Resumo
O artigo considera a força estético-política de um imaginário associado à infância no trabalho do artista contemporâneo Christian Boltanski na pequena cidade francesa de Vitteaux, onde criou um teatrinho de sombras a céu aberto, projetando nas fachadas das casas, quando anoitece, imagens de bruxas, gatos pretos, morcegos, caveiras. Investiga-se essa coleção de monstros de feição infantil em reflexão cruzada com o pensamento de Walter Benjamin sobre a potência dos encontros repentinos com o mundo esquecido da infância. Ao promover um diálogo entre os dois autores, busca-se evidenciar articulações entre práticas estéticas e práticas políticas para pensar como o campo da infância pode ensejar novos modos de configurar, de sentir e de partilhar um ambiente em comum.
Palavras-chave:
infância; práticas estéticas e práticas políticas; Christian Boltanski; Walter Benjamin
Abstract
The article considers the aesthetic and political power of a childhood imagery in the work of contemporary artist Christian Boltanski. In the small French town of Vitteaux, he created an outdoor shadow theatre, projecting images of witches, black cats, bats and skulls on the facades of houses at night. We propose to examine Boltanski's collection of childish monsters through a reading of Walter Benjamin's thoughts on the forgotten world of childhood and the potentiality of coming through its sudden contact. By bringing these authors together, we want to show how aesthetic practices and political practices are intertwined and how the field of childhood can give rise to new ways of making, feeling and sharing a common environment.
Keywords:
childhood; aesthetic practices and political practices; Christian Boltanski; Walter Benjamin
Résumé
L'article fait remarquer la force esthétique-politique d'un imaginaire associé à l'enfance, dans le travail de l'artiste contemporain Christian Boltanski, dans la petite ville française de Vitteaux, où il a monté un petit théâtre d'ombres en plein air, en projetant sur les façades des maisons, à la tombée de la nuit, des images de sorcières, de chats noirs, de chauves-souris, de têtes de mort. On cherche, dans cette collection de monstres d'aspect enfantin, des rapports avec la pensée de Walter Benjamin sur la force des rencontres inattendues avec le monde oublié de l'enfance. En réalisant une rencontre entre les deux auteurs, on cherche à mettre en évidence des articulations entre des pratiques esthétiques et des pratiques politiques pour penser comment le champ de l'enfance peut éveiller de nouveaux moyens de caractériser, de sentir et de partager une ambiance en commun.
Mots-clés:
enfance; pratiques esthétiques et pratiques politiques; Christian Boltanski; Walter Benjamin
A luz elétrica obscureceu parcialmente o mundo, deixando muitos objetos e seres na penumbra. Murilo Mendes
Não são bem reminiscências, mas acontecimentos ainda presentes e que não esgotaram sua energia potencial, ainda atuantes, e incrivelmente futuros. Samuel Rawet
Em 1928, fascinado pelo livro ilustrado que Karl Gröber acabara de publicar sobre a história cultural dos brinquedos (Kinderspielzeug aus alter Zeit), Walter Benjamin perguntava, afirmando: "Mas quando um moderno poeta diz que para cada homem existe uma imagem em cuja contemplação o mundo inteiro desaparece, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos?" (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. "Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental". In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984. (Coleção Novas Buscas em Educação).: 75).
Para os cerca de 1.100 habitantes do pequeno povoado de Vitteaux, na região francesa da Borgonha, a vinculação fundamental, sugerida por Benjamin, entre ver (formas ressurgidas da infância) e desaparecer (o mundo habitual de onde se as contempla) tem sido uma experiência renovada a cada noite desde 2004, quando foi inaugurada na cidade a instalação conhecida como Parcours d'ombres2 2 Para um passeio virtual no percurso de sombras projetado por Boltanski em Vitteaux, ver o vídeo <http://www.fondationdefrance.org/Nos-Actions/Developper-la-connaissance/Culture/Les-nouveaux-commanditaires/L-ombre-de-Boltanski-veille-sur-Vitteaux>. Acesso em: 15 ago. 2014. (Percurso de sombras), do artista francês contemporâneo Christian Boltanski. A intervenção artística na cidade partiu de uma demanda muito prática dos moradores por uma obra que interagisse com o patrimônio arquitetônico do lugar e minimizasse a sensação de insegurança provocada pela luz mortiça dos tradicionais lampiões. A expectativa de abrandar o medo com arte tomou a forma de um pedido preciso do prefeito de Vitteaux, no primeiro encontro com Boltanski: "Eu quero alguma coisa que alegre a minha cidade!"3 3 No original em francês, "Je veux quelque chose de gai pour ma ville!". Agradeço à Judith Bines pela colaboração nas traduções de todas as citações em francês apresentadas neste artigo. (BOLTANSKI, 2010______. Parcours d'ombres. Paris: Les presses du réel, 2010. (Collection Société des Nouveaux Commanditaires).: 15).
O pedido foi atendido, ainda que às avessas. Em estratégia irônica, ao invés de luzes, o artista confecciona para a cidade um circuito de sombras que bruxuleiam nas fachadas das casas quando anoitece e alteram a paisagem familiar, expondo jocosamente o medo que a obra artística deveria camuflar. As sombras compõem uma espécie de "dança macabra", evocativa das alegorias medievais presentes nos livros religiosos, em que figuras de morte se enfileiram em cortejo fúnebre e dançam em direção ao cemitério para lembrar aos indivíduos de todos os estratos sociais que um destino comum lhes espera. Em Vitteaux, contudo, os representantes da morte parecem saídos de um velho livro infantil ou de uma velha caixa de brinquedos. São imagens esquemáticas de bruxas, gatos pretos, morcegos, caveiras, recortadas toscamente em pequeninos pedaços de cobre e penduradas em pontos estratégicos da cidade, de modo a projetar, na contraluz de pequenos holofotes, silhuetas amplificadas e moventes nos muros do lugar. O percurso de assombrações mais se assemelha a um corredor de trem-fantasma daqueles antigos parques de diversão infantis, em que os monstros são malfeitos, desproporcionais, meio gaiatos, mas não perdem de todo o poder de nos assustar.
Que reverberações estético-políticas podem se desprender dessa pequena coleção de espectros dançantes? A pergunta se desdobra nos termos de Georges Didi-Huberman, a propósito da lamentação de Pier Paolo Pasolini sobre o desaparecimento dos vaga-lumes da paisagem europeia, tomada pela luz feroz e vigilante dos holofotes fascistas na década de 1940: Como voltar a iluminar a noite com lampejos de pensamento? Como produzir emissões inventivas e resistentes aos regimes de iluminação acachapante que pretendem a superexposição do visível? Na trilha dessas perguntas, Didi-Huberman aciona um circuito de imagens-pensamento na obra de Walter Benjamin para acender um princípio-esperança, condicionado à ressurgência das formas ensombrecidas e das figuras crepusculares, cuja sobrevivência atualiza uma "temporalidade impura" e um espaço de imagens cruzadas entre passado e presente (DIDI-HUBERMAN, 2010DIDI-HUBERMAN, Georges. "A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento". In: O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010: 128.: 128).
