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Severo Sarduy: um lugar entre nós

De onde vem essa força que a tudo habita e que se torna sensível para dois materiais que são o fundamento de múltiplas formas da arte - a luz e o som? Essa é a pergunta que de mil maneiras Severo Sarduy parece repetir, para responder: da primeira explosão, do Big Bang, tão imaginário quanto cientificamente real, tão desejado (é a primeira Revolução irrecuperável) quanto experimentado (é a luz que ainda se vê e o som que ainda se ouve no espaço exterior), tão originário (o autêntico salto para a vida) quanto arqueologicamente destituinte de toda origem pura.

Essa primeira imagem, motor de todas as outras que habitam a obra de Sarduy, é o resultado de um fato singular: um jovem poeta e crítico de arte, nascido em 1937 e ainda com escassa formação, deixa sua Cuba natal em 1960 para estudar história da arte na Europa. Uma década depois, instalado em Paris, esse jovem, através do estudo, do trabalho e do simultâneo redescobrimento de sua própria tradição, se torna um autor, não de uma obra de poesia ou de crítica, não de uma obra como romancista ou editor, não de uma obra de divulgação científica, mas da articulação de todas essas experiências criativas, articulação em que a ciência ocupará um lugar decisivo, como forma de interrogar a origem de todas as coisas e por meio da qual Sarduy consegue desenvolver uma teoria completa, o Neobarroco.

Para compreender a lógica dessa “obra completa”, os leitores de Sarduy, desde os anos 1970, tiveram que procurar um modo de articular a força aglutinante dessa teoria (Neobarroco) com a grande dispersão multiplicada (em gêneros, vocações, temas, etapas, profissões e até modas). Trata-se de uma característica que, ainda hoje, obriga a interrogar os limites dessa obra, o funcionamento de cada um dos seus componentes e a forma em que se dão suas múltiplas articulações.

Esse desejo de interrogação é o que guia este número da revista ALEA, dedicado a celebrar a obra de Severo Sarduy, no octogésimo aniversário do nascimento do escritor, ocasião que mereceu o esforço de reunir os principais estudiosos de sua obra para estabelecer o que, a nosso ver, poderia ser uma nova perspectiva nos estudos da obra de Sarduy - releituras que, de um modo ativo, permitam novamente “dar-lhe um lugar entre nós”, como assinala em seu trabalho Gustavo Guerreiro (editor, junto a François Wahl, da sua Obra completa, publicada em 1999), ou seja, definir de um modo preciso e delicado as zonas de sua obra que continuam vitais para nós.

Entre os investigadores participantes, contamos com contemporâneos de Sarduy, os quais leram e dialogaram com o autor desde o começo de sua produção e que aqui mostram-se dispostos a uma releitura de suas próprias leituras. Roberto González Echevarría, amigo e biógrafo de Sarduy, abre o número. Seu trabalho é um retorno às suas primeiras hipóteses, agora a partir de uma perspectiva testemunhal e analítica, que permite assistir a uma experiência criativa compartilhada em seu autêntico laboratório: a correspondência mantida entre eles ao longo de 24 anos. A visão panorâmica dessa correspondência permite confirmar o lugar cada vez mais central que os temas latino-americanos e cubanos ocuparam na obra de Sarduy, sobretudo a partir da consolidação de Lezama Lima como sua referência máxima.

Raúl Antelo, por sua vez, apela a diversas formas da distância para voltar a um texto inaugural de Sarduy, “Sobre el infierno” (1956). Em seu detalhamento crítico, lê projeções, destinos e intensidades (tanto na própria obra do cubano quanto no pensamento europeu atual, fundamentalmente no de Giorgio Agamben) que obrigam a fazer de Sarduy e do Neobarroco uma variável decisiva dos debates estético-políticos contemporâneos. Trata-se de uma conexão que poderíamos titular “Sarduy e a filosofia”, cuja trama mais específica precisa de uma indagação sistemática, na medida em que Sarduy participou, tanto íntima quanto marginalmente, de um momento fundamental de transformação teórica (Tel Quel, seus fundamentos filosóficos e suas derivações críticas), no qual se expôs a desgastantes intrigas. Essa é a razão pela qual decidimos incluir, traduzido pela primeira vez ao português, outro testemunho chave: o ensaio de Edgardo Cozarinsky, escrito há mais de uma década, sobre as relações entre nosso autor e a inteligência parisiense. Sarduy foi, com efeito, um prisioneiro, objeto da “vampirização”, mas também encontrou ali zonas de exceção e fuga (sua amizade com Roland Barthes, por exemplo), assim como um espaço para a elaboração de um gesto, um tom e uma experimentação estético-cultural em que aparece sua autêntica voz.

