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Afrodescendência ausente na Heterogeneidade Cultural, de Antonio Cornejo Polar e a Afro-Peruanidade e Cimarronaje em Nicomedes Santa Cruz

The absence of afro-descendance in Antonio Cornejo Polar’s cultural heterogeneity. Afro-Peruvianity and Cimarronaje in Nicomedes Santa Cruz

Resumo

O projeto do crítico literário peruano Antonio Cornejo Polar teve importância ao tentar estimular a articulação de um projeto humanista latino-americano. Ao priorizar a inclusão de valores culturais nativos peruanos, o crítico literário transcendeu as diretrizes de valores canônicos universalistas investidos no continente e reafirmou a importância de um sistema de pensamento genuíno, autônomo e pautado por particularidades que deveriam compor a representação do que caracterizaria, essencialmente, a América Latina como episteme. No entanto, Polar falha ao não mencionar a relevância e reflexões das contribuições africanas no processo de formação social, cultural e literária peruana e da América Latina. Desse modo, o objetivo do presente estudo articula-se na relação do legado do pensamento crítico de Antonio Cornejo Polar tendo como base as contribuições afrodescendentes peruanas a partir da obra de Nicomedes Santa Cruz (2000).

Palavras-chave:
crítica literária; cultura afrodescendente; Nicomedes Santa Cruz

Abstract

The project initiated by Peruvian literary critic Antonio Cornejo Polar acquired great importance by attempting to articulate a Latin American humanistic project. By prioritizing the inclusion of native Peruvian values, the literary critic transcended the guidelines of universal canonical values rooted in the continent, reasserting the importance of a system with an independent and authentic mindset, characterized by features that essentially distinguish Latin America’s episteme. However, Polar fails by not mentioning the relevance and reflections of African contributions in the process of social, cultural and literary development in Peru and Latin America. Thus, this study focuses on the relationship between the legacy of Antonio Cornejo Polar’s critical thinking and the fundaments of Peruvian Afro-descendant contributions in the works of Nicomedes Santa Cruz (2000).

Keywords:
literary criticism; Afrodescendant culture; Nicomedes Santa Cruz

Resumen:

El proyecto del crítico literario peruano Antonio Cornejo Polar tuvo gran relevancia al intentar estimular la articulación de un proyecto humanista latinoamericano. Al priorizar la inclusión de valores culturales nativos peruanos, el crítico literario transcendió las directrices de valores canónicos universalistas invertidos en el continente y reafirmó la importancia de un sistema de pensamiento genuino, autónomo y pautado por particularidades que deberían componer la representación de lo que caracterizaría, esencialmente, a Latinoamérica como episteme. Sin embargo, Polar falla al no mencionar la relevancia y reflexiones de las contribuciones africanas en el proceso de formación social, cultural y literaria peruana y de Latinoamérica. Por ello, el objetivo del presente estudio se centra en la relación del legado del pensamiento crítico de Antonio Cornejo Polar tomando como base las contribuciones afrodescendientes peruanas a partir de la obra de Nicomedes Santa Cruz (2000).

Palabras clave:
crítica literaria; cultura afrodescendiente; Nicomedes Santa Cruz

O legado crítico de Antonio Cornejo Polar

Para a crítica literária chilena Mabel Moraña, no prólogo do livro Escribir en el aire: ensayos sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas (2003), compilação de artigos do crítico literário Cornejo Polar, o projeto crítico do peruano teve importância ao tentar estimular a articulação de um projeto humanista latino-americano, integrando outras referências cosmogônicas ao centrar-se no dado nativo peruano. Ao priorizar a inclusão de gêneses e valores culturais nativos peruanos, o crítico literário transcendeu as diretrizes de valores canônicos universalistas investidos no continente e reafirmou a importância de um sistema de pensamento genuíno, autônomo e pautado por particularidades que deveriam compor a representação do que caracterizaria, essencialmente, a América Latina como episteme.

Uma das marcas importantes nas formulações de sua perspectiva crítica é o grau de relevância atribuído aos impactos coloniais no processo da vida intelectual na América Latina a partir da oralidade e ecologia cultural dos povos originários. Para Cornejo Polar, a relação entre os processos de formação crítica literária e cultural no continente não poderia estar dissociada de como se entendem as várias formas de compreender e promover a história, e também a antropologia, para que, assim, possa avaliar-se os impactos da Colonialidade no processo de formação das sociedades, e literaturas, latino-americanas sem desconsiderar a contribuição das estruturas cosmogônicas originárias.

A ideia de heterogeneidad cultural que se atribui a Cornejo Polar apoia o argumento de que valores binários institucionalizados pela colonialidade - Nós e Eles; Metropolitanos e Nativos; Civilização e Barbárie - responsáveis, inclusive, pelo processo de hierarquização cultural da América Latina, irresponsavelmente apriorísticos e insuficientes, além de refletirem o desconhecimento e importância das possibilidades interpretativas que integrariam o complexo mosaico cultural nativo latino-americano, atuavam com referências que possuíam, como base genealógica, valores e tradições de experiências civilizacionais distantes e incompatíveis com as dinâmicas dos processos civilizacionais na América Latina.

A intersecção entre as experiências ocidental e latino-americana mediada pelos intelectuais criollos1 1 Na historiografia a definição é divergente e varia conforme contexto e período. Por volta dos 1590 os espanhóis utilizavam o termo para referir-se aos os nascidos no Novo Mundo. No Brasil, durante os séculos XVII, XVIII e XIX o criollo, ou crioulo, referia-se aos escravos nascidos no Brasil para distinguir do nascidos na África. Na perspectiva linguística há o crioulo cabo-verdiano. Língua de base lexical portuguesa, exclusiva e originária no arquipélago é utilizada pelos descendentes em todo o mundo. No contexto caribenho, segundo a professora e pesquisadora Eurídice Figueiredo o termo, por força da reivindicação da língua crioula e da literatura oral, pode-se referir à cultura amalgamada do Caribe. A crioulidade seria uma “visão interior” da antilhanidade proposta por Edouard Glissant (1981), ou seja, se a antilhanidade é uma concepção geopolítica, a crioulidade visa a acentuar o aspecto mais cultural, mais antropológico, fundamentando-se nessa cultura popular tradicional crioula (contos, provérbios, ditos, cantos, adivinhas, expressos em língua crioula) que se quer resgatar através de uma escrita irrigada por ela. Há controvérsias sobre a crioulidade ser sinônimo de mestiçagem nas visões (BERNABÉ; CHMOISEAU; CONFIANT, 1989). Para o presente estudo o termo criollo foi abordado para tratar da influencia do imaginário europeu no processo de formação das letras e sociedade latino-americanas. apresentou uma síntese desfavorável às expressões das cosmogonias e cosmovisões ao Sul, uma vez que a ideia de universalidade tomava como critério referencial crítico as bases das experiências e valores construídos ao Norte articuladas e disseminadas pela letra, instrumentalidade parcial e símbolo de exclusão de culturas da otredad. Poderiam “coabitar entre si”, mas a prevalência das prerrogativas ocidentais, segundo Cornejo Polar (2000), ocasionaria violência retórica de modo a provocar ocultamento da relevância dos valores soberanos ancestrais dos nativos da periferia peruana. Zelar por uma expressividade emancipada e reconhecida dos nativos originários peruanos significaria contribuir para o fomento da maturação de um pensamento crítico mais participativo, representativo e, portanto, democrático - o que seria significativo para debater a “fissura” política e suturar a “ferida colonial” aberta por meio da representação literária e cultural genuína e alinhada às bases de um pensamento crítico ajustado. Isso significaria investir no exercício intelectual que se pretendia autônomo:

Frente a esse panorama, parece necessário reafirmar o caráter transitivo da crítica em relação à criação literária e à ininteligibilidade desta como categoria autônoma, desligada do processo histórico da cultura (que é - e agora se deve recair na evidência - um processo social concreto). Não se trata de sociologizar o conhecimento da literatura, e menos se por este caminho a literatura acaba sendo pouco mais que uma fonte de comprovações para teses já estabelecidas na explicação de um horizonte mais vasto, mas trata-se de evitar uma abstração ilegítima. A necessidade de evitar tal abstração é imperiosa na América Latina, não apenas porque qualquer purismo torna-se aqui, ante uma realidade cada dia mais hostil ao homem, uma gratuidade culpada, mas também porque a literatura latino-americana parece definir-se justamente pela peculiaridade de sua inserção numa sociedade igualmente peculiar, diferente, pelo menos se o termo de comparação é a literatura e a sociedade ocidental (CORNEJO POLAR, 2000CORNEJO POLAR, Antonio. O Condor voa: literatura e cultura latino-americana. Tradução de Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 332 p., p. 20-21).