Nesse cenário especulativo, a infância surge no campo da arte como operadora potencial de sobrevivências, reanimando fazeres, sensações, ritmos, linguagens já esquecidos, mas que não perderam de todo o seu poder de germinação. Aposta-se na força das coisas que foram sendo deixadas para trás, não na expectativa nostálgica de recuperá-las tal qual foram, mas na perspectiva ousada de com elas criar uma atualidade inacabada e aberta. No horizonte dessas novas constelações entretempos, produzir zonas de contato com o que é considerado já morto torna-se uma maneira de alargar o alcance da vida para incluir, também, aquilo que é jogado para fora de sua circunscrição. O que passou não é de todo passado, mas passante, tal como a moça que cruza o célebre poema de Baudelaire, ou como as estrelas que se opõem "ao sol da revelação", na belíssima imagem de Benjamin em carta a Florens Christian Rang (BENJAMIN, 1979______. Correspondances. Tome 1 - 1910-1928. Édition établie et annotée par Gershon Scholem et Théodor W. Adorno. Traduit par Guy de Petitdemange. Paris: Édition Aubier Montaigne, 1979.: 295). Nessa carta, datada de 9 de dezembro de 1923, Benjamin compara a intensidade da arte ao brilho imperceptível das estrelas à luz do dia. Não é possível vê-las na claridade, mas elas continuam agindo de modo invisível, mantendo viva a memória da noite que foi apagada ao amanhecer. Assim também com as obras de arte, segundo a leitura que faz dessa passagem a filósofa Maria Filomena Molder. As obras de arte pertencem à noite e têm o poder de iluminá-la aos nossos olhos, quando já não é mais possível ver o escuro na claridade do dia.6 6 DELEUZE apud LEAL, 2011: 20. Para uma discussão de conceitos alargados de infância, ver especialmente a "Introdução" do excelente livro de Bernardina Leal sobre a obra de Guimarães Rosa.
Nessa direção, busca-se dimensionar a força política do teatrinho de sombras de Boltanski naquilo que tem de mais elementar e fugaz: a possibilidade de fazer com que as pessoas sintam um espaço ou um momento de uma maneira levemente alterada,5 5 Pauto-me aqui por um depoimento do próprio Boltanski: Et donc peut-être que l'elément intéressant, que l'on trouve de plus en plus rarement avec des expositions, c'est d'arriver à faire simplement que les gens sentent un espace ou un moment d'une manière un peu diferente. (E então, o que é talvez interessante e que se vê cada vez mais raramente em exposições é, simplesmente, fazer as pessoas sentirem um espaço ou um momento de um modo um pouco diferente) (BOLTANSKI, 2010: 21). a partir de conexões abertas com o universo esquecido da infância. E por infância não se entende aqui um estado puro e apartado do mundo adulto, mas uma configuração coletiva e abrangente, que pode tocar também as gerações mais velhas. Sem demarcações de idade, de traços fisiológicos ou comportamentais, a infância não coincide inteiramente com a criança, manifestando-se antes como uma dimensão humana que pode nos atravessar a qualquer momento. Durante um passeio noturno para casa, por exemplo. Seria possível pensá-la, talvez, como "a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz", como escreveu Deleuze a respeito de Proust.6 6 DELEUZE apud LEAL, 2011: 20. Para uma discussão de conceitos alargados de infância, ver especialmente a "Introdução" do excelente livro de Bernardina Leal sobre a obra de Guimarães Rosa. Confrontados todas as noites com as pequenas assombrações, os moradores de Vitteaux expõem-se a experiências sensório-visuais que desassossegam a paisagem familiar e convidam a reimaginar novos trajetos nos antigos caminhos. A infância se instala nessa pulsão inventiva vinculada aos estados nascentes, se entendemos, como Lyotard, que:
O nascer não é apenas o fato biológico do parto, mas sob a cobertura e a descoberta deste fato, o acontecimento de uma possível alteração radical no curso que empurra as coisas a repetir o mesmo. A infância é o nome desta faculdade, tanto mais quanto aporta, no mundo do que é, o espasmo do que, por um instante, não é ainda nada. Do que já é mas ainda sem ser algo. Digo esse nascimento incessante porque marca o ritmo de uma "supervivência" recorrente, sem medida.7 7 A tradução para o português dessa citação de Lyotard foi retirada do livro de Walter Kohan. O texto original em francês encontra-se em Jean François-Lyotard. Lectures d'enfance (1991), p. 70: Le naître n'est pas seulement le fait biologique de la parturition, mais, sous le couvert el le découvert de ce fait, l'événement d'une altération radicale possible dans le cours qui pousse les choses à répéter le même. L'enfance est le nom de cette faculté, autant qu'elle apporte, au monde de ce qui est, l'étonnement de ce qui, un instant, n'est rien encore. De ce qui est dé jà sans encore être quelque chose pourtant. Je dis cette naissance incessante parce qu'elle bat le rythme d'une "survie" récurrente sans mètre (sans mesure). (LYOTARD, apud KOHAN, 2005LYOTARD, François apud KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.: 251-252. Minha ênfase.)
Interessa perseguir justamente o ritmo desse nascimento incessante da infância através da aparição das sombras que a cada noite voltam a acender a potência esquecida dos recomeços. Pois no percurso de sombras em Vitteaux, nascer/morrer, aparecer/desaparecer, lembrar/esquecer são acontecimentos rítmicos. Quando amanhece, as figuras levemente assustadoras já não estão mais lá, visíveis. Com a luz do sol, elas simplesmente se desmaterializam. Sua aparição depende do breu. Quanto mais escura a noite, mas nítidas as sombras estampadas nas fachadas. Tal rítmica muda decisivamente a "paisagem do sensível",8 8 A expressão é uma referência declarada à obra de Jacques Rancière, que tem se dedicado a pensar a interação de experiências estéticas com novas formas de subjetividade política, em livros como Políticas da escrita (1995), A partilha do sensível (2005) e O espectador emancipado (2010). porque a desaparição não é um evento derradeiro, posto de uma vez por todas, como na visibilidade acachapante da Maison Manquante,9 9 A Maison Manquante (casa faltante) foi uma obra comissionada para a comemoração do aniversário da unificação alemã no pós-guerra. Trata-se de um trabalho empenhado em materializar a ausência, na forma de pequenas placas com nomes, datas de nascimento e datas de morte dos antigos residentes de um prédio bombardeado durante a Segunda Guerra Mundial. As placas estão posicionadas nas empenas de dois prédios adjacentes, exatamente nos andares dos apartamentos que cada um dos moradores ocupava antes de a edificação ser destruída. em Berlim, um dos trabalhos mais conhecidos de Boltanski.
Em Vitteaux, a desaparição é ritmicamente convocada, em grande parte à revelia da decisão humana. O que vem e vai é condicionado aos movimentos de rotação da terra em sua órbita em torno do sol, movimentos que acontecem à revelia da decisão humana e que não se podem frear, mas com os quais se pode sempre jogar. A instalação "Percurso de sombras" propõe, assim, um jogo com os ritmos cósmicos do dia e da noite pela lei da repetição que rege o mundo do brinquedo, na teoria freudiana, a que Walter Benjamin presta tributo, não sem fazer um desvio contundente, cuja elucidação nos reenviará a um traço inquietante das sombras de Boltanski: a capacidade de converterem em hábito a convivência com aquilo que voltará a desaparecer na manhã seguinte. Se considerarmos o longo tempo de exposição dos moradores à obra, passados já dez anos desde a sua inauguração, cabe especular: qual a força desse habituar-se ao desaparecer-reaparecer das sombras, que faz das visões da infância um pulso intermitente na vida?
