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Sismos e réplicas na escrita de Villoro: entre 8.8 e El vértigo horizontal

Seisms and their replicas in Villoro’s writings: between 8.8 and El vertigo horizontal

Resumo

A figuração do sismo (e de suas réplicas) é recorrente na escrita do mexicano Juan Villoro, perpassando crônicas, romances e ensaios nos quais a iminência do fim e a dádiva fortuita da provisória sobrevivência tornam-se objetos de uma meditação que entrelaça literatura, memórias individuais, experiências coletivas e comunitárias, ética e política. O texto aborda dois de seus livros nos quais os tremores ganham centralidade: 8.8. El miedo en el espejo (2010) - “crônica em fragmentos” escrita após ter vivenciado o terremoto do Chile de 2010, no qual reverbera, por sua vez, o terremoto mexicano de 1985 - e El vértigo horizontal. Una ciudad llamada México (2018) - livro dedicado à cidade do México, concluído com um fragmento sobre o último tremor ocorrido na capital, em 2017, e uma litania originariamente publicada dois dias depois dessa (provisoriamente) última catástrofe. Conexões metafóricas do evento sísmico com o literário, o político e as possibilidades de vida em comum são explorados ao longo da leitura.

Palavras-chave:
literatura; catástrofes; Juan Villoro; crônica

Abstract

The representation of earthquakes (and its aftershocks) is a recurring theme in Juan Villoro’s writings. This theme is present in his chronicles, novels and essays in which the imminence of the end and the fortuitous gift of momentary survival trigger meditations that intertwine literature, personal memory, collective and community experience, ethics and politics. This paper discusses two of Villoro’s books in which earthquakes take centre stage. The first one is 8.8 El miedo en el Espejo (2010), “a fragmented chronicle” written after the author experienced the Chilean earthquake of 2010, which also echoes the Mexican earthquake of 1985. The second book, Horizontal Vertigo: A City Called Mexico (2018), is dedicated to Mexico City and ends with a fragment about the last quake to jolt the capital in 2017 and with a litany, originally published two days after this last (at the time) catastrophe. Metaphoric connections between the seismic events and the literary, the political and the possibilities of life in common are explored throughout the paper.

Keywords:
literature and catástrofe; Juan Villoro; chronicle

Resumen

La figuración del sismo (y de sus réplicas) es recurrente en la escritura del mexicano Juan Villoro y atraviesa crónicas, novelas y ensayos en los cuales la inminencia del fin y la dádiva fortuita de la provisional sobrevivencia se tornan objeto de una meditación que entrelaza literatura, memorias individuales, experiencias colectivas y comunitarias, ética, política. El texto aborda dos de sus libros en los cuales los tremores cobran centralidad: 8.8. El miedo en el espejo (2010) - “crônica en fragmentos” escrita luego de haber vivido el terremoto de Chile del 2010 en la cual reverbera, a su vez, el terremoto mexicano de 1985 - y El vértigo horizontal. Una ciudad llamada México (2018) - libro dedicado a la ciudad de México que concluye con un fragmento sobre el último tremor ocurrido en la capital en el 2017 y con una letanía originalmente publicada dos días después de esa (provisoriamente) última catástrofe. Conexiones metafóricas del evento sísmico con lo literario, lo político y las posibilidades de vida en común son exploradas a lo largo de la lectura.

Palabras clave:
literatura y catástrofes; Juan Villoro; crónica

I

Em 27 de fevereiro de 2010, a capital do Chile e a cidade de Concepción, alguns quilômetros ao sul, sofreram um dos terremotos de maior intensidade registrados até o presente: 8.8 na escala de Richter. Esse não foi o último dos sismos que sacodem periodicamente o continente, em especial na região do pacífico, afetando áreas importantes da Califórnia próximas da falha de Santo André, o território mexicano em quase toda sua extensão, a América Central e, no cone sul, principalmente o Equador, o Peru e o Chile.

Uma vasta literatura (bem com outras produções culturais, dentre as quais se pode mencionar o clássico cinema de catástrofe hollywoodiano) está associada a essa vivência da iminência do fim. Gostaria de explorar nesta ocasião dois títulos do escritor mexicano Juan Villoro (1956) nos quais reverberam uma série de catástrofes dentre as quais não excluo (afinal, toda leitura é afetada pelo presente) a que nos cabe viver. Refiro-me aos livros 8.8 El miedo en el espejo, lançado em 2010, e El vértigo horizontal. Una ciudad llamada México, de 2018. O primeiro deles foi escrito após sofrer o terremoto do Chile - onde Villoro se encontrava, em fevereiro de 2010, participando de um congresso de Literatura infantojuvenil - e ecoa um terremoto anterior, o ocorrido no Distrito Federal em 1985, o mais devastador verificado até hoje.1 1 A denominação oficial da capital do México foi Distrito Federal até o ano de 2016, quando passou a fazer parte dos Estados Unidos Mexicanos na condição de estado número 32, adquirindo novos direitos políticos tais como possuir uma Constituição própria. Juan Villoro foi um dos conselheiros responsáveis pela elaboração da mesma. O segundo livro, dedicado à Cidade do México - onde Villoro, atualmente com 65 anos, nasceu, cresceu e ainda mora -, é concluído com um fragmento sobre o último sismo ocorrido nessa capital no ano de 2017, uma “litania” originariamente publicada em sua coluna do jornal Reforma dois dias depois dessa “última” (provisoriamente última) catástrofe. Parafraseando o historiador da arte Argullol (1996ARGULLOL, Rafael. El cazador de instantes: cuaderno de travesía 1990-1995. Barcelona: Ediciones destino, 1996. 136 p., p. 32), diria que “todos los paisajes que nos sugieren el fin del mundo también nos sugieren su comienzo”2 2 Todas as paisagens que nos sugerem o fim do mundo também nos sugerem o seu começo (tradução minha). ou, quem sabe, ao menos, seu incessante recomeço, enquanto houver mundo.

Começo fazendo alguns comentários úteis para o percurso que proporei a seguir. Em primeiro lugar, gostaria de lembrar a clássica distinção entre desastres (eventos naturais) e catástrofes (desastres que contam com a colaboração da ação humana ou são agravados por ela). Espécie fazedora de catástrofes que somos (mas não só), dificilmente poderíamos afirmar que exista hoje algum flagelo natural. Em segundo lugar, gostaria de reter a ideia de Susan Sontag (2003SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 112 p.) sobre nossa condição de espectadores de calamidades como experiência intrínseca da modernidade, vertiginosamente exacerbada no contexto da globalização, da indústria cultural, das redes. Porém, mais do que sermos observadores de catástrofes, vivemos imersos em narrativas que as constroem e as explicam, fazendo de toda referência às mesmas uma formação discursiva na qual se encenam perspectivas, reverberam catástrofes anteriores e se instituem jogos expressivos ou sentidos inesperados.3 3 Como assinala Coronel Morales (2020) ao resgatar a etimologia do termo catástrofe a partir das considerações de Calero, a palavra associa as expressões gregas katastrophe (torção, troca ou mudança de posição) e katastrepho (retornar). Assim: “Se podría entender entonces como “volver inesperadamente” sobre el pasado, pensando que “ese retorno imprevisto” comprende necesariamente una vuelta o, en otras palabras, un giro del destino sobre lo pensado, creado y construido por el hombre a lo largo del tiempo” (2020, p. 40). Poderia ser entendido, então, como um “voltar inesperadamente” sobre o passado, pensando que “esse retorno imprevisto” compreende necessariamente uma virada ou, em outras palavras, uma viravolta do destino sobre o pensado, criado e construído pelo homem ao longo do tempo.

