Acessibilidade / Reportar erro

A relação dinâmica entre cultura oral e cultura escrita no conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa

The dynamic relationship between oral and written culture in the short story “Famigerado”, by Guimarães Rosa

Resumo

Este artigo tem como foco a questão das negociações de sentido no conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa. O conto permite o enquadramento complexo de uma cena enunciativa cujos gestos interpretativos indicam dinâmicas sociais de processos interacionais em que se relativiza a dicotomia entre a cultura oral e a cultura escrita. O objetivo deste trabalho é demonstrar que, subjacente às tensões interpretativas vivenciadas na negociação de sentidos, é possível observar diferenças de ordem socioeconômica e cultural entre os personagens, atravessadas por posicionamentos sobre as práticas sociais de letramento de cada um deles, com influência direta tanto na origem quanto no desfecho da narrativa.

Palavras-chave:
negociação de sentidos; cultura escrita; cultura oral; práticas de letramento; vozes textuais

Abstract

This article focuses on the issue of negotiations of meaning in the short story “Famigerado”, by Guimarães Rosa. This short story allows the complex framing of an enunciative scene whose interpretive gestures indicate social dynamics of interactional processes in which the dichotomy between oral culture and written culture is relativized. The aim is to demonstrate that, underlying the interpretive tensions experienced in the negotiation of meanings, it is possible to observe socioeconomic and cultural differences between the characters, which are intertwined with their positionings in social literacy practices, with direct influence both on the origin and the outcome of the narrative.

Keywords:
negotiation of meanings; writing culture; oral culture; literacy practices; textual voices

Resumen

Este artículo se centra en la cuestión de las negociaciones de sentido en el cuento “Famigerado”, de Guimarães Rosa. El cuento permite enmarcar de manera compleja una escena enunciativa cuyos gestos interpretativos señalan dinámicas sociales de procesos interaccionales en los que se relativiza la dicotomía entre cultura oral y cultura escrita. El artículo pretende demostrar que, subyacentes a las tensiones interpretativas experimentadas en la negociación de significados, es posible observar diferencias socioeconómicas y culturales entre los personajes, atravesadas por posiciones sobre las prácticas sociales de literacidad de cada uno de ellos, con influencia directa tanto en el origen como en el desenlace de la narración.

Palabras clave:
negociación de significados; cultura escrita; cultura oral; prácticas de literacidad; voces textuales

“Famigerado”, o conhecido conto do livro Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, oferece, na tensa conversa entre um jagunço e um doutor, entradas múltiplas para se discutir questões sobre as relações entre a cultura oral e a cultura escrita, apontando não uma dicotomia discursiva, mas uma dinâmica intercultural no processo de construção e de negociação de sentidos. Nesse encontro dos personagens, há um diálogo cultural de diferentes culturas escritas (GALVÃO; BATISTA, 2006GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Oralidade e escrita: uma revisão. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 403-432, maio/ago, 2006.): a daquele que domina o código escrito dos livros e a daquele que reconhece e recorre ao representante da cultura letrada para esclarecer uma questão semântica. Não há, assim, nessa perspectiva, uma separação cultural binária entre o oral e o escrito, mas modos distintos de se relacionar com a escrita, que consideram os sujeitos, suas histórias, suas práticas de letramento e as relações de poder envolvidas em uma dinâmica social que legitima certas funções de uma autoridade interpretativa, especialmente quando da presença de disputas de sentidos.

A fim de observar mais minuciosamente a relação entre a cultura oral e a cultura escrita, recorremos à materialidade do texto literário anteriormente citado para analisar o jogo de linguagem que se estabelece entre os personagens, com o objetivo de resolver um conflito provocado por uma questão semântica de vida ou morte. No entanto, subjacente às tensões interpretativas vivenciadas na negociação de sentidos, é possível observar, na cena enunciativa apresentada no conto, diferenças de ordem socioeconômica e cultural entre os personagens, que, por consequência, refletem posicionamentos sobre as práticas sociais de letramento, e isso tem influência direta tanto na origem quanto no desfecho da narrativa.

Concordamos com o que apontam estudos sobre a oralidade e a escrita, conforme indicado por Galvão e Batista (2006GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Oralidade e escrita: uma revisão. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 403-432, maio/ago, 2006., p. 423), em revisão sobre o tema:

Muitos pesquisadores têm afirmado que as relações entre oralidade e escrita são muito mais complexas do que alguns estudos podem fazer supor. As grandes dicotomias estabelecidas entre oral e escrito têm sido, para eles, incapazes de explicar as intrincadas relações existentes entre as diferentes formas de linguagem, as características e os modos de pensamento em culturas diversas. (GALVÃO; BATISTA, 2006GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Oralidade e escrita: uma revisão. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 403-432, maio/ago, 2006., p. 423).