A proposta de um pensamento, se não original, elaborado a partir de uma ótica periférica apresentando a ambivalência da modernidade em sua outra face, a colonialidade, segundo Cornejo Polar (2000CORNEJO POLAR, Antonio. O Condor voa: literatura e cultura latino-americana. Tradução de Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 332 p.), teria como objetivo reagir, do ponto de vista histórico e epistemológico, ao que se estabeleceu como diretriz universalista a partir de valores e critérios associados às extensões de um projeto que pretendia, além da ocupação do território americano, o sequestro dos significados e significantes de suas representações e expressividades cosmogônicas. O objetivo de Cornejo Polar não era exatamente contrapor-se ao modus operandi das tradições ocidentais que se assentaram e se desenvolveram em um projeto político via implementação cultural na colônia pela violência física, retórica e epistêmica, destacando as relações subjetivas de domínio, mas também apresentar contrapartida que legitima lucidez, consciência e representação de vida e expressão que se configuraria crítica e resistente.

Cornejo Polar reconhece a inevitabilidade dos avanços e presenças coloniais na América Latina. Seu pensamento reconhece a importância de firmar estratégias, pela crítica cultural e literária, de coexistência e diálogo a fim de garantir e proteger patrimônios culturais e estabelecê-los indelevelmente, pois a relação entre a modernidade e a colonialidade forja-se híbrida, mestiça, uma terceira via que para muitos provoca apagamentos de referências, tradições e ancestralidade em detrimento de circunstâncias políticas convenientes simulando uma unidade que o autor chamou de “totalidade contraditória” (CORNEJO POLAR, 2003CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Latinoamericana Editores, 2003. 242 p., p. 25).

Por meio do diálogo de experiências históricas peruanas, incluindo, aqui, o diálogo com as intervenções espanholas, demonstrou e problematizou o funcionamento de ressalvas e validades relacionadas ao caráter múltiplo-constitutivo dos estatutos socioculturais andinos que serviram de base para a reflexão sobre as múltiplas localidades culturais americanas que constituíam diversas outras Unidades dentro de uma Unidade. Unidade não apenas como síntese, mas, também, como forma a ser compreendida no cumprimento de rigores e representações ocasionadas pelos interesses e limites da compreensão, empatia e perversidade colonial. Isso significaria, em termos práticos, proposta de reescrita da historiografia e crítica literária e cultural ao tentar incluir outras referencialidades não admitidas pela empresa colonial. Isso significa propor a ressignificação dos rigores e implicações da história ocidental na América Latina. Cornejo Polar contribuiu para a construção histórica de um pensamento crítico que deveria perfilar-se dinâmico à suscetibilidade de fatos interdisciplinarmente capazes de gerar possibilidades históricas e críticas outras como eixo da atividade e representação legítima da cultura e literatura latino-americanas. De maneira efetiva, o dado contribui para a maturação dos estudos culturais na América Latina, que, desde os tempos coloniais, medeia a interpretação de sua História e Patrimônio a partir da articulação de mediadores outros, distantes, ocidentais. É na fissura interpretativa histórica dos fatos sobre o continente americano que se apresenta a relevância de seu projeto porque, desse modo, observam-se as contradições que comprometem a autonomia do seu registro e representação, e apresenta-se um intelectual latino-americano que, com propriedade, apresenta questões importantes e não efetivamente consideradas sobre sua própria história. Dessa maneira, deixa-se de contemplar o estatuto que estabelece, de maneira orgânica, os espectros definidores do que viria a ser compreendido como literatura latino-americana:

Esquecemos que a literatura é signo e que inevitavelmente remete a categorias que excedem: ao ser humano, à sociedade, à história; esquecemos, ao mesmo tempo, que a literatura é produção social, parte integrante de uma realidade e de uma história nunca neutras, e, talvez, por isso se omita toda referência contextual e todo o discernimento de valores. Falazmente eficaz, enredada na busca de sua “coerência interior”, cada dia mais esotérica e atomizada, a crítica imanente pressupõe em definitivo a renúncia a se entender a literatura como atividade concreta de homens concretos. Embora se possa discutir a conveniência de empregar seus métodos dentro de outro projeto crítico, como instrumentos de maneira a atingir um objetivo distinto, é pouco provável que assim se alcance algo mais que um ecletismo, em fim de contas, insatisfatório (CORNEJO POLAR, 2000CORNEJO POLAR, Antonio. O Condor voa: literatura e cultura latino-americana. Tradução de Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 332 p., p. 20).

O fato de os europeus não terem sido submetidos a um processo colonial, como foram submetidos os latino-americanos, e desconhecerem os desdobramentos que interfeririam no processo de desenvolvimento soberano civilizacional do continente aponta, naturalmente, para um caminho de maior abertura e compreensão dos projetos críticos de pensadores locais por aqueles que estranharem insurgência que também poderia ser compreendida como autonomia. A luta que justifica o embate por emancipação e afirmação de legitimidade das manifestações de seus pilares étnico-constitutivos, principalmente como pensamento, por parte dos latino-americanos é a demonstração vivencial que reverbera como fundamento ativo em favor da Liberdade e Democracia contra o racismo e intolerância das diferenças, inclusive, há séculos, também, no campo das Letras Periféricas. Principalmente porque se costuma atribuir como reivindicação menor e política costumeiras iniciativas ou planos sistêmicos que busquem reconhecimento isonômico na atribuição formal de valores e critérios de avaliação críticos equilibrados a partir de disposições dos projetos como “alternativas” frente ao universalismo de razões ortodoxas que ainda se apresentam a partir do conhecimento e multiplicação dos saberes críticos formais. Daí a necessidade de dispor de uma base de avaliação que tenha como protagonismo na avaliação de si um pensamento abalizado a partir das próprias vozes relacionadas como estrutura e embasamento, já que, antes, o consentimento de afirmar-se e avaliar-se a partir de critérios exógenos reiterou a constituição cultural e literária latino-americanas como extensão ou cópia imperfeita das insígnias europeias, e tornou desprovidos de validade e reconhecimento os latino-americanos.

Ceder à ideia de um projeto que lograsse um corpus unitário, absoluto, universal, por sua vez, implicaria em deixar de considerar fundamental a natureza heterogênea de processos históricos específicos que compõem a realidade das localidades americanas. Reconhecer as partes como distintas e complementares significa também reconhecer referências, agora unificadas pelo idioma espanhol, o que é representado como Unidade que se legitima sob preceitos de alteridades. Daí o enaltecimento e relevância de propostas que atestam até os dias de hoje o reconhecimento da complexidade de categorias críticas - transculturação, pluralidade, hibridismo - que supõem mais um exercício voluntário de elucidação e difusão que prognóstico para vivenciar as próprias maneiras de ler e considerar representações críticas culturais e literárias, já que

[...] un examen atento de la crítica hispanoamericana e hispanoamericanista última demonstraria que cada vez que asumimos como punto de partida que nuestra literatura es muchas literaturas entre sí imbricadas, y a vezes de manera belicosa, el pensamiento crítico encuentra caminos excepcionalmente creativos para dar razón no solo de la heterogeneidad de la literatura latinoamericana sino también de esas muchas - todas - las sangres que se entreveran entre nosostros, en nosostros, que tenemos como posibilidad de vivir [...] (CORNEJO POLAR, 1999aCORNEJO POLAR, Antonio. El lugar de la crítica: conservatorios y entrevistas. Lima: Latinoamericana Editores, 1999a. 417 p., p. 4).