Apesar da drástica intensificação desse fenômeno nas últimas décadas, ele não é inédito. Nesse sentido, gostaria de lembrar, ainda, de um terremoto ocorrido do outro lado do Atlântico vários séculos antes dos terremotos a serem examinados aqui, o qual propiciou debates filosóficos, nutriu textos literários, acarretou reformas urbanísticas e abriu caminho à sismologia moderna: o terremoto de Lisboa de 1755. Contra as teses dos filósofos otimistas, como Leibniz, segundo os quais o mundo criado se organizava conforme a providência, Voltaire escreve o Poema sobre o desastre de Lisboa (1756VOLTAIRE - O Poema sobre o Desastre de Lisboa. Tradução de Vasco Graça Moura. Lisboa: Alêtheia Editores, 2013. 68 p.) um ano após o sismo, questionando essa hipotética harmonia preestabelecida.4 4 Há uma edição bilíngue do poema Desastre de Lisboa, com tradução para o português, de Vasco Graça Moura (2013). Quatro anos mais tarde, publica Cândido ou o otimismo (1759), texto satírico-filosófico no qual torna a evocar o sismo de Lisboa, denunciando o fatalismo e a inação aos quais pode conduzir a filosofia providencialista5 5 Cf. Candido ou o otimismo (São Paulo: Penguin Companhia, 2012); trad. de Mário Laranjeira. (cabe frisar que essa catástrofe está longe de ser o único pano de fundo da escrita do livro: há outros tremores - perseguições, encarceramentos, perdas pessoais, exílio - na vida de Voltaire ao longo do período). Por volta de 1814, GoetheGOETHE -. Memórias: poesia e verdade. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1971; São Paulo: Hucitec, 1986. 2 v. conclui suas memórias nas quais também evoca o terremoto de Lisboa.6 6 Existem várias edições disponíveis em português: Memórias: poesia e verdade, 2 v. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, tradução de Leonel Vallandro; a mesma tradução publicada pela editora Hucitec em 1986 e a recente De minha vida: poesia e verdade. São Paulo: Editora da Unesp, 2017, tradução Mauricio Mendonça Cardozo. Embora o escritor tivesse somente seis anos de idade quando o fato ocorreu, a meditação sobre suas consequências morais e sociais, bem como sobre a incapacidade dos pensadores-teólogos em propor explicações convincentes, levam-no a problematizar o aprendizado religioso da infância. À mesma época, em 1807, outro escritor alemão, Heinrich Von Kleist, publicava o primeiro volume de suas Fábulas morais contendo, dentre outras, a narrativa intitulada O Terremoto no ChileKLEIST, Heinrich Von. O Terremoto no Chile. In: KLEIST, Heinrich Von. Novelas. São Paulo: Melhoramentos, s.d. 222 p., 7 7 Cf. O terremoto do Chile, em Novelas (São Paulo: Melhoramentos, s.d). ficção que convida a cruzar outra vez o mar e retornar ao ponto de partida: a cidade de Santiago e o livro de Villoro sobre o tremor de 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., texto que, por sua vez, inclui um ensaio sobre a fábula moral de Kleist intitulado La abolición del azar (A abolição do acaso). As réplicas da vivência da indeterminação, do imprevisível, do sem sentido, abrem uma falha como a de Santo André que não volta a se fechar, retirando a firmeza das crenças e do solo em que se anda. Mas não cancelam, dois séculos depois, as interrogações nem os dilemas éticos implicados cada vez que, provisoriamente, o mundo não acaba.

II

Feita essa digressão preliminar, assinalo alguns traços de 8.8 El miedo en el espejo não sem antes frisar que, embora os tremores de terra viessem se insinuando em escritos anteriores do autor (por exemplo, nas Crónicas imaginariasVILLORO, Juan. Crónicas imaginarias. México: Fondo de Cultura Económica, 1986., publicadas em 1986, que acabam na véspera do terremoto mexicano de 1985, ou em seu romance, Materia dispuestaVILLORO, Juan. Materia dispuesta. México: Alfaguara, 1996. 312 p., de 1997, que encerra com o protagonista andando pela rua quando a terra começa a se mexer, outra vez em 1985), é somente no livro de 2010 que, pela primeira vez, a vivência do sismo e a iminência do fim ganham centralidade num texto manifestamente heterogêneo do ponto de vista dos gêneros que o integram (outra característica já presente, sobretudo nas crônicas e ensaios de Villoro, mas que aqui se radicaliza).8 8 Sobre esse livro e suas características ver o artigo de minha autoria (GÁRATE, 2016, p. 275-300). A obra 8.8. El miedo en el espejo não é nem uma reportagem sobre o terremoto ocorrido no Chile em 2010 - apesar da presença de estratégias filiadas ao jornalismo investigativo - nem um testemunho individual, dado que se recolhem e transcrevem múltiplas vozes em suportes variados. Tampouco é uma autobiografia, apesar das constantes rememorações pessoais. Não é um ensaio literário, embora inclua um ensaio dedicado à ficção de Kleist, como acabo de mencionar, nem é um ensaio sociológico, embora a passagem que leva o título de Los habitantes de Claustrópolis se aproxime desse formato ao convocar as reflexões de Paul Virilio sobre velocidade, tecnologias e desastres, ou do antropólogo Robin Durban sobre as relações entre a extensão das redes e as faculdades relacionais de nossa espécie. Rejeitando fixar-se em quaisquer uma dessas zonas discursivas, deslocando-se de uma a outra, Villoro produz um discurso instável, movediço do ponto de vista das formas, dos sujeitos enunciativos, das coordenadas espaço-temporais, o qual define como uma “crônica em fragmentos” (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 20). Seria possível dizer, então, que a estrutura do livro espelha ou “replica” (conforme o sentido que o termo possui em sismologia) alguns traços do terremoto,9 9 Em sismologia são consideradas réplicas os tremores de grau diverso que ocorrem depois do sismo principal e nos quais este, de alguma forma, desdobra-se. oferecendo ao leitor uma série de estilhaços esparsos que não almejam uma recuperação integral da experiência vivida, nem uma explicação totalizadora. E, no entanto, trata-se de um livro muito calculado na disposição dessas lascas, das diferentes vozes e tons, das figuras nas quais cristalizam recordações, afetos, incertezas, devires da subjetividade e do comum/compartilhado.

Posto isso, menciono alguns exemplos. O Prólogo, cujo subtítulo é Un modo de dormir, começa com a evocação do pai de Villoro, alguém que a vida toda usou pijama e já perto dos 90 anos veste essa roupa com mais frequência ainda “em seus ocasionais quartos de enfermo”. Esse detalhe, em princípio distante e fortuito, dá lugar a uma deriva associativa: roupa de crianças ou de velhos, o pijama é objeto de drástica repulsa durante a juventude e a vida adulta do escritor. Banido do próprio guarda-roupa, esquecido, ressurgirá, porém, inesperadamente no momento em que a terra começa a se mexer em Santiago e os hóspedes do hotel, no qual está alojado Villoro, fogem em direção à rua - quase todos, de pijama. No Prólogo, então, trata-se de uma figura da decrepitude ou da infância; durante o sismo de 2010, de uma irrupção intempestiva que abre a possibilidade de outras correlações e sentidos. O que faz com que o pijama torne a aparecer no Epílogo, no qual o autor nos diz que, ao regressar ao México, decide escrever um conto para a filha de 10 anos (lembro que Villoro é um notável praticante do gênero) em que narra a história de um gigante temeroso de não poder proteger a própria filha - e no último instante decide pôr um pijama no personagem. Essa questão retorna ainda uma derradeira vez no fim do livro, quando Villoro ganha um pijama de presente de uma editora amiga, que também esteve no congresso do Chile, e da qual ele lembra, na rua, entre cacos de vidro, vestindo um belo pijama listrado. Se pensarmos que Villoro tinha 54 anos quando foi surpreendido pelo sismo, o deslizamento significante poderia ser lido como figuração dos estremecimentos internos implicados no trânsito da maturidade à velhice, da função filial à paterna e desta à idade em que o pai se torna o filho do filho. O Prólogo evoca a imagem de si mesmo como infans e do pai como um grandalhão (um gigante) de pijama que faz tremer a terra com seus passos: é essa a primeira lembrança de um sismo que o escritor diz/inventa ter tido. O Epílogo mostra um pai que escreve um conto sobre um gigante inseguro, mas que persevera em dar amparo. Em outras palavras, pode ser lido como uma aceitação tanto da fragilidade da existência quanto da senectude que se aproxima. Mas também, na contracorrente, da possibilidade de “amadurecer em direção à infância” que a literatura proporciona (o oxímoro é dele, não meu).

Cito, ainda, outro jogo de ressonâncias entre segmentos, aparentados, neste caso, por sua estrutura plural, pela montagem e pela orquestração de testemunhos. A terceira parte do livro - ¿Aquí hay temblores, no?” Premoniciones - apresenta um conjunto múltiplo de cenas da iminência: a escritora mexicana com capacidades preditivas que na noite do terremoto decide não dormir e fica sentada na cama à espera de que algo aconteça; o amigo de juventude de Villoro, também participante do congresso e também “psíquico”, que tropeça numa rua de Santiago nessa tarde e repentinamente pergunta: “Aqui há tremores, não é?”, trecho que origina o título do segmento; o filho biólogo do escritor chileno Antonio Skarmeta que nota um calor estranho subindo da terra e repara na água começando a vazar da piscina; o filho de um jovem casal chileno cujo hamster foge da gaiola no meio da noite e começa a cavoucar no canto do quarto fazendo com que o menino exclame: “o hamster ficou doido, virou uma topeira”, etc., etc., etc. Trata-se de uma constelação de micronarrativas que têm como função criar a atmosfera da catástrofe por vir (embora essa já tenha ocorrido desde a primeira linha do livro) e ao mesmo tempo congregar essa pequena comunidade latino-americana de congressistas que ficam encalhados e parcialmente incomunicáveis por vários dias na capital chilena. Replicando (duplicando e respondendo a essa estrutura) a sétima parte do livro - “Estoy acá”. “¿Acá dónde?” - põe o leitor em contato com um conjunto de twits, mensagens de texto de celular, diálogos ouvidos no lobby do hotel ou na rua, fragmentos de crônicas redigidas por colegas pouco depois do tremor. Em suma, com uma constelação de vozes e situações que correspondem e respondem à terceira parte do livro.

