O presente volume reúne trabalhos críticos que contemplam modos diversos de reflexão sobre a infância em múltiplas manifestações culturais. Através das imagens e das palavras, a modernidade não cessou de representar a infância e de interpretá-la, criando figuras enunciativas, dando voz a quem, por definição, carece dela. Já foi dito que a mudez está inscrita na própria palavra (in-fans): existindo apenas como memória do outro, ela alude a uma condição sempre narrada ou teorizada pelo adulto.
A noção de infância participa, de modo crucial, na formação da modernidade cultural e encontra-se estreitamente vinculada à memória e ao mito das origens. Ao abordar a infância, os autores dos artigos incluídos no volume se referem à memória individual e à memória histórica, às recordações traumáticas e às memórias felizes, e também a simbolizações necessariamente impregnadas de uma dimensão coletiva. Vinculando infância e memória, os estudos publicados incursionam em territórios da linguagem e da expressão artística.
No dossiê, intitulado "Visões da infância. Relatos da memória e da imaginação", há uma forte unidade de conjunto, apesar da diversidade de perspectivas adotadas e da variedade dos objetos de estudo. Os autores aproximam-se de expressões artísticas, de obras literárias e de pensamento, a partir de reflexões contemporâneas sobre a infância que propiciaram diálogos em espaços interdisciplinares.
Pela primeira vez, publica-se em língua portuguesa "Infância", do escritor e crítico argentino Daniel Link. A sua análise de O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, parte do princípio de que a noção mencionada no título do artigo significa um estado da imaginação e não uma etapa da evolução humana. Posicionado no campo filosófico, Walter Omar Kohan concebe a infância como condição da filosofia e da liberdade de pensar. Traçando um percurso que começa nos ensinamentos de Sócrates e culmina nas propostas de Jean-François Lyotard, o autor de "Visões da filosofia: a infância" situa essa condição no cerne da filosofia, salientando os paradoxos inerentes a todo pensamento autêntico.
"Infancia clandestina ou a vontade da fé", de Gonzalo Aguilar, e "En el embute del francés: sobre Manèges/La casa de los conejos, de Laura Alcoba", de Débora Duarte dos Santos e Pablo Gasparini, se detêm em ficções - um filme, no primeiro artigo, e um romance, no segundo - que recriam experiências infantis do período ditatorial da Argentina, iniciado em 1976. A leitura de Infancia clandestina mostra a singularidade desse filme em relação à série em que crianças são protagonistas da violência política no cinema desse país. A partir do romance de Laura Alcoba, indaga-se, no ato da tradução do francês para o espanhol, a reconversão de representações da infância. Da ocultação do trauma, da figura do órfão e da orfandade política se ocupa Rita De Grandis na sua revisitação de Marcelino pan y vino, um filme clássico do cinema espanhol do período posterior à Guerra Civil Espanhola.
A evocação do universo infantil de tradições culturais antigas e o aproveitamento das reflexões de Walter Benjamin aproximam os artigos "Assombrações da infância com Boltanski e Benjamin", de Rosana Kohl Bines, e "Retratos subexpostos de Miguilins," de Elisa Maria Amorim Vieira. O pensamento de Benjamin serve de apoio inspirador tanto das interpretações de uma obra do artista francês Christian Boltanski quanto da leitura de imagens e relatos dos moradores do Vale de Jequitinhonha, em que se adverte a sintonia com o imaginário de Grande sertão: Veredas.
Em "Un niño en estado de paisaje: Allá lejos y hace tiempo, de Hudson", Adriana Kanzepolsky se ocupa da singular autobiografia da infância feliz de um escritor argentino que escreveu, em inglês, a nostalgia de um espaço, os pampas do século XIX.
Sobre outras recordações dos anos infantis, as do escritor venezuelano Salvador Garmendia, escreve Mónica Marinone em "Imaginación de infância en Memorias de Altagracia". A autora observa o modo como memória, experiência e imaginação são convocados na obra de Garmendia.
"Redações escolares e diários: escritas do escândalo", de Renan Ji, contrasta os romances Elogio da madrasta, de M. Vargas Llosa, e O caderno rosa de Lori Lamby, de H. Hilst, atendendo às maneiras diferentes de conceber a sexualidade infantil. Para pensar a infância no universo poético de Jorge de Lima, o artigo de Luciano M. Dias Cavalcanti, intitulado "Infância e poesia na lírica final de Jorge de Lima", opta por partir do vínculo entre poesia e imaginação infantil postulada no século XVIII por Gianbattista Vico. Rodrigo Ielpo aborda, a propósito de W ou Le souvenir d'enfance, de Georges Perec, a "indecibilidade" da obra que assume uma dupla inscrição, como ficção e como autobiografia não ficcional. Ermelinda M. Araújo Ferreira, no artigo "Cheias de graça: as poéticas mambembes de Guimarães Rosa e Osman Lins", nota a coincidência existente entre os dois grandes escritores brasileiros, fundada no circo, na carnavalização e no humor.
Em seguida, o volume apresenta duas resenhas de livros publicados no Brasil no ano de 2014, que julgamos de especial relevância na área de Letras: Antonio Andrade escreve sobre Literatura e ética, de Diana Klinger, e Rafael Gutiérrez comenta Monstros e arquivos, de autoria de Roberto González Echevarría e tradução de Ary Pimentel.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015