Open-access O efeito etnográfico em Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós

The Ethnographic Effect in Correspondence of Fradique Mendes, by Eça de Queirós

Resumo

Na intersecção entre literatura e antropologia, este ensaio busca ler a Correspondência de Fradique Mendes focalizando o lugar que ocupa a etnografia na obra, haja vista que o personagem epistológrafo é também um viajante, “um homem que passa”. Diante de sua recusa a fazer obra do que experimentou por onde passou, recorre-se, para tanto, à obra da antropóloga britânica Marilyn Strathern e à ideia de um “efeito etnográfico”, parcial e intempestivo, e mais afim, por conseguinte, aos empecilhos do conhecer, já notáveis na prosa epistolar de Eça de Queirós.

Palavras-chave:
efeito etnográfico; Fradique Mendes; heteronímia; literatura e antropologia

Abstract

This essay aims to read Correspondence of Fradique Mendes at the intersection of literature and anthropology, focusing on the place that ethnography occupies in the work, considering that the epistolary character is also a traveler, that is, “a man defined as one who passes through”. Given his refusal to create a work of what he experienced wherever he went, we resort to the work of the British anthropologist Marilyn Strathern and the idea of ​​an “ethnographic effect”, a partial and untimely one, and therefore more akin to the obstacles of knowledge, already notable in the epistolary prose of Eça de Queirós.

Keywords:
Ethnographic Effect; Fradique Mendes; Heteronym; Literature and Anthropology

Resumen

En la intersección de la literatura y la antropología, este ensayo busca leer la Correspondencia de Fradique Mendes centrándose en el lugar que la etnografía ocupa en la obra, dado que el personaje autor de las cartas es también un viajero, “un hombre que pasa”. Ante su negativa a hacer un trabajo de lo que experimentó allí donde fue, apelamos al trabajo de la antropóloga británica Marilyn Strathern y a la idea de un “efecto etnográfico”, parcial e intempestivo, y por tanto más afín a los obstáculos al conocimiento, ya notables en la prosa epistolar de Eça de Queirós.

Palabras clave:
efecto etnográfico; Fradique Mendes; heteronimia; literatura y antropología

Só-depois etnográfico

Marilyn Strathern, antropóloga formada na escola social britânica da segunda metade do século XX, em entrevista a Eduardo Viveiros de Castro, relembra um momento crucial de sua vida, quando fora convidada a falar no King’s College, em torno de um aspecto das práticas contemporâneas de parentesco: a doação de óvulos entre irmãs. Ao que Strathern (1999, p. 163, grifo nosso) confessa: “Bem, esta antropóloga que lhes fala não tinha nada a dizer, e ela tampouco conhecia qualquer antropóloga/o que tivesse algo a dizer”.

Se a incredulidade da antropóloga em relação ao seu próprio saber soa inesperado, quando nós a posicionamos junto aos precursores da escola em que se formara, geralmente referidos pela desfamiliarização com que pressupunham o trabalho etnográfico, já não nos parece tão impactante que um de seus representantes, Malinowski, tenha se perguntado, ainda no início de Argonautas do pacífico ocidental: “Que significa entrar em contato”? (Malinowski, 1978, p. 21). O vórtice provocado por essa reconsideração dos paradigmas que orientam o trabalho de campo, mobilizados pela autoconsciência sobre a autoria e sobre a escrita etnográfica, para a geração de Strathern, foi revolvido, só que dessa vez, como se nota pelo tema do evento ao qual fora convidada, pela crescente redescoberta do pensamento marxista com inflexões feministas absolutamente relevantes para as questões de gênero. A partir de então, toda uma “política da escrita antropológica e especificamente das apresentações literárias da experiência de campo” (Strathern, 2014a, p. 347) colocará em crise tanto a noção de representação quanto o uso constativo e descritivo da língua, principais dispositivos euro-americanos para a invocação (e apropriação) de um contexto particular.

Como tratar os povos em seus próprios termos? Será possível evitar a criação de um outro campo quanto se tenta conhecer aquele em que se está a trabalho? Há língua capaz de reapresentar a complexidade da vida social? E o imprevisível, como se sustenta em uma gramática pautada nos fenômenos e unidades elementares? Que lugar tem o não saber em uma pesquisa de campo? O ensaio de Strathern, “O efeito etnográfico”, da década 1990, é fulcral para que se compreendam a amplitude e a disseminação daquela indagação anterior sobre o contato, que ligou os rumos da antropologia à autoconsciência e aos modos de conhecer. O que começa como uma pergunta sobre a descontinuidade entre a escrita fruto do trabalho de campo do antropólogo e os relatos que fariam de si esses povos estudados caminha em direção a uma divisão onde o outro é o outro do eu.