Outro exemplo de fragmentariedade e relação pode ser percebido no quarto segmento, que leva o título de Lo sucedido, em que prevalece o informe neutro, a cifra, o “linguajar” científico:

A las 3.34 de la mañana del 27 de febrero de 2010 Chile sufrió un terremoto de magnitud 8.8 en la escala de Richter.

El sismo modificó el eje de rotación de la tierra y el día se acortó en 1,26 microsegundos.

La ciudad de Concepción de desplazó 3,04 metros hacia el oeste, en dirección al mar. Santiago se desplazó 27,7 centímetros. Los GPS tendrán que ser ajustados para reubicar estas ciudades movedizas (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 41).10 10 Às 3.34 da manhã do 27 de fevereiro de 2010 o Chile sofreu um terremoto de magnitude 8.8 na escala de Richter. O sismo modificou o eixo de rotação da terra e o dia se encurtou 1,26 microsegundos. A cidade de Concepción se deslocou 3,04 metros para o oeste, em direção ao mar. Santiago se deslocou 27,7 cm. Os GPS terão que ser reajustados para relocalizar essas cidades movediças (tradução minha).

No seguinte, contrastando com essa dicção impessoal, se re-narra a experiência a partir de um eu que experimenta El gusto de la muerte, título eloquente do quinto fragmento:

Los mexicanos tenemos un sismógrafo en el alma, al menos los que sobrevivimos al terremoto de 1985 en el Distrito Federal. Si una lámpara se mueve, nos refugiamos en el quicio de una puerta. Esta intuición sirvió de pouco el 27 de febrero.

A las 3.34 de la madrugada, una sacudida me despertó en Santiago. Dormía en un séptimo piso; traté de ponerme en pie y cai al suelo. Fue ahí donde en verdad desperté. Hasta ese momento creía que me encontraba en mi casa y quería ir al cuarto de mi hija. Sentí alivio al recordar que ella estaba lejos.

Durante minutos eternos (siete en el epicentro, un lapso incalculable en el tiempo real del caos), el temblor tiró botellas, libros y la televisión [...] El terremoto de México fue 8.1 pero devastó el Distrito Federal [...] Cuando el movimiento cesó al fin, sobrevino una sensación de irrealidad. Me puse en pie, con la vacilación de un marinero en tierra. No era normal estar vivo (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 45-46).11 11 Os mexicanos temos um sismógrafo na alma, pelo menos os que sobrevivemos ao terremoto de 1985 no Distrito Federal. Se uma lâmpada se mexe, corremos para o vão da porta. Essa intuição serviu pouco o 27 de fevereiro de 2010. Às 3.34 um tremor me acordou em Santiago. Dormia no sétimo andar, tentei levantar, caí. Foi então que acordei. Até esse momento acreditava estar em casa e queria ir ao quarto de minha filha. Senti alívio ao lembrar que ela estava longe. Durante minutos eternos (sete no epicentro, um lapso incalculável no tempo real do caos), o tremor derrubou garrafas, livros e a televisão [...] O terremoto do México foi 8.1 mas destruiu o Distrito Federal [...] Quando o movimento cessou levantei com a hesitação do marinheiro em terra. Não era normal estar vivo (tradução minha).

É precisamente essa “anomalia”, esse “milagre” ou esse “acaso”, que será objeto de inquirição no ensaio sobre a fábula moral de Kleist, oitavo segmento do livro que repõe e explora a pergunta pelos “arbitrários caprichos do destino”.

III

Para encerrar (sem concluir) essas considerações sobre 8.8 El miedo en el espejo gostaria de me referir a outro jogo de ressonâncias que o texto estabelece a partir da figura do terremoto, entre o privado e o público, a dimensão íntima e a comunitária, tanto em relação ao Chile quanto ao México, ao presente quanto ao passado (ou talvez seria melhor dizer ao presente do passado).

Resgato, aqui, alguns dados da conjuntura chilena de 2010 mencionados no livro de Villoro. Pouco antes do terremoto, Michele Bachelet perde as eleições para Virgilio Piñeira, apesar de ter um alto nível de aprovação, e vê-se obrigada a gerir, às vésperas da passagem da faixa presidencial, tanto a inépcia dos militares (responsáveis pela agência encarregada de emitir o alerta do tsunami que se seguiu ao terremoto em Concepción e nunca foi dado) como os excessos cometidos no contexto de crispação social que levou à sanção do toque de recolher por vários dias. Como sustenta Villoro, nesse momento “as réplicas mais fortes do sismo podiam ser políticas”. De fato, uma ampla rede discursiva atesta esse transporte metafórico que ora reenvia ao golpe militar de Pinochet ou à derrota da Concertación em 2009 - legível, por exemplo, em Política del temblor, da chilena Diamela EltitELTIT, Diamela. Política del temblor. El País, Espanha, 8 mayo 2010. Disponível em: https://elpais.com/diario/2010/05/08/babelia/1273277564_850215.html . Acesso em: 12/09/2021
https://elpais.com/diario/2010/05/08/bab...
-,12 12 Cf. Política del temblor. El País de España, 8/5/2010. ora às fraturas da Unidad Popular que precederam o golpe - evocadas em La noche de los visones, de Pedro Lemebel -,13 13 La noche de los visones (o la última fiesta de la Unidad Popular) integra o livro de crônicas Loco Afán (2009). ora, mais tarde, aos protestos estudantis de 2011 -, núcleo de uma crônica de Rafael Gumúcio intitulada Santiago, una mañana cualquiera (Coaching ontológico).14 14 A crônica faz parte do livro Historia personal de Chile. Los platos rotos. De Almagro a Bachelet (2014). E não duvido que uma busca pudesse identificar imagens semelhantes em textos e performances dos protestos chilenos pré-pandemia, bem como nas ações vinculadas ao plebiscito recente sobre a reforma da Constituição (ações, essas, que continuam gerindo o passado/presente ditatorial e neoliberal).

Inserindo-se nessa trama discursiva, o livro de Villoro convoca a lembrança pessoal numa cena em que narra a visita ao túmulo de Salvador Allende em companhia de um amigo de juventude:

Unos días después del terremoto, Daniel Goldín cumplió un viejo anhelo: visitar la tumba de Salvador Allende. El líder que en la adolescencia nos hizo creer en el socialismo democrático permanece en nuestra memoria como una inquebrantable figura sentimental. Cada 11 de setiembre la televisión transmite algún documental sobre el golpe de Estado de Pinochet. Los años me han informado de los problemas y las torpezas de la Unidad Popular [...] Sin embargo, cuando la pantalla muestra La Moneda en llamas y se escucha la voz del presidente legítimo de Chile, Allende vuelve a tener razón (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 54-55).15 15 Alguns dias depois do terremoto, Daniel Goldín cumpriu um antigo desejo: visitar o túmulo de Salvador Allende. O líder que na adolescência fez com que acreditássemos no socialismo democrático permanece em nossa memória como uma inabalável figura sentimental. A cada 11 de setembro a televisão transmite algum documentário sobre o golpe de Estado de Pinochet. Os anos me informaram dos problemas e erros da Unidad Popular [...]. Entretanto, quando a tela mostra La Moneda em chamas e se ouve a voz do presidente legítimo do Chile, Allende volta a ter razão (tradução minha).

A memória afetiva (a aderência de uma figura associada às crenças fraguadas na juventude), a avaliação retrospectiva (o juízo que as revisa a partir da maturidade e dos tropeços) e a afirmação de um valor que a voz do cronista teima em enunciar de novo, agora, outra vez, coexistem na irrupção intempestiva dessa imagem, sem que se resolva a tensão entre essas temporalidades, por um instante, simultâneas. Um efeito análogo torna a produzir-se quase de imediato, ao prosseguir a narração. Durante a visita, Daniel Goldín constata que o tremor também foi sentido no cemitério e regressa com alguns pedregulhos na mão:

Me dio uno [guijarro] en el hotel. Era un trozo triangular, color beige.

- Es de la tumba de Allende - dijo Daniel -, un recuerdo por lo que vivimos aquí. [...]

Guardé el guijarro en el bolsillo de mi pantalón y sentí su agradable y punzante filo hasta que llegué a México. Era como portar una oda elementar de Neruda (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 55).16 16 Deu-me um [pedregulho] no hotel. Era um pedaço de pedra triangular - É do túmulo de Allende - disse Daniel - uma lembrança do que vivemos aqui [...] Guardei o pedregulho no bolso de minha calça e senti seu agradável e cortante canto até chegar ao México. Era como portar uma ode elementar de Neruda (tradução minha).

