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O dandismo heteronímico é uma poética

Heteronymic dandyism is a poetics

Resumo

Os heterônimos são uma forma poética de romper com o mito moderno de um eu indivisível e uno. A poética do dandismo heteronímico encontra na multiplicação de si uma poesia em democrático diálogo com o mundo, afastada das relações hierárquicas que visam julgar o certo e o errado. Para pensar um eu heteronímico não mais encerrado em si mesmo, mas poroso e aberto para diversas formas de fingir compreender o mundo, é preciso basear-se em pensadores vitalistas como Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Henri Bergson e Vladimir Safatle, somados à filosofia heteronímica, sensacionista, que une o corpo ao pensamento por meio de um discurso inquieto, anárquico, que não está procurando uma harmonia, mas uma posição radical, modernista, de olhar para a vida.

Palavras-chave:
dandismo; heteronímia; Fernando Pessoa; flânerie

Abstract

Heteronyms are a poetic way to break with the modern myth of an indivisible and one self. The poetics of heteronymic dandyism finds in the multiplication of itself a poetry in democratic dialogue with the world, far removed from the hierarchical relationships that aim to judge right and wrong. In order to think of a heteronymic self, no longer closed in on itself, but porous and open to different ways of pretending to understand the world, it is necessary to draw on vitalist thinkers such as Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Vladimir Safatle, added to heteronymic sensationalist philosophy, which unites the body and thought through a restless, anarchic discourse, which is not looking for harmony, but a radical, modernist position of looking at life.

Keywords:
dandyism; heteronymy; Fernando Pessoa; flânerie

Résumé

Les hétéronymes sont une manière poétique de rompre avec le mythe moderne d'un moi indivisible et unifié. La poétique du dandysme hétéronyme trouve dans sa multiplication de soi une poésie en dialogue démocratique avec le monde, loin des rapports hiérarchiques qui visent à juger du bien et du mal. Pour penser un moi hétéronyme, non plus fermé sur lui-même, mais poreux et ouvert à différentes façons de prétendre comprendre le monde, il faut s'appuyer sur des penseurs vitalistes comme Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Vladimir Safatle, en plus de la philosophie hétéronyme, sensationniste, qui unit le corps à la pensée à travers un discours inquiet et anarchique, qui ne recherche pas l'harmonie, mais une position radicale, moderniste, du regard sur la vie.

Mots clés:
dandysme; hétéronymie; Fernando Pessoa; flânerie

O presente estudo é um recorte da tese, ainda não publicada, que defendi em janeiro de 2021: Fernando Pessoa: o dandismo heteronímico e a descapitalização do eu. Nela, afirmo que o poeta heteronímico, no início do século XX, em tempos de vanguardas e de reivindicações de novos modelos de vida, funda o dandismo heteronímico, uma poética que, pulverizando artisticamente o mito moderno do “indivíduo”, possibilita uma outra forma de dialogarmos com o mundo: não mais como seres com características próprias e individualistas, mas como contínua criação de si, heterônimos em perpétua transformação, o que nos garante um eu plástico que, não limitado a qualidades que primam pela manutenção do mercantilismo do sujeito, serve como mola para a poetização e a proletarização de si próprias do dandismo heteronímico: um composto de várias vozes que não culminam em uma unidade justamente porque existem enquanto multidão - o que não pode ser unificado.

Antes de pensarmos o dandismo heteronímico, precisamos conceituar os termos dândi e flâneur, fundamentais para a compreensão da poética heteronímica. Conceituado pelo poeta francês Charles Baudelaire (2010BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. ) como figura de modos aristocráticos surgida no século XIX, força de resistência ao modelo mercantil de sociedade, dândi é o indivíduo que deseja fazer da própria vida uma obra de arte. Contra o caráter utilitarista das relações humanas na sociedade burguesa, o dândi é um anarquista e uma revolução em si, afinal, como o flâneur, está aberto para as múltiplas perspectivas e para a contemplação das diferenças, fundamental para o artista cosmopolita. O flâneur, por sua vez, é conceituado por Baudelaire como o “observador apaixonado” das grandes cidades. Por seu movimento atento aos detalhes das ruas, nas palavras do poeta, ele “É um eu insaciável do não-eu, que, a cada instante, o traduz e o exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e fugidia” (BAUDELAIRE, 2010BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 30-31). Ainda, “para o observador apaixonado, constitui um grande prazer fixar domicílio no número, no inconstante, no movimento, no fugidio e no infinito” (BAUDELAIRE, 2010BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. , p. 30). Conceituando o dândi por meio da ideia da flânerie do artista cosmopolita, o filósofo belga Daniel Salvatore Schiffer (2012SCHIFFER, Daniel Salvatore. Manifeste dandy. Paris: François Bourin Editeur, 2012.) entende o pensamento dândi como prismático: “[...] source de lumière réfléchissante, contre la pensée unique, abîme d’obscurantisme aveuglant” (SCHIFFER, 2012SCHIFFER, Daniel Salvatore. Manifeste dandy. Paris: François Bourin Editeur, 2012., p. 196).1 1 Fonte de luz refletora, contra o pensamento único [massificante], abismo do obscurantismo que cega. [tradução minha]. Para tanto, ele relaciona o pensamento dândi-flâneur ao “perspectivismo” do filosofo Friedrich Nietzsche: “[...] multiplication à l’infini de différents points de vue [...]”(SCHIFFER, 2012SCHIFFER, Daniel Salvatore. Manifeste dandy. Paris: François Bourin Editeur, 2012., p. 200).2 2 Multiplicação infinita de diferentes pontos de vista. [tradução minha]. O dândi, para Schiffer, é, pois, um “artista polivalente” e um “esteta pluridisciplinar”.