Não buscamos, neste texto analítico sobre um discurso literário que exibe vozes oriundas de diferentes lugares sociais, uma abordagem da linguagem descentrada e livre de julgamentos que, de alguma forma, naturaliza as posições de fala e favorece a emergência de uma abordagem que ratifica a “grande divisão” (FINNEGAN, 2015FINNEGAN, Ruth. Where is language? An antropologist´s question on language, literature and performance. London: Bloomsbury Academic, 2015. ) entre oralidade e escrita. Ao contrário, o posicionamento aqui defendido é o de considerar que as práticas de letramento devem ser descritas e analisadas fundadas em uma concepção dinâmica de cultura. Nessa direção, o conto Famigerado tematiza questões que ultrapassam o campo da definição de significados, permitindo um enquadramento mais amplo sobre a produção e negociação de sentidos nos encontros interculturais.

O dinamismo das culturas

Desde quando a cultura popular se tornou objeto de estudo, a busca por conceituar o que se compreende como “cultura”, assim como o que se entende por “popular” tem sido matéria de grande complexidade. A cultura popular, enquanto objeto de estudo, havia sido descoberta antes que o progresso colocasse em risco as sociedades primitivas. Contudo, Burke argumenta que “os historiadores da cultura deveriam definir-se não em termos de uma área ou ‘campo’ particular como a arte, literatura e música, mas sim de uma preocupação distintiva com valores e símbolos, onde quer que estes se encontrem” (2010BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 28). Ao se limitar o alcance do que se compreende como cultura ao aspecto artístico e também do que seja popular à vida dos camponeses que viviam em comunidades primitivas, “os descobridores ignoravam importantes modificações culturais e sociais, subestimavam a interação entre campo e cidade, popular e erudito” (BURKE, 2010BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 60). No trânsito entre o campo e a cidade, possivelmente, muitas trocas culturais aconteceram.

A partir da oposição popular e erudito, é possível observar que as manifestações culturais se configuravam, primordialmente, por meio das diferenças de classe social, revelando uma relação assimétrica na qual a cultura erudita não só tinha uma certa influência como também exercia controle sobre a popular. Burke (2010BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p.18) usa o termo “biculturalidade” das elites para mostrar suas formas de ação sobre a cultura popular por meio das tentativas de “reformar” a cultura popular, sua “retirada” dela e finalmente sua “descoberta”, ou mais exatamente “redescoberta” da cultura do povo, especialmente dos camponeses. Assim, sempre existiu uma relação de poder entre a cultura popular e a erudita. Essa tentando inibir e modificar características da cultura popular consideradas como impróprias e profanas.

Outro aspecto considerável a respeito da cultura popular é que, quando se torna objeto de estudo, ela é descrita e analisada a partir de olhares externos à comunidade. Esse fato também revela uma forma de dominação, pois os descobridores, na sua maioria, eram representantes das classes mais abastadas e provenientes dos centros urbanos. Logo, grande parte dos registros, que se tornaram objeto de estudo, tinha somente a perspectiva externa de quem observava e interpretava. Como exemplo, podemos tomar os registros ligados a processos de acusação por bruxaria e heresia por parte da igreja católica, sendo os relatos redigidos somente pela acusação, como é possível observar no inusitado caso do moleiro Menocchio no livro O queijo e os vermes (GINZBURG, 1989GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). Embora houvesse um número de camponeses que sabiam ler e escrever, a grande maioria deles não dominava o código escrito. A cultura popular era majoritariamente compartilhada e transmitida oralmente. Contudo, a partir da propagação da escrita, até mesmo as comunidades de cultura oral passaram a assimilar a influência da cultura escrita no seu cotidiano.

Mesmo ao se considerar que a cultura popular tenha sido descoberta como objeto de estudo a partir do século XVIII, a relação entre a cultura popular e a erudita nem sempre foi facilmente demarcável no sentido de apontar origens e limites que indicassem até que ponto uma teve influência sobre a outra. Possivelmente, uma fonte deve ter recorrido à outra, porém em níveis desiguais de força e intensidade que espelham as diferenças de classe social. Na visão de Hall, há uma batalha cultural constante:

Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. (HALL, 2003HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende e outros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 247-264., p. 255).

Essa relação de dominação sobre as manifestações culturais populares existe de longa data e sempre esteve vinculada a questões políticas e econômicas, legitimando certas diferenças sociais. De acordo com Martín-Barbero (1997MARTÍN-BARBERO, Jesús. Povo e massa na cultura: os marcos do debate. In: MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios à mediação: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 121-124., p. 35), esse processo de legitimação define o povo por exclusão. “E é nesse movimento que se geram as categorias ‘do culto’ e ‘do popular’.” Segundo o autor, a identidade do povo seria constituída pelo que lhe falta. Logo, o povo seria excluído da cultura classificada como erudita, assim como da riqueza, da política e da educação. A própria ideia de “língua de cultura” (termo hoje amplamente criticado e revogado) tem uma relação com a construção de uma literatura representativa que se aproxima de uma cultura local, dita popular, mas que dela se distancia quando se considera a parcialidade da representação escrita como forma de registro que tende a buscar um novo posicionamento valorativo para os usos linguísticos, via um processo de padronização.