Entrecruzamento semelhante é urdido na rememoração do terremoto mexicano de 1985 (réplica constante na escrita do terremoto do Chile, elaboração parcial de um trauma passado/presente). Ali, a memória íntima enlaça-se com a vida comunitária e sua potência através de diversas lembranças. Por exemplo, a do amigo do colegial do escritor que atuou como resgatista no Distrito Federal buscando sobreviventes entre os destroços, Alejandro Bejarano, o “homem toupeira”, enquanto um jovem Juan Villoro e muitos outros retiravam pedras dos prédios em ruínas. A organização espontânea do povo diante da incompetência e a prepotência do governo mexicano dos anos 1980 (uma combinação letal que conhecemos bem) impulsionaram um processo que fez ruir o histórico esquema do partido único perpetuado por mais de seis décadas naquele país, e deu lugar a expressões que enlaçam outra vez a experiência do sismo com o político: surgiu “o partido do tremor” (presume-se que a paternidade da imagem seja do escritor Carlos Monsivais, do qual a crítica considera Villoro o herdeiro mais notável) ou, também, “o partido dos sem partido”.17 17 Os textos produzidos por Carlos Monsiváis contemporaneamente ao terremoto de 1985 e publicados em jornais e revistas foram compilados em “No sin nosotros”. Los dias del terremoto 1985-2005 (2010), acrescidos de uma longa crônica-ensaio sobre as transformações da sociedade mexicana ocorridas nas duas décadas subsequentes, intitulado Después del terremoto: de algunas transformaciones de la vida nacional.

IV

Desloco-me agora para o livro de Villoro publicado em 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p.: um texto também fragmentário (muito) e móvel (seu índice adota o modelo do mapa do metrô da Cidade do México convidando o leitor a escolher itinerários variados);18 18 O projeto gráfico de El vértigo horizontal exigiria por si só um estudo detalhado. Basta mencionar aqui que a primeira página apresenta 6 linhas de viagem com layout (cores e tipos) idêntico ao de outras tantas linhas do metrô da capital. A página seguinte contém um índice composto pelas diversas estações dessas seis linhas que, à semelhança do metrô real, possibilitam ao leitor fazer baldeações e combinações diversas - em suma: possibilitam realizar uma leitura salteada e descontínua. Nesse índice/mapa, cada estação é designada simultaneamente por um título e por um pseudopictograma inspirado, mais uma vez, no metrô, em que as estações possuem ambos os sistemas de identificação: um nome em escrita alfabética e um pseudopictograma inspirado nos pictogramas da escrita nahuatl. A adoção desse layout quando da inauguração do metrô no México, na década de 1960, obedeceu a um duplo propósito: facilitar o reconhecimento das estações para as populações não alfabetizadas em espanhol e integrar essa ambiciosa obra pública a um dos discursos nacionalistas mais fortes do continente, como foi (é?) o mexicano, um discurso que a produção de Villoro dedicou-se a criticar especialmente naquilo que tange ao “indigenismo oficial” como forma de obliterar a vida concreta, material e presente das comunidades e indivíduos indígenas. Sobre esse tema, ver, especialmente, suas crônicas Los invitados de agosto; Un mundo muy raro. Los invitados de agosto (2013a); Un mundo muy raro. Los zapatistas marchan (2013b) e Mi padre, el cartaginés (2013c) (em Espejo retrovisor. México: Planeta, 2013). Ao longo de El vértigo horizontal intercalam-se, também, imagens da cidade de autoria de diversos fotógrafos. um livro heterogêneo, embora (outra vez) extremamente calculado.

El vértigo horizontal. Una ciudad llamada México, reúne e reelabora escritos sobre a Cidade do México (até recentemente a mais populosa da América Latina e uma das maiores do planeta) produzidos ao longo de mais de duas décadas, mas que transcorrem nessa urbe que cresceu e expandiu-se, sobretudo horizontalmente (daí o título), a partir dos anos 1950, e, somente no final do século XX, deu vazão a um imprudente ímpeto vertical.19 19 No primeiro texto do livro (Entrada al laberinto: el caos no se improvisa), o autor faz referência a esses dois momentos de expansão da metrópole: a horizontal, associada à infância, à adolescência e à juventude; a vertical, mais recente e relacionada a problemas demográficos, ecológicos e urbanísticos. Cito algumas passagens que dão conta desse processo: “Mis primeros recuerdos de la capital provienen de 1960, cuando tenía cuatro años. Durante el siguiente medio siglo, la urbe tuvo una expansión claramente horizontal, una marea de casas bajas [...] Crecer significava extenderse”, p. 29; “en México la horizontalidad ha sido entre nosotros una manera de señalar que los edificios no deben competir con las montañas. Durante el siglo XX, los brotes de verticalidad tuvieron poca fortuna” p. 30 (Villoro lembra, dentre outros, o complexo habitacional de Tlatelolco, ícone “moderno” que ruiu por inteiro no terremoto de 1985). “Durante dos décadas, el sismo de 1985 dominó las reflexiones urbanas y produjo una moratoria de edificios altos. Pero el olvido es aliado de la especulación y la ciudad ha comenzado a ganar altura”, p. 31. Depois de enumerar alguns empreendimentos prodigiosamente imprudentes (o World Trade Center, a Torre Arcos Bosques, a Torre Mayor - o prédio mais alto de América Latina entre 2003 e 2010 -, o projeto residencial Torre Mítikah, de 60 andares), Villoro sintetiza essa mudança no vetor de crescimento da cidade através de uma nova/outra figuração da mesma: “La ciudad que se extendía al modo de un océano asume ahora otra metáfora: la selva”, p. 31. Traduzo as frases citadas: Minhas primeiras lembranças da capital datam de 1960, quando tinha quatro anos. Durante o meio século seguinte, a urbe teve uma expansão nitidamente horizontal, foi uma maré de casas baixas [...] Crescer significava se-espalhar; no México a horizontalidade era, para nós, uma maneira de assinalar que os prédios não devem competir com as montanhas. Durante o século XX, os surtos de verticalidade tiveram pouca fortuna; Durante duas décadas, o sismo de 1985 dominou as reflexões urbanas e produziu uma moratória [na construção] de prédios altos. Mas o esquecimento é aliado da especulação e a cidade começou a ganhar altura; A cidade que se estendia à maneira de um oceano assume agora oura metáfora: a selva. Não é ocioso lembrar que a cidade se encontra sobre um área originariamente lacustre que foi drenada a partir da conquista. Trata-se portanto de um solo instável em uma região sísmica. Personajes urbanos, Lugares, Ritos y ceremonias, Travesías, Sobresaltos (nomes de algumas das linhas de metrô/índice) compõem um mosaico da cidade vivida por Juan, ficção de si que perpassa o texto. E também aqui, mero acaso ou ironia do destino, a terra treme, torna a tremer, há exatos 22 anos do terremoto mais devastador sofrido no país. Não é impossível que a terra memoriosa tenha querido enviar uma mensagem ao fazer com que, poucas horas depois de serem realizadas simulações de evacuação “comemorativas” do sismo de 1985, um sismo real se abatesse sobre a metrópole em 19 de setembro de 2017. Embora a magnitude da destruição tenha sido bastante menor, não faltaram os episódios trágicos; um dos mais tocantes foi a queda do prédio de uma escola infantil, que veio abaixo ocasionando numerosas mortes.20 20 No desmoronamento da escola Enrique Rebsamen, em Villa Coapa, região sul da Cidade do México, morreram 19 crianças e sete funcionários adultos. A diretora e proprietária da instituição, Mónica García Villegas, foi condenada a 31 anos de prisão em 18/9/2020 pelos delitos de homicídio culposo e corresponsabilidade na queda do imóvel, que não respeitava as disposições do Regulamento de Construções nem da Lei de Desenvolvimento urbano. Em 26/6/2021, Juan Mario Velardo Gómes, Diretor de Obra responsável por assinar o certificado de segurança estrutural que habilitou uma ampliação irregular do prédio (a construção de um terceiro e um quarto andar) foi condenado a 208 anos de prisão por homicídio doloso e a pagar uma reparação financeira aos familiares das vítimas. Outras pessoas ainda aguardam julgamento. E, outra vez, Villoro narra essa “nova cita com a incertidumbre”, as tarefas de resgate, a arrecadação de fundos e de víveres, a ação de uma sociedade civil “mais eficaz que as iniciativas oficiais”, ainda que nessa oportunidade o governo não tenha sido omisso como duas décadas atrás: “Pero en modo alguno fue líder de la resistencia. En sentido estricto, mostramos las virtudes del anarquismo, concepto que por una distorsión ideológica se asocia con el caos cuando en realidad implica un orden sin autoridad” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 398).21 21 Mas de modo algum foi o líder da resistência. Em sentido estrito, mostramos as virtudes do anarquismo, conceito que por uma distorção ideológica se associa ao caos quando na verdade implica uma ordem sem autoridade. Essas palavras constam no último texto da série/linha Ritos y Ceremonias (La réplica: una posdata del miedo), precedido por outro, da série/linha Sobresaltos (El terremoto: “Las piedras no son nativas de esta tierra”), no qual o autor reescreve uma vez mais o tremor de 1985 ligando-o a esse “último” (provisoriamente último) termo da série, que foi o sismo de 2017. A rigor, como sustenta em 8.8 El miedo en el espejo um experto chileno em terremotos diante da interrogação acerca de quanto tempo há pela frente: “nadie puede predecir cuándo llegará el siguiente sismo. Después de cada jornada, lo único que puede decirse con certeza es: “Falta un día menos” (VILLORO, 2010VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo. Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p., p. 56).22 22 Ninguém pode predizer quando virá o sismo seguinte. Depois de cada jornada, o único que é possível dizer é: “Falta um dia a menos”.

