103 . Acesso em: 25 nov. 2020.
https://flaubert.univ-rouen.fr/revue/art...
).

Essa hipótese é contestada por Sartre que sustenta ser Gustave um histérico de inteligência mediana, tendo convertido sua neurose em crises cuja real natureza - histérica ou epiléptica - não interessa muito, visto que sua única finalidade consistia em estabelecer uma dependência da neurose ao pitiatismo fundamental, isto é, a um estado mórbido provocado por fatores sugestivos. A tese sartriana fascina à medida que é revisitada pelas mais recentes teorias neurológicas abordando pseudocrises, crises psicogênicas ou, mais precisamente, “crises psicogênicas não epilépticas”.

Segundo todas as descrições encontradas nos dicionários de medicina da época, referindo-se à possibilidade de mimetização epiléptica, compreende-se por que, sendo médico, o pai de Gustave o teria proibido de imitar um antigo jornalista epiléptico, pois entrar na roupagem de outros personagens era uma arte muito arraigada nas práticas do filho escritor, com talento de ator, a exemplo da pantomima, reconhecida, na contemporaneidade, como um mecanismo tipicamente histérico ou como uma “personalidade histriônica” e nenhum histrião é melhor do que um ator.

Os ecos do silêncio na escritura flaubertiana

Para um escritor cuja obra literária mais célebre é a autobiografia As palavras, não resta dúvida de que a difícil relação de Flaubert com a linguagem acaba sendo um importante instrumento de análise, anunciando as premissas de uma mente científica, em vias de desabrochar: “a palavra nunca é dele [...] se ele perde ou atordoa a palavra é porque sua própria textura, a teia de suas ideias e seus afetos, não é bastante verbalizada” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 26).

Na verdade, desde cedo, as dificuldades impostas a Gustave pelo árduo exercício de leitura são abundantemente listadas por sua sobrinha, Caroline Commanville, a narradora de O idiota da família:

Minha avó ensinou o seu filho mais velho a ler. Ela queria fazer o mesmo com o segundo e começar a trabalhar. A pequena Caroline [mãe da narradora] ao lado de Gustave aprendeu imediatamente. Ele não conseguia e depois de se esforçar para entender esses sinais que nada significavam para ele, começava a chorar de soluçar. (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 13).

A busca pela objetividade e precisão flaubertianas pode ter se originado de uma necessidade de apego concreto à linguagem, palavras, sensações, como uma espécie de ancoragem efetiva na matéria por meio do exercício escritural, capaz de inserir o escritor na realidade substancial do mundo. Partindo da origem das primeiras estruturas psicossomáticas, o estudo sartriano da “constituição” do menino Gustave corrobora esta interpretação: “Ele vai escrever, mas a linguagem sempre será, a seus olhos, esse ser duplo e suspeito [...] enchendo-o de impressões incomunicáveis e que se faz falar, pedindo a Gustave que se comunique com os outros quando ele, literalmente, nada tem a comunicar” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 50).

A atenta análise sartriana de outro conto de juventude do autor intitulado Quidquid volueris revela-se um importante elemento que ilumina essa reflexão. O personagem central é Djalioh, um homem-macaco de dezesseis anos, produto de um cruzamento monstruoso feito por um estudioso: o Sr. Paul que, por razões científicas, fez uma escrava ser estuprada por um orangotango. Nesse antropopiteco, a herança simiesca impede o desenvolvimento humano. Para Sartre, isso significa que “ele permanece na infância, que mal vai além do momento em que homem e animal são - segundo Gustave - ainda indistinguíveis” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 28).

Gustave pode ser visto através de Djalioh. A verdade profunda de sua infância prenuncia o que é fundamentalmente monstruoso e vulnerável para ele. Homem-macaco, idiota da família, criança com retardo mental, deficiente da linguagem articulada. A violência que habita o homem e o animal, o homem-animal, faz parte dessa aproximação. Permite-nos, aliás, inferir o determinismo que subjaz a essa identificação, na medida em que é forjada na exterioridade: “Flaubert mostra o seu comportamento desde o exterior, tal como apareceu aos olhos dos outros” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 34). Este personagem encarna, ao mesmo tempo, os problemas de linguagem que o pequeno Gustave enfrentara: “Djalioh queria dizer uma palavra, mas falava tão baixo, com tanto medo que foi tomada por um suspiro” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 31).

