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Como se dizer autor na cena literária: a cenografia autoral de José de Alencar na polêmica em torno das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios

How to call oneself an author in the literary scene: José de Alencar’s auctorial scenography in the polemic about Cartas sobre a Confederação dos Tamoios

Resumo

O presente artigo procura, em novo gesto crítico fundamentado na teoria das cenografias autorais desenvolvida por José-Luis Diaz, investigar na polêmica sobre as Cartas sobre A Confederação dos Tamoios - uns dos momentos definitivos para a dinamização do campo literário brasileiro - as implicações no plano das autorrepresentações autorais, a função exercida pela circulação de imaginários sociais e o papel do romantismo francês na composição da cenografia autoral de José de Alencar delineada a partir da polêmica.

Palavras-chave:
José de Alencar; cenografia autoral; polêmica literária

Abstract

With a new critical gaze based on the theory of auctorial scenographies developed by José-Luis Diaz, this article seeks to investigate the polemic about the Cartas sobre a Confederação dos Tamoios - one of the definitive moments for the dynamization of the Brazilian literary field. The paper will analyze the implications for auctorial self-representations, the role played by the circulation of social imaginaries, and the role of French romanticism in the composition of José de Alencar’s auctorial scenography outlined in the controversy.

Keywords:
José de Alencar; auctorial scenography; literary polemic

Résumé

Partant d’un nouveau geste critique fondé sur la théorie des scénographies auctoriales de José-Luis Diaz, le présent article examine la polémique qui entoure les Cartas sobre A Confederação dos Tamoios, un des moments charnières de la dynamisation du champ littéraire brésilien. Il met en évidence les implications sur le plan des autoreprésentations auctoriales, la fonction exercée par la circulation des imaginaires sociales et le rôle du romantisme français dans la composition de la scénographie auctoriale de José de Alencar produite à partir de la polémique.

Mots-clés:
José de Alencar; scénographies auctoriales; polémique littéraire

Porque todo “autor” é primeiramente autor dele mesmo. (DIAZ, 2007DIAZ, José-Luis. L’écrivain imaginaire: scénographies auctoriales à l’époque romantique. Paris: Honoré Champion, 2007., p.106).1 1 Tradução minha. [Car tout « auteur » est d’abord auteur de lui-même]. Itálicos do autor.

Sobre a polêmica das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios muito se tem estudado a respeito da relação estética entre o conteúdo das cartas e a ideia de uma literatura nacionalista e, como uma extensão dessa relação estética, o indianismo no romantismo brasileiro - concepção estética que iria ser desenvolvida por Alencar, em seu primeiro romance, O Guarani. Ademais, há uma discussão muito presente sobre os fundamentos ideológicos envolvidos na polêmica, como também sobre o projeto nacionalista alencariano, que configurariam uma forma ou formação literária, na tentativa de se interpretar o Brasil, suas contradições, seu sistema literário e o universo cultural oitocentista.

Em Literatura e Cordialidade, importante estudo sobre esse momento de nossa história literária, João Cezar de Castro Rocha acredita que a polêmica oferece um material privilegiado tanto para o reconhecimento de códigos que definem os ritos de nossa vida literária quanto para a identificação de práticas que atravessam nossa história cultural” (1998ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade: o público e o privado na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998., p. 42). E sugere, como método de análise, o estudo da reconstrução do campo discursivo dominante na época em questão, uma vez que considera a literatura uma forma de articulação discursiva. O olhar crítico, como afirma o próprio autor, é o do “crítico da cultura” (ROCHA, 1998, p.119ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade: o público e o privado na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998.), o qual procura, através do estudo de uma série de elementos, “definir a literatura brasileira do século XIX, ao menos até a década de 70” (ROCHA, 1998, p. 219ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade: o público e o privado na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998.).

Isso posto, minha proposta de análise acerca da polêmica não é a definição ampla dos elementos que pudessem definir a prática literária brasileira oitocentista, mas a identificação de elementos que iluminam o modo de funcionamento da cenografia autoral de José de Alencar. Na esteira de Castro Rocha, considero a polêmica um momento determinante tanto para o entendimento da dinâmica do campo literário quanto para a análise da construção de uma cenografia do autor brasileiro nesse momento da história literária brasileira.

Para tanto, a partir das articulações discursivas em jogo no campo literário brasileiro da época, procuro investigar a relação entre a polêmica que se desenrola em solo brasileiro e o romantismo francês, no intuito de delinear algumas formas de sociabilidade intrínsecas à polêmica, à lógica agonística do campo literário romântico, às tematizações e, sobretudo, ao espaço de construção de uma representação autoral, e demonstrar sua construção na articulação de três planos, o real, o textual e o imaginário. Entretanto, antes de prosseguir com a análise da polêmica no plano das representações e, consequentemente, da construção da cenografia aí produzida por Alencar, é oportuno delinear os fundamentos teóricos presentes na concepção de autoria com a qual esta análise dialoga.

A teoria da cenografia autoral, como desenvolvida por José-Luis Diaz, propõe o plano imaginário, ou seja, das representações e autorrepresentações, como um espaço de análise para a noção de autor, preconizando uma instância autoral imaginária. Segundo Diaz (2007DIAZ, José-Luis. Devenir Balzac. Paris: Christian Pirot, 2007. , p. 17), a produção de autoria refere-se a um espaço literário e, para analisá-lo, é necessário distinguir as complexidades e os diferentes níveis que o compõem. Dessa forma, a separação entre o plano real (autor empírico) e o textual (locutor fictício reduzido às marcas enunciativas) dá lugar à articulação de três planos distintos, o real, o textual e o imaginário. À vista disso, a palavra de ordem, aqui, é articulação, e não exclusão. Não haveria uma hierarquia ou aspectos prioritários na análise, como questões sócio-históricas determinantes ou, então, textuais. Diaz (2007DIAZ, José-Luis. Devenir Balzac. Paris: Christian Pirot, 2007. , p. 19) insiste na complexidade da análise ao afirmar que a questão é compreender o movimento de aproximação e distanciamento entre os planos. Na tentativa de sintetizar a complexidade presente na articulação, Diaz pondera:

Impossível, portanto, isolar uma instância ‘real’, social ou biográfica, sem a “construir” mais ou menos ingenuamente em função de um imaginário. Isto sinaliza a insuficiência de toda sociologia literária desatenta às mediações imaginárias do social. Impossível igualmente isolar uma instância puramente textual a partir do momento que se constata que tal escolha, exclusivamente formal aparentemente (a meditação poética lamartiniana, por exemplo), está correlacionada com uma escolha socioprofissional (o distanciamento da cena literária parisiense pela entrada na carreira diplomática) e com uma escolha de uma identidade especular (o “poeta moribundo”). Essas interações convidam a se questionar se os modos de vida e escolhas textuais confirmam ou não a escolha de um dado papel. Não que o imaginário seja a estrutura primeira; mas porque ele tem precisamente uma função de regulação sobre as opções tomadas nos três níveis.2 2 Tradução minha. Itálicos do autor. [Impossible donc d’isoler une instance « réelle », sociale ou biographique, sans la « construire » plus ou moins innocemment en fonction d’un imaginaire. Cela signe l’insuffisance de toute sociologie littéraire inattentive aux médiations imaginaires du social. Impossible également d’isoler une instance purement textuelle dès qu’on constate que tel choix exclusivement formel en apparence (la méditation poétique lamartinienne, par exemple) est en corrélation avec un choix socio-professionnel (la prise de distance d’avec la scène littéraire parisienne par l’entrée dans la carrière diplomatique) et le choix d’une identité spéculaire (le « poète mourant »). Ces interactions invitent à se demander si modes de vie et choix textuels confirment ou non le choix d’un rôle donné. Non que l’imaginaire soit la structure première ; mais parce qu’il a bien une fonction de régulation sur les options prises aux trois niveaux.]. (DIAZ, 2007DIAZ, José-Luis. L’écrivain imaginaire: scénographies auctoriales à l’époque romantique. Paris: Honoré Champion, 2007., p. 44).

No que tange os estudos da função autoral, a contribuição de Diaz, como tive oportunidade de analisar anteriormente, diz respeito à inclusão da dimensão do imaginário na dicotomia real/textual, sugerindo a superposição entre as dimensões.

Considero importante enfatizar a historicidade subjacente à noção de cenografia. Diaz elege o romantismo como período histórico para sua análise, momento de uma importante mudança epistêmica no que se refere à figura do autor. Notemos, então, como a teoria do autor, desenvolvida por Diaz, inscreve-se no plano da história das representações autorais, quando analisa as cenografias presentes no campo literário da França oitocentista, angariando elementos sócio-históricos, textuais e imaginários para a historiografia literária.

As representações ou imagens produzidas, nesse jogo de encenação no espaço literário, atribuem ao autor uma identidade. Porém, trata-se de uma identidade instável: elas, as imagens, podem desaparecer em dado momento, para retornarem em seguida, ou não. As imagens não seguem uma ordem linear e teleológica; são construídas, de maneira circular, antes ou a partir das obras. Antes, pelas escolhas que o autor realiza a partir do imaginário social, e posteriormente à obra pelo lado da recepção, contribuindo, da mesma maneira, para a criação da figura do autor. Assim, a análise da cenografia possibilita a compreensão da dinâmica do campo literário, uma vez que são estruturantes e matriciais, pois para o nascimento do autor, que nada mais é do que a construção do escritor imaginário, é necessária toda uma gama de estratégias, de posturas, que irão ajudar na produção dessa imagem autoral

A noção de autor, proposta por Diaz, pressupõe uma leitura crítica profunda, no âmbito da teoria literária e dos estudos sobre sua função. Ao integrar o imaginário ao díptico real e textual, o autor é colocado para a análise não somente em sua dimensão textual (escolha do gênero, da voz, sujeito da enunciação, etc.) ou real (o ser empírico e as condições sócio-históricas), como também em uma dimensão ontológica, isto é, ao questionar o significado do ser autor na cena literária. Para o entendimento dessa identidade autoral, devemos atentar para a lógica envolvida na cenografia que se estrutura do lado tanto do autor quanto da recepção. A constituição desse autor imaginário acaba por seguir uma trajetória de existência mais ou menos regulada, a saber, a entrada na literatura, a maturidade e a saída de cena, seguindo uma lógica circular entre a produção de si (autorrepresentação) e a reconstrução da imagem autoral a partir da recepção (leitores e crítica).

A produção de si catalisa alguns elementos específicos, tais como a construção de uma imagem, manifestação de padrões imaginários adotados ou rejeitados, exercício de poder no interior do campo literário, antagonizando escritores consagrados e neófitos, duração da cenografia que pode ser longa ou efêmera, ocasionando em um mesmo autor um conflito de representações, a busca pela glória, celebridade ou a postura de outsider que salientam, desde o século XVIII, a consciência midiática trabalhada no interior da cenografia autoral. Textualmente, esses cenários autorais, sobretudo no romantismo, são produzidos nos paratextos, por exemplo, prefácios, cartas e, como veremos a seguir, nas polêmicas literárias.

Portanto, é a partir das posturas e estratégias articuladas na famosa polêmica literária brasileira que pretendo traçar a cenografia de José de Alencar em sua entrada na cena literária. Iremos verificar como José de Alencar coloca o romancista José de Alencar em cena.

Romantismo francês, um campo de batalhas

Primeiramente, cumpre notar uma distinção no método analítico que proponho. Parto inicialmente da apreensão epistemológica sobre uma polêmica literária e da análise de seus aspectos estruturantes na composição de uma cenografia autoral para, então, analisar a configuração ou reconfigurações da polêmica literária no campo literário brasileiro, e a problemática da visão específica da localidade na formação da cenografia de José de Alencar.

