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O jovem Berman e o romantismo alemã1 1 Resenha de: Berman, Antoine . Cartas para Fouad El-Etr.Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018. 51 p.

The Young Berman and The German Romanticism

Berman, Antoine. . Cartas para Fouad El-Etr .Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018. 51p.

Uma pequena joia aguarda os admiradores e estudiosos brasileiros da obra de Antoine Berman. Trata-se de Cartas para Fouad El-Etr, em tradução da pesquisadora Simone Petry para a coleção “Pequena Biblioteca de Ensaios”, da Zazie Edições. A obra soma-se a outros escritos do autor que pouco a pouco estão sendo traduzidos no Brasil e encontra-se disponível de forma gratuita na Internet em uma edição digital. A Zazie, conforme anuncia o seu site, é uma editora independente, sem fins lucrativos, sediada em Copenhague, Dinamarca, cuja prioridade é “a publicação de coleções de livros digitais que investem nas formas de contato entre as linguagens artísticas e os discursos que as atravessam e catalisam”. Outro dos objetivos da editora é procurar intervir criticamente nos arquivos disponíveis do contemporâneo”. A coleção de ensaios contava com 25 volumes no final de 2019, entre obras traduzidas e de autores nacionais.

Antoine Berman foi tradutor de literatura alemã e hispano-americana, filósofo e um teórico muito original da tradutologia francesa. Defendeu a tradução como relação e abertura ao Outro, questionando a tradição das chamadas traduções belas, mas infiéis, às quais qualificou de etnocêntricas (do ponto de vista cultural) e hipertextuais (do ponto de vista literário). Por etnocêntrico, o autor referia-se a traduções que remetem à sua própria cultura, normas e valores. Já com termo hipertextual, referia-se a textos que se engendram por imitação, paródia, pastiche, plágio e toda sorte de transformação formal a partir do texto já existente. Berman também foi um dos primeiros a reivindicar a tradução como um campo autônomo de intervenção cultural e do pensamento. “Que a tradução deva se tornar uma ‘ciência’ e uma ‘arte’, como pensavam da crítica os românticos de Iena, esse é, com efeito, seu destino moderno”, afirmou (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Trad. Maria Emília Chanut. Bauru, SP: Edusc, 2002. , p. 314).

A edição destas cartas é bem cuidada e conta com uma diagramação agradável que facilita a leitura na tela do computador ou de outros dispositivos eletrônicos, além de um aparato paratextual simples, mas eficiente, resumido a um texto na contracapa. Seria desejável, no entanto, que o leitor dispusesse também de um prefácio que esclarecesse as circunstâncias em que Berman se encontrava quando as cartas foram escritas. Intui-se na leitura que ele estava isolado em algum lugar distante, mas não ficamos sabendo de maiores detalhes. Uma rápida consulta ao Google revela que o pensador contava com apenas 25 anos quando escreveu este ensaio espistolar, cujo título em francês é “Lettres à Fouad El-Etr sur le Romantisme allemand”. Os editores informam na página da ficha técnica e na contracapa que as cartas foram publicadas originalmente em 1968 na La Délirante nº 3, revista independente editada por Berman e por seu amigo franco-libanês Fouad El-Etr, para quem ele dirige as missivas.

Em virtude da beleza alcançada pela reescrita da prosa de Berman por Petry, as cartas tangenciam a todo momento o poético. Petry é especialista na obra deste teórico e tradutor (defendeu dissertação sobre Berman e, em seguida, a tese intitulada “A leitura bermaniana do conceito romântico de obra de arte e sua reflexão sobre tradução”). Neste trabalho, a tradutora dispensa ao pensamento do autor o cuidado de quem se sabe diante de um texto ao mesmo tempo filosófico e literário, no qual absolutamente tudo é relevante, tudo “fala”. Para exemplificar a qualidade estética da prosa em tradução, cito o primeiro parágrafo da carta que inaugura o volume, mas que bem poderia abrir um romance:

Meu caro, Já faz duas semanas que estou preso em meu quarto por razões militares. As grandes chuvas de setembro caem por detrás das cortinas que voluntariamente deixo fechadas. Reina por todo lado um enfadonho e bem-aventurado frescor. Como eu gostaria de chegar incólume, pontual ao outono (p. 5).

Berman disserta sobre as suas impressões e faz reflexões teórico-críticas a respeito dos românticos alemães, principalmente Friedrich Schlegel e Novalis. Tal projeto esboçado nas cartas viria a amadurecer ao longo dos anos e seria concretizado em forma de livro em 1984, com o lançamento de L’épreuve de l’étranger [no Brasil, A prova do estrangeiro]. Tal fato confere maior interesse a esses textos, uma vez que podemos vislumbrar o percurso intelectual percorrido por Berman, bem como o amadurecimento de suas reflexões.

