Acessibilidade / Reportar erro

A escola pagã

No ano que acaba de passar, ocorreu um fato considerável. Não digo que ele seja o mais importante, mas um dos mais importantes, ou melhor, um dos mais sintomáticos.

Em um banquete comemorativo da revolução de Fevereiro, um brinde ao deus Pan, sim, ao deus Pan, foi feito por um desses jovens que podemos qualificar como instruídos e inteligentes.

– Mas, eu disse a ele, o que o deus Pan tem a ver com a revolução?

– Como assim? ele respondeu; mas foi o deus Pan quem fez a revolução. Ele é a revolução.

– Mas ele não está morto há muito tempo? Eu pensei que houvéssemos escutado uma grande voz planar sobre o Mediterrâneo, e que essa voz misteriosa, que se deslocava das colunas de Hércules à costa asiática, houvesse dito ao velho mundo: O DEUS PAN ESTÁ MORTO!

– Eram apenas rumores. Más línguas; mas isso não é nada. Não, o deus Pan não morreu! Ele ainda vive, retomou alçando os olhos ao céu com um enternecimento muito bizarro... Ele vai voltar.

Ele falava do deus Pan como do prisioneiro de Santa-Helena.

– Mas o que, disse a ele, então você é pagão?

– Mas sim, claro; então você não sabe que só o Paganismo, bem compreendido, evidentemente, pode salvar o mundo? É preciso voltar às velhas doutrinas, obscurecidas por um instante pelo infame Galileu. Aliás, Juno me lançou um olhar favorável, um olhar que me penetrou até a alma. Eu estava triste e melancólico no meio da multidão, olhando o cortejo e implorando com olhos amorosos essa bela divindade, quando um de seus olhares, generosos e profundos, veio me erguer e me encorajar.

– Juno lançou-lhe um de seus olhares de vaca, Bôôpis Êrê. O infeliz talvez seja louco.

– Mas você não vê, diz uma terceira pessoa, que não se trata da cerimônia do boi gordo. Ele olhava todas aquelas mulheres rosas com olhos pagãos, e Ernestine, que trabalha no Hippodrome e que fazia o papel de Juno, lançou-lhe um olhar cheio de lembranças, um verdadeiro olhar de vaca.

– Como queira, Ernestine, diz o pagão descontente. Você quer me desiludir. Mas o efeito moral não funcionou, e eu vejo esse olhar como um bom presságio.

Parece-me que esse excesso de paganismo é resultado de um homem que leu bastante e mal Henri Heine e sua literatura apodrecida de sentimentalismo materialista.

E já que pronunciei o nome desse célebre culpado, contarei de uma vez sobre um de seus traços que me deixa fora de mim só de pensar. Henri Heine conta, em um de seus livros, que, caminhando por montanhas selvagens, encontrou, à beira de um terrível precipício, no seio de um caos de gelo e neve, um desses religiosos que, acompanhados de um cão, vão à procura de viajantes perdidos e agonizantes. Momentos antes, o autor acabara de se deixar levar pelos impulsos solitários de seu ódio voltairiano contra os beatos. Ele observa por algum tempo o homem-humanidade que prossegue com sua santa tarefa; um combate ocorre em sua alma orgulhosa, e finalmente, após uma dolorosa hesitação, ele se resigna e toma uma bela resolução: Bem, não! Não escreverei contra esse homem!

Quanta generosidade! Os pés metidos em boas pantufas, ao lado de uma boa lareira, cercado pelas adulações de uma sociedade voluptuosa, o senhor homem célebre promete não difamar um pobre diabo de religioso que irá ignorar para sempre seu nome e suas blasfêmias, e que o salvará também, se for o caso!

Não, Voltaire jamais escreveria algo tão torpe. Voltaire tinha excesso de gosto; além disso, ainda era um homem de ação, e amava os homens.

Voltemos ao Olimpo. Faz algum tempo, tenho todo o Olimpo atrás de mim, e sofro muito com isso; sou atingido por deuses na cabeça como se é atingido por chaminés. Parece-me que estou tendo um pesadelo, que rolo através do vazio e que uma multidão de ídolos de madeira, de ferro, de ouro e de prata caem comigo, me perseguem em minha queda, me batem e me golpeiam a cabeça e os rins.