No ensaio "Brinquedos e jogos, observações sobre uma obra monumental", dedicado ao já mencionado livro de Karl Gröber sobre a história cultural dos brinquedos, Benjamin retoma brevemente a teoria freudiana exposta em "Além do princípio do prazer" para pensar, também ele, o ímpeto da repetição nas brincadeiras infantis. É bastante conhecida a cena em que Freud observa seu neto de 18 meses jogar para longe um carretel de madeira atado a um barbante, que desaparece atrás da cama cortinada, para depois puxá-lo de volta à visão, repetindo inúmeras vezes o gesto de mandar embora e fazer aparecer. São gestos acompanhados vocalmente pelo som prolongado de "óoooo", através do qual Freud imagina a criança lamentar a perda da coisa, seguido pelo som alegre de "da", com que ela saúda a sua renovada presença. A brincadeira, escreve Freud, é uma maneira de a criança se assenhorear das perdas que ela não controla, como as ausências diárias da mãe quando sai ao trabalho. Brincando de desaparecer com o carretel, o menino transforma a sua condição passiva, de quem é abandonado sem recursos, em atividade de jogo, recuperando o poder de agir e falar sobre o objeto que vai e vem. A situação desagradável é encenada repetidas vezes como forma de elaboração das perdas, tanto as que já ocorreram, como as que tornarão a acontecer, porque a constituição do sujeito está, para Freud, justamente vinculada a essa dinâmica de "repor em jogo o pior",10 10 Na elaboração do presente ensaio, foram decisivas as considerações de Georges Didi-Huberman sobre a cena da criança com o carretel na minuciosa análise que faz do texto freudiano no capítulo "Dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento", do livro O que vemos, o que nos olha (2010). Nesse capítulo, o autor demonstra como a dimensão rítmica do jogo do luto "convoca uma estética" e cria uma "obra da ausência", em que "o objeto eleito pela criança só 'vive' ou só 'vale' sobre um fundo de ruína". A hipótese de Didi-Huberman é a de que apenas quando o carretel se torna capaz de desaparecer ritmicamente é que ele ganha uma "eficácia pulsional", tornando-se uma imagem visual capaz de constituir a identidade imaginária da criança, que passa a incorporar a morte na energia da vida (DIDI-HUBERMAN, 2010: 80-82). como a descreve Georges Didi-Huberman ao considerar a dialética do visível proposta pela tese freudiana. Repor em jogo o pior equivale a atualizar permanentemente a relação do humano com o que se faz ausente. No limite, trata-se de imaginar experiências de supressão da vida e de criar encenações de despedida para tudo aquilo que existe. Esse jogo com a desaparição é, para Freud, estruturante do humano. Nas seções finais de "Além do princípio do prazer", ele associará a compulsão à repetição ao conceito de pulsão de morte, um instinto constitutivo que manifesta a força de materiais inconscientes recalcados, sendo o mais fundamental deles o desejo de restaurar um estado inercial da qual toda matéria viva teria se originado. A evolução do homem, para recuperar a terminologia biológica empregada por Freud, estaria fundada na repressão de um instinto que nunca abdica de querer realizar a morte, de querer nos restituir a uma situação primordial de imobilidade em que, paradoxalmente, repetimos o mesmo para conservar energia vital, para não nos gastarmos no movimento. Na concepção freudiana, a repetição se torna, pois, um dos mecanismos fundamentais da pulsão de morte, na medida em que nos reenvia continuamente ao mesmo lugar, poupando-nos a energia necessária à vida.
Mas, ao contrário dos pesadelos traumáticos e das neuroses de guerra, que constituem o plano maior do ensaio freudiano, em que o retornar compulsivo às cenas de perigo são sintomas patológicos da sujeição dos indivíduos àquilo que não conseguem elaborar e que, por isso mesmo, retorna sem consentimento, a brincadeira repetitiva das crianças é orquestrada por elas mesmas e se torna fonte de prazer. Freud observa que elas gostam de ouvir as mesmas histórias, sempre do mesmo jeito, para reviver aquela primeira sensação de leitura. Já quando os adultos escutam a mesma piada uma segunda vez, a graça se perde. A novidade é, para eles, condição indispensável da fruição e do deleite. Assim sendo, ao deixar-se para trás a infância, perde-se também a capacidade de encontrar o novo pela repetição. Benjamin radicaliza essa sugestão de Freud, estirando-a em direção imprevista. Constata, em linguagem marcadamente efusiva:
"Es liesse sich alles trefflich schlichten Könnt mann die Dinge zweimal verrichten" (Tudo correria com perfeição, se se pudesse fazer duas vezes as coisas): a criança age segundo este pequeno verso de Goethe. Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para tornar-se senhor de terríveis experiências primordiais, mediante o embotamento, juramentos maliciosos ou paródia, mas também de saborear, sempre com renovada intensidade, os triunfos e vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta a criar para si o fato vivido, começa mais uma vez do início. Aqui talvez se encontre a mais profunda raiz para a ambiguidade nos "jogos" alemães: repetir a mesma coisa seria o elemento verdadeiramente comum. A essência do brincar não é um "fazer como se", mas um "fazer sempre de novo", transformação da experiência mais comovente11 11 Reproduzi a tradução de Marcus Vinicius Mazzari, publicada no livro Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (1984). Porém, suaviza-se demais o enunciado final, a meu ver, quando se traduz "Verwandlung der erschütterndesten Erfahrung" (no original em alemão) por "transformação da experiência mais comovente em hábito". O adjetivo em grau superlativo utilizado por Benjamin - der erschütterndesten - alude, antes, à dimensão devastadora, calamitosa, aterradora da experiência a ser convertida em hábito pela via do jogo. Agradeço aos esclarecedores e-mails trocados com Susana Kampff Lages sobre a tradução para o português desta passagem. em hábito." (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. "Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental". In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984. (Coleção Novas Buscas em Educação).: 75. Minha ênfase.)
Muito mais do que normalizar, pela brincadeira, experiências que tenham causado forte impressão nas crianças, para Benjamin trata-se, antes, de pensar o hábito como uma batida rítmica que re-introduz, a cada vez, a devastação. Dito de outra forma, aquilo que o hábito faz aparecer sempre de novo é o potencial de desaparição de todas as coisas. No hábito, tudo está a um passo de desaparecer, e de forma tão extremada, a ponto de solapar a própria consciência dessa operação de apagamento, o que significa dizer que, no hábito, o desaparecimento se inscreve rotineiramente, sem que dele nos possamos dar conta. Benjamin insiste que "é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito" (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. "Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental". In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984. (Coleção Novas Buscas em Educação).: 75). Ações costumeiras como comer, dormir, vestir-se, lavar-se são rotinas inculcadas nos pequenos através de brincadeiras sonoras, pelo ritmo de versinhos. No vai e vem compassado das rimas, os hábitos se internalizam, e mesmo em suas formas mais enrijecidas, ele dirá, sobrevive nesses gestos diários "um restinho de jogo até o final" (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. "Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental". In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984. (Coleção Novas Buscas em Educação).: 75). O hábito guardaria, portanto, a memória do esquecimento do jogo. Em outras palavras, ao converter-se a brincadeira em hábito, deixamos de perceber a repetição como jogo motivado e simplesmente comemos, nos vestimos, dormimos repetidas vezes, sem intenção, por hábito justamente. É como se o conteúdo ou o sentido das ações desaparecesse para dar lugar a um código de gestos automáticos, que agem por si sós, apesar de nós, gestos que nos dispensam, por assim dizer. E o agente propulsor dessa condição de ausência de nós mesmos no hábito é exatamente o dispositivo da repetição ritmada com seus potenciais efeitos hipnóticos. Por força do hábito, deixamos de prestar atenção àquilo que irá se fazer sem o nosso acordo, como em estado de sonambulismo. Não à toa, ao final da Infância berlinense, livro que agrupa uma maravilhosa coleção de pequenos esquecimentos, Benjamin rememora os versinhos rimados de um velho livro infantil alemão. Cito a tradução de João Barrento:
Quis descer à minha adega Para ir buscar o meu vinho, Está lá um anão corcunda Que me rouba o meu jarrinho Quis ir à minha cozinha Fazer a sopa, e já nela Me espera um anão corcunda P'ra me partir a panela Se pr'o quarto de comer Com a minha papa vou, Está lá um anão corcunda: Já metade me levou. (BENJAMIN, 2013______. Rua de mão única: infância berlinense - 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.: 114)
"Aqueles para quem o anão corcunda olha não dão atenção ao que fazem" (BENJAMIN, 2013______. Rua de mão única: infância berlinense - 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.: 114), Benjamin insiste. A panela se quebra, o jarrinho some, o jantar é comido pela metade, quando a criança está distraída em meio às ações costumeiras. É pela repetição ritmada dos gestos cotidianos que o menino se esquece do que está a fazer e os desastres se precipitam. Se o anãozinho corcunda personifica o lapso do menino com relação a ele mesmo, a aparição dessa figura do esquecimento parece estar vinculada aos efeitos poderosos da audição dos versinhos. Sua batida rítmica convida ao entorpecimento e à distração e funciona como um chamamento que conjura o anão. "Repetir repetir/ até ficar diferente", dizem os versos auspiciosos do poeta brasileiro (BARROS, 2010BARROS, Manoel de. "Uma didática da invenção". In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.: 300).