Outro desafio quando se estuda as relações e as tensões entre as culturas seria como conceituar o que caracteriza uma cultura, considerando que tudo o que o homem faz pode ser tomado como produto cultural. Street (1993STREET, Brian. Culture as a verb. Anthropological, aspects of language and culture process. In: GRADDOL, D. L.; THOMPSON, M. B.; BYRAM, M. (ed.). Language and Culture. Clevedon: BAAL and Multilingual Matters, 1993. p. 23-43. ) argumenta sobre a problemática implicada na busca por uma definição para cultura, pois ela mudaria de sentido e serviria a propósitos concorrentes em diferentes épocas. “Cultura é um processo ativo de produção de sentido e contestação de definição, incluindo sua própria definição. Então, é isso o que eu quero dizer ao argumentar que cultura é um verbo.” (STREET, 1993STREET, Brian. Culture as a verb. Anthropological, aspects of language and culture process. In: GRADDOL, D. L.; THOMPSON, M. B.; BYRAM, M. (ed.). Language and Culture. Clevedon: BAAL and Multilingual Matters, 1993. p. 23-43. , p. 3, tradução nossa). Essa concepção de Street que compreende a cultura como uma ação, que vai se alterando em decorrência da evolução histórica e dos interesses sociais envolvidos, pode ser bem abrangente. Por isso, ainda que a oralidade seja predominante na vida das pessoas, à escrita é atribuído um prestígio e autoridade que a primeira não recebe diretamente. Isso não impede, no entanto, que o prestígio e a autoridade sejam relativizados em função de condicionantes temporais e espaciais.

O encontro de culturas letradas e culturas orais em Guimarães Rosa

Nosso recorte analítico recai sobre o papel da linguagem como meio de representação de pessoas que participam de diferentes experiências culturais e que se encontram na enunciação. O encontro de repertórios culturais na sua potente variedade se faz presente em muitos textos de Guimarães Rosa. São repertórios culturais que indicam tensões entre um suposto mundo letrado e as relações de poder que engendram e o mundo predominantemente oral do sertanejo. Segundo essa perspectiva tensionada da linguagem, há passagens que dialogam com o conto Famigerado, o centro da atenção deste artigo. Em O burrinho pedrês, por exemplo, o diálogo entre patrão e empregado expõe, de um lado, a secura de um desafio lógico, pretensamente superior, e, de outro, as nuances de um modo de pensar que se confunde com a prática cotidiana, por dois personagens que ocupam diferentes lugares sociais:

- Quantos animais ficaram, mulato mestre meu secretário?

- Primeiro que todos, o cordão do senhor, seu Major. Silvino, Benevides, e Leofredo, têm os cavalos lá deles... Zé Grande também, eu também... Tem o baio de seu Tonico... Tem o alazão... E o Rio-Grande. Eu até estou achando que eles chegam, Seu Major.

E Francolim baixava os olhos, sisudo, com muita disciplina de fisionomia.

- Francolim, você hoje está analfabeto. Pensa mais, Francolim!

- Tem também... Só se for o cavalo de silhão de sá dona Cota, mais o poldro pampa... É, mas esse não serve: o poldro já está com carretéis nas munhecas, mas ainda não acabou de ser bem repassado.

- O poldro vai, Francolim.

- Então dão. Assim estão todos.

- Conta nos dedos, Francolim. Têm de ir dez, fora nós dois.

- Falta um cavalo, seu Major!

- Francolim, você acertou depressa demais. [...] (ROSA, 1996ROSA, João Guimarães. O burrinho pedrês. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996., p. 17-18).

Nesse trecho, expandindo uma metáfora de “alfabetizado”, é apresentada uma avaliação que situa um desempenho de raciocínio a uma concepção de letramento que a vincula a capacidades cognitivas mais perenes e definitivas (“Francolim, você hoje está analfabeto. Pensa mais, Francolim!”).

Nem só por relações assimétricas de poder se enuncia o encontro entre culturas no conjunto da obra de Guimarães Rosa. As formas de participação do mundo letrado no sertão se revelam também em passagens do romance Grande Sertão Veredas, como no trecho em que Riobaldo, em diálogo com o seu atento interlocutor, narra as andanças de uma carta recebida muitos anos depois de escrita:

Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zangou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. (ROSA, 1986ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.. p. 82-83).