A partir do método analítico adotado, tratar-se-á de investigar, em primeiro lugar, os usos da polêmica e a organização da vida literária, pela análise de seus componentes, a saber, os atores, os objetivos e os modos discursivos. Nesse sentido, na leitura que proponho, a polêmica não é tratada apenas como um evento sócio-histórico particular, pois procuro demonstrar a função de uma polêmica literária nas representações e autorrepresentações autorais do século XIX, e investigar outros encadeamentos, além da ideia de que para Alencar “a polêmica representava a nova oportunidade de inserção social”( CASTRO ROCHA, 1998ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade: o público e o privado na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998., p. 141).

Quando tratamos do século XIX, algumas considerações sobre o emprego terminológico adotado são necessárias. Qual o significado de vida literária, menção que poderia passar desapercebida, haja vista as constantes mudanças que tal expressão carrega? A ideia de vida literária, e em primeiro momento refiro-me à França oitocentista, constrói-se pouco a pouco na primeira metade do século XIX, quando detectamos três grandes mudanças no fazer literário, ou seja, a sacralização do escritor, as novas formas de sociabilidade literária - mais especificamente a passagem dos salões, dominantes no XVIII, para os cenáculos e cafés -e o crescimento da imprensa, oqual tem papel fundamental na encenação da nova formatação do mundo literário. Notamos que avida literária é encenada nesses novos espaços, assim como os autores, os quais entram em cena na Comédia Literária oitocentista. E como adentrar a cena literária?

Uma das estratégias midiáticas mais eficazes é a disputa literária, da qual terminologicamente poderíamos derivar querelas, polêmicas e batalhas. Embora tenhamos verificado algumas diferenças no funcionamento entre os termos, de maneira geral o que prevalece é a lógica agonística, fator que dinamiza e estrutura o campo literário, sobretudo, no período histórico em questão. A disputa é parte integrante do próprio funcionamento do campo literário, proporcionando grande visibilidade para o autor.

Para Diaz, a primeira metade do romantismo francês compõe um período sui generis no que se refere às disputas literárias, pois em nenhum outro momento encontramos uma manifestação tão efervescente de batalhas e polêmicas literárias:

E é um fato que o período romântico foi, a este respeito, um período “raro”, em que os enfrentamentos eram diretos, quando as dissenções literárias eram secundadas por linhas de fratura ideológicas, onde os combates da “Batalha” propiciavam matéria para uma ficcionalização da vida literária. Organizadas inicialmente em torno do eixo separando clássicos e românticos (até 1830), eles encontraram em seguida (após 1833) um outro princípio organizador durável na oposição entre “arte social” e “arte pela arte”. (...) Antes como depois de 1830, os combates são alimentados por uma imprensa literária florescente e uma “vida literária” bem provida, animada por grupos diferenciados, entoada por “eventos literários” frequentes.3 3 Tradução minha. Aspas do autor. [Et c’est un fait que la période romantique fut, à cet égard, une période « introuvable », où les affrontements étaient nets, où les dissensions littéraires étaient secondées par des lignes de fracture idéologiques, où les combats de la « Bataille » donnaient matière à une fictionnalisation de la vie littéraire. Organisés d’abord autour de l’axe séparant classiques et romantiques (jusqu’en 1830), ils trouveront ensuite (après 1833) un autre principe organisateur durable dans l’opposition entre l’« art social » et l’« art pour l’art ». (…). Avant comme après 1830, ces combats sont alimentés par une presse littéraire florissante et une « vie littéraire » bien fournie, animée par des groupes différenciés, scandée par des « événements littéraires » fréquents.] (DIAZ, 2012DIAZ, José-Luis. Le champ littéraire comme champ de bataille(1820-1850). Revue Contextes, Liège, n. 12, 2012, Disponível em: <Disponível em: http://contextes.revues.org/4943 >. Acesso em 19 de agosto de 2018.
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)

As batalhas socializam modelos imaginários e organizam a vida literária, transferindo ao autor um comportamento político, momento de mutação nas letras em que política e estética encontram-se imbricados; aqui podemos, então, falar do caráter pragmático da estética, isto é, podemos entender a estética em ação. Ainda segundo Diaz (2012DIAZ, José-Luis. Le champ littéraire comme champ de bataille(1820-1850). Revue Contextes, Liège, n. 12, 2012, Disponível em: <Disponível em: http://contextes.revues.org/4943 >. Acesso em 19 de agosto de 2018.
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), as batalhas estruturam, dinamizam e tornam legível o espaço literário, pelo intermédio da imprensa que amplia as relações incrementando o imaginário pela sua concepção e difusão.

Ora, se a polêmica literária permite a leitura do campo literário, é de grande utilidade para a análise compreender as escolhas da política enunciativa de Alencar em diálogo com o imaginário veiculado pelas cenografias autorais francesas. Desse modo, podemos verificar como o autor, contemporaneamente à polêmica, enxerga o campo literário e como ele se diz autor no interior deste campo.

A cenografia do leitor e do romancista da energia

Em outra direção de análise, ou seja, sem procurar no conteúdo das cartas os possíveis pontos divergentes entre o programa de José de Alencar e Gonçalves de Magalhães ou os possíveis componentes temático-ideológicos subjacentes à polêmica, entendo que, para a análise da cenografia, é fundamental uma leitura crítica mais próxima das estratégias adotadas pelo autor no engendramento da polêmica.

Como já tive a oportunidade de argumentar, a polêmica é um dispositivo estruturante do campo literário romântico, momento em que a autoria como presença deseja a visibilidade, realizando, dessa maneira, a sua produção. Ao analisar tal produção, devemos investigar os atores envolvidos na polêmica assim como o espaço textual polêmico, a partir da análise das cartas, de sua recepção (o destinatário/ público-leitor) e dos recursos da linguagem empregados.

Em relação aos atores envolvidos na polêmica acerca das Cartas sobre A Confederação dos Tamoios, a figura principal é o neófito José de Alencar. Como se sabe, José de Alencar ainda jovem, com apenas 27 anos, começa a publicar suas cartas no Diário do Rio de Janeiro, em 1856. Sob o pseudônimo de Ig., Alencar publicaria oito cartas versando sobre o poema épico do então consagrado Gonçalves de Magalhães. É, portanto, contra o cenário autoral do “poeta da pátria” que o jovem neófito irá entrar em cena.