A constante reverberação de um tremor no outro (e de ambos nesse terceiro termo que foi o sismo de Santiago) não é fortuita: urde uma trama de ressonâncias que traz à tona o passado/presente (o presente do passado) naquilo que ele tem de traumático, de repetido, de pulsão thanática, mas ao mesmo tempo de abertura à diferença, à pulsão de vida e à transitória agregação comum. Uma trama que se faz replicando igualmente os procedimentos chave da escrita do autor. De fato, tanto El terremoto: “Las piedras no son nativas de esta tierra” (2018, p. 378-397), rememoração do evento de 1985, como La réplica, una posdata del miedo (p. 398-402), relato do tremor de 2017, arquitetam uma textualidade baseada no entrelaçamento da memória afetiva e na proliferação de citações culturais heterogêneas que buscam apreender algo da experiência vivida. O primeiro deles, e mais extenso (El terremoto:“Las piedras...), reencena a longa jornada do 19 de setembro de 1985 que começa com um jovem Juan acordando repentinamente porque o sino da casa na qual mora toca sozinho (a terra o faz soar sozinho), segue com ele atravessando a cidade em uma viagem que vai descortinando aos poucos a magnitude da destruição enquanto se dirige à Cidade Universitária, ponto de reunião dos voluntários que se somam aos resgatistas da UNAM, e encerra com o retorno ao anoitecer, depois de ter ficado horas a fio, junto a outros, empilhando restos, pedaços, fragmentos - tal qual a escrita faz:

Trabajamos durante horas sin grandes resultados. Sacábamos trozos de cemento, papeles, el brazo de una silla, el aspa de un ventilador, formas sueltas, partes de algo, fragmentos ya inservibles. Los llevábamos a una carretilla y los apilábamos en la calle, donde otros trataban de darles cierto orden. Construíamos ruinas para salvarnos de la ruina. Sirvió de algo esa fatiga? No rescatamos a nadie y acaso nos rescatamos a nosotros mismos, convenciéndonos de que podíamos reaccionar, hacer algo útil. O quizás eso no sucedió completamente en vano.

Otros planean y deciden las batallas, pero al final de la contienda alguien debe recoger los restos. La paz comienza con los pordioseros de la gloria, los que se hacen cargo de los escombros, recogen los zapatos, los botones, los peines rotos, las armas ya sin uso, lo que antes tuvo un sentido y un destino. Eso éramos nosotros, la gente de la basura, las inmundicias, los que llevan trozos de un lado a otro (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 387).23 23 “Trabalhamos durante horas sem grandes resultados. Pegávamos pedaços de cimento, papéis, o encosto de uma cadeira, a pá de um ventilador, formas soltas, partes de algo, fragmentos já inservíveis. Levávamos essas coisas em um carrinho de mão e as empilhávamos na rua, onde outros tentavam dar a elas alguma ordem. Construíamos ruínas para salvar-nos da ruína. Serviu para alguma coisa essa fadiga? Não resgatamos ninguém e talvez resgatamos a nós mesmos, persuadindo-nos de que podíamos reagir, fazer algo útil. Ou talvez isso não ocorreu inteiramente em vão (tradução minha). Outros planejam e decidem as batalhas, mas no final da contenda alguém deve recolher os restos. A paz começa com os trapeiros da glória, os que se fazem cargo dos escombros, recolhem os sapatos, os botões, os pentes rotos, as armas sem uso, o que antes teve um sentido e um destino. Isso éramos nós, a turma do lixo, das imundícies, os que levam pedaços de um lado a outro em uma litania dos objetos” (2018, p. 387). Não é casual que uma das últimas frases desse texto seja: “perteneces al sitio donde estás dispuesto a limpiar la mierda” (2018, p. 397); pertences ao sítio onde estás disposto a limpar a merda (tradução minha).

Nesse ir e vir, a escrita arma sua própria coleção de lembranças, remissões culturais, referências; uma coleção aberta e heteróclita feita com fragmentos que ora ganham uma feição aforística, ora ensaística,24 24 Sobre o ensaio, o fragmento e o aforismo cf. O livro de João Barrento (O gênero intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010). e que compreende, entre outros, o poema Tierra roja de Francisco Segovia glosado no título (No son nativas...); o verso de López Velarde (Las campanadas caen como centavos)25 25 Os golpes de sino caem como centavos. transposto a essa circunstância assombrosa na qual o sino da casa de Juan ressoa subitamente “como uma metralha”; o coro de superstições populares que associam a passagem do cometa Halley nesse ano e a opacidade de sua cauda a um indubitável mau agouro; Nada, nadie. Las voces del temblor (2005), de Elena Poniatowska, testemunho incontornável sobre a catástrofe; GoetheGOETHE -. De minha vida: poesia e verdade. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. São Paulo: Editora da Unesp, 2017. 955 p. e sua crônica sobre a guerra franco-prussiana; Guerra e Paz, de Tolstoi; La peste, de Camus; o ensaio de Arthur Koestler sobre o piloto britânico que na segunda guerra “quebró todos los records de heroísmo, pero no aceptó la inmerecida condena de estar vivo y quiso identificarse con sus colegas en una última misión suicida” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 390);26 26 Bateu todos os recordes de heroísmo, mas não aceitou a imerecida condenação de estar vivo e quis identificar-se com seus colegas mortos em uma última missão suicida. O episódio será vinculado ao Alejandro Bejarano (o homem toupeira) dos anos posteriores ao sismo. a menção a Tchekov e a Huidobro; o livro Arte y olvido del terremoto (2010PADILLA, Ignacio. Arte y olvido del terremoto. México: Almadía, 2010. 152 p.), de Ignacio Padilla, sagaz diagnóstico sobre a sintomática “falta” de um corpus artístico amplo e denso sobre o sismo - uma falta que a própria escrita de Villoro vem tentando mitigar. A enumeração (a coleção) está longe de ser exaustiva e poderia continuar, mas gostaria de resgatar apenas uma última evocação na qual pulsa (outra vez) a amizade.

V

O penúltimo fragmento de El terremoto: “Las piedras no son nativas de esta tierra” tem precisamente o subtítulo Réplicas e começa mencionando o estudo do historiador Antonio Rubial sobre o costume de computar os tremores “em rezos” durante o período da colônia, dado que permite a Juan mesurar sua própria reação diante da réplica ocorrida na madrugada de 20 de setembro de 1985: “La réplica duró para mí dos padrenuestros” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 391).27 27 A réplica durou para mim dois pai-nossos (tradução minha). Mas a deriva associativa (como aquela do pijama de 8.8) leva o leitor a um diálogo mantido dias depois do evento: “Comenté que lo más grave del terremoto no era lo que habíamos vivido, sino los daños que nos seguirían alcanzando con el tiempo. Esas noticias aplazadas nos aguardaban como un veneno lento” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 392).28 28 Comentei que o mais grave do terremoto não era o que tínhamos vivido, mas os danos que continuariam nos atingindo com o tempo. Essas notícias adiadas aguardavam-nos como um veneno lento (tradução minha). O diálogo conduz, por sua vez, à lembrança de um amigo de adolescência, Xavier Cara, com o qual Juan descobre a paixão pela literatura, frequenta a primeira oficina de escrita, publica pela primeira vez em uma antologia de relatos e decora “cuentos enteros de Cortázar con la mnemotecnia que solamente torna posible la idolatría” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 393).29 29 contos inteiros de Cortázar com a mnemotecnia que somente torna possível a idolatria (tradução minha). É Xavier quem dá Rayuela (O jogo da amarelinha) de presente ao jovem Juan com uma longa dedicatória não menos extensa que um dos “capítulos prescindíveis” da obra do argentino; é Xavier quem, de repente, escolhe outra paixão e acaba optando pela medicina; é a vida “com seus horários e rigores” que os afasta, até que, em 1991, Villoro publica El disparo de argónVILLORO, Juan. El disparo de argón. Madrid: Anagrama, 1991., romance que transcorre em um hospital, e decide ir ao encontro do amigo:

Entonces supe que había muerto siete años antes, mientras hacía guardia en el Hospital General. Al luchar con los sucesivos borradores, había dialogado mentalmente con él, pensando cómo juzgaría determinada escena, sin saber que hablaba con un muerto.