Quem está eu? Tal questão é fundamental na obra heteronímica. Na duração3 3 Para o filósofo francês Henry Bergson, “perante quem se instala no devir, a duração surge como a própria vida das coisas, como a realidade fundamental” (BERGSON, 2010, p. 345). Duração significa um tempo não mecânico, contemplativo, tempo da experiência, da poesia, e não das fábricas. , ao tornar o instante expressivo, o dândi aqui dá à vida não apenas sentidos possíveis, mas efeitos corporais estrangeiros. O dândi é estrangeiro de si. Ele não impõe um regramento, mas formas possíveis de compreensão da vida nos seus mais diversos momentos. O dandismo heteronímico é o respirar de novas estéticas, contínua metamorfose do “eu”.

O poeta heteronímico isola-se para melhor inserir-se no quotidiano, no trivial, no fluxo descontínuo dos instantes vividos, na duração. Trata-se, antes de mais nada, de dedicar a própria vida ao ofício, à ética da escritura. Viver o real descontínuo da vida, expressar a realidade em versos, exige o tempo da improdutividade, tempo singular, não uniformizador. Pessoa dedicou a sua vida para a poesia. O projeto heteronímico enche um baú cujo conteúdo até hoje resta por ser descoberto, tamanha a sua riqueza. Inclusive, vale lembrar que, em 2009, por causa de espólio tão expressivo, a obra do “super-Camões” se tornou, por meio do Decreto nº 21/2009 de 14 de setembro, pelo Ministério da Cultura de Portugal, “tesouro nacional”. Isso é mais do que prova de uma existência dedicada à arte heteronímica, ou seja, à vida em sua multiplicidade e necessária contradição.

Como o dândi Zaratustra (NIETZSCHE, 2013NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.), os heterônimos isolam-se para a produção de uma vida singular cuja obra poética é prova de uma existência baseada no perspectivismo nietzscheano. O artista aqui não aceita um estilo de vida cômodo. Não negando o descontínuo do real, ele aceita a multiplicidade vulcânica da vida fazendo disso a sua forma de vida. O projeto de sustentar o que se é - nada4 4 Como afirma, com justiça, Seabra: “Ser Tudo no Nada que é - que não é - tal é na verdade a ambição poética de Pessoa, que ele só poderá realizar através dos heterônimos, do poetodrama.” (1974. p. 59). - é possível somente aos “senhores”5 5 Em sua Genealogia da moral (2016), o filósofo Friedrich Nietzsche trabalha com a dicotomia Senhor e Escravo, sendo aquele o indivíduo que apresenta uma conduta afirmativa frente à vida, e este o indivíduo que nega a existência por conta do ressentimento. (NIETZSCHE, 2016NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. ), àqueles que não aceitam uma vida entorpecida conforme a estética burguesa.

O Sensacionismo, poética pessoana, dá significado - mas não apenas, pois a expressão, enquanto arte, vai além do sentido - aos instantes ao possibilitar a vivência das texturas da vida em um tempo heterogêneo, em “duração” (BERGSON, 2010BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: UNESP, 2010.). Na estética sensacionista, o sentimento deve ser sensacionado em versos que expressem a “[...] subtileza da emoção consigo mesma, pela qual imediatamente compreende que traz sempre em si dois elementos opostos” (PESSOA, s/dPESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética. 2. ed. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d. , p. 77). Afinal, “[...] tudo quanto sentimos contém obscuramente duas forças [...]” (PESSOA, s/dPESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética. 2. ed. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d. , p. 77). Ocorre que o homem, em si, ao sentir já é dois, porque “[...] o espírito toma consciência de cada emoção como dupla, de cada sentimento como a contradição de si mesmo” (PESSOA, s/dPESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética. 2. ed. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d. , p. 77).

Em uma sociedade como a lisboeta (cosmopolita) do início do século XX, marcada pela valorização do indivíduo como alguém que deve recalcar os seus desejos para servir a uma forma de vida preestabelecida pelo capitalismo, a obra de Pessoa é arte de resistência, afinal de contas, o poeta apresenta ao mundo uma lógica que descapitaliza o eu. Podemos pensar aqui no “trabalho livre” que o filósofo Vladimir Safatle (2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.) opõe ao valor do próprio do sujeito possuidor de predicados conformes à moral capitalista. Diz-nos Safatle que “o trabalho livre [...] [é] a produção do impróprio. Um impróprio que não é propriedade comunal, mas circulação do que não tem relações especulares com o sujeito [...]” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 177). O trabalho é aqui “expressão do que circula fora da utilidade suposta pela pessoa.” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 177). Nessa dimensão estética do trabalho, a partir de um “elemento impessoal e pré-individual que habita todo e qualquer sujeito [...]” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 181), o poeta quebra com a “regularidade da forma, fazendo circular o que força a linguagem em direção à não comunicação.” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 181). Trata-se de romper com a repetição do relógio burguês. O que é o dândi heteronímico senão aquele que, vivendo todas as sensações (matéria-prima da sua arte), transformando os instantes contemplados, inserido no real - sem mascaramentos idealistas - quebra “a regularidade sem desestruturar a forma por completo” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 181)?