A herança durkheimiana da escola social britânica se faz notar em passagens como essa, de Strathern: “[...] as interpretações são sempre um mundo já ocupado por ‘sociedades’. As sociedades, como as culturas, estão por assim dizer já escritas e ao mesmo tempo continuam sempre por ser escritas” (Strathern, 2014a, p. 375). Avançando, portanto, em direção a esse limite da e na linguagem, definidos pela ideia de que contextos são textos, Strathern identifica uma cisão anterior e própria ao trabalho do etnógrafo, entre os campos da imersão e o da escrita, o da petrificação (nomeado por Strathern de “deslumbre”) e o do movimento (de “discernimento”). Entre a observação e a análise não há relação (imediata, total, transparente). O que há, quando muito, é um “momento etnográfico”, “que junta o que é entendido (que é analisado no momento da observação) à necessidade de entender (o que é observado no momento da análise)” (Strathern, 2014a, p. 350). A antropóloga dirá que esse momento é, de fato, o paradigma que mobilizou toda a sua pesquisa, ao objetificar “uma observação (a dádiva da riqueza) e a análise que a acompanha (a troca de perspectivas)” (Strathern, 2014a, p. 358). Se a etnografia depende de um instante, temporalidade inescapavelmente fugidia, não seria certo dizer que o sujeito e o objeto do conhecimento ocupam posições fixas; eles variam quanto aos contextos, textos e gestos de reflexão e de autorreflexão, descrição e autodescrição.

Strathern não chega a mencionar Freud, mas não nos parece equivocado interpretar em sua afirmativa, que diz que “a significância é adquirida na escrita posterior” (Strathern, 2014a, p. 353), o só-depois [Nachträglichkeit ou après-coup] freudiano, definido “por um tipo especial de vivências extremamente importantes”, “e que à sua época foram vividas sem compreensão e interpretação, mas que a posteriori [nachträglich] encontraram compreensão e interpretação” (Freud, 2019, p. 151). Esse movimento depende, é claro, do aspecto relacional, tão caro à antropóloga e também a Freud no âmbito da intersubjetividade. Além de depender da ideia de que as categorias de tempo e espaço não são imperativos categóricos, ou seja, a prioris de nossa experiência, mas constructos. Em suma, significância, para um e para outro, é um fenômeno em dois tempos, constituído do momento posterior, ou seja, de uma segunda cena pela qual as impressões mnêmicas adquirirão eficácia simbólica, estando sempre expostas à constante pulsional, portanto a remodelações que podem, inclusive, inverter a flecha do tempo, de modo que o presente modifique o passado. É mais do que uma simples significação tardia e retroativa. Nos termos da antropóloga, trata-se do momento privilegiado da troca de perspectivas, da “personificação”, uma saída tanto à estagnação da impressão quanto à sua repetição.

A interpretação distribuída

A Correspondência de Fradique Mendes, obra semipóstuma1 de Eça de Queirós, parece incorporar, desde os momentos finais do século XIX, essa crise da descrição, justamente ao colocar em cena um personagem, “esboço de heterônimo” (Reis, 2007, p. 241), caracterizado por seu desejo contraditório pela alteridade e pela excentricidade: “Com um ímpeto de ave solta, viajara logo por todo o mundo, a todos os sopros do vento, desde Chicago até Jerusalém, desde a Islândia até ao Sahara” (Queirós, 2004, p. 89). No tom hiperbólico dessa primeira parte da obra, intitulada “Memórias e Notas”, o autor descreve o amigo como um “desses seres que, pela sedução ou pelo génio, como Alcibíades ou como Goethe, dominam uma civilização” (Queirós, 2004, p. 90, grifo nosso). O corpo másculo, o viço e os membros rijos acrescentam ainda mais força a este homem “em que tudo era irresistível” (Queirós, 2004, p. 106). Homem que não é só corpo, embora o seja extraordinariamente, “aliava-se nele a um minucioso saber arqueológico da vida, das maneiras, dos trajes, das armas, das festas, dos ritos de todas as idades, desde a Índia Védica até à França imperial” (Queirós, 2004, p. 154).