O conceito de heterogeneidade cultural atribuído a Antonio Cornejo Polar por sua compreensão em relação à América Latina como Unidade Cultural Diversa deveria representar a síntese das preocupações dos estudos literários e críticos latino-americanos porque seria a representação viva da história e vida cotidiana dos latino-americanos. Tanto o Peru em especial quanto a América Latina como um todo são espaços marcados pelas contribuições das culturas indígenas, europeias e africanas que passaram a coexistir em um mesmo espaço e provocaram uma conflituosa e complexa relação histórica, política e cultural. No entanto, se a concepção de heterogeneidade cultural que comumente se aplica às literaturas e, segundo o próprio Cornejo Polar (2000, p. 12) se trata, “[...] em síntese, de um processo que tem ao menos um elemento que não coincide com a filiação dos outros e cria, necessariamente, uma zona de conflito”, o tratamento crítico deveria perceber que a zona de conflito pode ser provocada pela dificuldade em reconhecer uma das partes que integram a Unidade Diversa. Se a heterogeneidade

[...] reinvidica la heteróclita pluralidad que definiria a la sociedad y cultura nuestras aislando regiones y estratos énfasis en las abisales diferencias que separan y contraponen, hasta con beligerancia, a los varios universos socioculturales, y en los muchos ritmos históricos, que coexisten y se solapan inclusive dentro de los espacios (CORNEJO POLAR, 2003CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Latinoamericana Editores, 2003. 242 p., p. 16).

Demonstra contradições que devem ser consideradas. A seletividade representativa fere a integridade constitutiva, a Unidade que Diverge, de tal forma que os esforços da crítica literária deveriam estar concentrados na elucidação das contradições e não em suas reiterações. Se por um lado o postulado crítico de Cornejo Polar aponta para novas perspectivas para os estudos culturais e literários na América Latina, por outro não se desvinculou da tradição crítica anterior a ele. Apesar da lucidez sobre a concomitância e complexidade que envolvem os processos de formação cultural e literária cabe indagar os motivos que invisibilizam as contribuições dos afrodescendentes na historiografia e crítica literária latino-americanas. Assim sendo, ao negar a relevância do legado afrodescendente ao processo de formação da sociedade e literatura peruana, o projeto de Cornejo Polar confunde-se sobre a relação irrestrita que deveria haver em considerações sobre o que se apresenta e se notabiliza como heterogêneo e cultural. Apontamento este que não deveria, em nenhuma hipótese, desconsiderar outros tantos legados como um dos mais notáveis críticos literários latino-americanos.

Eugenismo como projeto romântico peruano

O eugenismo como projeto romântico peruano configura um debate que poderia tornar-se ostensivo à comunidade intelectual que, em tese, seria detentora da força política de legitimação e lucidez no entendimento dos fatos. Observa-se propósito resistente à insurgência de ideias com intenções de reformular cânones considerados assertivos à natureza da mestiçagem andina que, em contrapartida, alinhavam-se a um projeto interessado em manter-se ajustado às correntes intelectuais de procedência estrangeira. Isso significaria, na prática, a manutenção das perspectivas de hipóteses tradicionais ocidentais que encontravam no Peru filiações nas oligarquias letradas criollas que, apesar de minorias, constituíam autoridades e poderes de decisão e legitimação centrais na vida dos peruanos comuns. Uma linhagem que se respaldava em fundamentos de correntes positivistas/racialistas que, de maneira oportuna e conveniente, alegavam seus pressupostos como “científicos” e “consistentes” para manter e justificar uma matriz civilizatória de um projeto de nação sustentado na ideia de raça que se estendia desde os tempos dos primeiros contatos coloniais. Um agrupamento restrito de intelectuais peruanos esteve imbuído na ideia de uma possível viabilidade de projeto de nação fundamentado no que poderia ser compreendido como uma espécie de “higienização étnica”.

Uma das bases conhecidas foi a empreendida por Clemente Palma (1872-1946), que escreveu a tese El porvenir de las razas en Peru (1897), apresentada na Universidad Nacional Mayor de San Marcos para a obtenção do grau de bacharel em Letras. A tese reproduzia ideias do pensamento defendido por Gustave Le Bon, que, por sua vez, reiterava as ideias de Ernest Renan, Joseph Arhur Gobineau e Hippolyte Taine, representantes do racialismo francês. Palma (1897), na primeira seção, defendia que o gênero humano estaria dividido em raças que poderiam ser superiores, encaminhadas ao progresso e civilização, e inferiores, inúteis e imperfeitas. Por isso, desaprovava o “cruzamento” entre elas, por acreditar que o resultado seria o nascimento de um indivíduo “enfermo”. Na segunda seção, dedicada às etnias peruanas, afirmou que elas poderiam apresentar-se da seguinte maneira: índia, espanhola, negra, chinesa e mestiça. Defendia que a segunda era uma raça “nervosa”, ainda que superior, enquanto a primeira, a terceira e quarta eram inferiores, assim como a quinta, por resultar do “cruzamento” entre elas.

Detendo-se aos objetivos do trabalho, seguem as citações a respeito do entendimento de Palma (1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream...
) sobre a natureza dos negros, nas quais expressa o seguinte: “[...] la raza negra, raza inferior, importada para los trabajos de la costa desde las selvas feraces del Ãfrica [sic], incapaz de asimilarse a la vida civilizada, trayendo tan cercanos los activismos de la tribu y la vida salvaje” (PALMA, 1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
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, p. 7). E sobre a animalidade e racionalidade dos afrodescendentes, continuou: “[...] esa vida puramente animal del negro, ha anonadado completamente su actividad mental - si es que alguna vez la tuvo - haciendole [sic] inepto para la vida civilizada a que estamos acostumbrados” (PALMA, 1897, p. 21).

A respeito do que se entendeu como raça inferior sobre os africanos, sustentou que “La raza negra es más adaptable que la raza india, o mejor dicho, presenta menos resistencia a la acción civilizadora de las razas indoeuropeas” (PALMA, 1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
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, p. 22). Palma, talvez por acreditar que suas afirmações eram ponderadas, considerou aspectos subservientes como positivos nos negros, sem deixar, no entanto, de fazer observações contrapontuais aos “elogios” tecidos sobre generalizações de personalidade e comportamento com base no determinismo geográfico para explicar a sensualidade:

En lo que hace al carácter, el negro es fiel, es sociable y fanático; al mismo tempo es cobarde, rencoroso y sin energía. En la raza negra hay un elemento de degeneración que si no ha producido sus efectos es por naturaleza misma de la vida salvaje, que tonifica su organismo, y por su inactividad de su vida mental. Ese elemento es la sensualidad, la lujuria desmedida de esta raza, que tiene en su sangre los ardores de ese sol que calcina los desiertos (PALMA, 1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream...
, p. 22).

As noções defendidas por Palma radicalizam-se quando aborda a ideia central de sua tese sobre o porvir das raças no Peru, alegando que não seria exitoso. Deixa-se, nas entrelinhas, a impressão de um julgamento extensivo às aptidões para a subserviência das atividades coloniais. Nessa perspectiva, sobre os índios, afirmou que, pelos vícios de embriaguez e luxúria, estariam condenados por serem desprovidos de virtude. Sugere que se poderia exterminá-los, a exemplo dos Estados Unidos, anotando: “[...] pero ese medio es cruel, justificable en nombre del progreso, pero censurable en nombre de la filantropía y respeto a la tradición, algo arraigados ambos en el espíritu peruano” (PALMA, 1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream...
, p. 35).

Sobre os negros, ainda, rogou que desapareceriam por sucessivos processos de “embranquecimento”, o que contribuiria para diminuir o sangue africano, embora isso pudesse ser pensado em razão da tese negativa do “cruzamento”, algo que, no futuro, descredibilizaria o reconhecimento da civilização peruana. Os chineses, etnia considerada suja e perniciosa, desapareceriam por inaptidão às condições de organização peruana. A única etnia que poderia progredir seriam os criollos por sua aptidão administrativa, mas seria condenável insistir pela falta de vitalidade em atividades cotidianas. A solução, para Palma, seria o aperfeiçoamento da raça criolla. Assim, para ele seria justo e oportuno o investimento do encontro com os alemães, pois os germânicos possuiriam:

[...] admirables condiciones de energía, moralidad y orden la que crearía, al cruzarse con la criolla, una generación equilibrada, dorada de carácter, de menos sensibilidad pero con más respeto a la ley y al deber. Creo que el gobierno verdaderamente paternal, celoso para nuestra patria, será aquel que favorezca con toda amplitud la inmigración de esta raza viril, aquel que solicite la inmigración de algunos millares de alemanes, que pague a precio de oro esos gérmenes preciosos que han de constituir la grandeza futura de nuestra patria (PALMA, 1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
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, p. 39).