Figura 2.
Ilustração de Angelo Ruta - “Sartre ossessionato da Flaubert” - Il Corriere della Sera, il 28 aprile 2019.

O signo da exterioridade objetiva, da busca rigorosa, da verdade científica, elementos básicos do naturalismo não aparecem, portanto, como contingentes na abordagem flaubertiana. O escritor reconhecerá mais tarde que não detém a verdade - esta relação dos outros com as coisas - donde sua excessiva credulidade infantil, que na idade adulta se transmutará numa falta absoluta de qualquer convicção: “frases de outros são afirmadas nele, mas não por ele. Isso se chama sua credulidade: na verdade, ele acredita em tudo, e isso significa não acreditar em nada, é apenas acreditar. Essa credulidade se funde com o que ele mais tarde chamaria de sua ‘crença em nada’” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 49).

Mutismo disfarçado de ato de fala, a escrita de Flaubert se esvazia, favorecendo a forma e desertando o conteúdo. É uma escrita do nada, escrita sobre o nada. O projeto empreendido pelo escritor exilado das palavras, a respeito de seu romance mais famoso, se revela em outra carta enviada a Louise Colet, em fevereiro de 1852: “O que eu gostaria de fazer é um livro sobre o nada, um livro sem apego externo, que se mantivesse por si mesmo. Um livro que quase não contivesse assunto ou pelo menos onde o assunto fosse quase invisível, se fosse possível.” É por essa razão que o crítico Jean Rousset publicaria, em 1962ROUSSET, Jean. Forme et signification. Paris: J. Corti, 1962., o livro Forma e significação, dedicando um capítulo específico a Flaubert, intitulado “Madame Bovary ou o livro sobre nada”.

Expulso do mundo da infância e da repetição verbal, forçado a entrar no mundo simbólico da fala, o ato de ler e escrever tornar-se-á para Flaubert uma angústia de exteriorizar o incomunicável. Por isso mesmo, o ato denuncia-se uma força ativa sobre a “criança” - etimologicamente o termo infans refere-se àquele que é despossuído de fala. Dito de outro modo, alude a um ser passivo no universo ativo do logos. No primeiro período de existência, a criança se encontra, portanto, numa encruzilhada de fatalidades.

Na verdade, aos sete anos, não saber ler era insuportável para o menino que se descobria indigno do nome erudito e letrado dos Flaubert. De família de veterinários e médicos, de longa tradição rural, o pequeno Gustave viu, desde muito cedo, o patrimônio cultural e científico da família deslizar para o irmão mais velho, Achille, pelas mãos do fundador: “Exercitar o direito do mais velho, Achille-Cléophas não hesitou um momento em favorecer o mais velho dos Flaubert em detrimento do mais jovem” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 70).

As razões das humilhações e a origem do profundo infortúnio que obriga Gustave a suportar a vida como um fardo são assim remetidas pelo filósofo ao alvorecer da sua juventude, quando aos quinze anos escreveu Quidquid Volueris. A exemplo da famosa introdução irrisória de “Charbovari”, em Madame Bovary, Djalioh é um monstro ridicularizado em seu ato de fala: “Ele falava rápido, suas pálpebras piscavam e sua pupila girava lentamente em sua órbita, como ocorre com os idiotas.”

Nesses dois episódios, Flaubert ressuscita conscientemente seu torpor infantil, denunciando, além disso, a leviandade assassina de seus ex-juízes - homens de letras que, entretanto, usam a linguagem para repetir lugares-comuns e fórmulas prontas. Talvez por isso, Flaubert perceba que as personagens de Madame Bovary não falam porque não podem empregar a linguagem do cotidiano, senão soaria falso: “um diálogo, em um livro, não representa mais verdade (absoluta) do que todo o resto. É preciso escolher e aí colocar planos, gradações e meios-tons sucessivos, como em uma descrição” (carta a Ernest Feydeau, dezembro de 1858).