O autor de A Confederação dos Tamoios gozava do mecenato de ninguém menos do que D. Pedro II. Já consagrado como grande poeta após a publicação de Suspiros poéticos e Saudades, Magalhães, chefe da escola romântica, representava, sobretudo, traços de uma instância autoral estreitamente vinculada a um imaginário antigo que não correspondia às novas formas de uma almejada comunicação literária em sintonia com os padrões mais modernos da literatura. Ao criar uma epopeia em resposta à ideologia do Estado - devemos lembrar que o poeta, juntamente com D. Pedro II, buscava pela poesia representar a nação brasileira -, Magalhães constitui como público para sua epopeia o “corpo político do Estado” (HANSEN, 1998, p. 24HANSEN, João Adolfo. Notas sobre o Gênero Épico. In:TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia. O Uruguai. Caramuru. Vila Rica. A Confederação dos Tamoios. I - Juca Pirama. São Paulo: EdUSP, 2008.). Sobre essa questão, Hansen (1998, p. 24)HANSEN, João Adolfo. Notas sobre o Gênero Épico. In:TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia. O Uruguai. Caramuru. Vila Rica. A Confederação dos Tamoios. I - Juca Pirama. São Paulo: EdUSP, 2008. esclarece que, durante o período colonial, a noção de público, para a poesia épica luso-brasileira, estava vinculada a um espaço de “bem comum” e incorporava os valores do Estado, corporificando uma totalidade subordinada a uma organização estamental.

O vislumbre épico-nacionalista de Magalhães prolongaria, dessa feita, um modo de organização literária do universo luso-brasileiro tal como exercida no século XVI, XVII e XVIII. Embora temática e esteticamente as concepções nacionalista e indianista do escritor estivessem inseridas no horizonte do romantismo, o contrato enunciativo do poema não estava inserido em um processo de autonomia do campo literário. Quem era, de fato, o público leitor, senão uma classe social e política específica, sujeita aos valores estamentais da sociedade? Magalhães escrevia para seus pares.

Sobre a inadequação do gênero épico, o qual era um gênero morto na afirmação de Hansen (1998HANSEN, João Adolfo. Notas sobre o Gênero Épico. In:TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia. O Uruguai. Caramuru. Vila Rica. A Confederação dos Tamoios. I - Juca Pirama. São Paulo: EdUSP, 2008., p.18), uma vez que na idade moderna os processos de subjetivação já configuravam o campo literário, outro autor envolvido na polêmica, Alexandre Herculano - em carta-resposta a um pedido de D. Pedro II - confirma a impossibilidade desse gênero como comunicação literária no século XIX:

Peço a V.I.M. que note um fato, que julgo provar mais do que quaisquer considerações que eu pudesse acrescentar. Nenhum dos sumos poetas contemporâneos, Goethe, Byron, Manzoni, Hugo, Lamartine, Garret, etc, tentou, que eu saiba, a epopéia. É que os seus altíssimos instintos poéticos lhes revelavam que o cometimento seria mais que árduo, seria impossível! A epopéia humana, que já não era do século passado (deu-nos triste documento disso o gênio de Voltaire) menos é deste século. O passado ainda tinha as cóleras do filosofismo: este olha para tudo o que é heróico, e sobre-humano com o frio desdém da indiferença e do ceticismo. A nossa época tem paixões ardentes, tem afetos variados e complexos; mas faltam-lhe o grandioso solene e o crer profundo das gerações virgens. A nossa época não é épica.[...] Se não creio possível a epopéia humana no meio das nações transformadas, polidas, argumentadoras, voluptuosas, incrédulas da velha Europa, menos possível ainda a creio na América. (BUENO; MOREIRA, 2007, p. cxlcx-clBUENO, Luís; MOREIRA, Maria Eunice (org.). A Confederação do Tamoios. Curitiba: UFPr, 2007, p.cxlcx-cl. )

Herculano não reconhece em solo brasileiro uma unidade épica, isto é, não havia entre os atuais brasileiros e as tradições do povo indígena identidade e/ou unidade. Como ocorreria, então, a comunicação literária moderna, isto é, para um público leitor amplo e desvinculado do “corpo político do Estado”? Para Herculano, a comunicação literária vinculada pelo gênero não era mais possível na modernidade:

O que sei, porém, sei de certo é que ele não poderia vencer a desarmonia do espírito público. O Brasil é um império novo; mas os brasileiros são apenas europeus na América. Não é, sob todos os aspectos, a sua civilização o mesmo que a nossa? Não se confunde a classe média do Brasil com esta classe média da Europa, a um tempo ardente nas suas paixões e céptica e fria nas suas opiniões e idéias? Como estabelecer aí uma harmonia entre o poeta épico e o público, que seria impossível aqui? (BUENO; MOREIRA, 2007, p. cliBUENO, Luís; MOREIRA, Maria Eunice (org.). A Confederação do Tamoios. Curitiba: UFPr, 2007, p.cxlcx-cl. )

Assim sendo, José de Alencar tem o grande mérito literário de avivar a cena literária e modernizá-la ao se lançar como o romancista das tradições indígenas e atribuir ao conteúdo nacional uma forma estética em sintonia com a nova comunidade de leitores, no caso do Brasil, ainda em formação. Com isso, faz circular a palavra literária fora das regiões estamentais, pois, ainda que o público leitor fosse infinitamente menor do que o europeu, O Guarani foi um romance com conteúdo nacional e de sucesso. A questão que se impõe aqui é a capacidade de José de Alencar de possibilitar uma moderna comunicação literária ao vincular uma tradição nacionalista num gênero mais democrático que era o romance. E, devemos ressaltar, a polêmica ocorre na imprensa, espaço textual fundamental para a autonomização da literatura e visibilidade desse novo desejo de comunicação literária.