Na primeira carta assistimos ao pensador em plena criação, enquanto apara arestas mentais sobre a forma como irá encarar o desafio da escrita crítica:

Escrever sobre a poesia me parece um negócio altamente arriscado. Como escrever romanticamente sobre o romantismo, misteriosamente sobre o mistério, fragmentariamente sobre o fragmento? De repente tive medo de me ver aprisionado na cela do entendimento e da crítica (p. 6).

Como vimos, Berman aspirava escrever “romanticamente sobre o romantismo” e “descomedidamente”, diz ele. Por isso, conforme somos advertidos na contracapa da edição, “entrelaça vozes” em busca de “um exercício radical de escrita”. Uma nota da tradutora esclarece ainda que:

No seu texto, Berman apresenta um modo peculiar de citação quando opta por não fazer uso de aspas. Seu texto original é escrito todo em itálico e as citações aparecem em letra normal com fonte um pouco maior que a utilizada para a escrita autoral; algumas vezes nos informa seus autores, mas sem as indicações formais de texto, página etc. Esse modo não convencional de citação vai produzindo uma sensação de “dissolução” da distinção entre as vozes que se manifestam ao longo do ensaio. No texto traduzido optamos por marcar as citações com aspas para preservar o conforto da leitura no formato digital.

A poesia e a teoria do fragmento ocupam o centro das reflexões, mas é preciso ter em mente que Berman, nessa época, ainda não tinha voltado o seu interesse para a tradução. Na primeira carta, ele questiona por que os românticos teriam tomado Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) como modelo, uma vez que o considera “prudente e econômico” em matéria de poesia, e diferencia dois tipos de poeta: aquele que busca pretextos na realidade e aquele que precisa somente de um estímulo para que a poesia nele desperte com força. “O romantismo alemão é antes de tudo a afirmação da poesia”, conclui (p. 9).

A segunda carta começa abordando a revolução copernicana de Immanuel Kant (1742-1804) na filosofia, fato esse que corresponde, para Berman, à revolução copernicana da poesia. “Parece inconcebível que o curso da poesia pudesse ser dividido em dois por uma filosofia, mas foi isso que aconteceu [...]”, afirma, e complementa dizendo que “a fantasia romântica - que não é a fantasia ordinária - quer produzir o exterior a partir da infinitude do interior, “sonhar” o mundo na totalidade de seus aspectos” (p. 10). A poesia transcendental seria aquela que toma a imaginação como princípio absoluto. Para ele, os românticos anteciparam de alguma forma a poesia moderna:

A poesia da poesia, poesia à segunda potência, está aberta para seu próprio infinito. Os românticos parecem anunciar aqui a tese moderna segundo a qual a poesia deve aprisionar-se - ou melhor, enterrar-se - em sua própria teoria. O poema do poema, está aí de fato uma ideia moderna (p. 12).

Nesta mesma carta, aborda uma noção que lhe será cara em trabalhos futuros: a de reflexão. “A reflexão não é para ele [Novalis] uma abstração, uma impotente contemplação de si, mas a abertura de um meio vertiginoso no qual tudo repercute, tudo se engrandece e tudo se multiplica como em um alinhamento infinito de espelhos (p. 11). Anos mais tarde, Berman definiria a tradutologia como “a reflexão da tradução sobre ela mesma a partir da natureza da sua experiência” (BERMAN, 2009BERMAN, Antoine. A tradução e seus discursos. Alea - Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2. p. 341-353, 2009., p. 347). Também se insinua no fragmento acima sobre Novalis o conceito de crítica que o pensador francês viria a desenvolver ao longo de sua obra, na qual reivindicará que a tradução é crítica e comentário de si mesma, abandonando o estatuto de simples prática e assumindo o caráter de experiência.

Outra noção que aparece nas cartas é a de elevação à potência ou potencialização da poesia, de Novalis, e que Berman também aplicaria no futuro às suas reflexões sobre a tradução. Em A prova do estrangeiro, usa essa noção para dizer que a tradução traz à tona alguma coisa que não aparecia na língua de partida, potencializando o original (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Trad. Maria Emília Chanut. Bauru, SP: Edusc, 2002. , p. 21).