Não há escapatória para o escritor enfrentar seus detratores que, como acusa Zola (1995ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995., p. 128), após a publicação de Madame Bovary, não cessaram de persegui-lo ou de acolher suas publicações com hostilidade. Por um lado, Gustave necessita criar uma linguagem nova e original, capaz de levar em conta todas as suas impossibilidades comunicativas que, desde muito cedo, ele tão bem percebera: “Tudo o que ele vai precisar durante a vida é inventar a linguagem adequada; será a sua obra, que poderia ser chamada de ‘discurso sobre a fatalidade’” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 155).

Essa nova linguagem deve permitir-lhe, ao mesmo tempo, chegar ao “paraíso perdido”, integrando-o, por outras trilhas e por todos os meios ao seu dispor, à tradição científica do clã Flaubert, destacada pelo fundador Achille-Cléophas, que encarna o papel do pater familias: “Achille-Cléophas tinha apenas um orgulho e uma paixão: a ciência” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 107). Resgatando a etimologia do vocábulo “idiota”, do grego idiôtés, na acepção de singular, de indivíduo particular, de homem privado (em oposição a homem de Estado), a árvore genealógica dos Flaubert (Figura 3) desvela a idiossincrasia que caracteriza o genitor do realismo:

Figura 3 -
Árvore genealógica dos Flaubert.

É na inscrição histórica no seio familiar que se concentram os embriões do destinar-se do escritor, paulatinamente deslindado pela “psicanálise existencial” de Sartre.1 1 Segundo o princípio dessa psicanálise, o homem é concebido como uma totalidade, exprimindo-se integralmente na sua conduta mais insignificante e superficial, tornando o mínimo detalhe altamente revelador do seu ser. Seu ponto de partida é a experiência, sua finalidade é uma hermenêutica de decifração dos comportamentos empíricos do homem, seu método é comparativo, pois cada conduta simboliza a escolha fundamental do indivíduo, ao mesmo tempo em que mascara os aspectos ocasionais e históricos da própria escolha. É graças à comparação que a unicidade e singularidade das condutas se manifestarão. O primeiro esboço da psicanálise existencial apoia-se em Freud, de quem Sartre se esforçará de diferir no desenvolvimento posterior do método (Cf. SARTRE, 1943, p. 614). Esse método, aliás, põe entre parênteses relatos da própria narradora com vistas a atingir as camadas irredutíveis e heterogêneas de significados de cada informação concernente ao homem, jamais vislumbrado como um indivíduo, mas como um “universal singular” devendo, por isso, ser estudado pelas duas pontas:

Com certeza, nem tudo vai bem para Flaubert: ele detestou a vida de colégio, a vida de estudante; vítima de uma “doença nervosa” que sua biógrafa tem o cuidado de omitir, ele se isola em Croisset. Mas associar a essa infância supostamente atrasada os transtornos da adolescência e da maturidade, explicar estes por aquela, ou apenas utilizá-los para confirmar as declarações de Caroline Commanville, seria tirar um coelho da cartola, se não dispuséssemos de um testemunho abundante, detalhado, passados apenas cinco anos dos acontecimentos em questão: o próprio Gustave. (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 27).

Da proto-história à história: O sêmen da passividade

Inscrita no método “progressivo-regressivo” proposto por Sartre, a “síntese progressiva” demonstra que a “ferida profunda”, o desgosto de viver, a impossibilidade de compreender qualquer coisa, a dificuldade de negar e de afirmar que impedem a entrada do menino Gustave no universo do discurso são dados por sua “constituição passiva”. Acontecimento de sua história inaugural, essa constituição está na origem das vertigens que sofre o pequeno Gustave, justificando as tribulações iniciais da criança para falar e escrever. Tal constituição, ademais, lhe vem de fora: “os sentidos chegam a ele como sabores e cheiros”, proibindo-lhe de avançar do estágio de “alma falada” ao de “alma falante”: “Enquanto não tomam a decisão de lhe presentearem um abecedário, ninguém se apercebe que ele não fala, mas que é falado” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 49).