Não se compondo de predicados, o dândi aqui não é propriedade de si. Na heteronímia, o conceito de Pessoa não está institucionalizado, pois eu é uma transformação no tempo, não detentor de predicados capitalizados. Eu é tudo, menos si mesmo no sentido substancial do termo. Eu é monstro, Frankenstein. Não sendo um indivíduo, o dândi heteronímico pode ser todos. Foi assim que o poeta-monstro procurou se furtar - artificialmente - a uma sociedade doente, embrutecida pelo pensamento unificador.

O dândi heteronímico não se encastela no interior de uma tristeza empobrecedora da vida e mantenedora da velha ordem social. Indeterminado, no tempo do ócio, o poeta aqui faz da sua vida algo que deve ser partilhado com o todo. Marinheiro sem porto fixo, o dândi heteronímico resiste aos predicados sacrossantos que mortificam as potencialidades do sujeito. O dândi heteronímico não é proprietário de si, mas exuberância, metamorfose.

Gostaria de estabelecer neste momento um diálogo entre a arte de si e a ideia de indeterminação do sujeito. Na esteira do filósofo romântico Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Safatle (2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.) compreende o sujeito por meio do “negativo”, ou aquilo que necessariamente indetermina o ser, fazendo dele não uma individualidade que tem posse de certos predicados, mas, na esteira do filósofo francês Michel Foucault, sujeito em errância - flâneur. Explicando o psicanalista Jacques Lacan, Safatle afirma que “o desejo que procura reconhecimento só poderia ser compreendido de maneira antipredicativa” (2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 221). Trata-se de um desejo que não pode ser nomeado. E o autor continua: “Tal desejo se vincula a um profundo sentimento de indeterminação que não pode ser compreendido apenas como fonte de sofrimento, mas também como estágio fundamental de autoafirmação” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 221). Diz-nos Safatle que a experiência da indeterminação tem uma

força política importante. Pois ela libera os conflitos de reconhecimento do terreno das diferenças culturais, com seus processos de construção e afirmação de identidades enquanto atributos da pessoa, nos abrindo a possibilidade de fundar ontologicamente uma zona de reconhecimento propriamente político. Um reconhecimento político fundada [sic] na criação de zonas de indiscernibilidade. (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 222).

É um eu revolucionário, uma estética de um si indeterminado aberta à multiplicidade real, uma errância sem predicação, uma ficção não possuidora de si mesma, não igual a si e, portanto, inútil - não utilitária. Para a feitura da sua arte, o dândi-flâneur necessita estar aberto ao indeterminado. O dândi heteronímico não pode se singularizar se não se reconhecer na grande indeterminação que ontologicamente é. Não há arte de si sem afirmar-se outro. Aquilo que singulariza implica a despersonalização. Por meio da indeterminação, o flâneur pode - heteronimicamente - ser relacionado ao proletariado.

Quero estabelecer uma relação entre heterônimo e proletário - aquele que não possui predicados -, a fim de melhor definir essa organização sem início, meio ou fim, esse algo não substancial que é o dandismo heteronímico. Que é o proletário senão, como nos mostra Safatle (2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), a “absoluta despossessão”? Conforme o filósofo, até o século XVIII, o termo proletário era sinônimo de “sem lugar”, “nômade”. Proletário é o sem predicados, não pode ser pensado como possuidor de atributos indivisíveis, porque está “desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 236), o proletário “pode transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de vida.” (SAFATLE, 2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 236). Ainda, diz-nos o filósofo Alain Badiou:

Marx já sublinhava que a singularidade universal do proletariado é não portar nenhum predicado, nada ter, e especialmente não ter, em sentido forte, nenhuma “pátria”. Essa concepção antipredicativa, negativa e universal do homem novo atravessa o século. (2007BADIOU, Alain. O século. Aparecida: Ideias e Letras, 2007., p. 108).

Ora, o que é o dândi heteronímico senão um despatriado? Não foi o semi-heterônimo Bernardo Soares quem disse no texto “Gosto de dizer”: “Minha pátria é a língua portuguesa”?6 6 PESSOA, Fernando. Gosto de dizer. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4520. Acesso em: 24 jan. 2021. Despossuído de si mesmo, dedicando sua vida para a poesia heteronímica, pode o dândi heteronímico afirmar sua indeterminação, advindo heterônimos? Afinal, que é o Sensacionismo pessoano senão o mais cru desnudamento do real? Indeterminado, o dândi heteronímico revoluciona ao resistir ao próprio, ao particular. Pessoa, para o dândi heteronímico, é antes o inominável, aquilo que não pode ser definido e que foge a qualquer conceito simplista. Indeterminado, o dândi heteronímico - melhor, o dandismo heteronímico - é uma proletarização de si. O Sensacionismo leva em conta o real movimento da vida, que, em última instância, é o movimento da flânerie, da multidão de si, daquilo que anarquicamente jamais se deixa encerrar - definir - em um todo unitário. Para o homem da multidão, o flâneur, a predicação de si seria a morte da poesia. Predicar-se é limitar-se. E a política sensacionista do sistema heteronímico é fundamentalmente poetização de si, constelação de ideias, abertura à indeterminada sensação.