Algo semelhante está em ação nessa passagem de Infância berlinense. Os ritmos cadenciados que regulam os movimentos do menino na casa acabam por transtornar as ações costumeiras. Pela repetição continuada, chega um momento em que os gestos desandam, perde-se o passo, cai-se em falso. São sintomas do esquecimento que vêm se instalar no hábito, roubando a presença do menino dos atos que ele pratica sem se dar conta. Ao fim e ao cabo, é a repetição rítmica aquilo que captura o menino e o faz desaparecer naquilo que realiza.
Recapitulemos brevemente as sugestões propostas até aqui: 1) a repetição é um jogo alegre com a desaparição; 2) a repetição dá lugar ao hábito; 3) o hábito se vincula ao jogo infantil pelas formas ritmadas de sua performance; 4) as formas ritmadas fazem irromper o esquecimento nos percursos rotineiros. Essa cadeia associativa pode ser vislumbrada no circuito de sombras em Vitteaux, desde a sua gênese. Em entrevista, Boltanski comenta a produção dos pequeninos espectros feitos de retalhos em cobre:
E o recorte é para mim, que não sei desenhar, como o prazer do desenho. É insignificante, coisa de criança [...] Os pequenos recortes que eu faço em pedaços de cobre são de uma completa "estupidez", como quando se desenha ao telefone. Aliás, eu recorto vendo televisão. Quando eu faço estes recortes, minha única regra é não desperdiçar o cobre e utilizar tudo, mesmo os restos.12 12 No original, em francês: Et le découpage, pour moi qui ne sais pas dessiner, c'est comme le plaisir du dessin. C'est dérisoire, un truc que font les gosses [...] Les petits découpages que je fais dans des morceaux de cuivre sont d'une total "stupidité", comme quant tu dessines au téléphone. Et d'alleurs, je les fais en regardant la télévision. Quand je fais ces découpages, ma seule règle est de gâcher le moins de cuivre possible et j'utilise tout, même les restes. (BOLTANSKI, 2010______. Parcours d'ombres. Paris: Les presses du réel, 2010. (Collection Société des Nouveaux Commanditaires).: 16)
Eis um artista que declara não saber desenhar e que encontra no recorte uma fonte de prazer associada exatamente à manipulação distraída. Recorta sem ver, esquecido da coisa, esquecido de si, com os olhos noutro lugar. Recorta sem intenção, sem maestria, absorto numa "total estupidez." Da proclamada inépcia artística, surge uma obra de ar enfaticamente displicente. As sombras ampliam as imprecisões das formas recortadas e reforçam a impressão de improviso, de acabamento descuidado. A caveira, por exemplo, tem um olho visivelmente maior do que o outro e os contornos de seu crânio apresentam picos pontiagudos, resultado de picotes malfeitos no cobre. Todos esses desacertos, a bem dizer, contribuem para a dimensão de alegria e graça desse trabalho. Há uma comicidade terna nas imagens. As sombras assustam, mas são, ao mesmo tempo, dóceis, são artefatos de brinquedo, exibem a maleabilidade do jogo, aparecem e desaparecem com o medo, vão e vêm com ele, rotineiramente, porque são crias do esquecimento.
De fato, é como meio desativado de produção que a infância também comparece de modo contundente nesse trabalho, o que significa dizer que as formas da infância desenham aqui um arco muito mais amplo de ação, que inclui ao menos três aspectos interligados. Em primeira instância, a infância aparece em sua dimensão figural, representada por determinado repertório de personagens-assombrações, evocativos dos livros e dos brinquedos das crianças. Essa é a faceta mais imediata e reconhecível da infância na obra. De modo mais sutil, mas não menos relevante, a infância se manifesta como ritmo e repetição, imprimindo à intermitência das imagens uma dinâmica lúdica. Uma terceira dimensão infantil, despertada no momento gerador da obra, é um código de gestos esquecidos, vinculados à criança que recorta-e-cola sem mão firme e faz do erro um princípio ativo que des-figura as formas, compondo "monstruosidades" geradas no fracasso e na imperfeição.13 13 Remeto o leitor ao capítulo "Tesoura e cola", que abre o livro O trabalho da citação, de Antoine Compagnon, em que o autor conta sobre sua paixão infantil pelo recorte-e-colagem: "Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as crianças são muito desastradas até que atinjam a idade da razão [...] Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeição. Nada se cria. Eu parodio recortando novos elementos em papel comum que vou pintando sem levar em conta o bom senso. Isso não se parece mais com coisa alguma; não me reconheço, a mim. Mas eu amo essa "coisa alguma" (COMPAGNON, 2007: 9-10). Pela ação ritmada da tesoura que simula trabalhar sozinha, esvazia-se a figura do artista como agente de controle do recortar. Como resultado dessa operação que encena apagar a intenção no fazer, as figuras surgem disformes, "erradas". Suas deformações seriam o índice mais visível da força do esquecimento no ato de confecção dos pequenos espectros. Tal suposição é francamente derivada das observações de Benjamin sobre muitas das personagens kafkianas, como Odradek e Gregor Samsa, em cujo corpo deformado ele lê "o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 158). Para o crítico, a deformação corporal incide também sobre as coisas aberrantes que essas personagens dizem e fazem, porém sem qualquer alvoroço, de modo desconcertantemente casual, como se estivessem a lembrar de algo já sabido por todos, porém há muito esquecido.14 14 Benjamin faz referência específica aos personagens coadjuvantes do livro O processo, que nunca se alteram ao comunicar as coisas mais surpreendentes ao protagonista K. Citando o estudo de Willy Haas sobre a obra kafkiana, Benjamin enfatiza: "O objeto desse processo, o verdadeiro herói desse livro inacreditável, é o esquecimento... cujo principal atributo é esquecer-se de si mesmo... Ele se transformou em personagem mudo na figura do acusado, figura da mais grandiosa intensidade." (BENJAMIN, 1985: 156).