O texto também mostra a intimidade criadora do pensador. As primeiras linhas da terceira carta nos revelam o modus operandi pulsante da criação-reflexão de Berman:

Hoje acordei muito tarde, fiquei na cama por um longo tempo divagando. Os papéis se acumulam no chão: notas, breves relatos, sonhos tomados de assalto, reflexões. Eu reli os cadernos, rasguei as páginas que se tornaram insuportáveis. Isso me derrubou: como podemos acolher tantas coisas - livros, pensamentos, paisagens, seres humanos - sem nunca medir a extensão ou a natureza desse acolhimento. Não estou pensando aqui na cultura, mas no espaço da alma. Este é o enigma: esse espaço, seus lugares, seus limites, seus caminhos (p. 19).

O autor discorre então sobre a alma romântica e a sua infinita abertura “ao longínquo, ao desconhecido, ao profundo” (p. 19). Ele aborda ainda o jogo entre o familiar e o estranho em Novalis, Schlegel e Tieck, o banal e a “saturação do cotidiano” e o desejo de dotar a poesia de uma realidade (p. 22-23) ao tentar revelar a unidade de tudo:

Que o verdadeiro espírito é um espírito comilão nós sabemos. Mas é preciso dizer mais: não somos poetas se não queremos transformar “tudo” em poesia, como não somos glutões se não queremos “tudo” comer, e não amamos de verdade se não somos capazes de provar nosso amante em “todas” as partes de seu corpo e, como disse Novalis, “graças a uma imaginação ousada, suprassensível, gozar a cada mordida de sua carne e a cada gole de seu sangue” (p. 25-26).

As três últimas cartas dissertam sobre as ambições enciclopédicas dos românticos, “a vontade de tudo saber”, a ideia do livro absoluto e, sobretudo, sobre a teoria romântica do fragmento. “O essencial do romantismo me parece estar além: em seus projetos e em seus fragmentos” (p. 17). E algumas páginas adiante, confessa:

Ora sou um habitante miserável da Biblioteca de Babel, errante eterno nos hexágonos incompreensíveis... Onde está a chave? Não é fácil ler fragmentos. Estamos acostumados ao contínuo, ao que é claro e ordenado; o caos inerente a toda coletânea de fragmentos sempre nos surpreende. A enciclopédia romântica é ainda mais desconcertante. Ela não foi feita de artigos ou de estudos ligados uns aos outros, mas de fragmentos autônomos e fechados em si mesmos, formando a cada vez um “vislumbre no infinito” (p. 34).

Para quem estuda a obra de Berman, conhecer melhor o pensador por meio deste convívio, a bem dizer íntimo, das cartas é uma experiência gratificante, assim como ter acesso a esta vibrante fase do seu pensamento de juventude. Além disso, acompanhar a constituição de seus raciocínios é uma oportunidade sui generis, ainda mais quando identificamos nesses escritos muitos dos temas e conceitos que seriam desenvolvidos ao longo da sua curta (ele morreu aos 49 anos) mas intensa trajetória intelectual. É sempre salutar que a obra de um intelectual seja estudada e compreendida em sua totalidade e temporalidade para que não se corra o risco de cair em interpretações parciais e incompletas. Por isso, é importante que cada vez mais títulos da produção de Berman circulem em tradução entre nós, trazendo novas peças para entendermos o seu pensamento. Recentemente, a obra L'Age de la traduction: La tâche du traducteur de Walter Benjamin, un commentaire foi traduzida por Clarissa Marini para sua tese de doutoradoMARINI, Clarissa Prado. Tradução de Tradutologia Francesa no Brasil: da História da Tradução à Tradução Comentada de L‘Âge de la Traduction de Antoine Berman. 2019. 201f. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.. Já outro de seus principais livros ainda não foi editado no Brasil: trata-se de Pour une critique des traductions: John DonneBERMAN, Antoine. Pour une critiques des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995.. No mais, a viúva Isabelle Berman ainda detém uma série de escritos teóricos e artísticos do autor que aguardam para serem publicados.

Referências

  • BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica Trad. Maria Emília Chanut. Bauru, SP: Edusc, 2002.
  • BERMAN, Antoine. A tradução e seus discursos. Alea - Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2. p. 341-353, 2009.
  • BERMAN, Antoine. Pour une critiques des traductions: John Donne. Paris: Gallimard, 1995.
  • MARINI, Clarissa Prado. Tradução de Tradutologia Francesa no Brasil: da História da Tradução à Tradução Comentada de L‘Âge de la Traduction de Antoine Berman. 2019. 201f. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
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    Resenha de: Berman, Antoine . Cartas para Fouad El-Etr.Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018. 51 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2020
  • Aceito
    30 Abr 2020
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