A escrita de uma carta, talvez ditada a um escriba pela personagem, em um local cujos meios de circulação do escrito rompem com a imediatez de trânsito da escrita em sociedades grafocêntricas, evidencia a complexidade de processos de produção e recepção da escrita, condicionados por fatores históricos que definem certos usos e funções que moldam as práticas sociais de letramento. Mostra-se, assim, desta vez, não propriamente uma tensão entre um mundo eminentemente oral e outro escrito, mas movimentos nos modos peculiares de produção e circulação da escrita em um e outro.

Em “Famigerado”, a questão das negociações de sentido ganha uma maior visibilidade e permite um enquadramento mais complexo de uma cena enunciativa em que os gestos interpretativos indicam dinâmicas culturais em que dicotomias entre oral e o escrito não são adequadas para a análise dos processos interacionais vivenciados pelos personagens.

O conto “Famigerado” compõe a obra Primeiras estórias (2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.), publicada originalmente em 1962. Esse livro está entre as últimas publicações de Guimarães Rosa em vida. O título da obra, ao que se possa supor, não diz respeito às composições iniciais do autor, mas sim à novidade do gênero adotado, a estória. Paulo Ronai, no prefácio da obra, diz que o termo “estória”, adotado por um número crescente de ficcionistas e críticos na época, destinava-se a absorver um dos significados de “história”, o de “conto” (short story). A coletânea é formada por 21 “estórias” que trazem temas variados, assim como variantes do próprio gênero “conto” como: “o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa...” (RONAI, 1972RONAI, Paulo. Introdução. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972., p. xxxii). O conto analisado, situado nessa lista de possibilidades, se caracterizaria como uma anedota pelo seu teor humorístico e inusitado em relação ao evento narrado.

Os cenários e atores das obras de Guimarães Rosa estão, predominantemente, ligados a uma interioridade regional muito próxima ao mundo que o autor conheceu na sua infância e juventude em Minas Gerais. Muitas das suas narrativas se desenrolam em lugarejos remotos e retratam as existências de pessoas simples e seus conflitos pessoais. Na narrativa de “Famigerado”, Damásio representa aquele que não teve uma educação formal e que busca o doutor, que representaria uma autoridade do mundo letrado, para solucionar uma dúvida que está relacionada ao significado da palavra que dá título ao conto e, principalmente, aos efeitos de sentido do seu uso em uma situação comunicativa específica. Significantes incertos e aproximados, apreendidos numa situação com um terceiro personagem - o moço do governo - levam Damásio à procura do significado e dos seus efeitos de sentidos, presumidos como uma ofensa que precisaria de uma resposta.

O conto traz um tema diferenciado, como o próprio narrador destaca inicialmente: “Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça?” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31). Damásio é motivado por uma questão de honra que envolve uma palavra dita em relação à sua pessoa. O curioso é que o termo utilizado pode ter diferentes efeitos de sentido, a depender dos condicionantes históricos que constroem as trajetórias de cada personagem. O moço do governo, aquele que teria falado tal palavra, responde por uma função social que lhe atribui autoridade e, possivelmente por essa razão, Damásio não questiona a palavra dita diretamente a ele. Contudo, ele parte em busca de alguém que poderia lhe dar uma resposta e, considerando que a sua reputação estava em jogo, leva consigo três compadres para que sejam suas testemunhas.

A estória-anedota é contada a partir da perspectiva do narrador personagem, “pessoa instruída” cujo nome não é identificado. Sabemos apenas que, presumidamente, seja ele um médico pelas pistas presentes no próprio texto: “Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31). Entre o narrador e Damásio, há uma relação desigual no que se refere aos usos dicionarizados da língua. O doutor representaria, assim, aquele que tem autoridade para dizer o significado da palavra que tinha deixado Damásio cismado e incomodado.

Como a história é contada a partir do olhar do doutor, supõe-se uma forma de dominação; mas há um equilíbrio entre os dois personagens, pois o jagunço tem o domínio físico e simbólico do seu lugar de poder no imaginário do sertão e o doutor a força do conhecimento dos significados da língua e suas ambivalências, conforme analisa Wisnik (2002WISNIK, José Miguel. O famigerado. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 177-198, 2002., p. 177): “Jagunço e doutor portam armas desiguais - num caso ao alcance da mão, mostrativa, falante por si mesma; no outro, manobrada em ponto cego, nas astúcias escorregadias e camufladas do significante.”