Entretanto, quanto travamos contato com o próprio Fradique, nas cartas que escreve para os vários amigos que fez ao longo da vida, ressalta-se o contraste entre essas primeiras impressões a seu respeito, de confessa idolatria, e o que se depreende da figura quando é ela quem se autodescreve. Antes mesmo do paradigma se colocar para o europeu em sua relação com a alteridade, a estrutura da obra, dividida entre uma primeira parte, intitulada “Memórias e Notas”, que antecede as cartas propriamente ditas, insere como problema fundamental a noção de perspectiva. Como defende Strathern, toda análise etnográfica depende do pressuposto de onde partimos: “E eu realmente penso que a forma que as coisas tomam é muito importante; penso que importa muito saber, por exemplo, se começamos pelas relações ou se começamos pelas substâncias, e assim por diante” (Strathern, 1999, p. 167, grifo nosso).

Quando é o narrador de “Memórias e Notas” a dizer das habilidades linguísticas de Fradique, lemos o seguinte:

Além dum sólido conhecimento das línguas clássicas (que, na sua idade de Poesia e de Literatura decorativa, o habilitara a criar em latim bárbaro poemetos tão belos como o Laus Veneris tenebrosae) - possuía profundamente os idiomas das três grandes nações pensantes, a França, a Inglaterra e a Alemanha. Conhecia também o árabe, que (segundo me afirmou Riaz-Effendi, cronista do sultão Abdul-Aziz) falava com abundância e gosto (Queirós, 2004, p. 151, grifos no original).

Já quando é Fradique quem está escrevendo para uma amiga, Madame S., que lhe havia pedido indicação de um professor de castelhano para ensinar a língua a seu filho, a humildade irônica do português se faz presente no conselho que dá:

Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: - todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro (Queirós, 2004, p. 215).

Ao que completa: “Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável” (Queirós, 2004, p. 215). Tratar-se-ia da mesma pessoa, se vista substancialmente ou vista pelas suas relações?

Fradique, embora provavelmente tivesse conhecimento de outras línguas que não só o português, fruto de sua “rápida e carinhosa simpatia por todos os povos” (Queirós, 2004, p. 157), encena o português do século XIX, aquele que acredita na indispensabilidade da língua portuguesa. A ironia, se não é suficiente nos trechos acima citados, é declamatória ao afirmar que

[c]onvém mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas de uma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que nela tumultuam, do que poder, através das estalagens do mundo, reclamar com perfeição o pão e o queijo - em sueco, holandês, grego, búlgaro e polaco (Queirós, 2004, p. 216).

Ao final dessa mesma carta, Fradique dá como exemplo uma tia que só falava o português, mas conseguiu viajar por toda a Europa, comendo apenas ovos. Quando se sentia com fome, “agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava ki-ki-ri-ki! kó-kó-ri-ki! kó-ró-kó-kó!” (Queirós, 2004, p. 216). A imitação animalesca lhe bastava.

Portanto, nos termos de Strathern, teríamos um Fradique efeito das relações que trava e um Fradique descrito substancialmente pelo autor de “Memórias e Notas”. Ao fim e ao cabo, não é outro o tema da Correspondência. Fradique chega a dizer sobre o “desejo servil de não sermos nós mesmos” (Queirós, 2004, p. 215), seja através da língua, dos hábitos alimentares, da religião, entre tantos outros aspectos a que se dedica. Por isso, o conselho que dá a sua amiga pinta-se de um etnocentrismo, para não dizer também de um ceticismo quanto à possibilidade de entrarmos de fato em contato com alguém. Logo, a condição de turista ou desbravador se volta para as experiências em sua própria terra, como quando chega de madrugada na cidade de Lisboa e se indigna por não encontrar disponível nenhum tipo de transporte até o hotel onde se hospedaria. “Nada mais frágil que a reputação das nações”, diz-nos (Queirós, 2004, p. 240).

A reputação, inclusive, é matéria da carta seguinte, ao Sr. E. Mollinet, escrita em Paris para relatar ao destinatário o personagem Pacheco de quem os jornais lamentavam a morte. Conhecido como um homem de muito talento, fora deputado, diretor-geral, ministro, governador de bancos, conselheiro de Estado, par e presidente do conselho. Tudo isso sem fazer nada e dizendo muito pouco. Pacheco, portanto, representa o tipo burocrata: quanto menos realiza, mais é admirado, e todo um sistema do qual participa, que louva principalmente os homens sem ação; “o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser” (Queirós, 2004, p. 246).