Pela polêmica que, embora curta, propicia uma notável visibilidade não apenas para os atores envolvidos, mas principalmente para a vida literária brasileira, estrutura-se um novo cenário, um novo imaginário que irá se relacionar com os imaginários franceses já muito bem fundamentados em uma vida literária autônoma. Podemos afirmar que Alencar, pela polêmica, dinamiza e encena uma vida literária ao inaugurar em solo brasileiro uma articulação discursiva e retórica próprias do mundo literário do XIX, isto é, a retórica ad hominem muito comum nas lutas intestinas entre os autores que procuram seu lugar de visibilidade no campo literário. Contrariamente ao que poderia ser tomado como uma particularidade comezinha do funcionamento sociocultural brasileiro, a rivalidade entre autores era uma característica midiática essencial, no plano da representação, para a composição de um cenário autoral. Esse é, por exemplo, o papel de Manuel de Araújo Porto-Alegre na disputa.

Porto-Alegre publica sua primeira réplica ao Sr. Ig., dessa feita, no O Jornal do Comércio, logo após a quinta carta. Assinando sua carta como O amigo do poeta, a retórica de Porto-Alegre seguirá o recurso ad hominem, e não se furtará a produzir no campo literário brasileiro algumas pérolas da lógica do odiar entre os escritores oitocentistas:

O lazarão da praia poderia bem responder ao pé da letra ao Sr. Ômega e ensinar a este fidalgo diagonal, que ainda temos beleguins que querem ser juízes; mas não que, porque viu o seio das suas bem conhecidas armas no seu artigo. Não esmaga percevejos porque fedem. Disse. (BUENO; MOREIRA, 2007, p. lxxiiiBUENO, Luís; MOREIRA, Maria Eunice (org.). A Confederação do Tamoios. Curitiba: UFPr, 2007, p.cxlcx-cl. .)

Entre as réplicas de O amigo do poeta, outras cartas incitando a lógica do odiar iam aparecendo, agora a favor da argumentação de Ig, como as do Sr. Boquiaberto e do Sr. Ômega. Até mesmo D. Pedro II participou da polêmica, escrevendo réplicas de entonação acadêmica e demonstrando erudição, sob o pseudônimo O Outro amigo do poeta. Arrisco a dizer que, no vislumbre de uma vida literária brasileira, Alencar devia ser só sorrisos, afinal alimentara a vida literária brasileira, embora nossa produção estivesse ainda muito longe de fazer a imprensa “gemer”4 4 Faço referência à expressão usada por Balzac em carta endereçada a sua irmã Laure, citada por José-Luis Diaz (2007, p.41). Diz Balzac: “Eu tenho esperança de me tornar rico à custa de romances. Que decadência! (...) eu somente tenho este ignóbil meio: sujar o papel e fazer a imprensa gemer. [Je l’espoir de devenir riche à coups de romans. Quelle chute ! (…) je n’ai que cet ignoble moyen là: salir du papier et faire gémir la presse]. Itálico meu. Tradução minha. . Se, para o século XIX, “a glória de um escritor se mede pelo número de seus inimigos” (BOQUEL; KERN, 2009BOQUEL, Anne, KERN, Étienne. Une Histoire des haines d’écrivains. De Chateaubriand à Proust. Paris: Flammarion, 2009., p. 15)5 5 Victor Hugo chega mesmo a declarar que “tinha a honra de ser um homem odiado” [J’ai l’honneur d’être un homme haï ”]. (BOQUEL; KERN, 2009, p. 15). , Alencar havia pelo menos um que valia por muitos, o próprio regente do Brasil.

Prosseguindo a análise, quando nos ocupamos da leitura do espaço textual da polêmica, notamos um aspecto pouco estudado em relação a esse momento de nossa história literária, ou seja, a natureza ou o gênero das cartas de Alencar. Para construir a polêmica, José de Alencar usou como uma estratégia autoral a composição de cartas abertas ao jornal Diário do Rio de Janeiro, e tal estratégia não é um detalhe negligenciável.

Segundo o dicionário Trésor de la Langue Française, o termo “carta aberta” foi definido no século XIX como um “artigo de jornal ou opúsculo, geralmente de caráter polêmico, redigido sobre forma de carta”6 6 Tradução minha. [Article de journal ou opuscule, généralement de caractère polémique, rédigé sous forme de lettre]. (AMOSSY, 2008AMOSSY, Ruth. Dialoguer au cœur du conflit? Lettres ouvertes franco-allemandes, 1870/1914. Revue Contextes, n.76, 2008, p. 25-39. Disponível em: <Disponível em: http://journals.openedition.org/mots/2013 >. Acesso em 09 de setembro de 2018.
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, p. 26). Até aqui, o uso adotado por José de Alencar parece estar adequadamente inserido nas práticas socioletais da época. Cabe indagar qual seria a função dessa estratégia em relação ao campo literário brasileiro e a produção autoral de José de Alencar nesse contexto.

Seguindo ainda com as delimitações do gênero, veremos que a carta aberta, na definição de Jean-Michel Adam, “joga com a designação-pretexto ou falsa de um interlocutor único (o Presidente Félix Faure no caso de Zola). Na verdade, o verdadeiro destinatário da carta aberta é representado pela comunidade de leitores”7 7 Tradução minha. [La lettre ouverte joue sur la désignation-prétexte ou postiche d’un interlocuteur unique (le Président Félix Faure dans le cas de Zola). En fait, le destinataire véritable de la lettre ouverte est représenté par la communauté des lecteurs.] (1998ADAM, Jean-Michel. Les genres du discours épistolaire. In: SIESS, Jurgen (dir.).La Lettre entre réel et fiction. Paris: SEDES, 1998. , p. 50). Outro parâmetro de enunciação importante apontado por Jean-Michel Adam (1998ADAM, Jean-Michel. Les genres du discours épistolaire. In: SIESS, Jurgen (dir.).La Lettre entre réel et fiction. Paris: SEDES, 1998. , p. 51) é a ideia de que a carta aberta destina-se a uma dupla leitura, o destinatário designado na carta é redobrado pelos leitores. Essas duas definições são essências para o alcance desse gênero na construção da cenografia de José de Alencar.