O que chama a atenção é que Clemente de Palma era filho do escritor Ricardo de Palma, autor do livro Tradiciones peruanas (1997PALMA, Ricardo. Tradiciones peruanas. Madri: ALLCA XX, 1997. 708 p.), lançado em 1872, reunindo relatos curtos de ficção histórica baseados em fatos verídicos, de maior ou menor importância, da vida comum peruana, pontuados por diversos momentos e publicados em diversos periódicos e revistas. Ainda que não se configurasse como fonte confiável de valor histórico, era estimado por seu estilo na escrita e intenção de registrar o valor dos hábitos e costumes peruanos. Tornou-se reconhecida obra no intento de afirmar o sentimento de “peruanidade” de maneira legítima, ou seja, a partir de manifestações espontâneas do povo, “alma de uma Nação”, e não por meio do pressuposto de raça. De maneira curiosa, Ricardo de Palma era filho de Pedro Palma, equatoriano e mestiço. Logo, Clemente de Palma, defensor de influentes teorias racialistas, pertencia a uma família de mestiços.

José Carlos Mariátegui, conhecido entre os peruanos como El Amauta, celébre autor da obra Siete ensayos de la interpretación de la realidad peruana (2007), em 1928 também apresentou ideias controversas a respeito do reconhecimento e representatividade do negro no Peru e pressupostos questionáveis sobre a interpretação da ideia de raça. No entanto, a força e reconhecimento original de sua obra mestra obscureceram possíveis polêmicas ao tornar o elemento indígena como protagonista de um projeto de representação nacional inconteste.

Ao analisar e prospectar a realidade econômica do Peru, El Amauta apresentou surpreendente adaptação dos pressupostos marxistas, relevando-se o contexto peruano e, mais especificamente, a condição indígena. Sugeriu que o “germe da revolução”, ademais do proletariado, poderia configurar-se por meio do campesinato indígena, haja vista seu protagonismo crescente na organização política do país e a referência da estrutura comunitária ayllu que pôde ser vislumbrada por Mariátegui (2007MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. 348 p.) como embrião de possíveis relações materiais que fundamentariam, em hipótese, a promissão de um Estado socialista indo-americano.

Para afirmar seu propósito, Mariátegui (2007MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. 348 p.) não tinha interesse em legitimar a síntese cultural do país representada pela figura do mestiço histórico. Talvez, por isso, considerou inoportunas comunidades étnicas outras, a exemplo do que mencionou Palma (1897PALMA, Clemente. El porvenir de las razas en Perú. Monografia (Bacharelado em Letras) - Facultad de Letras y Ciencias Humanas, Universidad Mayor de San Marcos, Lima, Peru, 1897. Disponível em: Disponível em: http://cybertesis.unmsm.edu.pe/bitstream/handle/cybertesis/338/Palma_c(1).pdf;jsessionid=29800C2C84BB77B5DB81AA1AFD6A47C1?sequence=1 . Acesso em: 18 mar. 2018.
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) a respeito dos negros e chineses. Acreditou que na costa o mestiço estaria influenciado pelas duas culturas mencionadas e tidas como inferiores pelo Amauta. Sobre os chineses afirmou: “El chino [...] parece haber inoculado en su descendencia, el fatalismo, la apatía, las taras del Oriente decrépito” (MARIÁTEGUI, 2007MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. 348 p., p. 341). Acusava-os de tornar possível na costa peruana o tráfico de ópio. E em relação aos africanos, expressou que:

[...] el aporte del negro, venido como esclavo, casi como mercenería, aparece más nulo y negativo aun. El negro trajo su sensualidad, su superstición, su primitivismo. No estaba en condiciones de contribuir a la creación de una cultura sino más bien de estorbarla con el crudo y viviente influjo de su barbarie (MARIÁTEGUI, 2007MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. 348 p., p. 342).

Assim, pelas circunstâncias, leva-se a acreditar que Mariátegui não era de posicionamento favorável a uma ampla cosmovisão peruana. Suas opiniões não divergem, em substância, das opiniões racialistas apresentadas por Clemente de Palma. Considerar o elemento afro como sujeito desprovido de racionalidade e que possui uma energia sexual excessiva apresenta-se como tópico recorrente, clichê, que torna emblemáticas e fundamenta afirmações racistas reproduzindo a dicotomia clássica Civilização versus Barbárie. No entanto, distantes das obviedades que se poderia supor, as razões que levam Mariátegui a rechaçar o negro distanciam-se da obviedade. A preocupação de Mariátegui é associar o negro, aprioristicamente, ao sistema escravista colonial peruano que os associaria aos brancos, o que contrariaria as pretensões analíticas de um projeto social autônomo disponibilizado no livro Siete ensayos de la interpretación de la realidad peruana (2007). O negro estaria associado ao projeto colonial espanhol e não seria clara a sua posição neste projeto. Na perspectiva de Mariátegui (2007), o negro seria, assim como o espanhol, estrangeiro, invasor e ameaça à integridade social peruana. É possível que El Amauta desconhecesse a resistência e luta dos negros contra os brancos por liberdade e autonomia. Em todo caso, em suas colocações, não estiveram previstos fracionamentos ou isonomias no que diz respeito às etnias peruanas ou qualquer outra ideia ou sujeito que pudesse comprometer o protagonismo indígena. Isso pode ser verificado na citação do Capítulo XVII, Las corrientes de hoy, no sétimo ensaio, intitulado El proceso de la literatura:

[...] porque una reivindicación de lo autóctono no puede confundir al zambo o al mulato con el índio. El negro, el mulato, el zambo representan nuestro pasado, elementos coloniales. El español importó al negro cuando sintió su imposibilidad de substituir al indio y su incapacidad de asimilarlo. El esclavo vino al Perú a servir los fines colonizadores de España. La raza negra constituye uno de los aluviones humanos depositados en la costa por el coloniaje. Es uno de los estratos, poco densos y flertes, del Perú sedimentado en la tierra baja durante el Virreinato y la primera etapa de la República. Y, en este ciclo, todas las circunstancias han concurrido su solidaridad con la Colonia [...] El mulato, colonial aun en sus gustos, inconscientemente está por el hispano, contra el autoctonismo. Se siente espontaneamente más próximo de España que al Incario. Solo el socialismo, despertando en él consciencia clasista, es capaz de conducirlo a la ruptura definitiva con los últimos rasgos de espíritu colonial (MARIÁTEGUI, 2007MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2007. 348 p., p. 290-291).

É curioso observar, ainda, que a figura de intelectuais como Mariátegui defendiam a natureza heterogênea da sociedade peruana, mas não admitiram reconhecer a contribuição afrodescendente no contexto peruano. Tratava-se da construção de uma ideologia marxista, anti-imperialista e crítica ao neocolonialismo que pretendia influenciar as relações de poder e tornar-se referencial na consolidação das desigualdades a partir da exclusão do negro no espectro civilizacional peruano. No entanto, vale salientar que o raciocínio desenvolvido a partir das posições de Palma e Mariátegui, bem como em relação às lacunas detectadas em Cornejo Polar, antecipa e legitima a perspectiva crítica de Nicomedes Santa Cruz como referencial de visibilidade, além de outras cimarronajes2 2 A palavra cimarrón foi utilizada em parte da América colonial espanhola para referir-se, como recorda a pesquisadora Denise de Almeida Silva (2016), não somente aos animais que, ao fugirem das fazendas, retornavam ao seu estado selvagem, mas, também, aos índios e negros que, individual ou coletivamente, rebelavam-se, quando escravizados, contra os senhores proprietários de leis, terras e gentes. O status de “propriedade foragida” quase sempre foi compreendido como afronta e/ou resistência à Empresa Colonial, consagrando autonomia aos cimarrones ao mesmo tempo que passaram a (con)viver em áreas recônditas para protegerem-se das várias formas de violência. A designação cimarrón para os negros fugitivos varia a partir dos locus de enunciação. Na Venezuela, por exemplo, eram chamados de cumbes; no Peru e Colômbia, palenques; no atual Suriname, antiga Guiana Holandesa, bush negroes; na Jamaica, Caribe inglês e sul dos Estados Unidos, marrons, enquanto que, no Caribe espanhol, principalmente, Cuba e Porto Rico, cimarrones, de acordo com o estudo do pesquisador Flávio dos Santos Gomes (2015). No Brasil, os agrupamentos cimarrones ficaram conhecidos como Mocambos e, posteriormente, Quilombos. Segundo Abdias do Nascimento, no livro Quilombolismo (2002), a palavra Mocambo, que provém do kimbundu e kicongo, línguas da África Central, originalmente chamava-se mukambu, e significava pau de fieira. Pau de fieira era um tipo de suporte com forquilhas utilizado para erguer choupanas nos acampamentos nômades africanos em tempos de guerra, principalmente no século XVII. Com o fortalecimento das movimentações dos escravizados, as acomodações denominadas mukambus transformaram-se em acampamentos que, de acordo com a etimologia yorubana, corresponde ao termo Kilombo ou Quilombo. Dito isso, Kilombo ou Cimarronaje, com o passar do tempo, foram reconhecidos como núcleos que se formavam no intuito de agregar e institucionalizar “clandestinamente” valores e indivíduos escravizados cujos interesses voltavam-se para o fortalecimento das diversas formas de sobrevivência e dignidade. Passou o tempo e hoje atribui-se aos termos um sentido de legitimidade da resistência às adversidades. Ao longo do processo de formação das sociedades da América Latina, a Cimarronaje fez com que o negro permanecesse, junto com suas histórias e tradições, isolado em espaços abstrusos e periféricos. Assim, de maneira gradual, o africano distanciou-se da condição de estrangeiro e passou a integrar uma nova realidade como cidadão comum ainda que marginalizado e, com isso, o sentido de resistência assumiu outras nuances ao reivindicar isonomia e outras legitimidades, socialmente mais participativas, distantes da fuga e isolamento. Desse modo, para o desenvolvimento do presente estudo, o conceito de Cimarronaje deixa de estar relacionado aos negros que resistem porque fogem para referir-se aos negros que resistem porque organizam e ressignificam suas ancestralidades e na “Cidade Letrada”(RAMA, 1985). Não há como reduzir esta nota. que provocaram fissuras nas pretensões de seu legado. Em razão das dificuldades em reconhecer as contribuições africanas para as hispanidades perdem-se contributos.