A dificuldade de aprender a ler, portanto, deriva de um transtorno mais antigo e mais profundo: a dificuldade de falar. Assombrado pela fala, Gustave assume sua “constituição passiva” ao admitir que suas intuições poéticas lhe advêm por intermédio das forças da inércia: “Inércia, preguiça, turbulência interior, letargia, todos esses traços se manifestam ao longo de sua existência” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 46). As causas fundantes da passividade são destrinçadas por Sartre no capítulo “O menino imaginário”:

Assim é Gustave. Assim o constituíram. E, sem dúvida, nenhuma determinação é impressa em um ser vivo sem que ele possa ultrapassar com sua maneira de vivê-la. No pequeno Flaubert, a atividade passiva e o voo sem motor são sua maneira de viver a passividade constituída: o ressentimento é sua maneira de viver a situação que lhe é atribuída dentro da família Flaubert. Em outros termos, as estruturas desta família são interiorizadas em atitudes e exteriorizadas em práticas por meio das quais o menino se torna o que o fizeram. De maneira inversa, não encontraremos dentro dele nenhuma conduta, por mais complexa e elaborada que possa parecer que não seja originalmente a superação de uma determinação interiorizada (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 653, grifos do autor).

Os cuidados maternos desempenham um papel primordial na constituição passiva estimulada no indivíduo Gustave, “carne apalpada”, “corpo explorado” que conhece a excitação mediante ação dada pela mão viril da senhora Flaubert:

Submisso, desejava que o trabalho de suas grandes mãos acabasse em carícias. Em vão: elas despertavam nele as zonas erógenas da passividade. [...] Sua passividade só podia ser vivida como produto de uma atividade constante, e essa austera atividade estava justamente sempre se afastando, de modo inexplicável, fazendo do menino a metade de um andrógino amputado de sua outra metade. Era o mesmo que dedicá-lo para sempre a uma vida sexual imaginária; ele buscou no onanismo e, mais tarde, nas carícias amorosas reconstituir a totalidade disjunta, isto é, reencontrar a androginia primitiva (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 696, grifos do autor).

Toda a suposta virilidade materna dissolve-se, então, na submissão da senhora Flaubert ao pai, Achille-Cléophas, médico e positivista, com quem o escritor desejava acertar contas, bem como com Achille, irmão mais velho por quem o escritor fora sempre preterido. Zombeteado por todos desde tenra idade, os primeiros contos metamorfoseiam personagens reais em ficcionais, denunciando o desejo flaubertiano de supressão da paternidade:

Este sou eu, com minha anomalia, inocente vítima de escárnios dos que me cercam. Mas agora ele especifica não ser filho de Achille-Cléophas. Não, ele não é o produto daquelas fornicações infames em que uma “jovem criança” se entrega aos apetites de um notável; ele não deve sua vida - nem seu caráter - àquele homem rico e famoso, de espírito positivo. Não tendo sido gerado - este seria seu verdadeiro desejo - por qualquer partenogênese, ele se atribui um pai jovem e sofrido, que se parece com ele (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 700, grifos do autor).

A vingança contra o “pretenso” pai, todavia, não é o suficiente. Nas transfigurações do imaginário de Gustave, a mãe deve ser igualmente penalizada, tanto por sua vassalagem patriarcal quanto pela ausência do falo imaginário do qual era julgada portadora na infância. Esse fato revela-se determinante porquanto lança o criador de Bouvard e Pécuchet nas sendas da passividade. No mesmo conto, Caroline Flaubert, personificada por Henriette, se degrada, sendo obrigada a ir trabalhar num bordel. De maneiras nobres e bela figura, o rapaz escolhe a mãe para copular, proporcionando-lhe um prazer intenso, enlouquecendo-a de amor incestuoso.

Ao dormir com a viúva do “falso pai”, morto após perder seus bens na Revolução Francesa, o protagonista vinga-se da mãe que dele negligenciara na infância, mas também o faz em nome de todos os homens que carecem de ternura e afeto. O desfecho do conto é trágico, pois Gustave é apunhalado por malfeitores ao sair do bordel e a senhora Flaubert, precipitando-se sobre o cadáver, reconhece o filho morto e enlouquece, sendo esmagada pelas rodas do carro fúnebre que o conduz à derradeira morada.

Pouco a pouco, Gustave compreende que sua mãe não é mais a metade ativa do andrógino do qual ele é o corolário passivo: “Ela o havia sido, no entanto, de modo ilusório: imprimindo sua marca nele, ela o condenara para sempre a ter uma vida sexual imaginária. Mulher irreal nas mãos dos homens, ele será um homem irreal em sua relação com as mulheres” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 704).