Mas também dele, Fradique, é dito que, embora tenha feito muito pelo espírito, não deixou obras. Na ocasião de seu falecimento, é descrito no jornal Gazzette de Paris como o “dissipador duma enorme riqueza intelectual” (Queirós, 2004, p. 179, grifo nosso). Do ponto de vista etnográfico, poderíamos afirmar que a descrição irônica de Fradique a respeito de personagens tipicamente portugueses como Pacheco sugerem uma desconfiança tanto em relação ao imaginário de que o verdadeiro homem se esconde no fundo de seu ser quanto à inutilidade das aparências e da práxis. Aí a dissipação atribuída a si mesmo teria outro sentido: o da dispersão, da disseminação e do deboche da noção europeia de identidade, a opor semblante e realidade. Para o narrador de “Memórias e Notas”, “Fradique amava logo os costumes, as ideias, os preconceitos dos homens que o cercavam; e, fundindo-se com eles no seu modo de pensar e de sentir, recebia uma lição direta e viva de cada sociedade em que mergulhava” (Queirós, 2004, p. 157). Contudo as opiniões sobre o personagem raramente coincidem dentro e fora da obra. Parece-nos que Fradique recusa tanto a ingenuidade quanto a idealização, sobrepondo a ironia à realidade cognoscível. Em suma, trata-se de um uso arguto da língua em que prevalece muito mais o dizer do que o dito. Não é rara, por essa razão, a sensação de que o personagem está sempre esquivando-se de qualquer tipo ao qual possamos lhe identificar de maneira segura e permanente. Fradique é, ao mesmo tempo, aquele que fala muitas línguas e defende uma só; o que desaconselha o amigo de abrir um jornal, despedindo-se dele para ir ler seus jornais; o que ora crê, ora descrê nas reputações; sendo também o que é beneficiado com a modernidade e detrata-a. Tanto quis viajar por toda parte quanto dedicou-se a isso que pode ser considerado “mera bisbilhotice” “do reles ao sublime” (Queirós, 2004, p. 154), “bisbilhotice etnográfica” (Queirós, 2004, p. 133).

Ao escrever a um amigo engenheiro, Fradique proclama que a construção de uma ferrovia entre Jafa, em Israel, e Jerusalém, passando por cima de toda a mitologia cristã, é “uma obra de profanação” (Queirós, 2004, p. 272). Sendo usuário das ferrovias entre Paris e Bordeaux, não lhe resta senão confessar-se: “As coisas mais úteis, porém, são inoportunas, e mesmo escandalosas, quando invadem grosseiramente lugares que lhes não são congéneres” (Queirós, 2004, p. 278). Isso porque, em sua concepção, “a ilusão, Betrand amigo, é tão útil como a certeza” (Queirós, p. 273). Nesse momento, o lamento do personagem que toma conhecimento da notícia que faz desaparecer “a oportunidade de ver uma grande imagem do Passado” nos faz lembrar do deslumbre de que fala Strathern de se estar diante um acontecimento que nos escapa, tanto pelo fato da ilusão ser, de fato, uma mediadora de nossa relação com a realidade, tanto por conta do fato de que o desejo de entender nem sempre se realiza no entendimento.

Um dos diálogos mais notáveis entre o autor de “Memórias e Notas” e Fradique é aquele em torno da própria ideia de escrita etnográfica. Leiamos esse trecho, todo ele bastante interessante para o nosso argumento:

- Fradique! porque não escreve você toda essa sua viagem à África?
Era a primeira vez que eu sugeria ao meu amigo a ideia de compor um livro. Ele ergueu a face para mim com tanto espanto como se eu lhe propusesse marchar descalço através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia:
- Para quê? Não vi nada da África, que os outros não tivessem já visto.
E como eu lhe observasse que vira talvez dum modo diferente e superior; que nem todos os dias um homem educado pela filosofia, e saturado de erudição, faz a travessia da África; e que em ciência uma só verdade necessita mil experimentadores - Fradique quase se impacientou:
- Não! Não tenho sobre a África, nem sobre coisa alguma neste Mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valesse a pena registar... Só podia apresentar uma série de impressões, de paisagens. E então pior! Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual, ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever! (Queirós, 2004, p. 186-7, grifos nossos).