A Cimarronaje em Nicomedes Santa Cruz

O sociólogo peruano Aníbal Quijano, no livro Cuestiones y horizontes: de la dependencia historico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder (2014), mais especificamente no capítulo Dominación y cultura: notas sobre el problema de la participación cultural, alerta que o processo de constituição da força de domínio na América Colonial não se perfez tão somente por meio das relações materiais, mas, também, a partir de movimentos das relações intersubjetivas, sem deixar de considerar que ambas, materiais e intersubjetivas, se apresentam unas em dinâmica histórica e adjuntan intolerância e hierarquização de valores por meio de força e retórica como domínio pela burocratização na organização social da Cidade Letrada, o que justificaria o movimento da cimarronaje intelectual, ilustrado em suas perspectivas e experiências. É como se a cimarronaje utilizasse dos instrumentos de erudição e reflexão de suas vivências, assim como são articulados pela Cidade Letrada, para contestar a autoridade parcial que exclui a participação social ampla e democrática de grupos colonizados no processo de desenvolvimento social e cultural latino-americano.

Correlativamente, los elementos que corresponden a la “cultura” o “subcultura” de los grupos sociales dominados, por su carácter subordinado en el universo cultural de la sociedad, no tiene posibilidad de dessarollarse sino de modo limitado y vicário y de alcanzar niveles muy complejos de objetivación y formalización, mientras formen parte integrante de la “cultura de los dominados”. Esta limitación es reforzada por el hecho de que solo el acceso a la cultura dominante, en una sociedad de dominación, permite a los indivíduos el domínio de los instrumentos cognitivos indispensables para intentar la formalización y objetivación elaborada de sus vivencias y evidencias culturales. Es decir, permite la función intelectual propriamente tal (QUIJANO, 2014QUIJANO, Anibal. Cuestiones y horizontes: antología esencial de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014. 862 p., p. 675).

Isso significa dizer que as relações subjetivas empreendidas pela literatura e cultura, que também possuem raízes históricas e catalisam tensões de enfrentamentos de grupos sociais, que também são responsáveis pelas narrativas e versões da história, figuram como resultado-testemunho de desacordos das relações tensionadas. Logo, a dialética proposta por vozes dissonantes em tal processo, a exemplo do projeto crítico e criativo de Nicomedes Santa Cruz em sua cimarronaje, representaria alternativa legítima e necessária, por indicar “fissuras”, insuficiências de ações políticas excludentes, dispensando mediações, interessadas na visibilidade de suas próprias versões sobre os fatos. Portanto, o projeto crítico e criativo do poeta e ensaísta Nicomedes Santa Cruz não representaria tão somente uma via alternativa de ressignificação cultural a partir da presença e contribuição ancestral africana no Peru por meio de manifestações artísticas. Mais: empreenderia a revisão do que configuraria, ou incluiria, como base e parâmetro, a reescritura e dinâmica do processo de formação da sociedade peruana. Revisão que estaria disposta a discutir múltiplas referencialidades, ainda que deslocadas de legitimação e ocupação do espaço humano e democrático. Essa insurgência contribuiria para afirmar a produção e posição intelectual latino-americana e afrodescendente em diálogo com a produção e posição intelectual de outros espaços e naturezas no debate público.

A plataforma do projeto crítico e criativo do afro-peruano Nicomedes Santa Cruz contribuiu para fundamentar a articulação de vozes e manifestações culturais afro-peruanas encobertas por um projeto pós-colonial crioulo que desconsiderou a legitimidade expressiva da alteridade afro-peruana. Um projeto de nação parcial pensado a partir, tão somente, de anseios e propósitos elitistas alinhados à livre interpretação de valores e disposições racialistas eurocêntricas no século XIX, que desconsiderava a relevância das contribuições civilizacionais nativas e diaspóricas. Desse modo, nas suas possibilidades vivenciais de contribuição, Nicomedes Santa Cruz pretendeu qualificar reações às disposições de veto à cultura dos negros peruanos. Para dar consistência ao seu propósito, estabeleceu diálogo com as tradições de comunidades negras da região andina e projetos críticos de intelectuais renomados do século XX - Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Frantz Fanon, Nicolás Guillén e Manuel Zapata de Olivella, apenas para citar algumas das célebres referências - no propósito de validar essas contribuições no processo de formação das sociedades latino-americanas e tornar compreensíveis as estratégias políticas para emancipação da diversidade. Motivado por interseccionar relações locais e globais, investiu em temas como etnia, racismo e cidadania contra um projeto generalista excludente de nação que assolava a América Latina e buscou construir mecanismos de sensibilidades favoráveis ao desenvolvimento de um objetivo que não se limitou, a priori, a descolonizar, emancipar e valorizar a cultura afro-peruana, mas que, sobretudo, propunha um projeto de construção democrática de cidadanias étnicas igualitárias no Peru.

O projeto crítico-artístico de Nicomedes Santa Cruz situa-se em três perspectivas: 1) ampliar as dimensões e alcance de etnias diversas que conformariam o espectro social peruano contemporâneo e, no caso específico, relevar a atuação do elemento afro-peruano; 2) propor a revisão restrita de atuação dos gêneros literários ocidentais na educação literária peruana; e 3) incluir a contribuição africana à consciência real do processo de formação das literaturas e sociedade peruanas. A exemplo do que ocorreu na década de 50, a inclusão da literatura pré-colombiana na história oficial da literatura no Peru ganhou força nos movimentos responsáveis por transformações na maneira de compreender a influência do Ocidente na configuração da literatura peruana, embora excluísse outras manifestações, autênticas e espontâneas, que compunham a constituição do panorama social e cultural peruano. A ideia era, assim como o desdobramento e êxito da investida indígena, alcançar inclusão na proposição da comunidade imaginada, o que seria de suma importância, haja vista que, quanto mais amplo fosse o entendimento das representatividades étnicas peruanas, maior seria o fortalecimento das bases democráticas e expressivas do sentimento de “peruanidade”, como afirma o professor e pesquisador Carlos Orihuela (2009ORIHUELA, Carlos. Abordajes y aproximaciones: ensayos sobre literatura peruana del siglo XX (1950-2001). Lima: Hipocampo Editores, 2009. 184 p.) em seu livro Abordajes y aproximaciones: ensayos sobre literatura peruana del siglo XX (1950-2001). Especificamente no capítulo Dos aproximaciones a la poesía de Nicomedes Santa Cruz, assevera:

Esto, como es de suponer, le significó algunos desafíos de la sacralización de los géneros literários cultos, la identificación y educación de un público que reconociera la presencia negra y la aceptara como un componente más de la cultura nacional, y la generación de formas artísticas que a su vez materializaron vías inéditas y más efectivas para la difusión de esta “outra” escritura (ORIHUELA, 2009ORIHUELA, Carlos. Abordajes y aproximaciones: ensayos sobre literatura peruana del siglo XX (1950-2001). Lima: Hipocampo Editores, 2009. 184 p., p. 16).