Um primeiro questionamento que se impõe é precisamente em relação a comunidade de leitores. Quem é o destinatário das cartas? Pela leitura das cartas, sabemos que o autor se dirige ao Meu amigo, que pode ser tomado como o próprio corpo editorial do jornal e, ainda, como uma virtual comunidade de leitores, ou melhor, uma desejada comunidade de leitores, a qual era ainda muito escassa no Brasil. Aliás, em relação à escassez de público nesse período de nossa história literária, já se teorizou com muito acuidade as questões relacionadas à forte presença de uma oralidade em nossa literatura. Considero que, efetivamente, essa relação de leitura entreautor e o leitor, quase como num registro retórico entre um orador e ouvinte é, de fato, um elemento formativo de nossa literatura, como bem analisa Antonio Candido ao afirmar que devido a falta de leitores, a oralidade “conferia maior viabilidade ao discurso e ao recitativo, meios bem mais seguros de difusão intelectual”. (1981CANDIDO, Antonio. As Formas de Expressão. In: Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, v.2, p. 35-44., p. 44).

Contudo, o próprio Candido avalia a importância da relação entre o romantismo brasileiro e o francês, ao afirmar que, como um último fator para entendermos a presença da oralidade no romantismo brasileiro, porém “não de menor importância - há o padrão francês que herdamos, diretamente ou através dos portugueses, e se caracteriza pela grandiloquência e a riqueza verbal de que Chateaubriand foi o pontífice”(CANDIDO, 1981CANDIDO, Antonio. As Formas de Expressão. In: Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, v.2, p. 35-44., p. 44).

No desejo dessa comunidade de leitores, mesmo que virtual, mesmo que ainda falando aos seus pares, notamos na enunciação alencariana presente nas Cartas, aspectos que dizem respeito à “grandiloquência e a riqueza verbal”, mencionada por Candido, que estão menos relacionadas a uma prática estilística, mas aos dispositivos pragmáticos próprios de um dizer romântico, ou seja, da enunciação de uma estética em ato.

Nesse ponto, a sugestão de Aderaldo Castello (1953CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre A Confederação dos Tamoios.São Paulo: FFLCH/USP, 1853., p. xxix) de que, na verdade, as cartas funcionariam como prefácio é correta, pois na ausência de uma autonomização da literatura e, consequentemente, na ausência de seus componentes balizadores, tais como a intensa circulação de livros, um público leitor ativo e a profissionalização do autor, a confecção de um prefácio na conjuntura da época seria um salto no abismo. Seria igualmente produtivo, para o entendimento da dinâmica do campo literário, a análise da função prefacial das cartas e sua relação com o dizer mais amplo do romantismo, e não somente característico da oralidade de nossa literatura.

De maneira que, nessa dupla leitura das cartas abertas, uma das possíveis leituras, além da inserção do autor no mundo literário, cujo destinatário é o corpo editorial, seria a da composição de um espaço de representação e de uma estratégia comunicativa, isto é, a formação da comunidade de leitores, em uma dimensão pragmática, característica da estética em ato do romantismo, em que a instância autoral, e nesse caso a instância prefacial, passa de um dizer a um fazer. Um fazer que teria a missão civilizatória de criar e ao mesmo tempo educar o público leitor.

Essa relação, em termos comunicativos, é marcada por uma força ilocutória, avizinhando-se da oralidade. Nesse sentido, podemos definir as cartas abertas como um prefácio ativista cuja função, segundo Diaz (2009DIAZ, José-Luis. Préfaces 1830: entre aversion, principe de plaisir et happening. Revue des Sciences Humaines, n. 295, 2009, p. 17-54. , p. 2), é a de reproduzir uma reflexão estética em ação, agindo na constituição de novas demarcações de um campo literário em constante mutação. Na afirmação do teórico:

Nos prefácios, do lado de um dizer mais ou menos regulado, há também a de um fazer. Um fazer que consiste essencialmente num processo problemático de autorização. Pois o essencial, no prefácio da época, é estabelecer um contrato: contrato que se torna problemático nesses tempos. O prefácio é, então, um dos lugares estratégicos onde se procura redefinir - e com dificuldade estabelecer - a autoridade do autor, particularmente frágil como é a do jovem autor ou a do autor menor.8 8 Tradução minha. Itálicos do autor. [Dans ces préfaces, à côté d’un dire plus ou moins convenu, il y a aussi du faire. Un faire qui consiste essentiellement dans un processus problématique d’autorisation. Car l’essentiel, dans la préface du temps, c’est bien l’établissement d’un contrat : contrat devenu problématique en ces temps troublés. La préface est alors un des lieux stratégiques où cherche à se redéfinir - et où peine à s’établir - l’autorité de l’auteur, en particulier cette autorité fragile qui est celle du jeune auteur ou de l’auteur mineur.] (DIAZ, 2009DIAZ, José-Luis. Préfaces 1830: entre aversion, principe de plaisir et happening. Revue des Sciences Humaines, n. 295, 2009, p. 17-54. , p. 2).

De fato, a polêmica é um momento decisivo para a formação de nossa literatura, na medida em que José de Alencar, mobilizando estratégias e noções autorais modernas, encena uma atividade literária, através da discussão que toma corpo nas páginas dos jornais. Podemos, dessa maneira, identificar como Alencar encena Alencar nesse contexto da literatura brasileira oitocentista; afinal, além de analisarmos o conteúdo das cartas buscando elementos da poética da obra alencariana, é possível realizar uma leitura crítica da construção da cenografia de Alencar, num espaço textual - a carta aberta - que se aproxima de um prefácio.

Por meio desse novo gesto crítico, o que salta aos olhos logo na primeira carta é o imaginário do leitor de romances, este sim assumindo a postura moderna de leitura, em sua intimidade, desocupado e que pode se dar ao luxo de ler o longo poema de Magalhães no seu doce far-niente. Alencar encena a postura do leitor moderno, desejado, ainda a ser formado em nossa vida literária, como podemos verificar no trecho abaixo e também em tantos outros presentes nas Cartas:

Meu amigo. Não é um juízo critico que pretendo escrever sobre o poema do Sr. Magalhães: nem tenho habilitações, nem tempo para o fazer com calma e o estudo precioso. São apenas as impressões de minha leitura, que desejo comunicar-lhe, para que as publique se entender que o merecem, e são justas. [...] Como não escrevo um juízo crítico, mas sim as ideias que me produziu a leitura do livro, irei fazendo as minhas reflexões pela mesma ordem em que meu espírito as formulou. (ALENCAR, 1860, p. 864ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.).