Todas as marcas, todos os traços, todas as reminiscências de uma infância infeliz já se encontram assim cunhados pelo ferro em brasa aposto sobre a pele sensível do autor de Educação sentimental como um estigma, um desígnio, uma fatalidade. Cabe, então, ao indivíduo Gustave tomar o seu destinar-se em mãos, servindo-se de sua liberdade soberana, fazendo-se outro por um projeto diferente.

De ator a autor: o desafio de Gustave

Do mesmo modo que a análise sartriana de Jean Genet destaca o momento crucial da conversão à autenticidade, como uma escolha produzida no meio de outras escolhas, capaz de ser definida pela máxima: “Vou ser um ladrão” (SARTRE, 1952SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet comédien et martyr. Paris: Gallimard , 1952., p. 56), Sartre entrevê na trilha de desventuras entalhada nas pegadas do garoto Gustave, o timing exato para reverter a seu favor a antinomia do vécu: “Serei o que sou, o Ator” (Sartre, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p.786, grifo do autor).

Com efeito, a assunção de indumentárias múltiplas em personagens plurais é a fórmula que permitirá a Gustave matar dois coelhos com uma só cajadada. Por um lado, ungido pelo poder de encarnar todos os personagens na imaginação, o eremita de Croisset é capaz de, momentaneamente, superar o seu vivido insignificante, incompreendido, inábil e inepto, ao conceber todas as estruturas da comédia humana; por outro, o caricaturismo de personagens vivos empresta-lhe o ser objetivo do qual pode usufruir:

Dito isso, ao querer-se ator, em todo caso, Gustave faz uma reavaliação do imaginário: ele o considera, é verdade, como seu próprio produto, o que o diferencia de todos os outros. [...] Gustave sonha em compensar os fracassos que obtém no Hospital Central pelo interesse apaixonado e reconhecido que os espectadores lhe devotarão. [...] É essa atenção apaixonada de um público que espia seus gestos que Gustave é levado a desejar pela indiferença atestada por Achille-Cléophas em relação a esses mesmos gestos; um público os amará porque eles são gestos, enquanto, pelo mesmo motivo, o doutor Flaubert os desprezava. E o pequeno impostor, assumindo a sua impostura, será reconhecido por uma multidão febril como o Senhor das ilusões, o benfeitor dos homens. [...] Seu objetivo? Experimentar a glória por antecipação (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 794-795, grifo do autor).

Paralelamente, Gustave inicia-se na arte de escrever peças nas quais também atuaria. Embora fosse pouco dotado para o palco, o futuro lhe reservaria um honrado posto no panteão literário: “Gustave não difere de várias outras crianças que, porém, não escreverão” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 950). Dependente da herança paterna a qual refuta furiosamente, o exercício escritural nasce submetido a um rigoroso ordenamento científico, materializando-se, à primeira vista, pela adoção de técnicas do realismo, visando à exatidão do daguerreótipo: “a arte deve adquirir a precisão da ciência” (carta a Louise Colet, 6 de abril de 1853).

Sem dúvida, Henri Mitterand (1987MITTERAND, Henri. Le regard et le signe. Paris: PUF, 1987. , p. 18-19) não se engana ao considerar que o fenômeno mais marcante do movimento das ideias literárias talvez seja essa convergência da reflexão científica - especialmente no campo médico - e da reflexão estética - especialmente no romance, já que todos os grandes escritores da época queriam apreender em profundidade os mecanismos de conhecimento do homem.

Nesse sentido, para escrever a Lenda de São Julião hospitaleiro, Flaubert consultou vários tratados sobre esporte de caça: A caça, de Gaston Phoebus, o livro de caça do rei Modus, a falcoaria de Jean de Franchières e os de Tardif. Aí, encontra outros elementos que se enquadram na composição do texto, notadamente iluminuras, catálogo de termos técnicos, imagens raras e expressões medievais. As cinco mil páginas de planos, notas e rascunhos de Salambô, fruto de 15 horas de escrita por dia, atestam o enorme trabalho de precisão cirúrgica realizado pelo escritor.