Quero estabelecer aqui um elo fundamental entre dandismo heteronímico e, conforme os filósofos Karl Marx e Friedrich Engels, a “supressão da personalidade burguesa” (MARX; ENGELS, 1987MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. URSS: Edições Progresso, 1987.). Diz-nos o Manifesto do Partido Comunista que “Os operários não têm pátria” (MARX; ENGELS, 1987MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. URSS: Edições Progresso, 1987., p. 51). O dândi heteronímico é um despatriado. Lembremos que, para o dândi Oscar Wilde (2017WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2017.), o artista deve estar aberto para todas as experiências, afinal de contas, não há arte, não há criação de si, não há revolução sem a generosidade do verdadeiro artista, aquele que não se enclausura na letargia burguesa que nega a diferença. Os heterônimos leram Karl Marx. O dandismo heteronímico, à luz do Sensacionismo, é um sistema poético que está aberto para a diferença. Trata-se de, pela poesia, abolir velhas formas e estruturas para que novas maneiras de ser e de fazer poesia e política sejam possíveis. A revolução de si - o dandismo - deve, antes de mais nada, passar por uma compreensão diferente de identidade. É por meio de uma metamorfose de si que o dandismo heteronímico estabelece uma nova economia psíquica. O dandismo heteronímico é, por fim, uma resistência à ideia que já marcou época de eu substancial.

Indeterminado, o dândi heteronímico é, conforme as nuvens, devir. O sistema heteronímico só existe no vir a ser, no tempo-instante, indeterminado, tempo que não está dado confortável e utilmente. Sem predicados, sem moralização de si, no tempo heterogêneo do devir, o dândi aqui é a própria multiplicidade. A heteronímia não é algo dado previamente, mas errância. A “ética dos fortes” ou dos “senhores” de que fala Nietzsche (2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.) é feita da aceitação da multiplicidade real, aceitação do animal no humano, afirmação dos sentidos e da sua indeterminação. O dândi heteronímico não apenas sente, ele cria sensações. Para isso, o estado de embriaguez7 7 Não apenas Baudelaire relaciona a embriaguez ao estado de poeticidade, como também Nietzsche assim o faz. Diz o filósofo do martelo em Crepúsculo dos ídolos: “Para que haja arte, para que haja uma ação ou uma contemplação estética qualquer, é indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. [...] O essencial na embriaguez é o sentimento de força e de plenitude. Sob a influência desse sentimento nos abandonamos às coisas, obrigamo-las a tomar algo de nós [...]” (2017. p. 76-77). Ora, embriagado é o estado poético do dândi heteronímico, “artista trágico” que, despersonalizando-se, vive na heteronímia, é a própria heteronímica sensação. Afinal de contas, que é o artista heteronímico senão aquele que, tal como o “homem dionisíaco”, “sabe revestir todas as formas e todas as emoções, transforma-se continuamente.”? (NIETZSCHE, 2017, p. 78.). lhe é essencial. Não se cria sob a ordem de um mundo dado; não se cria no interior de uma verdade prévia. A arte é feita não apenas de técnica, mas dos furores que nos atravessam. A beleza não é mais uma calma harmonia. A arte de si é feita de exageros e extravagâncias. É algo instintivo, não puramente racional. Criticando o moralismo antiartístico, assim declara o filósofo do martelo: “Ver-se obrigado a combater os instintos é a fórmula da decadência, enquanto que, na vida ascendente, felicidade e instinto são idênticos” (NIETZSCHE, 2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017., p. 29). E prossegue: “A razão é a causa de falsearmos os sentidos. Estes não mentem quando nos mostram o vir a ser das coisas, o desaparecimento, a mudança” (NIETZSCHE, 2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017., p. 32).

Indivíduo é ficção. É ciente disso que o dândi heteronímico, em sua versão Fernando Pessoa “ele mesmo”, em “Não sei quantas almas tenho”, pode expressar:

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma.8 8 PESSOA, Fernando. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/ 277. Acesso em: 21 jan. 2019.

O dândi heteronímico não tem predicados, não é um indivíduo:

Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem, Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.9 9 Idem.

O dândi segue alheio a si, afinal de contas, “optou” por um estilo de vida que afirma a vida. Não, o dândi heteronímico não se esconde detrás de alguma máscara demasiadamente tranquilizadora de si. O “desassossego”10 10 É importante recordar da definição de desassossego do filósofo José Gil: “o desassossego é esse movimento de uma singularidade que, não estando ligada a nada, está a entrar em devir.” (s/d. p. 22). não permite uma causa sui11 11 Vale lembrar o que Nietzsche afirma acerca do “instinto de causa”, instinto que, conforme o pensador, é dependente do medo: “O porquê não solicita a indicação de uma causa por amor a ela, mas sim busca certa espécie de causa, uma causa que tranquilize, que livre do perigo, que alivie. A primeira consequência dessa necessidade é que toma como causa algo já conhecido e vivido, algo que está inscrito na memória. O novo, o imprevisto, o estranho está excluído das causas possíveis.” (2017. p. 51). atada ao medo. Na arte heteronímica não existe repouso, mas afirmação da indeterminação. A contradição é a inquieta heteronímia.

Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser O que segue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: <<Fui eu?>> Deus sabe, porque o escreveu.12 12 PESSOA, Fernando. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/ 277. Acesso em: 21 jan. 2019.

Diverso de si mesmo, o “drama em gente” não pode afirmar o que realmente sentiu, afinal de contas, o indeterminado não é deslindável. Como Zaratustra, o dândi heteronímico não está preocupado com o uno. A sua arte afirma a errância do estar. Se atacasse as paixões humanas pela raiz, o dândi heteronímico não seria um sensacionista. O Sensacionismo é justamente um projeto de resgate poético daquilo que o moralismo negou por séculos: as sensações.

Por estar atento ao que é e vê, o dândi heteronímico sabe ser plural. Alheado a si e ao outro, a Verdade seria possível a ele? Atento aos devires, indeterminado, o dândi heteronímico expressa em versos os vários eus que lhe são alheios. Relaciono a heteronímia pessoana à ideia de “heteronomia do desejo”, compreendida por Safatle (2018SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.) não como uma legislação de si mesmo, uma autonomia - o que seria uma farsa -, mas como resultado de algo que age em si mesmo. Trata-se de uma heteronomia sem sujeição e, portanto, livre (na medida do possível, e não livre-arbítrio). O ser aqui não é possuidor dos seus predicados, seria cômodo demais para o desassossegado poeta pessoano. O desejo do dândi heteronímico? O desejo que lhe nasce sem saber de onde não lhe pertence. Se se afirmasse mediante uma causalidade simplista, o dândi heteronímico não seria uma descapitalização de identidades.

O dândi heteronímico não procura pela ataraxia sedentária própria dos tementes à vida, dos “escravos de si” (NIETZSCHE, 2016NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. ), pois ele afirma o estranho próprio do tempo do devir, da indeterminação. O ser aqui é fatalidade, nada é responsável pelo seu nascimento. Não é mais o indivíduo a consequência de um fim divino. Ele é divino por aquilo que é - indeterminação. Nem o mundo nem o indivíduo são mais unidades. Fingir, portanto, é ser sincero - é a única sinceridade possível. Não há, por conseguinte, livre-arbítrio.

Sobre o livre-arbítrio: o princípio da culpabilidade aqui não tem valor. O dândi heteronímico está ciente da farsa da liberdade individual mantenedora da lei moderna. O dandismo heteronímico desarticula a substância e tudo o que limita o estar. Trata-se de resistir ao animal enfermo que se tornou o indivíduo moderno.

Diferentemente do que deseja o sujeito do puro conhecimento - cartesiano -, aqui o sentir não se dissocia do pensar, pois a arte é feita a partir da experiência, não de fórmulas prévias de compreensão - interpretação - do homem e do mundo. Ocorre o sentir pensando13 13 Para Seabra, com quem concordo, “o que há de novo em Pessoa é a superação da irredutibilidade do sentir ao pensar [...]” (1974. p. 68). , o sensacionar. Mas onde encontrar a legislação das sensações quando, conforme Fernando Pessoa “ele mesmo”, “o que em mim sente está pensando14 14 PESSOA, Fernando. Ela canta, pobre ceifeira. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2429. Acesso em: 06 mar. 2019. ”? Se, como afirma o heterônimo Alberto Caeiro, onde na realidade encontrar o indivíduo propriamente dito?

Sim, antes de sermos interior somos exterior. Por isso somos exterior essencialmente.”15 15 PESSOA, Fernando. Seja o que for que esteja no centro do Mundo. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/3214. Acesso em: 06 mar. 2019. ,

Ora, há prova maior da despersonalização não predicativa que a análise que Pessoa apresenta sobre sua arte dramática em carta ao amigo Monteiro?

O que sou essencialmente - por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja - é dramaturgo. O fenômeno da minha despersonalização instintiva, a que aludi em minha carta anterior, para explicação da existência dos heterónimos, conduz naturalmente a essa definição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas, saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande. Está certo, e assim deixo ficar). Vou mudando de personalidade, vou (aqui é que pode haver evolução) enriquecendo-me na capacidade de criar personalidades novas, novos tipos de fingir que compreendo o mundo, ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo. Por isso dei essa marcha em mim como comparável, não a uma evolução, mas a uma viagem: não subi de um andar para outro; segui, em planície, de um para outro lugar. (MONTEIRO, 1999MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. 2. ed. Porto: Gráfica Maiadouro, Maia, 1999., p. 245).