O velho jagunço é apresentado ao leitor por intermédio da leitura que o doutor, personagem narrador, faz dele. Na parte inicial do conto, aquela que antecede o diálogo entre os personagens, o doutor narra a chegada de Damásio com seus companheiros e os interpreta com base nas suas fisionomias e comportamentos, sem ainda saber de quem se trata. De acordo com Ong (1998ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1998., p. 81), “a palavra oral, como já observamos, nunca existe num contexto puramente verbal, como ocorre com a palavra escrita. As palavras proferidas são sempre modificações de uma circunstância total, existencial, que sempre envolve o corpo”. Logo, a leitura visual, que implica observar as fisionomias, os gestos e as posturas, antecede e, em alguma medida, direciona a conversa entre eles: “O cavaleiro esse - o oh-homem-oh - com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra”. (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31). Amedrontado e muito desconfiado com a leitura que faz daquelas linguagens corporais que observa, o doutor passa a ter muita cautela com as palavras. Contudo, ele tenta não demonstrar medo aos visitantes: “Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p.31). A frase icônica desse ponto de vista, “O medo O”, condensa o que sentiu o doutor e a sua condição dramática, sem ponto de fuga.

É curioso observar que, embora o doutor, enquanto narrador da história, expresse uma forma de poder sobre os demais personagens, no momento em que o fato se passa, sente-se ameaçado pela possibilidade de sofrer alguma violência por parte de Damásio e seus companheiros, mesmo sem saber de quem se tratava. Mas, após esse primeiro momento do encontro, o doutor fica muito atento a ouvir Damásio e compreender o que o motivou a procurá-lo. Ao descobrir a identidade do sertanejo, um jagunço matador conhecido regionalmente, o doutor fica ainda mais cauteloso nas suas estratégias discursivas. Contudo, se estabelece um processo de negociação de sentidos, tendo como ponto de vista o do narrador-personagem, por meio do qual tem-se acesso à cena dialógica que se inicia e da problemática envolvida nessa construção literária, conforme aponta Bakhtin:

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar - a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos. (1997BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 43).

A relação que se estabelece entre os personagens seria pautada, inicialmente, sobre esse alcance do campo visual que um tem do outro, mas que ao mesmo tempo os fragiliza, pois não é possível ter a visão de si mesmo.

Guimarães Rosa, ao construir uma narrativa que propõe um conflito de ordem semântica, traz à tona a relação dinâmica que existe entre a oralidade e a escrita, revelada não pela exclusão de uma ou outra, ou ainda pela cisão dessas duas modalidades, mas por sua coexistência e circularidade nas sociedades, mesmo naquelas em que a cultura do escrito não tem centralidade ou visibilidade. O conto contrasta o sertanejo representante da cultura popular e sem conhecimento da escrita com um doutor versado nas letras e suas múltiplas significações. No entanto, o jagunço Damásio sabe reconhecer o caráter de legitimidade da cultura escrita, como se percebe ao longo da estória. Em contrapartida, o doutor demonstra um profundo conhecimento do modo de falar sertanejo, apropriando-se de expressões, ditos populares e de estruturas frasais na interlocução com o jagunço. Damásio não se intimida e demonstra, no curso da conversa, desenvoltura ao tomar os turnos de fala durante a “consulta” ao doutor. Mesmo havendo uma relação desigual a partir das posições sociais que os personagens ocupam e de suas diferentes práticas de letramento, observa-se que Damásio recorre a estratégias discursivas para se fazer entender pelo doutor, assim como para compreender o que ele fala, da mesma forma como o doutor, em escuta atenta, busca ajustar-se à fala do jagunço para compreendê-lo e também para se resguardar dentro daquela situação inusitada.

Quando Damásio introduz a pergunta que o levou até o doutor, consciente de que tem a memória evocada da palavra “famigerado”, enuncia quatro potenciais palavras para que o doutor possa compreendê-lo: “- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32). O personagem tenta, nas diversas possibilidades de combinação, recompor a palavra por meio da sua memória sonora, recorrendo a possíveis significantes para que seu interlocutor consiga reconhecer o termo proferido. Não sem razão, a apropriação do significante, no reconhecimento do que fora enunciado pelo doutor, já é um motivo de contentamento: “- ‘Sim senhor...’ - e, alto, repetiu vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32). No momento em que o doutor lhe dá as primeiras definições da palavra, quase que em estado de dicionário, e ele não consegue reconhecer nenhuma delas, Damásio recorre ao seu repertório lexical para tentar desvelar os efeitos de sentido dos termos apresentados: “- Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32). A suspeita do velho jagunço era de que “famigerado” pudesse ser uma palavra ofensiva. Logo, todos os termos que ele utiliza para tentar desvendar o significado dado pelo doutor remetem a palavras do campo semântico de sua suspeita, aquelas que teriam uma conotação ofensiva considerando o contexto da situação vivenciada com o moço do governo e as expectativas sobre o posicionamento de conflito que seguramente ultrapassa a dimensão linguística.