Diante dessa galeria de personagens tortos, de que o anãozinho corcunda é a figura primordial, Benjamin vislumbra uma espécie de reconhecimento nebuloso de conteúdos primitivos extintos, porém presentes na condição de apagados. São conteúdos que ninguém mais sabe como ler, nem as próprias personagens nem os leitores. Já não se trata de descobrir qualquer mensagem, mas de tolerar confrontar-se com seu esquecimento, de tolerar expor-se ao não entendimento do que se passa. É emblemático que essas figuras do esquecimento estejam identificadas para Benjamin justamente ao mundo extinto (e potencialmente nascente) da infância, no qual projeta uma subjetividade mais elástica, arriscada e aberta ao contato com o entorno, com tudo aquilo que faz vacilar as margens de si. Nesse desfiguramento do eu individual, ele imagina a enorme força das personagens kafkianas, as quais descreve como dotadas de modos enfaticamente infantis: são criaturas em estado de névoa, insuficientes, imaturas, inacabadas e inábeis. Benjamin positiva todas essas desqualificações ao longo do ensaio dedicado a Kafka, vislumbrando, na condição do rebaixamento e do fracasso, a possibilidade de encontro com a "natureza oscilante das experiências" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 155).
Um campo de prova privilegiado para testar a natureza oscilante das experiências é o espaço da escrita. Em sua própria prática escritural, sobretudo em Rua de mão única e em Infância berlinense, bem como no estudo de escritores que admira, como o suíço Robert Walser, Benjamin persegue uma prosa amadora, que requer o esquecimento das regras seguras do ofício. Não por acaso, a "negligência insólita" com relação ao próprio fazer artístico é a qualidade que Benjamin mais preza em Walser, um escritor a quem sempre assustara ter sucesso na vida: "Assim que começa a escrever, sente-se despreparado. Tudo lhe parece perdido, uma cascata de palavras irrompe; nessa, cada frase tem como única função fazer com que as anteriores sejam esquecidas" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 51). É interessante notar como Benjamin enovela a inaptidão do artista à novidade de sua escrita. Porque entra em pânico e se sente pequeno e perdido com relação ao texto que produz, Walser é incapaz de encadear sentidos em direção segura. Sua vacilação toma a forma de uma escrita claudicante, que parece começar sempre de novo, na desistência do que antes se produzira. É assim que a escrita devém repetição, a repetição devém novidade e a novidade gera alegria. A falência em dar seguimento ao enredo exige a retomada vigorosa do fôlego a cada frase, mantendo acesa a fagulha dos inícios, num permanente começar de novo que imprime à linguagem um ritmo atabalhoado e risível. Daí suas narrativas serem tão tagarelas, atirando para muitos lados, sem senso de direção. Assim também com seus personagens, confrarias de vagabundos cambaleantes e histriônicos. De onde eles vêm? Benjamin se pergunta: "Eles vêm da noite, quando ela está mais escura, uma noite veneziana, se se quiser, iluminada pelos precários lampiões da esperança, com um certo brilho festivo no olhar, mas confusos e tristes a ponto de chorar" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 52).
Essa frase descreve, de maneira assombrosa, o cenário de Vitteaux, onde as bruxas, gatos pretos e caveiras são também criaturas da noite mais escura que vêm para iluminar o esquecimento que as gerou e que elas continuarão a propagar de forma intermitente, numa rítmica afinada às frases de Walser, que Benjamin lê como "soluços" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 52), despedaçando o fluxo da narração. Mas, nesse despedaçamento, são imagens esperançosas, porque rasgam um mundo novo, alargado, onde vêm caber outros mundos, contendo objetos tão mais potentes quanto mais gastos forem, quanto mais expostos à ação repetida do jogo que ameaça arrebentá-los, mas apenas por brincadeira, pelo prazer de ter em vista de novo a sua renovada aparição:
... quero que os objetos sejam bem frágeis e bem pequenos, no limite da insignificância e da inexistência [...] Desejo que jamais se saiba em que momento ocorre a criação. Para mim, o objeto é importante e simbolicamente carregado, mas deve permanecer continuar sendo o menos importante possível em relação à obra final15 15 No original, em francês: ... je veux que les objets soient très fragiles et très petits, à la limite de l'insignificance et de la non- existence... Je souhaite que l'on ne sache jamais à quel moment se passe la création. Pour moi, l'objet est importante et symboliquement chargé, mais il doit demeurer le moins important possible par rapport à l' "oeuvre" final. (BOLTANSKI, 1984BOLTANSKI, Christian. Catálogo de exposição, 1º de fevereiro a 26 de março 1984. Musée National d'Art Moderne au Centre Georges Pompidou. Paris, 1984: 82. 123p.: 82).
O percurso de sombras é uma instalação que brinca com a escala, criando jogos de ilusão que ampliam a visão daquilo que é ínfimo, insignificante, no limiar da não existência. De fato, as pequenas silhuetas são mantidas longe da vista dos passantes e, assim, perde-se a conexão com a materialidade geradora das imagens. É essa perda de lastro que estará também figurada nas sombras imateriais, espessando as camadas de apagamento que ali se encenam. Ao fim e ao cabo, expõe-se de modo agigantado a fragilidade de um mundo de coisas que podem sumir a qualquer momento, como num truque de mágica. É o que observa Georges Didi-Huberman no texto freudiano, quando identifica na brincadeira do menino com seu carretel um componente pulsional fortíssimo, condicionado à precariedade do fio que pode se romper de repente, impedindo que o objeto seja enrolado de volta à visão da criança. É uma questão de vida e morte, afinal. É isso o que está em jogo, o que está sendo jogado. Nas palavras de Didi-Huberman, o carretel é um "quase", no limite de não ser nada. Por isso, sua "energia é formidável", porque está ligada a muito pouco e "pode morrer a qualquer momento, ele que vai e que vem como bate um coração." (DIDI-HUBERMAN, 2010DIDI-HUBERMAN, Georges. "A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento". In: O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010: 128.: 80).