Habitado por um vazio absoluto onde há profusão de línguas, tudo nele converge para a era primeva − o exercício escritural de diários de viagens e as pesquisas meticulosas nos reconduzem à sua infância: A lenda de São Julião hospitaleiro combina muitas fontes eruditas, mas o documento fundamental continua sendo o vitral da Catedral de Rouen, e é aos dezessete anos, no Royal College, que Flaubert tem como professor de desenho Hyacinthe Langlois, historiador dos vitrais, com quem visitou igrejas da região e que o apresentou às lendas hagiográficas da Idade Média, incluindo a de São Julião, que o fascinou.

Na quinta série, Gustave foi incentivado por sua professora a compor uma obra pessoal. Aos nove anos, com a grafia ainda vacilante, o menino sugeriu que Ernest Chevalier selasse sua amizade com um colorido literário: “Se você quiser se juntar a nós para me escrever, eu escreveria comédias e você escreveria seus sonhos; e como há uma senhora que vem ver o papai e sempre nos conta bobagens, eu as anotaria” (carta a Ernest Chevalier, 31 de dezembro de 1830).

Por uma necessidade psíquica, portanto, Flaubert tenta tornar-se um ser falante a partir de um domínio particular de uma linguagem precisa e nova: “Gustave, esta erva daninha não receberá de boca nenhuma a linguagem das plantas inúteis. Depois, muito mais tarde, ele próprio irá inventá-la” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 156).

Todos os componentes do código do documentário, em Flaubert, são assim “transfigurados” por sua imaginação na elaboração ficcional, como afirma o escritor em carta a George Sand, de 20 de dezembro de 1875: “Considero o detalhe técnico muito secundário, a informação local, enfim, o lado histórico e exato das coisas. Acima de tudo, busco a beleza.” O belo, por sua vez, serpenteia-se no projeto estético delicadamente tecido por Gustave Flaubert.

Se a realidade é execrável, deve ser pintada em toda a sua fealdade, o que constitui uma contradição marcante do credo estético flaubertiano, traduzido por uma dupla postulação: a que revela um escritor apaixonado pela vida e a que anuncia um eremita pessimista, assombrado pelo naufrágio absoluto da existência e aterrorizado pelo alcance da estupidez universal. A única solução possível é transpor a feiura do conteúdo na beleza da forma.

Nada no bolso ou nas mãos: o escritor traça suas garatujas e depois se vai, submetendo-se às mais maldosas inspeções. Uma das intenções profundas de Flaubert estilista é encontrar um equivalente escrito da sedução oral: ator, ele teria fascinado, pensa ele; portanto, é preciso encontrar um truque para fascinar por escrito: mas esta busca virá mais tarde, depois de muitos furores, e veremos que nela perderá a saúde já precária de sua mente (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 889, grifos do autor).

Henri Mitterand (1987MITTERAND, Henri. Le regard et le signe. Paris: PUF, 1987. , p. 18) reconhece que “não se trata de fotografar a superfície, das aparências dos seres e das coisas, mas de compreender em profundidade os mecanismos fisiológicos, psicológicos e sociais aos quais obedecem”. Não é, portanto, no material, é antes na forma de explorar os fatos que Flaubert antecipa o advento do naturalismo, quando se esforça em desnudar os elementos analisados como cobaias de laboratório.

Figura 4.
Caricature of Gustave Flaubert “dissecting” Madame Bovary. By A. Lemot (1847-1909) - Domínio Público.

Considerações finais

À guisa de arremate, pode-se dizer que a incursão flaubertiana na arte de atuar implica um investimento potente na sua passividade constitutiva e opera no escritor uma verdadeira conversão porquanto visa à objetivação do seu ser que se expressa, sobretudo, na profissão que exerce.

Contando com a cumplicidade secreta do espectador, que paga o ingresso para assisti-lo travestir-se nos mais diferentes rostos, capazes de externar os mais distintos sentimentos, o papel de ator lhe possibilita suprimir a mistificação, denunciando, por conseguinte, o seu caráter ilusório.

No teatro, é seu ser Gustave que se dá em espetáculo para compensar a sua palidez existencial e seu enfraquecimento identitário, uma vez que o ator: “É um imaginário que se consome interpretando papéis para ser reconhecido, e por fim é reconhecido como operário especializado da imaginação: seu ser lhe vem da socialização de sua impotência de ser” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 791, grifos nosso).