Criando novas formas de fingir que compreende o mundo, o dândi heteronímico, jamais igual a si, desmembra-se em todos no indeterminado. Assim Fernando Pessoa “ele mesmo” pode cantar:

Serei eu, porque nada é impossível, Vários trazidos de outros mundos, e No mesmo ponto espacial sensível Que sou eu, sendo eu por estar aqui? Serei eu, porque todo o pensamento Podendo conceber, bem pode ser, Um dilatado e múrmuro momento, De tempos-seres de quem sou o viver?16 16 PESSOA, Fernando. Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo. Disponível em: http://arquivopessoa.n et/textos/174. Acesso em: 06 mar. 2019.

Devido a sua abrangência para o entendimento da arte heteronímica - essa que, por meio do dandismo heteronímico, propõe a multiplicidade do indivíduo -, a teoria louca que o dândi pessoano Álvaro de Campos desenvolve em seu manifesto chamado “Ultimatum” é um dos pontos centrais, senão o principal, para o conceito de dandismo heteronímico.

O texto inicia banindo a tradição europeia e todos os seus pensadores e chefes de Estado. Em dois momentos são repetidas as exclamações:

Fallencia geral de tudo por causa do todos! Fallencia geral de todos por causa de tudo! (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 405).

Levando em conta o contexto político - Primeira Guerra Mundial - em que Pessoa escreve, podemos chegar à conclusão, junto a Campos, de que a Europa ruiu e a América também. Não há salvação, o sistema político europeu apodreceu, as suas metafísicas eram todas falsas:

Ponham-me um panno por cima de tudo isso! Fechem-me isso á chave e deitem a chave fóra! (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 406).

Logo em seguida, Campos questiona: “Onde estão os antigos, as fôrças, os homens, os guias, os guardas?” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 406). Ele então nos convida para visitarmos as lápides deles.

Não diferente do Brasil atual, Campos diz-nos: “Agora a politica é a degeneração gordurosa da organização da incompetencia!” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 406). Não é mais possível respirar, afinal de contas, a intoxicação fascista parece generalizada:

Suffoco de ter só isto á minha volta! Deixem-me respirar! Abram todas as janellas! (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 406).

Campos solicita, de maneira semelhante a Nietzsche, os senhores de si: “Dai-nos Possuidores de si-proprios, Fortes Completos, Harmonicos Subtis!” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 411). Ora, quem são os harmônicos sutis senão os dândis heteronímicos? O poeta compreende que, em certa altura da civilização (a sua), ocorreu “uma desadaptação da sensibilidade pelo meio, que consiste dos seus estimulos - uma fallencia portanto” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 413). Campos atribui a incapacidade de sua época de criar grandes valores a esse sentimento de desadaptação. Traçando um quadro histórico acerca da desadaptação, desde o Renascimento até os seus dias, o poeta propõe o dilema: “[...] ou a morte da civilização, ou adaptação artificial, visto que a natural, a instinctiva falliu” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 414).

Inicia, em seguida, com a explicação daquilo que denomina “adaptação artificial”. O que é a adaptação artificial? Trata-se de “um acto de cirurgia sociologica. [...] A sensibilidade chegou a um estado morbido, porque se desadaptou. Não ha que pensar em cura-la. Não ha curas sociais. Ha que pensar em operal-a para que ella possa continuar a viver” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 414). Em sua teoria dândi, Campos diz ser necessário substituir à morbidez da desadaptação uma sanidade artificial. Mas o que é necessário eliminar exatamente do psiquismo do homem moderno? Aquilo que o dândi chama “acquisição fixa” é o que deve ser banido. E, então, o dândi questiona: “Qual é a ultima acquisição fixa do espirito humano geral?” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 415). Os dogmas cristãos. Logo em seguida, o poeta propõe o que chama, de forma original, “A intervenção cirurgica anti-christã”, ou, conforme proponho, o Frankenstein pessoano.

Na intervenção cirúrgica anticristã, deve-se banir três preconceitos - dogmas - da “acquisição fixa”, dos quais me debruçarei, por conta do espaço deste artigo, sobre os dois primeiros, os quais considero fundamentais para o dandismo heteronímico. São três os passos para tal abolição: 1) abolição do dogma da personalidade; 2) abolição do preconceito da individualidade e 3) abolição do dogma do objetivismo pessoal.

1)Abolição do dogma da personalidade: não somos possuidores de

uma Personalidade “separada” das dos outros. É uma ficção theologica. A personalidade de cada um de nós é composta (como o sabe a psychologia moderna, sobretudo desde a maior attenção dada á sociologia) do cruzamento social com as “personalidades” dos outros, da immersão em correntes e direcções sociaes e da fixação de vincos hereditarios, oriundos, em grande parte, de phenomenos de ordem collectiva. Isto é, no presente, no futuro, e no passado, somos parte dos outros, e elles parte de nós. (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 415).