Desse modo, o projeto de Santa Cruz insere-se de maneira oportuna a partir do debate sobre a certificação e reconhecimento das diversas vozes culturais peruanas.

No ensaio Identidad cultural y descolonización, Nicomedes Santa Cruz (2010SANTA CRUZ, Nicomedes. Identidad cultural y descolonización. In: CAMPOS, Jose; RESPALDIZA, Jose (comp.) Letras Afroperuanas. Creación y Identidades. Lima: Fondo Editorial del Congreso del Peru, 2010, p. 323-330 ) reflete que o problema que aflige o continente latino-americano estaria relacionado a encontrar o reconhecimento de si que o colonialismo escamoteou. Um entendimento que consistiria no esforço de reconhecer-se e compreender-se em cada parte em que a história autoriza elucidar dos fatos. A reflexão sobre as condições que permitem verificar as razões que ensejaram o extermínio dos índios, a discriminação dos negros e a exaltação da referencialidade unívoca dos brancos, criollos, poderia levar a questionamentos plausíveis sobre o sentido e a importância de pensar a pertinência de terminologias como Indo-América e Afro-América. Elas, para muitos, poderiam apresentar condições apriorísticas e excludentes, exclusivistas, mas também poderiam ser importantes para nos levar a pensar sobre a relevância de sua persistência, seja como espaço, sobretudo, narrativo, pois o ato narrativo, desprovido da pretensão absoluta de razão, promove categorias essenciais que não devem ser esquecidas. O negro e o índio não são conceitos e não poderiam ser escravos das arbitrariedades e da força que não permitiram a concessão da voz, da defesa e da inocência que representariam outras versões dos fatos que permeiam toda a narrativa-mundo e que no caso em específico permitiram pensar não apenas o Peru, mas, também, a América Latina em suas próprias dimensões frente à narrativa-mundo, como pode ser visto no trecho do poema América Latina:

Las mismas caras latinoamericanas de cualquier punto de América Latina Indoblanquinegros Blanquinegrindios Y Negrindoblancos Rubias bembonas Indios barbudos Y negros lacios Todos se quejan: -¡Ah, si en mi país no hubiese tanta política...! -¡Ah, si en mi país no hubiera gente paleolítica...! -¡Ah, si en mi país no hubiese militarismo, ni oligarquía ni chauvinismo ni burocracia ni hipocresía ni clerecía ni antropofagia... -¡Ah, si en mi país... (SANTA CRUZ, 2004aSANTA CRUZ, Nicomedes. Obras Completas II: investigación (1958-1991). Barcelona: Livros en Red , 2004b. 540 p., p. 319-320).

O pesquisador e crítico literário peruano Carlos Aguirre, no artigo Nicomedes Santa Cruz: la formación de un intelectual público afroperuano (2013AGUIRRE, Carlos. Nicomedes Santa Cruz: la formación de un intelectual público afroperuano. Revista Histórica, Lima, v. 37, n. 2. p. 137-168. 2013. Disponível em: Disponível em: http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/historica/article/view/10528 . Acesso em: 7 out. 2017.
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/hi...
, p. 2), relata que a história dos intelectuais no Peru no século XX, ao menos no que se refere às ideias e contribuições que estabeleceram com o poder político e institucional, excluiu de relevância as contribuições africanas, tal como aconteceu em diversos lugares da América Latina. Questionamento que, quase sempre, resvala em indagações em torno das razões que inviabilizaram suas visibilidades como educação. Uma recorrência que se observa no processo e motiva a atividade de intelectuais considerados ou situados como “periféricos” ou “revolucionários” pelo simples fato de colocarem em xeque políticas excludentes de valores culturais legítimos que deveriam integrar o projeto das nações latino-americanas. Os intelectuais afro-peruanos, como Nicomedes Santa Cruz, encontravam-se imersos em relação social de compadrio elitista (Cidade Letrada), acadêmico, que relegava ao segundo plano os saberes populares em detrimento de referencialidades e experiências humanas “exemplares” que não os legitimavam. Por essa razão, o afro-peruano Nicomedes Santa Cruz assume importância ao propor uma relação contrastiva entre a atuação do intelectual acadêmico e o intelectual “intuitivo” de origem, interesse e expressão popular. Nesta última categoria, estariam situados os pensadores afro-peruanos como criadores - músicos, poetas, culturalistas etc. - responsáveis pela observação, ressignificação da dinâmica que tornaria possível uma dinâmica cultural que (re)instrui e (re)define o indivíduo, no caso em específico, afro-peruano por excelência e não por definição estatutária. Isso implicaria numa “ameaça” na condução de políticas de educação que, invariavelmente, repercutiria na (re)discussão dos valores culturais e fundamentos críticos subsequentes a serem considerados na (re)escrita da história. Portanto, o que se pretende considerar no perfil cimarrón de Nicomedes Santa Cruz não é apenas o trajeto biográfico de um cimarrón, mas como opera, à revelia, a importância da intelectualidade de um afrodescendente ilustrado outsider.

Nicomedes Santa Cruz não foi apenas um homem que pensou a cultura afro-peruana. Ele a pensou e a vivenciou a partir de perspectiva (afro-)independente. Portanto, entender a poesia e o pensamento de Nicomedes Santa Cruz significa compreender como opera a liberdade, a operacionalidade da dissidência histórica em seus desdobramentos históricos, políticos e sociais. Cimarrones são descendentes de escravos, sim, e livres por decreto. No entanto, não poderiam ser mais livres, porque fugiriam ou estariam isolados. Livres, agora, porque pensam a respeito de si mesmos como individualidades e coletividade, evocando interesses comuns e necessários, diversos saberes convergentes, para a evolução de uma sociedade holística e democrática pela implementação e sistematização de uma crítica em construção. Nicomedes Santa Cruz escreveu ensaios, contos, poesias, teatro, gravou discos, dirigiu programas de rádio e televisão, participou de conferências internacionais, revelando que nos Andes também habitavam as contribuições africanas.

Nicomedes Santa Cruz nasceu em La Victoria, distrito operário, área de maior incidência de afro-peruanos em Lima, e lá conciliou o interesse pelos estudos culturais peruanos com as atividades como mecânico e eletricista para garantir sua sobrevivência. Graças ao estímulo e interesse de sua família pelas artes, principalmente, a música e os relatos orais da tradição cultural afro-peruana, que o fizeram pensar e ressignificar a tradição de uma cultura urbana negra a partir de manifestações tradicionais da cultura criolla estabelecida, considerada a matriz referencial da representação cultural peruana, apresentou a cultura afro-peruana que a contradizia e a denunciava como parcial e, logo, insuficiente. Um dos marcos nesse processo, ainda que de maneira inicial, foi a criação, em 1956, pelo dramaturgo, historiador e promotor cultural José Durand, um dos mentores de Nicomedes Santa Cruz, da companhia artística Pancho Fierro, que contribuiu para a percepção da importância da cultura serrana:

La compañía Pancho Fierro buscó mostrar esa convergencia entre lo negro y lo criollo a un círculo de consumidores predominantemente de clase media y alta, quienes podían ahora ver en escena lo que otros habían venido practicando y presenciando durante décadas y siglos en ámbitos más populares y privados. Criollos blancos como Durand, que habían desarrollado un gusto por los ritmos, tradiciones, instrumentos, bailes y voces negros, se reserbavan el derecho de decidir quién o qué era aceptable como manifestación de la cultura criolla. La compañía Pancho Fierro operaba bajo dichos parámetros. Por outro lado, esta incorporación de las tradiciones negras a la cultura criolla predominante tuvo lugar en un momento en el que la masiva migración de los Andes hacia Lima empezaba a transformar el paisaje humano y cultural de la capital, volviendolo cada vez más andino o, en el lenguaje de la época, serrano. Hasta cierto punto, la recuperación de una versión sanitizada de la cultura negra por los criollos blancos y mestizos puede ser vista como una manera de forjar una suerte de “bloque cultural” para defender la cultura costeña y criolla contra la invasión de los Andes. Al mismo tiempo, para algunos artistas negros, ser aceptados por sus homólogos criollos puede haber representado tanto una oportunidad para lograr un mayor reconocimiento como posibilidad de aceder a círculos culturales y sociales de los que estaban generalmente excluídos (AGUIRRE, 2013AGUIRRE, Carlos. Nicomedes Santa Cruz: la formación de un intelectual público afroperuano. Revista Histórica, Lima, v. 37, n. 2. p. 137-168. 2013. Disponível em: Disponível em: http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/historica/article/view/10528 . Acesso em: 7 out. 2017.
http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/hi...
, p. 9).