Me pareció absurdo no haberlo buscado antes, dar por sentado que nos encontraríamos. Esa tristeza fue relevada por la irritación. Xavier Cara murió por la corrupción del gobierno mexicano. El edificio de Gineco Obstetricia, destinado a recibir la vida, había sido construido por acólitos de la muerte (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 393-394).30 30 “Soube então que tinha morrido sete anos antes, enquanto fazia guarda no Hospital General. Ao lutar com os sucessivos rascunhos, tinha dialogado mentalmente com ele, pensando como ele julgaria determinada cena, sem saber que falava com um morto. Pareceu-me absurdo não o ter procurado antes, pressupor que nos encontraríamos. Essa tristeza foi substituída pela irritação. Xavier Cara morreu pela corrupção do governo mexicano. O prédio de Ginecologia e Obstetrícia, destinado a receber a vida, tinha sido construído por auxiliares da morte.” (tradução minha). Segundo dados oficiais no Hospital General de México, uma das maiores instituições de atenção pública da capital, fundado em 1905 e composto por vários pavilhões térreos ou com no máximo um andar, morreram 295 pessoas. As duas unidades mais afetadas, que a rigor ruíram, foram a de Ginecologia e Obstetrícia, à qual nos anos 1960 foram acrescentados seis andares, e o prédio de Residência Médica, que também ganhou oito andares no período. Nele, morreram 85 pacientes, 94 bebês recém-nascidos, médicos e paramédicos, administrativos e visitas. Foram salvas 129 pessoas e 47 foram oficialmente consideradas desaparecidas. O resgate dos corpos durou 20 dias (tradução minha). Em Las voces del temblor, Elena Poniatowska recolhe a matéria de Marie-Pierre Toll (para o News) sobre o salvamento da médica Marta Torres, operação que durou 28 horas durante 13 das quais recebeu transfusões de sangue para mantê-la com vida. A única parte visível de seu corpo era a mão direita em meio a escombros que ameaçavam soterrá-la. A equipe de resgate foi composta por franceses e mexicanos (Cf. PONIATOWSKA, 2005, p. 243-245). Villoro retoma o acontecimento algumas páginas antes para sublinhar a fala de um dos voluntários participantes do resgate segundo o qual a médica teria resistido todo esse tempo entre as ruínas “porque sabia que os demais médicos que trabalhavam na unidade de Gineco-obstetrícia já estavam mortos” (VILLORO, 2018, p. 380). O comentário antecipa a notícia diferida da morte do amigo, mas também as possíveis formas de sobrevivência (tradução minha).

O terremoto, com efeito, não tinha deixado de ocorrer (nem deixaria de ocorrer), continuava alcançando os sobreviventes muitos anos depois. Todavia, algo do amigo perdido sobrevive no derradeiro episódio com o qual o narrador encerra o fragmento:

Cuando me mudo de casa o de país, lo primero que empaco es mi ejemplar de Rayuela. La novela de Cortázar ha envejecido, pero la dedicatoria es mi principal fetiche, una caja negra con un último mensaje: “Un amigo es aquél que siente por uno”, escribió con caligrafía de preparatoriano.

Estas palabras quieren darle la razón (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 394).31 31 Quando mudo de casa ou de país, a primeira coisa que encaixoto é meu exemplar de Rayuela. O romance de Cortázar envelheceu, mas a dedicatória é meu principal fetiche, uma caixa preta com uma última mensagem: “Amigo é aquele que sente por nós”, escreveu com caligrafia de estudante. Estas palavras querem dar a ele a razão.

Comentando esse tratado sobre a amizade de Aristóteles que são os livros oitavo e nono da Ética a Nicômano,Agamben (2005AGAMBEN, Giorgio. La Amistad. La Nación, 25 set. 2005. Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/741397-la-amistad . Acesso em: 22/09/2021.
http://www.lanacion.com.ar/741397-la-ami...
) afirma que a amizade é: “la instancia de este con-sentimiento de la existencia del amigo en el sentimiento de la existencia propia. Pero esto significa que la amistad tiene un rango ontológico y, al mismo tiempo, político. La sensación del ser está, de hecho, siempre re-partida y com-partida y la amistad nombra este compartir.”32 32 A instância desse com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontológico e, ao mesmo tempo, político. A sensação do ser está, de fato, sempre re-partida e com-partilhada e a amizade nomeia esse compartilhar (tradução minha). Seria possível dizer que a escrita de Villoro busca menos dar “razão” que “existência” (em outra passagem Agamben sustenta que “amigo é um existencial e não um categorial”) ao amigo perdido, para além do luto que as palavras também são. E, se algo do amigo morto existe no amigo sobrevivente (daquele que “sente por ele”), talvez o mesmo possa se afirmar acerca da arquitetura instável de Rayuela, desse objeto mediador que parcialmente sobrevive em El vértigo horizontal.

VI

La réplica: una posdata del miedo, “último” texto de El vértigo horizontal, narra o sismo mexicano de 2017 a partir das meditações de Rousseau sobre o terremoto de Lisboa e das críticas do filósofo francês a um entorno saturado, no qual edificações e objetos são considerados mais importantes que a própria vida. As ideias rousseaunianas são atualizadas e transpostas a essa metrópole vertical construída “à margem das normas” e ao abrigo da especulação imobiliária, como atestou novamente o desmoronamento a escola Rebsamen e de outros prédios. Mas as ideias do filósofo genebrino também são deslocadas: “a contrapelo de sus intenciones [Rousseau] demuestra que una persona vale lo mismo que su entorno”, que “la ciudad no nos pertenece; nosotros le pertenecemos” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 400).33 33 A contrapelo de suas intenciones [Rousseau] demonstra que uma pessoa vale o mesmo que seu entorno; a cidade não nos pertence; nos lhe pertencemos Para Villoro, a cidade é tanto a avarícia, a rapina, a ganância, quanto “as recordações, as histórias, o coro coletivo que nos constitui” (2018, p. 400), esse outro conjunto de propriedades que somos por nela estar e permanecer.

Convocadas uma derradeira vez, as lembranças de um Juan mais próximo do presente (e da velhice) evocam o casal de amigos que se hospeda em sua casa após perder o apartamento em que moravam; a filha, que em 2017 não é mais uma criança e agora assume a iniciativa de auxiliar os danificados; a frase que cristalizou nos dias que se seguiram ao terremoto do Chile de 2010 e que deu lugar a 8.8 El miedo en el espejo, escrito sete anos antes: “Nadie sobrevive en silencio” (Ninguém sobrevive em silêncio):

“Nadie sobrevive en silencio” Después de una tragedia, el lenguaje es como el revuelto alfabeto de la máquina de escribir: llega en desorden, pero poco a poco se articula para otorgarle sentido a lo que no lo tiene. Hablamos para entender aquello que desafía el entendimiento. Con más superstición que certidumbre, pensamos que, si algo puede ser dicho, también puede ser superado. Las palabras sanan (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 400).34 34 “Ninguém sobrevive em silêncio” Depois de uma tragédia, a linguagem é como o confuso alfabeto da máquina de escrever: surge em desordem, mas pouco a pouco se articula para outorgar sentido àquilo que não possui. Falamos para entender o que desafia o entendimento. Com mais superstição que certezas, pensamos que, se uma coisa pode ser dita, também pode ser superada. As palavras saram (tradução minha).

Dois dias depois do 19 de setembro de 2017, Villoro devia entregar a coluna semanal que escrevia e ainda escreve para o jornal Reforma. Pensa, então, em descrever a ação dos envolvidos na busca de sobreviventes: “Un brigadista alzaba un puño y los demás guardaban silencio para escuchar si alguien vivía. Ese gesto solidario debería determinar nuestra vida en común” (2018, p. 401).35 35 Um resgatista levantava o punho e os demais ficavam em silêncio para escutar se alguém vivia. Esse gesto solidário deveria determinar nossa vida em comum: abrir um espaço para ouvir o outro. Entretanto, ao invés de ganhar a forma de uma narração, a cena torna-se uma litania, frases soltas que reiteram um mesmo tema:

No pensé en escribir un poema, aunque muchos lo leyeron de ese modo. Si tuviera que escoger un género para el texto, no optaría por uno literario, sino sismológico: se trata de una “réplica”. Partí de una frase que había escrito al recordar el terremoto de 1985 treinta años después de la tragedia y que aparece en la página 397 de este libro: “perteneces al sitio donde estás dispuesto a limpiar la mierda” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 401).36 36 Não pensei em escrever um poema, embora muitos o leram dessa forma. Se tivesse que escolher um gênero para o texto, não optaria por um literário, mas sismológico: trata-se de uma “réplica”. Parti de uma frase que escrevi ao recordar o terremoto de 1985 trinta anos depois da tragédia e que aparece na página 397 deste livro: “pertences ao sítio onde estás disposto a limpar a merda” (tradução minha).