De maneira lúcida, consciente da coletividade e da porosidade do eu, o dândi heteronímico prossegue: “Para o auto-sentimento christão, o homem mais perfeito é o que com mais verdade possa dizer ‘eu sou eu’; para a sciencia, o homem mais perfeito é o que com mais justiça possa dizer ‘eu sou todos os outros’” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 416). O “Homem-Completo” está consciente “[...] da sua interpenetração com as almas alheias [...]” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 416). Por fim, com o humor que lhe é característico ao inventar conceitos e palavras desagregadores, tão diversos de Reis, Campos apresenta três resultados de tal operação: o primeiro na esfera política, o segundo na artística, o terceiro na filosófica. Em política, substituindo a democracia tal como é operada na contemporaneidade, haverá a “Dictadura do Completo, do Homem que seja, em si-proprio, o maior numero de Outros; que seja, portanto, A Maioria” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 416). Em arte, existirá a “abolição total do conceito de que cada individuo tem o direito ou o dever de exprimir o que sente. Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o individuo que sente por varios” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 416). Por fim, em filosofia, a “abolição do conceito de verdade absoluta. Creação da Super-Philosophia. O philosofo passará a ser o interpretador de subjectivites entrecruzadas, sendo o maior philosopho o que maior numero de philosophias expontaneas alheias concentrar” (PESSOA, 2015, p. 416). Ora, não está Campos, ao falar da necessidade de filosofias entrecruzadas, alheias, referindo-se à arte heteronímica? Não é, pois, um princípio heteronímico a relativização em proveito da arte? Arte é multiplicidade. Como seria possível fazer arte sem atentar a isso? Arte é feita da multiplicidade dos saberes, da vida, não de sistemas prontos. A forma artística é múltipla, não regramento.

2) Abolição do preconceito da individualidade: nas palavras de Campos, “é outra ficção theologica - a de que a alma de cada um é una e indivisível” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 417). E completa com os seguintes dizeres: “Para o auto-sentimento christão, o homem mais perfeito é o mais coerente consigo proprio; para o homem de sciencia, o mais perfeito é o mais incoerente consigo proprio [...]” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 417). Não está Campos a falar do super-homem, o demasiadamente humano? Elenca, por fim, os resultados: em política, a abolição de tal preconceito resulta na

abolição de toda a convicção que dure mais que um estado de espírito, o desaparecimento total de toda a fixidez de opiniões e de modos-de-ver [...] Abolição total do passado e do futuro como elementos com que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de todas as continuidades. (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 417).

Em arte, a

abolição do dogma da individualidade artística. O maior artista será o que menos se definir, o que escrever em mais generos com mais contradicções e dissimilhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma similhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisivel. (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 417).

Por fim, em filosofia: “Abolição total da Verdade como conceito philosophico, mesmo relativo ou subjectivo” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 417). “O maior philosopho aquelle artista do pensamento, ou antes da ‘arte abstracta’ [...].” (PESSOA, 2015PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 418). Ora, qual o artista que tem não apenas uma, mas várias personalidades, senão o dândi heteronímico, aquele que pratica o autoconhecimento, o que é todos, a multiplicidade-eu?

Desse modo, existe uma poética-política na obra de Pessoa chamada dandismo heteronímico: uma multidão de vozes singulares em democrático diálogo entre si, unidas em sua intenção de profanar o eu fixo, esse que nos tiraniza as sensações devido à falácia da unidade da alma individual. Os versos loucos de cada heterônimo, ao dinamizarem poéticas singulares, fazem circular no vazio uma obra de arte para nós contemporânea e em contínua profanação dos ditames mercantis. Em sua exuberância molecular e indeterminada, o dandismo heteronímico desarticula a moral ao jogar criativamente com os elementos da vida, promovendo, assim, uma poesia singular, pois composta não por conceitos científicos, sempre limitadores, mas por sensações poéticas que colocam em movimento as experiências da vida. A contradição é, para o dandismo heteronímico, o elemento necessário para a ruptura das fronteiras morais. Aqui, as mais diversas formas de pensar e sentir são possíveis unicamente por função do esbanjamento vitalista proveniente da contradição sensacionista. A heteronímia é feita de um excesso de vida que extravasa os limites da Razão e dos trabalhos científicos.

É ao aceitar-se animal-homem, e, dessa forma, não de todo racional, que tal dândi poetifica a contradição vital. Ter ciência de que não há Conhecimento faz o dândi heteronímico gritar o seu grande Sim à vida, como os senhores de que fala Nietzsche. É o amor que está presente nesse movimento poético que o distancia do ressentimento que nos impõe o capitalismo e sua culpa de almas mortificadas.17 17 BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. O dandismo heteronímico segue um princípio vitalista de aceitação de todas as experiências (Wilde), ele permite o nascimento de novos modos de sentir, de maneira a respeitar a diversidade da vida. O Sim anárquico e vitalista é o movimento do corpo que, não dissociado da inteligência, possibilita a grande ação de uma contradição poetificada. Ao profanar o tempo da produtividade por meio de expressões singulares ligadas a formas de vida extravagantes e, para muitos, absurdas, o dândi heteronímico resiste, até hoje, como contradispositivo poético, às instituições massificantes.

É no colocar-se em jogo com a vida - em discussão com ela - que o dândi heteronímico necessariamente relativiza as verdades morais e, assim, exubera uma lógica louca por meio de seu perspectivismo. O seu limite político, é claro, é o livre florescimento das diferenças, o extremo oposto da arte que serve como arma de guerra fascista a partir da ideia de uma harmonia desarticulada da multiplicidade política do real.