Outra trama, a latino-americana, é indagada por Laura Isola, cujo trabalho propõe reler a tradição do ensaio latino-americano desde a perspectiva de Cuba. A partir das múltiplas articulações (por anacronismo mais do que por relações de influência) entre Fernando Ortiz, Severo Sarduy e Virgilio Piñera, Isola faz do conceito de transculturação uma das condições de possibilidade do Neobarroco sarduyano e, em sentido inverso, faz deste um modo de ler outros alcances nas hipóteses de Ortiz.

O estudo específico da obra narrativa de Sarduy se encontra nos trabalhos de Antonio Andrade e Maria Cristina Chaves Carvalho. O primeiro faz da análise dos romances do autor um modo de intervir em diversas polêmicas críticas para assinalar a dimensão política do Neobarroco no discurso literário. Nesse marco de referência, o que o autor chama de “dificuldade de narrar” é um desejo simultâneo de apreensão e abandono de sentido, aproximação e repúdio em relação ao que se tenta erigir como cultura latino-americana. A segunda, por sua vez, a partir de uma análise de Cobra, discute um tema decisivo na obra de Sarduy, o travestismo, propondo articulações entre dois de seus planos de desenvolvimento: o corpo e a escrita. Nessa relação são definidas características-chave do Neobarroco. A sugestão política é tratada de maneira mais específica por Ignacio Iriarte. Seu trabalho estuda diacronicamente as “políticas da literatura” de Sarduy e seus vínculos (cuja forma é a elipse) com a Revolução como conceito - um percurso no qual Sarduy avança em direção a uma dissolução final do programa revolucionário. Essa análise lhe permite destacar vínculos poderosos com discussões do presente.

Gustavo Guerrero, outro leitor permanente de Sarduy, também se esforça em colocá-lo entre nós. Guerrero volta a ler Sarduy com autêntico rigor, para, com as armas que o próprio Sarduy lança, buscar seus matizes, suas zonas cinzentas, e estabelecer - dentro de uma operação maior: a elaboração do Neobarroco como teoria e prática - regimes específicos, estéticas específicas, que permitam colocar Sarduy em diálogo com alguns conceitos da teoria estética atual (pós-estética, pós-autonomia). Toda a obra prévia de Guerrero (como crítico e editor de Sarduy), que tinha como um de seus eixos a ideia de “religião do vazio”, submete-se aqui a um novo olhar, a partir de múltiplas relações entre literatura e artes plásticas, para fazer da obra de Sarduy uma ferramenta válida de crítica e resistência.

Se o conjunto de hipóteses colocadas pelos trabalhos incluídos neste número consegue o efeito de interrogar os limites e configurações da “obra completa” de Sarduy, um dos resultados evidentes dessa experiência de leitura é a necessidade de voltar a abrir o arquivo. É o que promete González Echevarría com a análise das cartas e Javier Guerrero ao debruçar-se sobre alguns materiais do arquivo familiar de Sarduy, que está na Universidade de Princeton desde 2014. O que Javier Guerrero lê como “espetáculo somático” (que reclama tanto ferramentas especificamente filológicas quanto variáveis de gênero) faz do arquivo uma experiência de corpus/corpo e seu porvir, o que possibilita a leitura de uma trajetória, de um processo de transformação, de um traço de vida.

Além dessas primeiras mostras de partes do arquivo, cuja difusão certamente abrirá novas perspectivas de leitura, contamos neste número com a possibilidade de publicar um material inédito, cedido por Jorge Schwartz. Na seção “Arquivos”, apresentada por Elena Palmero González, além de uma carta datilografada de maio de 1984, inclui-se o texto “Una cronología”, enviado por Sarduy a Schwartz como anexo à carta. Trata-se de uma ficção autobiográfica cuja publicação supõe uma grande oportunidade para os leitores interessados nessa parcela da obra do autor, na medida em que ela se integra a uma valiosa série de textos nos quais Sarduy se dispôs a revelar criativamente os limites de sua vida.

Fecham o número as resenhas assinadas por Haydée Ribeiro Coelho e Eduardo Coutinho. A primeira sobre o livro Arquivos literários: teorias, histórias, desafios, de Reinaldo Marques, a segunda sobre Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo I: De la colonia a la organización nacional (1808-1845), de Marcela Croce, dois livros de extraordinária relevância temática e metodológica no contexto contemporâneo dos estudos comparados.

Valentín Díaz eElena Palmero González

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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