Fradique recusa tanto a escrita quanto a utilidade da escrita. Além de recusar, mais fortemente, a excepcionalidade da sua experiência, a capacidade de tirar conclusões a partir do que viu e a possibilidade de termos uma linguagem apta à reprodução das impressões humanas. Ao que completa: “Só se podem produzir formas beleza: e dentro dessas mesmas só cabe metade do que se queria exprimir porque a outra metade não é redutível ao verbo” (Queirós, 2004, p. 188). Aqui, a herança baudelairiana da tarefa da arte, de “extrair o eterno do transitório” (Baudelaire, 2010, p. 35), definida quanto à modernidade, que responde pelo “transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável” (Baudelaire, 2010, p. 35), é posta em favor do descrédito que Fradique dá ao ato de escrever uma viagem, de descrever a partir do ponto de vista de um etnográfico.

Toda a Correspondência, composta pela primeira parte e pelas cartas propriamente ditas, enquanto uma espécie de romance epistolar, desde o primeiro momento se propõe a ser uma ficcionalização da ideia de documento. O autor das “Memórias e Notas” nos afirma o seguinte, escamoteando o fato de tratar-se de uma documentação história ficcional: “uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece sempre o tesouro da documentação histórica” (Queirós, 2004, p. 190). Mas não é todo tesouro fruto de espoliação ou ilusão? Podemos ler as cartas, nesse caso, mais como um gesto de descrédito da ideia de “coleta de dados”, nos termos de Strathern, tanto do ponto de vista da coleta, por suas conotações políticas, quanto dos dados, por suas implicações epistemológicas. A contradição entre os dois Fradiques da Correspondência, por essa razão, não chega a acreditar mais um desfavorecendo a credibilidade de outro; Eça parece à frente do tempo quando não trabalha a ideia de relação como algo naturalmente estimável e socializante. Não por acaso, a colonização e as guerras figuram como tema dos diálogos e cartas como formas de relação tão relacionais quanto a paz ou o afeto que Fradique sente por Clara.

No que toca o fato de o personagem epistológrafo ser um esboço de heteronímia levado a cabo por Eça de Queirós, Jaime e Antero de Quental,2 sugere-se uma troca ainda que precária de perspectivas, não ao modo dos melanésios ou mesmo dos ameríndios, como defende a obra de Viveiros de Castro e seu conceito de perspectivismo, mas como uma experiência na qual a evidência está ligada aos efeitos das coisas sobre as pessoas. Isto é, a outrização que Fradique representa pode não ser lida como eco da dialética entre o eu e o outro, mas, mais propriamente, como um pensamento de que o que se distribui são as relações. De que o eu é distribuído entre todos aqueles com quem interagimos, que também são portadores e mantenedores de nossa evidência. Não por acaso, o gênero epistolar é exemplar dessa percepção de que as ações de uma pessoa também oferecem as interpretações dessa pessoa sobre os outros com quem interage. Com isso, queremos dizer que o trabalho de construção sobre o outro e do outro não é exatamente compartilhado, e sim distribuído entre todos. Quando Eça escreve sobre Fradique e quando Fradique escreve sobre si mesmo, o mais importante é perceber o ponto de vista a partir do qual uma perspectiva é organizada - o que, em alguns casos, tem a potência de desfazer o binarismo entre o eu e o outro, as sociedades ditas originárias e as sociedades ditas complexas - preconceitos sustentadores do imaginário do século XIX e de metade do XX.

Efeito e defeito etnográficos

Ao se recusar a escrever sobre os povos escrevendo a sua recusa, Fradique Mendes, na leitura que propomos aqui, produz um efeito que ao mesmo tempo faz e desfaz a observação etnográfica. Desfaz principalmente no que toca a dimensão da grafia. Tanto Fradique releva a inutilidade de compor um livro quanto o autor das “Memórias” é categórico sobre o que deixou o personagem: “não existe uma obra - porque Fradique nunca foi verdadeiramente um autor” (Queirós, 2004, p. 184, grifo no original). Claro está que a recusa da autoria tem relação com o fato de o personagem não ser mais que uma sombra de Eça, esboço incompleto de heteronímia, parecidos por demais que são nos interesses e no estilo. Desde o início, quando poemas seus são publicados a sua revelia, Fradique se abstém de considerar-se autor, talvez por uma relação ainda por demais veemente com a ideia de imitação: “Ele [Fradique] não considerava assináveis esses pedaços de prosa rimada, que decalcara, havia quinze anos, na idade em que se imita, sobre versos de Lecomte de Lisle” (Queirós, 2004, p. 103, grifo nosso). No entanto, o paradigma da originalidade não é tudo. A recusa é também da relação direta entre ver e saber, na qual se pauta todo uma forma de pensamento, tal como descrita por Strathern:

[...] a reflexividade euro-americana da condição do eu, que vincula uma noção de identidade ao que pode ser visto: sei quem sou porque você pode ver quem sou. Nessa fórmula, o olhar de uma pessoa é refletido no de outra; a alma de uma pessoa está em seus olhos, e ver é saber. A interação euro-americana traz precisamente o conhecimento (que inclui o autoconhecimento), e a “reflexividade” é um estado do conhecer. (Strathern, 2014a, p. 398)

Talvez seja dessa reciprocidade entre olhar e conhecimento que Fradique se priva, ainda que, é claro, não seja capaz de travar com Eça uma suficiente e ritualizada troca de perspectiva. Ao mesmo tempo, a Correspondência como tal viabiliza o momento em que algo se organiza em novas relações e emerge para adquirir sentido e produzir efeito de sentido. É o estabelecimento de uma relação ativa entre dois ou mais sujeitos, destinatários e remetente, que, até então, eram indiferentes quanto aos seus efeitos imediatos, mas que, na interação do encontro, tornam-se termos de um conflito. Assim como na descrição do après-coup, do só-depois freudiano, não se trata da coincidência de uma impressão com um sentido posterior. O que está em jogo é o choque entre os mundos em que vive cada sujeito que supõe viver, e a significância consequentemente será a atualização da falha de qualquer tentativa de justaposição do eu distribuído entre as suas relações.

Claro está que à crise da linguagem da descrição Fradique não responde inventando outra linguagem, “uma prosa como ainda não há” (Queirós, 2004, p. 187). Aquilo de que ele, de fato, prescinde, é de invocar os contextos pela descrição das práticas rituais, das cerimônias e paisagens, das trocas e dos sistemas econômicos. Na maioria das vezes que um personagem tem sua significância atrelada a mundo social, em seus componentes psicológicos, culturais e econômicos, isto se dá com os próprios portugueses, a exemplo de Pacheco e do padre Salgueiro, funcionário da “Secretaria dos Negócios Eclesiásticos” (Queirós, 2004, p. 306), que figuram como uma espécie de espelho para que o leitor perceba a técnica do antropólogo quando aplicada a si mesmo. Trata-se da questão preliminar, notada por Strathern, “de como se conhece quando se está em casa” (Strathern, 2014b, p. 133). A antropóloga, formada nessa desconfiança da ideia de “estar em casa”, nos orienta de que não é bem o caso de necessariamente se esperar, de antropólogos que trabalham em terreno familiar, maior continuidade entre o estudo realizado e o que as pessoas estudadas produzem em seus próprios relatos. Tanto isso não é uma garantia que a particularidade de Pacheco e do padre Salgueiro, como burocratas cujo agir ou não agir mantém a máquina colonialista e o estado pseudolaico funcionando igualmente, só reforçam a discrepância entre reflexividade e autoconsciência, mesmo nesse “povo que não mudou” (Queirós, 2004, p. 163). Não basta ver para saber; o retrato desses dois personagens permanece irreconhecível, afinal a natividade não é só questão de escolha, mas de prática e reconhecimento cultural e social.

Não se encontra, nas cartas de Fradique, nem sequer um momento em que o mesmo procedimento de fazer de uma figura a ilustração de uma paisagem se aplica extensivamente a um estrangeiro, apesar de ser frequente o seu encontro com personagens excêntricos, a exemplo do apóstolo da religião persa, o Babismo, Said-El-Souriz, informante com quem supostamente também teria uma cumplicidade. Deste, inclusive, toma as circunstâncias para converter o interesse genuíno que sente por outras formas de espiritualidade em ironia moderna, quando, já em terras europeias, brada: “ - Eu sou a porta”, referenciando filologicamente o termo do qual deriva a religião babista, de Bab, do persa, porta. A imagem da porta é frutífera: será que nós a atravessamos ou por ela somos atravessados? Em outras palavras: sabemos mais sobre nós como objeto do que como sujeitos?