A arte heteronímica é um convite para o passo lento, a flânerie, por meio de uma obra inoperante, inútil, além do bem e do mal. Ator de mil máscaras, o dândi heteronímico é essa colocação impessoal em jogo que é o drama em gente. Por função do drama em gente, é possível experienciar outras formas de relação com o tempo e, assim, vidas possíveis que se concretizam molecularmente em nós, seus leitores, vidas heteronímicas que nos modificam. Ora, não é justamente esse o trabalho da poesia? O dandismo heteronímico proporciona uma outra experiência com o tempo, uma vivência ocorrida necessariamente no tempo da contemplação, quando a vida é devir e duração.

Referências

  • BADIOU, Alain. O século Aparecida: Ideias e Letras, 2007.
  • BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
  • BERGSON, Henri. A evolução criadora São Paulo: UNESP, 2010.
  • GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações Lisboa: Relógio d’Água, s/d.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista URSS: Edições Progresso, 1987.
  • MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa 2. ed. Porto: Gráfica Maiadouro, Maia, 1999.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
  • PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015.
  • PESSOA, Fernando. Páginas de doutrina estética 2. ed. Lisboa: Editorial Inquérito, s/d.
  • SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
  • SCHIFFER, Daniel Salvatore. Manifeste dandy Paris: François Bourin Editeur, 2012.
  • SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama São Paulo: Perspectiva, 1974.
  • WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo Porto Alegre: L&PM, 2017.
  • 1
    Fonte de luz refletora, contra o pensamento único [massificante], abismo do obscurantismo que cega. [tradução minha].
  • 2
    Multiplicação infinita de diferentes pontos de vista. [tradução minha].
  • 3
    Para o filósofo francês Henry Bergson, “perante quem se instala no devir, a duração surge como a própria vida das coisas, como a realidade fundamental” (BERGSON, 2010PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. 1. ed. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015. , p. 345). Duração significa um tempo não mecânico, contemplativo, tempo da experiência, da poesia, e não das fábricas.
  • 4
    Como afirma, com justiça, Seabra: “Ser Tudo no Nada que é - que não é - tal é na verdade a ambição poética de Pessoa, que ele só poderá realizar através dos heterônimos, do poetodrama.” (1974SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo: Perspectiva, 1974.. p. 59).
  • 5
    Em sua Genealogia da moral (2016NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. 1. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. ), o filósofo Friedrich Nietzsche trabalha com a dicotomia Senhor e Escravo, sendo aquele o indivíduo que apresenta uma conduta afirmativa frente à vida, e este o indivíduo que nega a existência por conta do ressentimento.
  • 6
    PESSOA, Fernando. Gosto de dizer. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/4520. Acesso em: 24 jan. 2021.
  • 7
    Não apenas Baudelaire relaciona a embriaguez ao estado de poeticidade, como também Nietzsche assim o faz. Diz o filósofo do martelo em Crepúsculo dos ídolos: “Para que haja arte, para que haja uma ação ou uma contemplação estética qualquer, é indispensável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. [...] O essencial na embriaguez é o sentimento de força e de plenitude. Sob a influência desse sentimento nos abandonamos às coisas, obrigamo-las a tomar algo de nós [...]” (2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.. p. 76-77). Ora, embriagado é o estado poético do dândi heteronímico, “artista trágico” que, despersonalizando-se, vive na heteronímia, é a própria heteronímica sensação. Afinal de contas, que é o artista heteronímico senão aquele que, tal como o “homem dionisíaco”, “sabe revestir todas as formas e todas as emoções, transforma-se continuamente.”? (NIETZSCHE, 2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017., p. 78.).
  • 8
    PESSOA, Fernando. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/ 277. Acesso em: 21 jan. 2019.
  • 9
    Idem.
  • 10
    É importante recordar da definição de desassossego do filósofo José Gil: “o desassossego é esse movimento de uma singularidade que, não estando ligada a nada, está a entrar em devir.” (s/d.GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio d’Água, s/d. p. 22).
  • 11
    Vale lembrar o que Nietzsche afirma acerca do “instinto de causa”, instinto que, conforme o pensador, é dependente do medo: “O porquê não solicita a indicação de uma causa por amor a ela, mas sim busca certa espécie de causa, uma causa que tranquilize, que livre do perigo, que alivie. A primeira consequência dessa necessidade é que toma como causa algo já conhecido e vivido, algo que está inscrito na memória. O novo, o imprevisto, o estranho está excluído das causas possíveis.” (2017NIETZCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.. p. 51).
  • 12
    PESSOA, Fernando. Não sei quantas almas tenho. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/ 277. Acesso em: 21 jan. 2019.
  • 13
    Para Seabra, com quem concordo, “o que há de novo em Pessoa é a superação da irredutibilidade do sentir ao pensar [...]” (1974SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodrama. São Paulo: Perspectiva, 1974.. p. 68).
  • 14
    PESSOA, Fernando. Ela canta, pobre ceifeira. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2429. Acesso em: 06 mar. 2019.
  • 15
    PESSOA, Fernando. Seja o que for que esteja no centro do Mundo. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/3214. Acesso em: 06 mar. 2019.
  • 16
    PESSOA, Fernando. Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo. Disponível em: http://arquivopessoa.n et/textos/174. Acesso em: 06 mar. 2019.
  • 17
    BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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