Em 1957, a companhia Pancho Fierro muda, por motivos relacionados aos objetivos do trabalho que ambicionava, para Ritmos Negros del Perú. Nesse contexto, Nicomedes Santa Cruz é contratado pela companhia e coube a ele escrever uma décima chamada Ritmos Negros del Perú. A poesia é emblemática por exaltar o espírito da insurgência/consciência artística, social e política do grupo, mas, ao mesmo tempo, foi responsável por apresentar o que seria a diretriz conceitual e temática que orientaria seu trabalho dali por diante.

De África llegó mi abuela vestida con caracoles, la trajeron lo’epañoles en un barco carabela. La marcaron con candela, la carimba fue su cruz. Y en América del Sur al golpe de sus Dolores dieron los negros tambores ritmos de la esclavitud. [...] Murieron los negros viejos pero entre la caña seca se escucha su zamacueca y el panalivio muy lejos. Y se escuchan los festejos que cantó en su juventud. De Cañete a Tombuctú, de Chancay a Mozambique llevan sus claros repiques ritmos negros del Perú. (SANTA CRUZ, 2004aSANTA CRUZ, Nicomendes. Obras Completas I: poesía. (1949-1989). Barcelona: Livros en Red, 2004a. 572 p., p. 33-34).

A motivação de Nicomedes Santa Cruz vinculou-se à referência de escritores negros integrados ideologicamente ao movimento da negritude, cujas figuras de maior visibilidade podem ser identificadas como o martinicano Aimé Césaire e o senegalês Léopold Sédar Senghor. A missão na qual esteve imerso Nicomedes Santa Cruz foi a da reabilitação da imagem e dignidade do negro ante a campanha de subalternização do escravismo colonialista recente. Para a pesquisadora peruana Martha Ojeda (2003OJEDA, Martha. Nicomedes Santa Cruz: ecos de Africa no Peru. Woodbridge: Tamesis, 2003. 216 p., p. 18), “la misión del poeta afroperuano fue reinvidicar la cultura africana y descartar los estereótipos negativos sobre el negro” e, por isso, “[...] en la maioria de sus poemas rescata el legado del afroperuano desde su llegada al Perú, y construye una imagen positiva del negro como ser humano” (OJEDA, 2003OJEDA, Martha. Nicomedes Santa Cruz: ecos de Africa no Peru. Woodbridge: Tamesis, 2003. 216 p., p. 18).

Apesar da boa experiência, em 1958 Nicomedes Santa Cruz deixa Ritmos Negros del Perú para fundar outra companhia, chamada Cumanana, com sua irmã, a atriz, poeta, coreógrafa, dançarina e ensaísta, Victoria Santa Cruz, na ambição de investir na recuperação das tradições musicais e artísticas a partir de uma visão, predominantemente, afro-peruana. Ainda que profícua, a relação promissora transformou-se em desavença e, em 1961, a parceria terminou. A desavença entre os irmãos aconteceu pela discrepância na maneira distinta entre ambos de entender o significado do que poderia ser o “resgate” que pretendiam. Nesse período, observou-se um Nicomedes voltado para a produção literária, jornalismo, fonografia e direção de programas de rádio e televisão, o que fez com que se visibilizassem suas ideias, propósitos e linguagem. O seu discurso não era acadêmico. Não poderia sê-lo porque não integrava o establishment, talvez por não ter o reconhecimento de títulos, já que não concluíra o que entre os brasileiros corresponderia ao ensino fundamental. No entanto, Nicomedes Santa Cruz havia sido instruído pelos círculos dos iniciados nas tradições holísticas afro-peruanas. Naturalmente motivado pela curiosidade, começou, de maneira intuitiva, a estabelecer conexões com contextos afro-culturais em regiões adjacentes a ponto de perceber que a negritude era uma realidade ampla e que outros negros enfrentavam problemas semelhantes aos que ele enfrentava no Peru. Com isso, percebeu que o reconhecimento ou validação das expressividades das tradições africanas era também um problema que se vinculava ao âmbito das esferas políticas, o que para ele apresentava-se estranho porque o que seria a América Latina se não resultado das equivalências e coexistências de diferenças culturais radicais? E essa seria a grande riqueza que constituiria o patrimônio latino-americano. Por que, então, estabelecer hierarquias valorativas para respaldar domínios políticos? No poema América Latina (SANTA CRUZ, 2004aSANTA CRUZ, Nicomendes. Obras Completas I: poesía. (1949-1989). Barcelona: Livros en Red, 2004a. 572 p., p. 339), deixa bem clara a maneira como compreendia a questão, ao se referir a todos os habitantes da América Latina como indoblanquinegros, blanquinegrindios e negrindoblancos. A condição social que separava os “dignos” e os “não dignos” o fez pensar como integracionista, cimarrón, como pode ser observado na Canción del hombre nuevo (2004aSANTA CRUZ, Nicomendes. Obras Completas I: poesía. (1949-1989). Barcelona: Livros en Red, 2004a. 572 p., p. 28):

Mi canción-protesta es para la Sierra donde el comunero No es dueño de la tierra [...] Campesino del Perú Proletário del Perú: tu martillo forma en cruz Con curva hoz Al son de este “festejo” Que es ritmo viejo del Hombre Nuevo, Sangre, sudor y fuego de un guerrillero Vibre en mi voz

Isso porque, talvez, a partir do processo de independência política peruana (1780-1821), a promessa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não fosse uma dádiva para todos. Havia os grupos excluídos, explorados pela colonialidade, e não devemos esquecer que não se pode dissociar tal exclusão da modernidade, que impulsionou uma ideia de república que não se apresentava como proposta aberta. A escravidão foi abolida, mas não as crenças racistas das elites políticas e econômicas que estavam à frente, mais uma vez, da proposição autorreferente de serem responsáveis por conduzir e organizar os povos. Desse modo, os criollos, naturalmente, tenderam a interpretar a modernidade como um ideal exclusivo dos grupos representantes dos valores da cultura ocidental. As instituições públicas imaginaram-se nações na América Latina como uma sociedade monocultural hispano-católica e, desse modo, como compreender e situar os que não pertencessem a essa ordem? A negritude de Santa Cruz ofereceu, com isso, uma alternativa ampla a constituir uma espécie de representação, identidade nacional pautada na realidade histórica etnoconvergente do Peru que poderia equilibrar e negociar o que até então era compreendido como ressalva ou casos excepcionais. Segundo o pesquisador peruano Luis Martín Valdiviezo Arista, no artigo Nicomedes Santa Cruz o el Perú desde la mirada de su negritud:

Además, la negritud de Santa Cruz ofreció una lectura alternativa de la identidad nacional y de las relaciones socio-culturales en el Perú. Él asumió la idea del mestizaje, pero con un sentido diferente al de los grupos criollos. La concepción criolla del mestizaje solo había aceptado el mestizaje biológico indígena-ibérico, pero no su mestizaje cultural y dentro de esta idea ha mantenido una visión colonial por la cual la cultura española ha sido la única promovida por el Estado. Además, el discurso criollo del mestizaje ha interpretado la existencia del mestizaje como un signo inequívoco de la inexistencia del racismo en el Perú. Santa Cruz vio que el mestizaje biológico estaba aún impregnado de creencias coloniales, ya que las relaciones personales entre las personas de diferentes grupos socio-culturales se han dado en el contexto social de la desigualdad de prestigio y poder entre sus respectivos grupos étnicos. Para él, la gran mayoría de grupos socio-culturales existentes en el Perú poseían un mestizaje biológico y cultural con una base común hispano-indígena-africana; pero debido a la subsistencia de categorías sociales coloniales los individuos tendían a proclamar sus raíces hispanas y a negar sus raíces indígenas y/o africanas (VALDIVIEZO ARISTA, 2017VALDIVIEZO ARISTA, Luís Martín. Nicomedes Santa Cruz o el Perú desde la mirada de su negritud. 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.cimarrones-peru.org/nicomedes.htm . Acesso em: 4 dez. 2018.
http://www.cimarrones-peru.org/nicomedes...
, p. 14).