No ir e vir das sombras, bate um coração infantil, antimonumental, de artefato rudimentar, feito de material leve e evanescente. Emite signos viscerais de vida e morte, porém o faz sem grandiloquência ou gravidade, em tom menor, ao modo daquele outro coração que bate no peito dos desafinados, como na conhecida canção de Newton Mendonça e Tom Jobim. De fato, esse canto enviesado, esquerdo e malemolente, meio acanhado, meio risonho, entoado por quem simula não levar jeito pra coisa e tira disso o maior proveito, parece compor uma trilha musical afinada à textura sensível de uma instalação feita por um artista que declara não levar jeito pro desenho e faz dos recortes tortos um convite para que qualquer um assuma as tesouras desafinadamente, desobrigados da perícia artística. Quando Boltanski define o seu trabalho em Vitteaux como "coisa de criança" (BOLTANSKI, 2010______. Parcours d'ombres. Paris: Les presses du réel, 2010. (Collection Société des Nouveaux Commanditaires).: 16), indica, nas frestas desse rebaixamento, uma abrangência da figura autoral, um movimento expansivo da obra no espaço do mundo e também a natureza aberta e modificável da prática artística, vocacionada para a atuação de muitos:
Eu penso que, para esse tipo de encomenda, é preciso uma presença próxima da vida cotidiana, sem o lado sagrado da arte de um museu. Algo que esteja lá (presente), como um abajur que se acende ao cair da noite e cuja lâmpada precisa ser trocada quando está queimada. Sim, alguma coisa mais aberta, mais modificável: a rigor, se uma silhueta esvaecida for substituída por outra que não foi feita por mim, eu não me importaria. Estou convencido de que ainda há muitos habitantes que não sabem meu nome, e de que nem ao menos uma das cem pessoas vindas do exterior, de passagem por Vitteaux, sabe que estas sombras são uma obra de arte. E além do mais, esta instalação não impede que as pessoas repintem seu muro de branco, que mudem as coisas de lugar... E isto me parece interessante. A coisa é dada, mas pode ser modificada e isto me parece interessante. E daqui a cinquenta anos, seria como (foi) com as velhas casas de Vitteaux das quais não se sabe mais muito bem de que época elas são ou quem as construiu: apenas estão lá. O ideal, quero dizer, o que teria sentido, seria que os habitantes de Vitteaux a amassem e a respeitassem como algo que lhes pertence, sem saber mais que se trata de uma obra de arte16 16 No original, em francês: Je pense que, pour ce type de commande, il faut une présence proche de la vie quotidienne, sans le côté sacré de l'art d'un musée. Quelque chose qui soit là, comme une lampe qui s'allume à la tombée de la nuit et dont il faut changer l'ampoule quand elle est grillée. Oui, quelque chose de plus ouvert, de plus modifiable: à la rigueur si on remplaçait une silhouette disparue par une silhouette qui n'est pas faite par moi, ça me serait égal. Je suis persuadé qu'il y a encore beaucoup d'habitants qui ne connaissent pas mon nom, et pas une personne sur cent de l'extérieur passant par Vitteaux qui sait que ces ombres sont une oeuvre d'art. Et puis cette installation n'empêche pas les gens de repeindre leur mur en blanc, de bouger un truc... La chose est données, mais elle esta modifiable et ça me semble intéressant. Et dans cinquante ans, ce serait comme les vieilles maisons de Vitteaux dont on se sait plus très brien de quelle époque elles sont ou qui les a construites: seleument c'est là! L'idéal, je veux dire ce qui aurait du sens, serait que les habitants de Vitteaux l'aiment el la respectent comme une chose à eux, tout en ne sachant plus que c'est une oeuvre d'art. (BOLTANSKI, 2010COMPAGNON, Antoine. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 2007.: 16-17).
É bonito esse desejo de amor à coisa na relação inversa de sua desapropriação como arte. As sombras deixam de ser coisa de artista e se transformam em coisa de criança, um bem comum, disposto numa visibilidade expandida, fora das paredes e dos horários prescritos pelos museus, algo aberto ao ir e vir dos passantes nos seus trajetos habituais, uma instalação penetrável que participa dos fluxos da vida: entrar e sair de casa, visitar os vizinhos ou caminhar até a praça pública, para onde todas as sombras convergem, local de encontro e partilha.
A energia coletiva mobilizada para esse percurso de sombras também é um fator fundamental na dispersão da figura do indivíduo-artista. A intervenção integra o programa de ação cultural Societé des Noveaux Commanditaires, apoiada pela Fondacion de France, que põe em contato três instâncias fundamentais: 1) os patrocinadores ou demandantes, gente comum que se associa para formular um desejo de arte nos espaços em que vivem ou atuam profissionalmente; 2) um mediador, a quem essa solicitação é encaminhada e a quem caberá buscar um artista que possa responder aos anseios da coletividade; 3) o artista comissionado para realizar a obra. O mediador é uma figura chave nesse cenário, pois fica também incumbido de conectar o artista com a comunidade, propiciando encontros regulares de discussão do projeto, além de ajudar na gestão de todo o complexo processo que envolve viabilizar uma obra de arte no espaço público, obra que deverá ser inteiramente financiada e integrada por aqueles que a demandam.17 17 Na página da Sociedade Nouveux Commanditaires há a descrição de vários projetos levados a cabo pelos mais variados grupos de pessoas, engajadas na reimaginação de seus ambientes familiares ou profissionais: <http://www.nouveauxcommanditaires.eu/>. Acesso em: 10 ago. 2014. Uma das iniciativas mais inusitadas partiu dos médicos patologistas do Departamento de medicina forense de um pequeno hospital na França, desejosos de humanizar as salas assépticas e soturnas em que eram feitas as autópsias e velados os corpos de acidentados na região. A ideia, paradoxal e bela, era a de dignificar a vida humana, mesmo a dos mortos. A intervenção agregou o trabalho de um arquiteto, de um artista plástico e de dois músicos que transformaram e sonorizam os espaços, em diálogo contínuo com os profissionais do hospital, responsáveis por gerir todas as fases da obra.
No caso de Vitteaux, o grupo de commanditaires foi composto pelo prefeito da cidade e pelos membros da Câmara Municipal, representando os interesses dos moradores. Xavier Doroux atuou como mediador entre a comunidade e Christian Boltanski, tendo escolhido esse artista em particular por seu trabalho anterior com luzes e sombras.18 18 Ver, em especial, os seguintes trabalhos de Boltanski com sombras: Théatre d'ombres (Teatro de sombras), de 1984. Ali se utilizam os mesmos materiais e procedimentos que voltam a aparecer em Vitteaux: figurinhas em metal, torneadas à mão e de feição também esquemática, balançam numa pequena estrutura de metal no chão da galeria. Spots de luz projetam suas sombras ampliadas nas paredes, numa dança insidiosa, invasora de espaços, porém tênue, onde tudo pende apenas por um fio. Umbral fino entre o sinistro e o divertido, o terror e a doçura, o subterrâneo e a superfície. Ver o vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=TDrFplT3Nug>. Acesso em: 15 ago. 2014. Já em Les Bougies (As velas), instalação de 1987, a fonte de luz é reduzida a velas, na proporção inversa da multiplicação da iconografia da morte. Figurinhas de feição elementar e tribal, que lembram os bonecos-palito desenhados por crianças, estão espetadas num altar vertical. Uma chama pequena ilumina individualmente cada um dos personagens, projetando na parede as sombras de pequenos guerreiros, em posição de ataque, empunhando tacapes, foices e outros objetos fatais. Uma atmosfera de culto exala da instalação, mas a substituição das tradicionais esculturas de santos por minúsculos guerreiros de estrutura frágil cria um ambiente misto e desconcertante, que replica a linguagem religiosa, ao mesmo tempo em que a desautoriza com elementos a ela estranhos. Em lugar de imagens elaboradas, tridimensionais e esculpidas em material sólido, exibem-se criaturas rudimentares, de feição achatada, que evocam um artesanato infantil. Esse traço de precariedade na encenação da obra, acentuado pelo uso das velas que podem se consumir a qualquer momento, tornando as sombras uma aparição frágil, fadada ao apagamento, produz acentos irônicos que perturbam a gravidade solene com que assuntos religiosos e bélicos costumam ser abordados. Para ver esse trabalho, assim como obter uma visão mais abrangente de outras obras de Boltanski, ver: <http://www.artnet.com/artists/christian-boltanski/>. Acesso em: 10 ago. 2014. O primeiro encontro entre o artista e os moradores aconteceu numa capela desativada e colocada à disposição do projeto. O clima inicial era de desconfiança e desconforto. Da janela do primeiro piso de uma das casas, alguém gritava: "Ah não, o senhor não vai (me) colocar uma caveira na minha fachada, de jeito nenhum!".19 19 No original, em francês: Ah dis donc vous n'allez pas me mettre une tête de mort sur ma façade, ça pas question! Outros tentavam negociar suas preferências. Uma moça pede a figura de uma bruxa de vassoura nos muros de sua casa. Outra se entusiasma com a estampa de um pequeno fantasma. Um grupo de moradores fica encarregado de providenciar e instalar a iluminação adequada às projeções. A adesão paulatina e logo animada dos moradores ao projeto e seu envolvimento efetivo em diferentes frentes do trabalho, da distribuição e localização das silhuetas à execução final, fez crescer o amor pela coisa, algo afinado ao que Walter Benjamin vislumbrava como efeito potente das fantasmagorias surrealistas: um "descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 34). Um espaço cuja potência não seria medida de forma contemplativa, mas na maneira como o corpo e o espaço das imagens se interpenetram, de modo que a coisa artística seja transformada em "inervações do corpo coletivo" (BENJAMIN, 1985______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 34).