Uma cenografia, presente nas Cartas, e que faz eco às cenografias do romantismo francês, é a do artista associada ao romancista da energia. Sabe-se que Alencar faz uma crítica ao poema, mas como notamos no trecho acima ele faz uma denegação dessa atividade. Alencar não é o crítico que fora Machado de Assis; ao contrário, sua crítica é na verdade a palavra do artista. Sobreposta à palavra do crítico está a da criação e a da capacidade heurística de se encontrar para o tema nacional a nova forma. A atividade crítica como enunciada nas Cartas é na verdade disciplina criadora:

Há na poesia e na arte, nessas duas irmãs, filhas do gênio e da natureza, além da execução, uma parte negativa, a que um escritor moderno chama de crítica. O poeta ou artista é o homem que conhece e executa um pensamento sob a influência dessa exaltação de espírito que solta os voos à fantasia humana. O crítico, ao contrário, é o poeta ou o artista que vê, que estuda e sente a ideia já criada; que a admira como essa emoção calma e tranquila que vem depois do exame e da reflexão. Para ambos pois há uma mesma revelação do belo, com a diferença que para um se manifesta sob a forma do pensamento, e para o outro sob a forma do sentimento. No poeta é a inspiração, o fogo sagrado que cria e anima a ideia; na crítica é a contemplação, é o raio de luz que esclarece o quadro, e põe em relevo a obra já executada. (ALENCAR, 1860, p. 895ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.).

Essa ideia do artista que desponta no século XIX e está vinculada à potência criadora do romantismo da energia, na relação pensamento/execução, e à criação do novo pela capacidade heurística, é tarefa empreendida pelo artista que escreve as Cartas. Essa relação da criação artística, vinculada pelo díptico pensamento/execução, está presente na estética exposta por Alencar:

Escreveríamos um poema, mas não um poema épico; um verdadeiro poema nacional, onde tudo fosse novo, desde o pensamento até a forma, desde a imagem até o verso. A forma com que Homero cantou os gregos não serve para contar os índios; o verso que disse as desgraças de Tróia, e os combates mitológicos não pode exprimir as tristes endechas do Guanabara, e as tradições selvagens da América. Por ventura não haverá no caos incriado do pensamento humana uma nova forma de poesia, um novo metro de verso? (ALENCAR, 1860, p. 875-876ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.).

E em outra passagem encontramos a relação entre o pensamento e a matéria, entre criação e execução, dicotomias que dão ritmo a muitos artistas ficcionalizados, por exemplo, na Comédia Humana:

O lado misterioso que prende a alma ao corpo, a luta entre o espírito e a matéria, a contradição de duas vidas opostas, uma que aspira elevar-se ao seio do Criador, outra que se sente presa à terra - eis a verdadeira origem da poesia. (ALENCAR, 1860, p. 882ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.).

Se consideramos a questão pelo ângulo das cenografias, o romantismo da energia é, sem dúvida, uma das cenografias mais essenciais do autor da Comédia Humana. E, mesmo posteriormente, na cenografia do autor realista, ela fará contraponto à nova estética. A energia balzaquiana pode ser apreendida em diversos aspectos, sejam os aspectos estilísticos, enunciativos, estético-formais ou temáticos. Do ponto de vista temático, por exemplo, Balzac irá explorar em seus romances filosóficos a relação entre a Vontade e a energia (desenvolvida pela tríade semântica Pensar-Querer-Saber).

Aqui, é preciso ressaltar a importância do termo artista para o romantismo. O conceito de artista, hoje comum, é uma invenção do XIX. A extensão do conceito vai além de poeta, escritor, pintor; o termo aplica-se a tudo que estaria relacionado à potência criadora.

Assim é para Balzac. O artista, segundo o autor da Comédia Humana, é aquele imbuído dessa capacidade heurística e contínua da criação, apresentando uma forma de pensamento como força viva. A esse respeito, uma fonte romanesca balzaquiana por excelência é a ideia de que o desperdício da energia vital é acelerado nos artistas. A figura do artista é central para a cenografia do romantismo da energia e encontramos uma extensa galeria de artistas representando o imaginário da energia na Comédia Humana. Tais artistas, podemos citar, entre outros personagens da obra balzaquiana, Frenhofer, David Séchard, Balthazar Claës e Louis Lambert, não são apenas pintores ou escritores, mas inventores, cientistas e filósofos.

Em busca de uma identidade, assim como todo autor do romantismo inserido nesse período da história literária que se configura em torno de uma espécie de narcisismo estrutural, haja vista a amplitude de identidades produzida após a dissolução dos modelos regularizadores da retórica e do classicismo, Alencar procura para si uma imagem entre muitas imagens que inundam o campo literário. De maneira que é correto afirmar que Alencar também expõe o ato de criação do novo na literatura brasileira e não apenas um programa nacionalista. A energia do artista nas Cartas, na concepção desse novo romance, é uma cenografia em diálogo com as cenografias do artista do romantismo.

O futuro romancista adentra a cena literária; e, como pude demonstrar, ao mesmo tempo em que a encena, como o jovem artista, o romancista da energia contempla o romance como potência criadora. Por fim, ao final da quinta carta, que seria sua última, notamos pequenos gestos enunciativos que evidenciam a encenação da vida literária. O futuro romancista despede-se reforçando o caráter agonístico da vida literária, pois diz retirar-se da “liça” (ALENCAR, 1860, p. 894ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.). O autor reforça, igualmente, a encenação autoral ao deixar para os leitores seu “alter ego”: “Não dirão que fujo, visto que deixo por mim um amigo, ou se quiserem, um alter ego”. (ALENCAR, 1860, p. 895ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.).