A literatura do jovem Flaubert manifesta-se, dessarte, como um imaginário materializado, uma saída de emergência aos seus infortúnios sucessivos, uma resposta definitiva às vexações infantis, uma vitória irrefutável sobre as reservas dos pais, um xeque-mate minuciosamente urdido contra a predileção explícita pelo irmão.

O longo percurso que conduz a criança à vida adulta é permeado por múltiplas experimentações sustentadas por uma escrita de acumulação, convergindo para o reposicionamento do eremita de Croisset no ângulo agudo de outra representação do imaginário: a passagem de uma ficção (a do ator-autor) para outra (a do eu-literário): “O Eu subjetivo permanece onde está, mas, no vocábulo traçado, opera-se uma inversão Eu em Ele. [...] Gustave precisará de vários anos para conquistar o Eu literário: mesmo assim, este muitas vezes continuará sendo um Ele disfarçado” (SARTRE, 1971SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1. Paris: Gallimard , 1971. , p. 950).

A que conclusão podemos chegar se retomarmos nossa direção inicial a propósito da dupla busca de escritores-observadores, Sartre e Flaubert, que se debruçam sobre suas respectivas investigações sobrepostas como numa composição en abîme? Não é difícil imaginar o filósofo-demiurgo apoiado na sua pedra filosofal para dela extrair as informações necessárias à demonstração do seu método científico e que aí se depara com um alquimista distraído, completamente absorvido por seu trabalho de polir palavras, as quais cinzela e disseca cuidadosamente, desvelando, de maneira involuntária, as verdadeiras fontes criativas de sua fatura literária.

Ao fazê-lo, revela também, de modo insofismável, o aspecto progressivo do método sartriano, capturando o projeto flaubertiano na finalidade que lhe concede sentido, mediante fórmula que já havia sido explicitada por Sartre, duas décadas antes, no Jean Genet ator e mártir (1952SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet comédien et martyr. Paris: Gallimard , 1952., p. 55): “O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós mesmos fazemos daquilo que fizeram da gente”.

Referências

  • FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary dans Œuvres complètes Paris: Gallimard, 1951. t. 1. (Collection Bibliothèque de la Pléiade).
  • FLAUBERT, Gustave. Trois contes Introduction et notes par Pierre-Marc de Biasi. Paris: Le Livre de Poche, 1999. (coll. Classiques).
  • MITTERAND, Henri. Le regard et le signe Paris: PUF, 1987.
  • PASETTI, Chiara. Hallucinations et création littéraire chez Flaubert. Revue Flaubert, n. 12, 2012.Disponível em: https://flaubert.univ-rouen.fr/revue/article.php?id=103 Acesso em: 25 nov. 2020.
    » https://flaubert.univ-rouen.fr/revue/article.php?id=103
  • ROUSSET, Jean. Forme et signification Paris: J. Corti, 1962.
  • SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant Paris: Gallimard , 1943.
  • SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet comédien et martyr Paris: Gallimard , 1952.
  • SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille 1 Paris: Gallimard , 1971.
  • SARTRE, Jean-Paul. Lettres au Castor 1 Paris: Gallimard , 1983.
  • VERSAILLE, André. La bêtise l’art et la vie - en écrivant Madame Bovary Paris: Editions Complexe, 1991.
  • ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. Tradução de Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.
  • 1
    Segundo o princípio dessa psicanálise, o homem é concebido como uma totalidade, exprimindo-se integralmente na sua conduta mais insignificante e superficial, tornando o mínimo detalhe altamente revelador do seu ser. Seu ponto de partida é a experiência, sua finalidade é uma hermenêutica de decifração dos comportamentos empíricos do homem, seu método é comparativo, pois cada conduta simboliza a escolha fundamental do indivíduo, ao mesmo tempo em que mascara os aspectos ocasionais e históricos da própria escolha. É graças à comparação que a unicidade e singularidade das condutas se manifestarão. O primeiro esboço da psicanálise existencial apoia-se em Freud, de quem Sartre se esforçará de diferir no desenvolvimento posterior do método (Cf. SARTRE, 1943SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard , 1943., p. 614).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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