Após mais uma resposta pouco clara por parte do doutor, Damásio é direto na questão para poder esclarecer logo sua dúvida: “Pois… e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32). Nessa pergunta, fica explícita a posição social e cultural de onde fala o personagem para solucionar uma questão retórica. Segundo Chartier (1995CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Tradução Anne-Marie Milon Oliveira. Estudos historiográficos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995., p. 189), “as formas populares das práticas nunca se desenvolvem num universo simbólico separado e específico; sua diferença é sempre construída através das mediações e das dependências que as unem aos modelos e às normas dominantes”. O sertanejo pede que o doutor seja mais simples, que recorra à linguagem coloquial da “fala do pobre” e “em dia-de-semana”, para que ele possa compreendê-lo, paradoxalmente empregando um rico repertório da oralidade de suas vivências discursivas.

A meia verdade

A partir da ignorância sobre o significado do termo “famigerado” por parte do velho jagunço, o doutor, embora não minta, opta pela astúcia e escolhe revelar apenas um dos significados potenciais da palavra, ocultando a sua ambivalência. Isso faz toda a diferença para o desfecho da narrativa. O princípio dialógico bakhtiniano considera a natureza complexa da linguagem e do discurso, que se constituem de disputas e contradições. No conto, a complexidade da língua se revela na ambivalência de sentidos da palavra “famigerado”, assim como na relação desigual que se estabelece entre os dois interlocutores. Somente o doutor manipula o duplo sentido da palavra e o sentido que ele escolhe revelar se justifica pelo que ele projeta como identidade do seu interlocutor, pelas circunstâncias que o levaram até lá e pelos desdobramentos trágicos que a resposta interpretativa sobre os diferentes sentidos poderia acarretar ao funcionário do governo.

Embora não tenha sido alfabetizado, Damásio demonstra um reconhecimento social da escrita como uma modalidade de prestígio da língua, capaz de estabilizar significados e isso se mostra pelo próprio deslocamento que ele faz para ir ao encontro de alguém que tenha um conhecimento livresco e possa ajudá-lo a solucionar o enigma do significado:

- Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo - o livro que aprende as palavras… É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam… (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32).

Inicialmente, o velho jagunço se refere ao dicionário, sem levar em consideração que esse livro traz os significados isoladamente e que o sentido, na maioria das vezes, só pode ser compreendido a partir do contexto no qual uma palavra foi pronunciada ou escrita. Ironicamente, ele revela sua falta de confiança nas pessoas que vivem nas cercanias do local de onde ele vem, considerando que elas poderiam lhe passar informação errada, assim como a sua cisma com o padre no São Ão, que poderia enganá-lo. No caso do padre, possivelmente, ele não lhe diria apenas o significado da palavra, mas tentaria dissuadi-lo de qualquer atitude que fosse contrária aos ensinamentos da fé cristã.

Após o “esclarecimento” por parte do doutor sobre o significado da palavra “famigerado”, Damásio pede uma confirmação da veracidade daquilo que o doutor disse, quase como um juramento: “-Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p.33). Nesta passagem, palavra falada e palavra escrita encontram-se lado a lado, sem hierarquias de valores, confirmando o que buscamos mostrar a respeito da dinamicidade entre as modalidades oral e escrita nas práticas de letramento do personagem. A Escritura ou o texto bíblico e a palavra ganham o valor sagrado de tal juramento, incluindo o discurso sobre o gesto que posiciona e referenda uma conduta moral de empenho (“mão na Escritura”). Para assegurar o poder retórico da sua palavra, o doutor reforça que ele mesmo gostaria de ser “qualificado” como famigerado: “- Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado - bem famigerado, o mais que pudesse!...” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 33). Sendo ele um doutor, pessoa com prestígio social, ao se comparar com Damásio a querer para si o epíteto “famigerado”, com argúcia transmite ainda mais credibilidade à sua palavra.

Ainda mais uma vez, ao se despedir do doutor, o velho jagunço exalta o conhecimento formal: “- Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 33). Popularmente falando, uma pessoa instruída seria aquela com um nível de cultura elevado. O próprio termo “cultura”, quando utilizado isoladamente, remete ao que é erudito, culto. A expressão “grandezas machas”, usada por Damásio, reforça a qualidade de ser instruído, fazendo uso do seu modo criativo de lidar com as palavras, alterando suas regras, como um grande conhecedor da língua, capaz de transformá-la, de recriá-la. Embora ainda cismado com o moço do governo, Damásio retorna ao seu povoado projetando sua melhor estratégia de confrontação: “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 33). As expressões “sei lá” e “sei não” podem igualmente expressar dúvidas que são indicativas das decisões estratégicas que sinalizam um apaziguamento momentâneo de uma disputa instaurada para além do campo da linguagem, em especial porque o próprio Damásio já havia enunciado anteriormente: “Estou com ele à revelia ...” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32).