Santa Cruz apresenta uma noção integracionista dentro do horizonte multiétnico latino-americano, o que leva a pensar sobre a (re)interpretação de um passado histórico em digressões e reivindicações de ajustes plausíveis na perspectiva retórica que, contraditoriamente, propõe como Liberdade, Igualdade e Fraternidade um nicho privilegiado que suplanta a autorreferencialidade como marca de distinção e política e que, inevitavelmente, interfere na maneira de se entender a poesia como representação do que poderia apresentar-se como “belo”.

A partir do momento em que a leitura e compreensão da poesia mestiça é feita por quem se reconhece irremediavelmente como mestiço, destaca-se não necessariamente um alinhamento, mas um reconhecimento de si, do outro e do espaço humano, político em sua diversidade. É nesse momento que se percebe que o conhecimento também opera nas margens. Deslocar o saber da centralidade das esferas elitistas é revolucionário e apenas desestabilizador se propõe hegemonia. A reação do racismo, nesse sentido, é uma resposta que se justifica apenas na manutenção de uma ordem que, independentemente da ordem política, artística ou social, apresenta-se de maneira incoerente, pois há vários modos de conceber o indivíduo e as racionalidades. A democracia não se resolve apenas na retórica dos doutos que apregoam direitos a esmo sem práxis. Os centros de difusão e legitimação dos saberes ainda nos dizem muito a respeito das desigualdades que não se limitam ao alcance do poder econômico, estendendo-se ao alcance das formas como se articulam autonomia e dignidade como patrimônios e ancestralidades que, para fazerem sentido, devem ser compreendidos como plurais.

Nuestra historia está en el nostálgico harawi que musitaba el secuestrado mitimae …en los cabildos de nación, en los palenques de cimarrones, en el capulli y la milpa, en el ayllu y la marka; y no en los tratados de antropología, etnología, etnografía, etnomusicología y etnohistoria de la biblioteca del señor rector universitario (SANTA CRUZ, 2004bSANTA CRUZ, Nicomedes. Obras Completas II: investigación (1958-1991). Barcelona: Livros en Red , 2004b. 540 p., p. 232).

Santa Cruz opera sua capacidade intelectual, à revelia de reconhecimentos como tais, em perspectiva cimarrona, como autonomia que se inscreve a contrapor os desmandos da modernidade, motivado pela aspiração humana de alcançar e ampliar sua própria liberdade. O reconhecimento e a articulação de seus próprios saberes, imersos em sua poesia, ensaística, teatro e composições musicais, são, ainda, uma resistência ao colonialismo do imaginário da Cidade Letrada.

Referências:

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    Na historiografia a definição é divergente e varia conforme contexto e período. Por volta dos 1590 os espanhóis utilizavam o termo para referir-se aos os nascidos no Novo Mundo. No Brasil, durante os séculos XVII, XVIII e XIX o criollo, ou crioulo, referia-se aos escravos nascidos no Brasil para distinguir do nascidos na África. Na perspectiva linguística há o crioulo cabo-verdiano. Língua de base lexical portuguesa, exclusiva e originária no arquipélago é utilizada pelos descendentes em todo o mundo. No contexto caribenho, segundo a professora e pesquisadora Eurídice FigueiredoFIGUEIREDO, Euridice. Construção de Identidades Pós-Coloniais na Literatura Antilhana. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1998. o termo, por força da reivindicação da língua crioula e da literatura oral, pode-se referir à cultura amalgamada do Caribe. A crioulidade seria uma “visão interior” da antilhanidade proposta por Edouard Glissant (1981GLISSANT, Édouard. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981.), ou seja, se a antilhanidade é uma concepção geopolítica, a crioulidade visa a acentuar o aspecto mais cultural, mais antropológico, fundamentando-se nessa cultura popular tradicional crioula (contos, provérbios, ditos, cantos, adivinhas, expressos em língua crioula) que se quer resgatar através de uma escrita irrigada por ela. Há controvérsias sobre a crioulidade ser sinônimo de mestiçagem nas visões (BERNABÉ; CHMOISEAU; CONFIANT, 1989BERNABE, Jean; CHAMOISEAU, Patrick; CONFIANT, Raphaël. Éloge de la créolité. Paris: Gallimard, 1993. ). Para o presente estudo o termo criollo foi abordado para tratar da influencia do imaginário europeu no processo de formação das letras e sociedade latino-americanas.
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    A palavra cimarrón foi utilizada em parte da América colonial espanhola para referir-se, como recorda a pesquisadora Denise de Almeida Silva (2016SILVA, Denise Almeida. Quilombolismo/Maroonage. Revisões da Escravidão e o Ideal Libertário na Literatura Negra Contemporânea das Américas. In: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA (ABRALIC), 15., 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UERJ, 2016, p. 6538-6546. ), não somente aos animais que, ao fugirem das fazendas, retornavam ao seu estado selvagem, mas, também, aos índios e negros que, individual ou coletivamente, rebelavam-se, quando escravizados, contra os senhores proprietários de leis, terras e gentes. O status de “propriedade foragida” quase sempre foi compreendido como afronta e/ou resistência à Empresa Colonial, consagrando autonomia aos cimarrones ao mesmo tempo que passaram a (con)viver em áreas recônditas para protegerem-se das várias formas de violência. A designação cimarrón para os negros fugitivos varia a partir dos locus de enunciação. Na Venezuela, por exemplo, eram chamados de cumbes; no Peru e Colômbia, palenques; no atual Suriname, antiga Guiana Holandesa, bush negroes; na Jamaica, Caribe inglês e sul dos Estados Unidos, marrons, enquanto que, no Caribe espanhol, principalmente, Cuba e Porto Rico, cimarrones, de acordo com o estudo do pesquisador Flávio dos Santos Gomes (2015GOMES, Flavio dos Santos. Mocambos e Quilombos: Uma História do Campesinato Negro no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.). No Brasil, os agrupamentos cimarrones ficaram conhecidos como Mocambos e, posteriormente, Quilombos. Segundo Abdias do Nascimento, no livro Quilombolismo (2002NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. 2 ed. Brasília: Fundação Cultural Palmares; Rio de Janeiro: O.R. Editora, 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.abdias.com.br/movimento_negro/quilombolismo.htm . Acesso em: 19 abr. 2018.
    http://www.abdias.com.br/movimento_negro...
    ), a palavra Mocambo, que provém do kimbundu e kicongo, línguas da África Central, originalmente chamava-se mukambu, e significava pau de fieira. Pau de fieira era um tipo de suporte com forquilhas utilizado para erguer choupanas nos acampamentos nômades africanos em tempos de guerra, principalmente no século XVII. Com o fortalecimento das movimentações dos escravizados, as acomodações denominadas mukambus transformaram-se em acampamentos que, de acordo com a etimologia yorubana, corresponde ao termo Kilombo ou Quilombo. Dito isso, Kilombo ou Cimarronaje, com o passar do tempo, foram reconhecidos como núcleos que se formavam no intuito de agregar e institucionalizar “clandestinamente” valores e indivíduos escravizados cujos interesses voltavam-se para o fortalecimento das diversas formas de sobrevivência e dignidade. Passou o tempo e hoje atribui-se aos termos um sentido de legitimidade da resistência às adversidades. Ao longo do processo de formação das sociedades da América Latina, a Cimarronaje fez com que o negro permanecesse, junto com suas histórias e tradições, isolado em espaços abstrusos e periféricos. Assim, de maneira gradual, o africano distanciou-se da condição de estrangeiro e passou a integrar uma nova realidade como cidadão comum ainda que marginalizado e, com isso, o sentido de resistência assumiu outras nuances ao reivindicar isonomia e outras legitimidades, socialmente mais participativas, distantes da fuga e isolamento. Desse modo, para o desenvolvimento do presente estudo, o conceito de Cimarronaje deixa de estar relacionado aos negros que resistem porque fogem para referir-se aos negros que resistem porque organizam e ressignificam suas ancestralidades e na “Cidade Letrada”(RAMA, 1985RAMA, Ángel. A Cidade das Letras. Trad. Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1985.). Não há como reduzir esta nota.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2022
  • Aceito
    30 Abr 2022
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