Último texto do livro e não, interior e exterior ao mesmo tempo, fora de todas as linhas de viagem, esse acréscimo, esse suplemento, traça uma peculiar relação entre lugar/pertencimento/memória. Ali, o punho em alto dista de todo ufanismo, mas persevera em escutar/auscultar se há alguém vivo. Teima em imaginar que as paisagens que nos sugerem o fim do mundo sugerem também o seu começo - ou, quem sabe, ao menos, seu incessante recomeço, enquanto houver mundo:

Eres del lugar donde recoges/la basura. Donde dos rayos caen en el mismo sitio. Porque viste el primero, esperas el segundo. Y sigues aquí [...] Eres, si acaso, un pordiosero de la historia. El que recoge desperdicios después de la tragedia. El que acomoda ladrillos, junta piedras, encuentra un peine, dos zapatos que no hacen juego, una cartera con fotografías. El que ordena partes sueltas, trozos de trozos, restos, sólo restos. [...] El que es de aquí. El que acaba de llegar y ya es de aquí. El que dice “ciudad” por decir tú y yo y Pedro y Marta y Francisco y Guadalupe. El que lleva dos días sin luz ni agua. El que todavía respira. El que levantó un puño para pedir silencio. Los que le hicieron caso. Los que levantaron el puño. Los que levantaron el puño para escuchar si alguien vivía. Los que levantaron el puño para escuchar si alguien vivía y oyeron un murmullo. Los que no dejan de escuchar.37 37 És do lugar onde recolhes/o lixo./ Onde dois raios caem/no mesmo sítio./Porque vistes o primeiro/esperas o segundo. E segues aqui [...] És, se tanto, o catador da história. O que recolhe desperdícios depois da tragédia/ O que acomoda os tijolos,/ junta as pedras,/encontra um pente/dois sapatos que não combinam/uma carteira com fotografias./ Aquele que ordena partes soltas/troços de troços/restos, só restos [...] És aquele que é daqui/Aquele que acaba de chegar e já é daqui/O que diz “cidade” para dizer você e eu/e Pedro e Marta e Francisco e Guadalupe/ O que está faz dois dias sem luz nem água/O que ainda respira/O que levantou o punho para pedir silêncio/ Os que obedeceram/Os que levantaram o punho/Os que levantaram o punho./Os que levantaram o punho para escutar se alguém/ vivia./Os que levantaram o punho para escutar se alguém/ vivia e ouviram um murmúrio/Os que não deixam de escutar (tradução minha). (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 403-405)