A dinâmica das vozes na relação entre oralidade e escrita

A voz narrativa que apresenta a história ao leitor é uma voz que mescla a oralidade e a escrita. Ainda que seja um representante da cultura escrita, há na linguagem do doutor algo de artesanal que revela a sua proximidade com a cultura popular. Para Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.), a narrativa com suas raízes nos modos artesanais de vida é também um modo artesanal de comunicação por meio do qual as experiências vividas ou ouvidas são compartilhadas. No conto, o doutor narra um episódio inusitado que aconteceu consigo. Sua linguagem, fortemente marcada por expressões coloquiais, mostra de maneira indireta que o doutor, em alguma medida, faz uso da linguagem situada no contexto em que vive e trabalha.

Ainda em relação ao aspecto que une a oralidade e a escrita, Zumthor (1993ZUMTHOR, Paul. Memória e comunidade. In: ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 139-158.) denomina alguns tipos de oralidade. Poderíamos dizer que a linguagem do doutor seria o que o autor chama de “oralidade segunda”, que procederia de uma cultura letrada na qual toda expressão seria mais ou menos marcada pela presença da escrita. É possível observar essa relação claramente ao longo da narrativa. Já o personagem Damásio, por sua vez, poderia ser relacionado com o que Zumthor denomina de “oralidade mista”, que se caracterizaria pela influência externa, parcial do escrito. O velho jagunço, como já foi tratado anteriormente, ainda que não tenha sido alfabetizado, está inserido na cultura escrita, valorizando certos artefatos (o livro) e certos comportamentos e “grandezas” resultantes das práticas letradas.

Antes de lançar a questão que o levou até o doutor, Damásio faz um preâmbulo a fim de contextualizar os acontecimentos de Serra, seu local de origem, envolvendo outras pessoas e o moço do governo. Nesse momento, o narrador fala que o velho sertanejo “Redigiu seu monologar” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32). Nessa frase, Guimarães Rosa sintetiza perfeitamente o argumento que defendemos neste trabalho em relação ao conto “Famigerado”: as culturas oral e escrita estariam sempre em um movimento performático que vai se sincronizando de acordo com a participação de cada sujeito no plano dialógico. O tal monólogo teria sido tão minucioso e detalhado que o tempo que Damásio levou para narrar os acontecimentos da sua localidade de origem faz referência a uma estratégia de planejamento textual necessária para não só contextualizar uma aproximação que favoreça o engajamento do seu interlocutor, mas dimensionar a natureza daquela situação de interlocução. Como o próprio narrador relata, o monologar do jagunço era “conversa para teias de aranha”, ou seja, um momento que exigia cautela para não provocar movimentos sensíveis que poderiam despertar o perigo. E o narrador precisava estar com ouvidos atentos. “Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava...” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32) Ao acompanhar com extrema atenção o monologar de Damásio a fim de compreender onde ele deseja chegar, o doutor avalia qual seria o movimento mais prudente nesse jogo de linguagem que se estabelece entre eles, entendendo algumas das regras construídas pelos participantes, o que inclui o jagunço e os observadores que, embora calados, serão as testemunhas fundamentais para a versão da história a ser (re)construída.

Sendo a narrativa uma obra de ficção, narrador e personagens são criações autorais. Logo, as escolhas que compõem a obra remetem a uma voz autoral, que ainda que seja externa ao texto, se revela em cada componente da construção narrativa. Na visão de Alvarez (2006ALVAREZ, Alfred. A voz do escritor. Tradução Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., p. 149), o escritor teria a habilidade de “criar vozes na mente do leitor, imagens no olho da mente, presenças imaginárias com vidas próprias, é uma habilidade intrincada e sutil, que exige autoconhecimento e despojamento [...]”. Guimarães Rosa, ao criar o encontro entre o doutor e o velho jagunço, revela ao leitor um encontro cultural no qual a linguagem é o tema principal, uma linguagem que, ao expressar meandros da negociação de sentidos, transita entre a oralidade e a escrita.

Como já observamos anteriormente, a linguagem dos dois personagens traz essa característica. No entanto, precisamos ficar atentos ao fato de que a voz de Damásio é apresentada pelo narrador com discurso direto, inclusive marcado por travessão e aspas. Essa escolha autoral revela que ainda que a voz do jagunço esteja em primeira pessoa por meio do discurso direto, ela é falada por meio do outro, no caso o doutor. Quando Damásio inicia a conversa dizendo “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31), o verbo “preguntar” apresenta um traço de fala que remete a um universo social e geográfico. Mas ao registrar a letra “r” ao final do verbo como marca do infinitivo, revela um aspecto do código que se aproxima de uma representação escrita padrão. Esse uso do verbo no infinitivo é recorrente nas falas de Damásio, como é possível observar no exemplo a seguir: “- Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro…” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 32)