Referências

  • ADAM, Jean-Michel. Les genres du discours épistolaire. In: SIESS, Jurgen (dir.).La Lettre entre réel et fiction Paris: SEDES, 1998.
  • AMOSSY, Ruth. Dialoguer au cœur du conflit? Lettres ouvertes franco-allemandes, 1870/1914. Revue Contextes, n.76, 2008, p. 25-39. Disponível em: <Disponível em: http://journals.openedition.org/mots/2013 >. Acesso em 09 de setembro de 2018.
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  • ALENCAR, José de. Cartas sobre A Confederação dos tamoios. In: Obra completa Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960, p. 864, v. IV.
  • BOQUEL, Anne, KERN, Étienne. Une Histoire des haines d’écrivains. De Chateaubriand à Proust Paris: Flammarion, 2009.
  • BUENO, Luís; MOREIRA, Maria Eunice (org.). A Confederação do Tamoios Curitiba: UFPr, 2007, p.cxlcx-cl.
  • CANDIDO, Antonio. As Formas de Expressão. In: Formação da Literatura Brasileira Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, v.2, p. 35-44.
  • CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre A Confederação dos TamoiosSão Paulo: FFLCH/USP, 1853.
  • DIAZ, José-Luis. Devenir Balzac Paris: Christian Pirot, 2007.
  • DIAZ, José-Luis. L’écrivain imaginaire: scénographies auctoriales à l’époque romantique. Paris: Honoré Champion, 2007.
  • DIAZ, José-Luis. Le champ littéraire comme champ de bataille(1820-1850). Revue Contextes, Liège, n. 12, 2012, Disponível em: <Disponível em: http://contextes.revues.org/4943 >. Acesso em 19 de agosto de 2018.
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  • DIAZ, José-Luis. Préfaces 1830: entre aversion, principe de plaisir et happening. Revue des Sciences Humaines, n. 295, 2009, p. 17-54.
  • HANSEN, João Adolfo. Notas sobre o Gênero Épico. In:TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopeia. O Uruguai. Caramuru. Vila Rica. A Confederação dos Tamoios. I - Juca Pirama São Paulo: EdUSP, 2008.
  • ROCHA, João Cezar de Castro. Literatura e Cordialidade: o público e o privado na literatura brasileira Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998.
  • 1
    Tradução minha. [Car tout « auteur » est d’abord auteur de lui-même]. Itálicos do autor.
  • 2
    Tradução minha. Itálicos do autor. [Impossible donc d’isoler une instance « réelle », sociale ou biographique, sans la « construire » plus ou moins innocemment en fonction d’un imaginaire. Cela signe l’insuffisance de toute sociologie littéraire inattentive aux médiations imaginaires du social. Impossible également d’isoler une instance purement textuelle dès qu’on constate que tel choix exclusivement formel en apparence (la méditation poétique lamartinienne, par exemple) est en corrélation avec un choix socio-professionnel (la prise de distance d’avec la scène littéraire parisienne par l’entrée dans la carrière diplomatique) et le choix d’une identité spéculaire (le « poète mourant »). Ces interactions invitent à se demander si modes de vie et choix textuels confirment ou non le choix d’un rôle donné. Non que l’imaginaire soit la structure première ; mais parce qu’il a bien une fonction de régulation sur les options prises aux trois niveaux.].
  • 3
    Tradução minha. Aspas do autor. [Et c’est un fait que la période romantique fut, à cet égard, une période « introuvable », où les affrontements étaient nets, où les dissensions littéraires étaient secondées par des lignes de fracture idéologiques, où les combats de la « Bataille » donnaient matière à une fictionnalisation de la vie littéraire. Organisés d’abord autour de l’axe séparant classiques et romantiques (jusqu’en 1830), ils trouveront ensuite (après 1833) un autre principe organisateur durable dans l’opposition entre l’« art social » et l’« art pour l’art ». (…). Avant comme après 1830, ces combats sont alimentés par une presse littéraire florissante et une « vie littéraire » bien fournie, animée par des groupes différenciés, scandée par des « événements littéraires » fréquents.]
  • 4
    Faço referência à expressão usada por Balzac em carta endereçada a sua irmã Laure, citada por José-Luis Diaz (2007DIAZ, José-Luis. Devenir Balzac. Paris: Christian Pirot, 2007. , p.41). Diz Balzac: “Eu tenho esperança de me tornar rico à custa de romances. Que decadência! (...) eu somente tenho este ignóbil meio: sujar o papel e fazer a imprensa gemer. [Je l’espoir de devenir riche à coups de romans. Quelle chute ! (…) je n’ai que cet ignoble moyen là: salir du papier et faire gémir la presse]. Itálico meu. Tradução minha.
  • 5
    Victor Hugo chega mesmo a declarar que “tinha a honra de ser um homem odiado” [J’ai l’honneur d’être un homme haï ”]. (BOQUEL; KERN, 2009BOQUEL, Anne, KERN, Étienne. Une Histoire des haines d’écrivains. De Chateaubriand à Proust. Paris: Flammarion, 2009., p. 15).
  • 6
    Tradução minha. [Article de journal ou opuscule, généralement de caractère polémique, rédigé sous forme de lettre].
  • 7
    Tradução minha. [La lettre ouverte joue sur la désignation-prétexte ou postiche d’un interlocuteur unique (le Président Félix Faure dans le cas de Zola). En fait, le destinataire véritable de la lettre ouverte est représenté par la communauté des lecteurs.]
  • 8
    Tradução minha. Itálicos do autor. [Dans ces préfaces, à côté d’un dire plus ou moins convenu, il y a aussi du faire. Un faire qui consiste essentiellement dans un processus problématique d’autorisation. Car l’essentiel, dans la préface du temps, c’est bien l’établissement d’un contrat : contrat devenu problématique en ces temps troublés. La préface est alors un des lieux stratégiques où cherche à se redéfinir - et où peine à s’établir - l’autorité de l’auteur, en particulier cette autorité fragile qui est celle du jeune auteur ou de l’auteur mineur.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2019
  • Aceito
    31 Ago 2019
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