Impossível dar um passo, proferir uma palavra, sem tropeçar em algo pagão.

Exprima seu medo, sua tristeza de ver a espécie humana se reduzir, a saúde pública se degenerar pela falta de higiene, haverá ao seu lado um poeta para responder: “como você quer que as mulheres façam belas crianças em um país onde elas adoram um vilão pendurado!” – O gracioso fanatismo!

A cidade está de cabeça para baixo. As lojas fecham as portas. As mulheres fazem as compras às pressas, as ruas se despavimentam, todos os corações estão apertados pela angústia de um grande acontecimento. Em breve o pavimento será inundado de sangue. – Você encontrará um animal cheio de beatitude; ele tem sob o braço livros estranhos e hieroglíficos. – E você, você lhe diz, que partido você toma? – Meu caro, ele responde com uma voz doce, eu acabo de descobrir novas informações muito curiosas sobre o casamento de Isis e Osíris. – Que o diabo o carregue! Que Isis e Osíris tenham muitos filhos e que eles não nos encham o s...!

Essa loucura, inocente em aparência, frequentemente vai muito longe. Há alguns anos, Daumier fez uma obra notável, História antiga, que era, por assim dizer, a melhor paráfrase da célebre questão: quem nos livrará dos gregos e dos romanos? Daumier atacou brutalmente a antiguidade e a mitologia, e cuspiu em cima. E o fervoroso Aquiles, e o prudente Ulisses, e a sábia Penélope, e Telêmaco, esse grande bobalhão, e a bela Helena, que arruinou Tróia, e a ardente Sapho, essa patrona das histéricas, e todos, enfim, apareceram para nós com uma feiura bufona que lembrava essas velhas carcaças de atores clássicos que cheiram rapé nos bastidores. Pois bem! Eu vi um escritor de talento chorar diante dessas gravuras, diante dessa blasfêmia divertida e inútil. Ele estava indignado, chamava isso de impiedade. O miserável ainda precisava de uma religião.

Muita gente encorajou com seu dinheiro e seus aplausos essa deplorável mania, que tende a fazer do homem um ser inerte e do escritor um comedor de ópio.

Do ponto de vista puramente literário, isso não passa de um pastiche inútil e repugnante. Já se riu suficientemente dos aprendizes inocentes que se aventuravam a copiar Cimabue; dos escritores de adaga, colete e lâmina de Toledo? E vocês, infelizes neopagãos, o que estão fazendo, se não é a mesma coisa? Pastiche! Pastiche! Vocês talvez perderam a alma por aí, em algum lugar ruim para que corram assim através do passado, como corpos vazios, para catar uma encontrada nos detritos antigos? O que vocês esperam do céu e da idiotice do público? Uma fortuna suficiente para erguer em suas mansardas altares a Priapo e a Baco? Os mais lógicos dentre vocês serão os mais cínicos. Eles erguerão altares a Crépitus.

É o deus Crépitus quem lhes fará uma tisana no dia seguinte de suas cerimônias estúpidas? É Vênus Afrodite ou Vênus Mercenária quem aliviará o mal que ela terá lhes causado? Todas essas estátuas de mármore serão das mulheres devotadas ao dia da agonia, ao dia do remorso, ao dia da impotência? Vocês bebem bolhas de ambrosia? Comem costeletas de Paros? Quanto se ganha com a penhora de uma lira no Mont-de-Piété?

Prescindir da paixão e da razão é matar a literatura. Negar os esforços da sociedade precedente, cristã e filosófica, é suicidar-se, é recusar a força e os meios de aperfeiçoamento. Se envolver exclusivamente com as seduções da arte física é criar grandes chances de perdição. Durante muito, muito tempo, você só poderá ver, amar, sentir o belo, somente o belo. Tomo a palavra em um sentido restrito. O mundo só aparecerá para você em sua forma material. As forças que o fazem se mover permanecerão por muito tempo escondidas.