É a partir de um corpo coletivo que a obra de Boltanski continuará a se expandir, passados seis anos de sua inauguração. Em 2010, os moradores quiseram ampliar o percurso inicialmente proposto, colaborando na produção e disposição das novas silhuetas e lâmpadas em outras ruas da cidade, como o próprio artista havia prenunciado. Contaram com a parceria do Sindicado Intercomunal de Energia da Côte D'Or, que ajudou a aperfeiçoar o sistema de iluminação, tornando mais nítidas as projeções. Assim, a obra ganha uma segunda inauguração, já com um novo prefeito, que leva a cabo a iniciativa do percurso estendido. Boltanski comparece como artista e convidado nesse desdobramento da instalação, que ele ajudou a disparar, e que se alastra, dispersando qualquer assinatura. Nesse segundo tempo, os moradores brincam de fazer de novo, começam mais uma vez do início, convocam a invenção como prática rítmica, fadada a reaparecer e, pela repetição, a se transformar em hábito. Exercitam-se nas práticas lúdicas da infância. Quando a invenção se torna reincidente, é possível imaginar um cenário exponencial em que, a cada tantos anos, novas gerações confeccionem silhuetas que projetarão novas sombras em novas ruas, até o ponto em que todas as fachadas recebam sombras e já não seja mais possível distinguir a cidade da instalação artística. Então, as ruas de Vitteaux deixarão de ser um lugar de atração turística para se tornar lugar-comum, vocação inicial da cidade, um lugar qualquer esquecido de sua particularidade, lugar para se passar a vida, para ver a vida passar, para ver tudo aquilo que passa, na batida leve e ritmada de uma infância que assombra ao voltar a nascer.
Referências bibliográficas
- BARROS, Manoel de. "Uma didática da invenção". In: Poesia completa São Paulo: Leya, 2010.
- BENJAMIN, Walter. "Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental". In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus Editorial, 1984. (Coleção Novas Buscas em Educação).
- ______. "Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte". In: Obras escolhidas Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
- ______."O surrealismo. O último instantâneo da inteligência europeia". In: Obras escolhidas Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
- ______."Robert Walser". In: Obras escolhidas Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
- ______. Correspondances Tome 1 - 1910-1928. Édition établie et annotée par Gershon Scholem et Théodor W. Adorno. Traduit par Guy de Petitdemange. Paris: Édition Aubier Montaigne, 1979.
- ______. Rua de mão única: infância berlinense - 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
- BOLTANSKI, Christian. Catálogo de exposição, 1º de fevereiro a 26 de março 1984. Musée National d'Art Moderne au Centre Georges Pompidou. Paris, 1984: 82. 123p.
- ______. Parcours d'ombres Paris: Les presses du réel, 2010. (Collection Société des Nouveaux Commanditaires).
- COMPAGNON, Antoine. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
- DELEUZE, Gilles apud LEAL, Bernardina Maria de Souza. Chegar à infância Niterói: EdUFF, 2011.
- DIDI-HUBERMAN, Georges. "A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento". In: O que vemos, o que nos olha Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010: 128.
- LYOTARD, François apud KOHAN, Walter Omar. Infância: entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
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Uma primeira versão desse artigo, intitulada "Fantasmagorias da infância com Boltanski e Benjamin", foi apresentada no IV Colóquio do Núcleo Walter Benjamin da Faculdade de Letras da UFMG: "Fantasmagorias", realizado entre 17 e 20 de setembro de 2014, em Belo Horizonte. Agradeço especialmente aos colegas do Núcleo Walter Benjamin, Sabrina Sedlmayer, Elcio Cornelsen e Georg Otte pela acolhida e feedback ao meu trabalho.
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Para um passeio virtual no percurso de sombras projetado por Boltanski em Vitteaux, ver o vídeo <http://www.fondationdefrance.org/Nos-Actions/Developper-la-connaissance/Culture/Les-nouveaux-commanditaires/L-ombre-de-Boltanski-veille-sur-Vitteaux>. Acesso em: 15 ago. 2014.
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No original em francês, "Je veux quelque chose de gai pour ma ville!". Agradeço à Judith Bines pela colaboração nas traduções de todas as citações em francês apresentadas neste artigo.
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Sigo aqui as considerações de Maria Filomena Molder sobre a carta de Benjamin a Rang, sintetizadas em entrevista e disponível em: <http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-fogo-de-artificio-de-maria-filomena-molder-285188?page=-1>. Acesso em: 16 ago. 2014. Ver, também de Maria Filomena Molder, o livro O químico e o alquimista: Benjamin, leitor de Baudelaire (2011).
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Pauto-me aqui por um depoimento do próprio Boltanski: Et donc peut-être que l'elément intéressant, que l'on trouve de plus en plus rarement avec des expositions, c'est d'arriver à faire simplement que les gens sentent un espace ou un moment d'une manière un peu diferente. (E então, o que é talvez interessante e que se vê cada vez mais raramente em exposições é, simplesmente, fazer as pessoas sentirem um espaço ou um momento de um modo um pouco diferente) (BOLTANSKI, 2010: 21).
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DELEUZE apud LEAL, 2011DELEUZE, Gilles apud LEAL, Bernardina Maria de Souza. Chegar à infância. Niterói: EdUFF, 2011.: 20. Para uma discussão de conceitos alargados de infância, ver especialmente a "Introdução" do excelente livro de Bernardina Leal sobre a obra de Guimarães Rosa.
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A tradução para o português dessa citação de Lyotard foi retirada do livro de Walter Kohan. O texto original em francês encontra-se em Jean François-Lyotard. Lectures d'enfance (1991), p. 70: Le naître n'est pas seulement le fait biologique de la parturition, mais, sous le couvert el le découvert de ce fait, l'événement d'une altération radicale possible dans le cours qui pousse les choses à répéter le même. L'enfance est le nom de cette faculté, autant qu'elle apporte, au monde de ce qui est, l'étonnement de ce qui, un instant, n'est rien encore. De ce qui est dé jà sans encore être quelque chose pourtant. Je dis cette naissance incessante parce qu'elle bat le rythme d'une "survie" récurrente sans mètre (sans mesure).
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A expressão é uma referência declarada à obra de Jacques Rancière, que tem se dedicado a pensar a interação de experiências estéticas com novas formas de subjetividade política, em livros como Políticas da escrita (1995), A partilha do sensível (2005) e O espectador emancipado (2010).
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A Maison Manquante (casa faltante) foi uma obra comissionada para a comemoração do aniversário da unificação alemã no pós-guerra. Trata-se de um trabalho empenhado em materializar a ausência, na forma de pequenas placas com nomes, datas de nascimento e datas de morte dos antigos residentes de um prédio bombardeado durante a Segunda Guerra Mundial. As placas estão posicionadas nas empenas de dois prédios adjacentes, exatamente nos andares dos apartamentos que cada um dos moradores ocupava antes de a edificação ser destruída.