Nos termos de uma aventura etnográfica, mais propenso do que o próprio Fradique está o autor de “Memórias e Notas” e seu pendor fabulatório, típico de um imaginário colonialista do século XIX. Um dos episódios cômicos desse pendor é motivado por um reencontro imprevisto no Cairo e, mais especificamente, quando o autor da primeira parte da obra observa Fradique em um jantar e logo imagina que aqueles que o acompanham seriam Júpiter e uma Ninfa, tratando-se, em suma, de um banquete no Olimpo. Quando pergunta, então, a um garçom quem era o homem na companhia de Fradique, a resposta alimenta ainda mais sua imaginação, na forma de um equívoco: “ - Cé-le-diêu.... Justo Céus! Le Dieu” (Queirós, 2004, p. 113). Na forma de uma homofonia, o que havia dito o funcionário é que aquele era “o dois”. “O que eu tomara pelo anúncio duma presença divina significava apenas - c’est le deux! Gautier no hotel ocupava o quarto número dois” (Queirós, 2004, p. 118). O episódio, se não reforça o modo como o desejo de entender não garante o entendimento, não deixa incólume o lugar do equívoco, mesmo no interior da língua falada, quando apenas a grafia pode desfazer os mal-entendidos ou revelar os desejos inconscientes.

O que se depreende desses procedimentos queirosianos é, ao fim e ao cabo, certo pessimismo quanto ao que se poderia responder da questão de Malinowski: “Que significa entrar em contato”? (Malinowski, 1978, p. 21). Europeu que foi, imbuiu-se da ideia de que “um olhar mútuo, ao modo americano contemporâneo, são duas perspectivas, cada uma delas tomada de um ponto de vista sobre o mundo” (Strathern, 2014a, p. 404). Os dois pontos de vista na Correspondência, quando não estão à serviço de produzir contrastes entre o Fradique visto e o Fradique que (se) vê, operam na reiteração de que se trata de um mesmo referente, visto diferentemente ou de modo um pouco mais complexo. Pior que não poder tornar um mundo percebível a partir da visão é perceber que a nós não nos é dada a chance de ver, ao menos, as relações, tal como elas se estabelecem entre comunidades melanésias, por exemplo. Quiçá Fradique Mendes tivesse intuído outras formas de cosmopercepção, para as quais “as relações são o que faz as pessoas ‘verem’, o que quer que elas vejam” (Strathern, 2014a, p. 405). À sombra de Eça, o personagem fica duplamente impossibilitado de tomar a relação ao pé da letra, no sentido de um contato com a diferença: tanto pela proximidade e pela afinidade com o seu autor quanto pela tarefa de que se imbui de tornar-se autoetnógrafo, o que implica, em todos os casos, o tornar-se autor em relação àquele que estuda, responsável por uma outra versão daquele a quem responde como o seu familiar.

Referências:

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  • STRATHERN, Marilyn. Entrevista. No limite de uma certa linguagem. Transcrição de David Rodgers e tradução de Eduardo Viveiros de Castro. Mana, Ubatuba, SC, v. 5, n. 2, p. 157-175, 1999.
  • STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios Trad. Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2014a. p. 345-405.
  • STRATHERN, Marilyn. Os limites da autoantropologia. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios Trad. Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify , 2014b. p. 133-157.
  • 1
    A classificação é de Carlos Reis (2014, p. 11), considerando que toda a obra fora escrita e “em boa parte preparada” em vida por Eça de Queirós, apesar de ter sido publicada semanas após a sua morte, no ano de 1900. Os textos, como se sabem, antes de aparecem reunidos, foram publicados em jornais brasileiros e portugueses, nomeadamente, O Repórter, Gazeta de Notícias, Revista de Portugal e A Ilustração, durante 1888, 1889 e 1890.
  • 2
    A primeira aparição de Carlos Fradique Mendes é em 1869, como poeta satânico, reaparecendo em 1870, no romance O mistério da estrada de Sintra. Já o Fradique Mendes epistológrafo data de 1888, como dissemos na nota anterior, já se restringindo ao projeto de Eça, o único a dar continuidade à provocação ficcional.
  • Declaração de Disponibilidade de Dados
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Editado por

  • Parecer Final dos Editores
    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2025
  • Aceito
    30 Jul 2025
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