Mais uma vez podemos observar uma variação na fala de Damásio, pois ainda que ele use expressões coloquiais como “ind’hoje” e “pra mor”, identificamos novamente a marca do infinitivo nos verbos parar” e “preguntar”. Além dessa marca da escrita na conjugação dos verbos, a fala do velho jagunço também é estranhamente marcada por concordâncias verbais que correspondem ao uso da língua padrão, como se observa na frase: “- Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição...” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 33). Outro aspecto interessante é que todas as vezes que Damásio se dirige ao doutor, ele o trata por “vosmecê”. No entanto, nessa ocasião que ele se dirige aos seus compadres, ele os trata por “vocês”, um termo que possivelmente não corresponderia ao repertório de fala do velho jagunço, mas que evidencia escolhas estratégicas para o posicionamento de seus interlocutores.

Essas variações, longe de serem avaliadas como inconsistências na caracterização identitária do personagem, são possíveis indícios reveladores de tensões culturais entre mundos que se aproximam ou se distanciam de modelos de escrita. A conversão da língua falada para a língua escrita não é realizável integralmente considerando que são duas modalidades diferentes de comunicação. No caso da voz de Damásio, porém, sua fala é uma representação elaborada a partir da perspectiva do doutor-narrador. Talvez isso possa explicar as ocorrências da língua padrão na voz do sertanejo, pois sua voz é representada por outra, ela não somente deixa de ser original, como traz marcas da voz do outro.

O curioso é que mesmo o doutor sendo um representante de uma cultura da “instrução”, ele usa uma linguagem equivalente à do sertanejo, como se pode observar no exemplo a seguir: “Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001., p. 31). Trata-se de um modo de narrar, e de uma estratégia discursiva, que toma a diversidade como um fenômeno constitutivo da linguagem e que desfaz uma ideia de homogeneidade cultural.

Concluindo, poderíamos dizer que “Famigerado” é uma narrativa metalinguística cujo desfecho revela o processo de negociação de sentidos que situa a língua em seu universo cultural. Logo, motivado por uma questão aparentemente linguística, revela-se a inter-relação entre a cultura popular e a cultura erudita, em um processo interpretativo marcado por uma complexidade de avaliação em que perguntas e respostas seguem estratégias que projetam reações e, portanto, exigem um monitoramento atento dos interlocutores naquela cena enunciativa. Implícita nessa relação interlocutiva, encontra-se a diferença de lugares que posicionam as práticas de letramento imersas em seus valores sociais e situam uma dinâmica cultural marcada por influências mútuas que permitem relativizar fronteiras rígidas entre oralidade e escrita e entre cultura popular e cultura erudita.

Guimarães Rosa recria o popular a partir da sua escrita com um toque estilístico que é sua marca como escritor. Mais do que registrar uma cultura popular situada no sertão e mais do que representar o posicionamento de personagens em uma hierarquia social, o conto “Famigerado” destaca-se ao trazer uma dinâmica interpretativa que enquadra a linguagem em uma dimensão de produção e negociação de sentidos em culturas que tradicionalmente são colocadas em condições antagônicas, refletindo uma avaliação grafocêntrica que situa a oralidade com contornos de pouca elaboração e a escrita como representante da cultura autorizada. Ao indicar várias camadas que evidenciam influências mútuas entre cultura oral e cultura escrita, a tarefa metalinguística de busca por significado, no conto “Famigerado”, é apresentada em uma cena interpretativa que destaca a negociação de sentidos e estabelece a necessidade de entendimento da linguagem como um fenômeno social marcado por uma dinâmica relação entre a cultura oral e a cultura escrita.

Referências

  • ALVAREZ, Alfred. A voz do escritor Tradução Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  • BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
  • BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.
  • BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Tradução Anne-Marie Milon Oliveira. Estudos historiográficos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995.
  • FINNEGAN, Ruth. Where is language? An antropologist´s question on language, literature and performance. London: Bloomsbury Academic, 2015.
  • GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Oralidade e escrita: uma revisão. Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, p. 403-432, maio/ago, 2006.
  • GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende e outros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 247-264.
  • MARTÍN-BARBERO, Jesús. Povo e massa na cultura: os marcos do debate. In: MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios à mediação: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 121-124.
  • ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1998.
  • RONAI, Paulo. Introdução. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
  • ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
  • ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
  • ROSA, João Guimarães. O burrinho pedrês Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
  • STREET, Brian. Culture as a verb. Anthropological, aspects of language and culture process. In: GRADDOL, D. L.; THOMPSON, M. B.; BYRAM, M. (ed.). Language and Culture Clevedon: BAAL and Multilingual Matters, 1993. p. 23-43.
  • WISNIK, José Miguel. O famigerado. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 177-198, 2002.
  • ZUMTHOR, Paul. Memória e comunidade. In: ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 139-158.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2022
  • Aceito
    27 Ago 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com