Possam a religião e a filosofia virem um dia, como forçadas pelo grito de um desesperado! Esse será sempre o destino dos insensatos que só veem na natureza ritmos e formas. Mesmo a filosofia lhes aparecerá de início somente como um jogo interessante, uma ginástica agradável, uma esgrima no vazio. Mas o quanto eles serão castigados! Toda criança cujo espírito poético for superexcitado, cujos olhos não forem incessantemente tocados pelo espetáculo excitante da moral ativa e laboriosa, que ouvir falar sem parar de glória e de voluptuosidade, cujos sentidos forem diariamente acariciados, irritados, amedrontados, acendidos e satisfeitos por objetos de arte, se tornará o mais infeliz dos homens e fará os outros infelizes. Com doze anos, ela levantará a saia de sua ama de leite, e se o poder no crime ou na arte não o elevar acima das fortunas vulgares, com trinta anos ela agonizará no hospital. Sua alma, incessantemente irritada e insaciada, errará através do mundo, o mundo ocupado e laborioso; ela errará, digo, como uma prostituta, gritando: Plástica! Plástica! A plástica, essa palavra abominável me causa arrepios, a plástica o envenenou, e contudo ela não pode viver sem esse veneno. Ela baniu a razão de seu coração, e, por um justo castigo, a razão se recusa a retornar a ela. O melhor que pode lhe acontecer, é a natureza golpeá-la com um amedrontador chamado à ordem. Com efeito, essa é a lei da vida, que, quem recusa os prazeres puros da atividade honesta, não pode sentir nada além dos terríveis prazeres do vício. O pecado contém seu inferno, e vez por outra a natureza diz à dor e à miséria: vença esses rebeldes!

O útil, o verdadeiro, o bom, o verdadeiramente amável, todas essas coisas lhe serão desconhecidas. Afetada com seu sonho fatigante, ele quererá afetar e fatigar os outros. Não pensará em sua mãe, em sua ama de leite; ele rasgará seus amigos, ou só os amará por sua forma; sua mulher, se ele tiver uma, ele a desprezará e aviltará.

O gosto imoderado da forma leva a desordens monstruosas e desconhecidas. Absorvidos pela paixão feroz do belo, do engraçado, do gracioso, do pitoresco, pois há diferença de graus, as noções de justo e de verdadeiro desaparecem. A paixão frenética da arte é um cancro que devora o resto; e, como a ausência clara do justo e do verdadeiro na arte equivale à ausência da arte, o homem como um todo se apaga; a especialização excessiva de uma faculdade leva ao nada. Eu compreendo o furor dos iconoclastas e dos muçulmanos contra as imagens. Admito todos os remorsos de Santo Agostinho a respeito do excessivamente grande prazer dos olhos. O perigo é tão grande que perdoa a supressão do objeto. A loucura da arte é igual ao abuso do espírito. A criação de uma dessas duas supremacias engendra a ignorância, a dureza do coração e uma imensidade de orgulho e de egoísmo. Lembro-me de ouvir de um comediante que havia recebido uma moeda falsa: vou guardá-la para um pobre. O miserável tinha um prazer infernal em roubar o pobre e em gozar ao mesmo tempo dos benefícios de uma reputação de caridade. Ouvi um outro dizer: então por que os pobres não usam luvas para mendigar? Eles fariam fortuna. E um outro: não dê a este, ele está mal vestido, seus farrapos não lhe caem bem.

Que não se considere essas coisas como puerilidades. O que a boca se acostuma a dizer, o coração se acostuma a acreditar.

Conheço um bom número de homens de boa fé que estão, como eu, cansados, entristecidos, aflitos e arrasados com essa comédia perigosa.

É preciso que a literatura vá recarregar suas forças em uma atmosfera melhor. Não está longe o tempo em que se compreenderá que toda literatura que se recuse a andar fraternalmente entre a ciência e a filosofia é uma literatura homicida e suicida.

Referências bibliográficas

  • BAUDELAIRE, Charles. Œuvres Complètes Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard – “Bibliothèque de la Pléiade”, 1975 (v. I) / 1976 (v. II).
  • ______. Correpondances (jan. 1832 – fév. 1860). Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois avec la collaboration de Jean Ziegler. Paris: Gallimard, 1973. “Bibliothèque de la Pléiade”, v. I.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2015
  • Aceito
    30 Set 2015
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com