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Na elaboração do presente ensaio, foram decisivas as considerações de Georges Didi-Huberman sobre a cena da criança com o carretel na minuciosa análise que faz do texto freudiano no capítulo "Dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento", do livro O que vemos, o que nos olha (2010). Nesse capítulo, o autor demonstra como a dimensão rítmica do jogo do luto "convoca uma estética" e cria uma "obra da ausência", em que "o objeto eleito pela criança só 'vive' ou só 'vale' sobre um fundo de ruína". A hipótese de Didi-Huberman é a de que apenas quando o carretel se torna capaz de desaparecer ritmicamente é que ele ganha uma "eficácia pulsional", tornando-se uma imagem visual capaz de constituir a identidade imaginária da criança, que passa a incorporar a morte na energia da vida (DIDI-HUBERMAN, 2010: 80-82).
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Reproduzi a tradução de Marcus Vinicius Mazzari, publicada no livro Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (1984). Porém, suaviza-se demais o enunciado final, a meu ver, quando se traduz "Verwandlung der erschütterndesten Erfahrung" (no original em alemão) por "transformação da experiência mais comovente em hábito". O adjetivo em grau superlativo utilizado por Benjamin - der erschütterndesten - alude, antes, à dimensão devastadora, calamitosa, aterradora da experiência a ser convertida em hábito pela via do jogo. Agradeço aos esclarecedores e-mails trocados com Susana Kampff Lages sobre a tradução para o português desta passagem.
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No original, em francês: Et le découpage, pour moi qui ne sais pas dessiner, c'est comme le plaisir du dessin. C'est dérisoire, un truc que font les gosses [...] Les petits découpages que je fais dans des morceaux de cuivre sont d'une total "stupidité", comme quant tu dessines au téléphone. Et d'alleurs, je les fais en regardant la télévision. Quand je fais ces découpages, ma seule règle est de gâcher le moins de cuivre possible et j'utilise tout, même les restes.
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Remeto o leitor ao capítulo "Tesoura e cola", que abre o livro O trabalho da citação, de Antoine Compagnon, em que o autor conta sobre sua paixão infantil pelo recorte-e-colagem: "Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as crianças são muito desastradas até que atinjam a idade da razão [...] Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeição. Nada se cria. Eu parodio recortando novos elementos em papel comum que vou pintando sem levar em conta o bom senso. Isso não se parece mais com coisa alguma; não me reconheço, a mim. Mas eu amo essa "coisa alguma" (COMPAGNON, 2007: 9-10).
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Benjamin faz referência específica aos personagens coadjuvantes do livro O processo, que nunca se alteram ao comunicar as coisas mais surpreendentes ao protagonista K. Citando o estudo de Willy Haas sobre a obra kafkiana, Benjamin enfatiza: "O objeto desse processo, o verdadeiro herói desse livro inacreditável, é o esquecimento... cujo principal atributo é esquecer-se de si mesmo... Ele se transformou em personagem mudo na figura do acusado, figura da mais grandiosa intensidade." (BENJAMIN, 1985: 156).
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No original, em francês: ... je veux que les objets soient très fragiles et très petits, à la limite de l'insignificance et de la non- existence... Je souhaite que l'on ne sache jamais à quel moment se passe la création. Pour moi, l'objet est importante et symboliquement chargé, mais il doit demeurer le moins important possible par rapport à l' "oeuvre" final.
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No original, em francês: Je pense que, pour ce type de commande, il faut une présence proche de la vie quotidienne, sans le côté sacré de l'art d'un musée. Quelque chose qui soit là, comme une lampe qui s'allume à la tombée de la nuit et dont il faut changer l'ampoule quand elle est grillée. Oui, quelque chose de plus ouvert, de plus modifiable: à la rigueur si on remplaçait une silhouette disparue par une silhouette qui n'est pas faite par moi, ça me serait égal. Je suis persuadé qu'il y a encore beaucoup d'habitants qui ne connaissent pas mon nom, et pas une personne sur cent de l'extérieur passant par Vitteaux qui sait que ces ombres sont une oeuvre d'art. Et puis cette installation n'empêche pas les gens de repeindre leur mur en blanc, de bouger un truc... La chose est données, mais elle esta modifiable et ça me semble intéressant. Et dans cinquante ans, ce serait comme les vieilles maisons de Vitteaux dont on se sait plus très brien de quelle époque elles sont ou qui les a construites: seleument c'est là! L'idéal, je veux dire ce qui aurait du sens, serait que les habitants de Vitteaux l'aiment el la respectent comme une chose à eux, tout en ne sachant plus que c'est une oeuvre d'art.
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Na página da Sociedade Nouveux Commanditaires há a descrição de vários projetos levados a cabo pelos mais variados grupos de pessoas, engajadas na reimaginação de seus ambientes familiares ou profissionais: <http://www.nouveauxcommanditaires.eu/>. Acesso em: 10 ago. 2014. Uma das iniciativas mais inusitadas partiu dos médicos patologistas do Departamento de medicina forense de um pequeno hospital na França, desejosos de humanizar as salas assépticas e soturnas em que eram feitas as autópsias e velados os corpos de acidentados na região. A ideia, paradoxal e bela, era a de dignificar a vida humana, mesmo a dos mortos. A intervenção agregou o trabalho de um arquiteto, de um artista plástico e de dois músicos que transformaram e sonorizam os espaços, em diálogo contínuo com os profissionais do hospital, responsáveis por gerir todas as fases da obra.
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Ver, em especial, os seguintes trabalhos de Boltanski com sombras: Théatre d'ombres (Teatro de sombras), de 1984. Ali se utilizam os mesmos materiais e procedimentos que voltam a aparecer em Vitteaux: figurinhas em metal, torneadas à mão e de feição também esquemática, balançam numa pequena estrutura de metal no chão da galeria. Spots de luz projetam suas sombras ampliadas nas paredes, numa dança insidiosa, invasora de espaços, porém tênue, onde tudo pende apenas por um fio. Umbral fino entre o sinistro e o divertido, o terror e a doçura, o subterrâneo e a superfície. Ver o vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=TDrFplT3Nug>. Acesso em: 15 ago. 2014. Já em Les Bougies (As velas), instalação de 1987, a fonte de luz é reduzida a velas, na proporção inversa da multiplicação da iconografia da morte. Figurinhas de feição elementar e tribal, que lembram os bonecos-palito desenhados por crianças, estão espetadas num altar vertical. Uma chama pequena ilumina individualmente cada um dos personagens, projetando na parede as sombras de pequenos guerreiros, em posição de ataque, empunhando tacapes, foices e outros objetos fatais. Uma atmosfera de culto exala da instalação, mas a substituição das tradicionais esculturas de santos por minúsculos guerreiros de estrutura frágil cria um ambiente misto e desconcertante, que replica a linguagem religiosa, ao mesmo tempo em que a desautoriza com elementos a ela estranhos. Em lugar de imagens elaboradas, tridimensionais e esculpidas em material sólido, exibem-se criaturas rudimentares, de feição achatada, que evocam um artesanato infantil. Esse traço de precariedade na encenação da obra, acentuado pelo uso das velas que podem se consumir a qualquer momento, tornando as sombras uma aparição frágil, fadada ao apagamento, produz acentos irônicos que perturbam a gravidade solene com que assuntos religiosos e bélicos costumam ser abordados. Para ver esse trabalho, assim como obter uma visão mais abrangente de outras obras de Boltanski, ver: <http://www.artnet.com/artists/christian-boltanski/>. Acesso em: 10 ago. 2014.
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No original, em francês: Ah dis donc vous n'allez pas me mettre une tête de mort sur ma façade, ça pas question!
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
12 Fev 2015 -
Aceito
15 Abr 2015