Tomara que não deixemos de escutar, enquanto houver mundo.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. La Amistad. La Nación, 25 set. 2005. Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/741397-la-amistad Acesso em: 22/09/2021.
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  • ARGULLOL, Rafael. El cazador de instantes: cuaderno de travesía 1990-1995. Barcelona: Ediciones destino, 1996. 136 p.
  • BARRENTO, João. O gênero intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. 160 p.
  • CORONEL MORALES, Juan Manuel. Construcción discursiva del desastre: la crónica periodística de los terremotos en la Ciudad de México (1985-2017). 2020. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidad Iberoamericana, Cidade do México, 2020.
  • CORTÁZAR, Julio. Rayuela Buenos Aires: Sudamericana, 1986.
  • ELTIT, Diamela. Política del temblor. El País, Espanha, 8 mayo 2010. Disponível em: https://elpais.com/diario/2010/05/08/babelia/1273277564_850215.html Acesso em: 12/09/2021
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  • GÁRATE, Miriam V. Réplicas e reflexos em uma crônica de Juan Villoro. Acerca de 8.8: El miedo en el espejo. Remate de Males, vol 36, N 1, 2016, p. 275-300.
  • GOETHE -. Memórias: poesia e verdade. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1971; São Paulo: Hucitec, 1986. 2 v.
  • GOETHE -. De minha vida: poesia e verdade. Tradução de Mauricio Mendonça Cardozo. São Paulo: Editora da Unesp, 2017. 955 p.
  • GUMUCIO, Rafael. Santiago, una mañana cualquiera (Coaching ontológico). In: GUMUCIO, Rafael. Historia personal de Chile: los platos rotos: de Almagro a Bachelet. Santiago: Hueders, 2014. p. 191-198.
  • KLEIST, Heinrich Von. O Terremoto no Chile. In: KLEIST, Heinrich Von. Novelas São Paulo: Melhoramentos, s.d. 222 p.
  • LEMEBEL, Pedro. La noche de los visones (o la última fiesta de la Unidad Popular). In: LEMEBEL, Pedro. Loco Afán Buenos Aires: editorial La página, 2009, p. 9-24.
  • MONSIVÁIS, Carlos. No sin nosotros: los dias del terremoto 1985-2005. México: Era, 2010. 197 p.
  • PADILLA, Ignacio. Arte y olvido del terremoto México: Almadía, 2010. 152 p.
  • PONIATOWSKA, Elena. Nada, nadie: las voces del temblor. México: Era , 2005.
  • SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 112 p.
  • VILLORO, Juan. Crónicas imaginarias México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
  • VILLORO, Juan. El disparo de argón Madrid: Anagrama, 1991.
  • VILLORO, Juan. Materia dispuesta México: Alfaguara, 1996. 312 p.
  • VILLORO, Juan. Los convidados de agosto. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor México: Planeta, 2013a. p. 157-171.
  • VILLORO, Juan. Un mundo muy raro: los zapatistas marchan. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor México: Planeta , 2013b. p. 173-190.
  • VILLORO, Juan. Mi padre, el cartaginés. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor México: Planeta , 2013c. p. 191-213.
  • VILLORO, Juan. 8.8 El miedo en el espejo Buenos Aires: Interzona, 2010. 120 p.
  • VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p.
  • VOLTAIRE - O Poema sobre o Desastre de Lisboa Tradução de Vasco Graça Moura. Lisboa: Alêtheia Editores, 2013. 68 p.
  • VOLTAIRE -. Candido ou o otimismo Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Penguin Companhia, 2012. 184 p
  • 1
    A denominação oficial da capital do México foi Distrito Federal até o ano de 2016, quando passou a fazer parte dos Estados Unidos Mexicanos na condição de estado número 32, adquirindo novos direitos políticos tais como possuir uma Constituição própria. Juan Villoro foi um dos conselheiros responsáveis pela elaboração da mesma.
  • 2
    Todas as paisagens que nos sugerem o fim do mundo também nos sugerem o seu começo (tradução minha).
  • 3
    Como assinala Coronel Morales (2020CORONEL MORALES, Juan Manuel. Construcción discursiva del desastre: la crónica periodística de los terremotos en la Ciudad de México (1985-2017). 2020. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidad Iberoamericana, Cidade do México, 2020. ) ao resgatar a etimologia do termo catástrofe a partir das considerações de Calero, a palavra associa as expressões gregas katastrophe (torção, troca ou mudança de posição) e katastrepho (retornar). Assim: “Se podría entender entonces como “volver inesperadamente” sobre el pasado, pensando que “ese retorno imprevisto” comprende necesariamente una vuelta o, en otras palabras, un giro del destino sobre lo pensado, creado y construido por el hombre a lo largo del tiempo” (2020, p. 40). Poderia ser entendido, então, como um “voltar inesperadamente” sobre o passado, pensando que “esse retorno imprevisto” compreende necessariamente uma virada ou, em outras palavras, uma viravolta do destino sobre o pensado, criado e construído pelo homem ao longo do tempo.
  • 4
    Há uma edição bilíngue do poema Desastre de Lisboa, com tradução para o português, de Vasco Graça Moura (2013VOLTAIRE - O Poema sobre o Desastre de Lisboa. Tradução de Vasco Graça Moura. Lisboa: Alêtheia Editores, 2013. 68 p.).
  • 5
    Cf. Candido ou o otimismoVOLTAIRE -. Candido ou o otimismo. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Penguin Companhia, 2012. 184 p (São Paulo: Penguin Companhia, 2012); trad. de Mário Laranjeira.
  • 6
    Existem várias edições disponíveis em português: Memórias: poesia e verdade, 2 v. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, tradução de Leonel Vallandro; a mesma tradução publicada pela editora Hucitec em 1986 e a recente De minha vida: poesia e verdade. São Paulo: Editora da Unesp, 2017, tradução Mauricio Mendonça Cardozo.
  • 7
    Cf. O terremoto do Chile, em Novelas (São Paulo: Melhoramentos, s.d).
  • 8
    Sobre esse livro e suas características ver o artigo de minha autoria (GÁRATE, 2016GÁRATE, Miriam V. Réplicas e reflexos em uma crônica de Juan Villoro. Acerca de 8.8: El miedo en el espejo. Remate de Males, vol 36, N 1, 2016, p. 275-300., p. 275-300).
  • 9
    Em sismologia são consideradas réplicas os tremores de grau diverso que ocorrem depois do sismo principal e nos quais este, de alguma forma, desdobra-se.
  • 10
    Às 3.34 da manhã do 27 de fevereiro de 2010 o Chile sofreu um terremoto de magnitude 8.8 na escala de Richter. O sismo modificou o eixo de rotação da terra e o dia se encurtou 1,26 microsegundos. A cidade de Concepción se deslocou 3,04 metros para o oeste, em direção ao mar. Santiago se deslocou 27,7 cm. Os GPS terão que ser reajustados para relocalizar essas cidades movediças (tradução minha).
  • 11
    Os mexicanos temos um sismógrafo na alma, pelo menos os que sobrevivemos ao terremoto de 1985 no Distrito Federal. Se uma lâmpada se mexe, corremos para o vão da porta. Essa intuição serviu pouco o 27 de fevereiro de 2010. Às 3.34 um tremor me acordou em Santiago. Dormia no sétimo andar, tentei levantar, caí. Foi então que acordei. Até esse momento acreditava estar em casa e queria ir ao quarto de minha filha. Senti alívio ao lembrar que ela estava longe. Durante minutos eternos (sete no epicentro, um lapso incalculável no tempo real do caos), o tremor derrubou garrafas, livros e a televisão [...] O terremoto do México foi 8.1 mas destruiu o Distrito Federal [...] Quando o movimento cessou levantei com a hesitação do marinheiro em terra. Não era normal estar vivo (tradução minha).
  • 12
    Cf. Política del temblor. El País de España, 8/5/2010.
  • 13
    La noche de los visones (o la última fiesta de la Unidad Popular) integra o livro de crônicas Loco Afán (2009LEMEBEL, Pedro. La noche de los visones (o la última fiesta de la Unidad Popular). In: LEMEBEL, Pedro. Loco Afán. Buenos Aires: editorial La página, 2009, p. 9-24. ).
  • 14
    A crônica faz parte do livro Historia personal de Chile. Los platos rotos. De Almagro a BacheletGUMUCIO, Rafael. Santiago, una mañana cualquiera (Coaching ontológico). In: GUMUCIO, Rafael. Historia personal de Chile: los platos rotos: de Almagro a Bachelet. Santiago: Hueders, 2014. p. 191-198. (2014).
  • 15
    Alguns dias depois do terremoto, Daniel Goldín cumpriu um antigo desejo: visitar o túmulo de Salvador Allende. O líder que na adolescência fez com que acreditássemos no socialismo democrático permanece em nossa memória como uma inabalável figura sentimental. A cada 11 de setembro a televisão transmite algum documentário sobre o golpe de Estado de Pinochet. Os anos me informaram dos problemas e erros da Unidad Popular [...]. Entretanto, quando a tela mostra La Moneda em chamas e se ouve a voz do presidente legítimo do Chile, Allende volta a ter razão (tradução minha).
  • 16
    Deu-me um [pedregulho] no hotel. Era um pedaço de pedra triangular - É do túmulo de Allende - disse Daniel - uma lembrança do que vivemos aqui [...] Guardei o pedregulho no bolso de minha calça e senti seu agradável e cortante canto até chegar ao México. Era como portar uma ode elementar de Neruda (tradução minha).
  • 17
    Os textos produzidos por Carlos MonsiváisMONSIVÁIS, Carlos. No sin nosotros: los dias del terremoto 1985-2005. México: Era, 2010. 197 p. contemporaneamente ao terremoto de 1985 e publicados em jornais e revistas foram compilados em “No sin nosotros”. Los dias del terremoto 1985-2005 (2010), acrescidos de uma longa crônica-ensaio sobre as transformações da sociedade mexicana ocorridas nas duas décadas subsequentes, intitulado Después del terremoto: de algunas transformaciones de la vida nacional.
  • 18
    O projeto gráfico de El vértigo horizontal exigiria por si só um estudo detalhado. Basta mencionar aqui que a primeira página apresenta 6 linhas de viagem com layout (cores e tipos) idêntico ao de outras tantas linhas do metrô da capital. A página seguinte contém um índice composto pelas diversas estações dessas seis linhas que, à semelhança do metrô real, possibilitam ao leitor fazer baldeações e combinações diversas - em suma: possibilitam realizar uma leitura salteada e descontínua. Nesse índice/mapa, cada estação é designada simultaneamente por um título e por um pseudopictograma inspirado, mais uma vez, no metrô, em que as estações possuem ambos os sistemas de identificação: um nome em escrita alfabética e um pseudopictograma inspirado nos pictogramas da escrita nahuatl. A adoção desse layout quando da inauguração do metrô no México, na década de 1960, obedeceu a um duplo propósito: facilitar o reconhecimento das estações para as populações não alfabetizadas em espanhol e integrar essa ambiciosa obra pública a um dos discursos nacionalistas mais fortes do continente, como foi (é?) o mexicano, um discurso que a produção de Villoro dedicou-se a criticar especialmente naquilo que tange ao “indigenismo oficial” como forma de obliterar a vida concreta, material e presente das comunidades e indivíduos indígenas. Sobre esse tema, ver, especialmente, suas crônicas Los invitados de agosto; Un mundo muy raro. Los invitados de agosto (2013aVILLORO, Juan. Los convidados de agosto. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor. México: Planeta, 2013a. p. 157-171.); Un mundo muy raro. Los zapatistas marchan (2013bVILLORO, Juan. Un mundo muy raro: los zapatistas marchan. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor. México: Planeta , 2013b. p. 173-190.) e Mi padre, el cartaginés (2013cVILLORO, Juan. Mi padre, el cartaginés. In: VILLORO, Juan. Espejo retrovisor. México: Planeta , 2013c. p. 191-213.) (em Espejo retrovisor. México: Planeta, 2013). Ao longo de El vértigo horizontal intercalam-se, também, imagens da cidade de autoria de diversos fotógrafos.
  • 19
    No primeiro texto do livro (Entrada al laberinto: el caos no se improvisa), o autor faz referência a esses dois momentos de expansão da metrópole: a horizontal, associada à infância, à adolescência e à juventude; a vertical, mais recente e relacionada a problemas demográficos, ecológicos e urbanísticos. Cito algumas passagens que dão conta desse processo: “Mis primeros recuerdos de la capital provienen de 1960, cuando tenía cuatro años. Durante el siguiente medio siglo, la urbe tuvo una expansión claramente horizontal, una marea de casas bajas [...] Crecer significava extenderse”, p. 29; “en México la horizontalidad ha sido entre nosotros una manera de señalar que los edificios no deben competir con las montañas. Durante el siglo XX, los brotes de verticalidad tuvieron poca fortuna” p. 30 (Villoro lembra, dentre outros, o complexo habitacional de Tlatelolco, ícone “moderno” que ruiu por inteiro no terremoto de 1985). “Durante dos décadas, el sismo de 1985 dominó las reflexiones urbanas y produjo una moratoria de edificios altos. Pero el olvido es aliado de la especulación y la ciudad ha comenzado a ganar altura”, p. 31. Depois de enumerar alguns empreendimentos prodigiosamente imprudentes (o World Trade Center, a Torre Arcos Bosques, a Torre Mayor - o prédio mais alto de América Latina entre 2003 e 2010 -, o projeto residencial Torre Mítikah, de 60 andares), Villoro sintetiza essa mudança no vetor de crescimento da cidade através de uma nova/outra figuração da mesma: “La ciudad que se extendía al modo de un océano asume ahora otra metáfora: la selva”, p. 31. Traduzo as frases citadas: Minhas primeiras lembranças da capital datam de 1960, quando tinha quatro anos. Durante o meio século seguinte, a urbe teve uma expansão nitidamente horizontal, foi uma maré de casas baixas [...] Crescer significava se-espalhar; no México a horizontalidade era, para nós, uma maneira de assinalar que os prédios não devem competir com as montanhas. Durante o século XX, os surtos de verticalidade tiveram pouca fortuna; Durante duas décadas, o sismo de 1985 dominou as reflexões urbanas e produziu uma moratória [na construção] de prédios altos. Mas o esquecimento é aliado da especulação e a cidade começou a ganhar altura; A cidade que se estendia à maneira de um oceano assume agora oura metáfora: a selva. Não é ocioso lembrar que a cidade se encontra sobre um área originariamente lacustre que foi drenada a partir da conquista. Trata-se portanto de um solo instável em uma região sísmica.
  • 20
    No desmoronamento da escola Enrique Rebsamen, em Villa Coapa, região sul da Cidade do México, morreram 19 crianças e sete funcionários adultos. A diretora e proprietária da instituição, Mónica García Villegas, foi condenada a 31 anos de prisão em 18/9/2020 pelos delitos de homicídio culposo e corresponsabilidade na queda do imóvel, que não respeitava as disposições do Regulamento de Construções nem da Lei de Desenvolvimento urbano. Em 26/6/2021, Juan Mario Velardo Gómes, Diretor de Obra responsável por assinar o certificado de segurança estrutural que habilitou uma ampliação irregular do prédio (a construção de um terceiro e um quarto andar) foi condenado a 208 anos de prisão por homicídio doloso e a pagar uma reparação financeira aos familiares das vítimas. Outras pessoas ainda aguardam julgamento.
  • 21
    Mas de modo algum foi o líder da resistência. Em sentido estrito, mostramos as virtudes do anarquismo, conceito que por uma distorção ideológica se associa ao caos quando na verdade implica uma ordem sem autoridade.
  • 22
    Ninguém pode predizer quando virá o sismo seguinte. Depois de cada jornada, o único que é possível dizer é: “Falta um dia a menos”.
  • 23
    “Trabalhamos durante horas sem grandes resultados. Pegávamos pedaços de cimento, papéis, o encosto de uma cadeira, a pá de um ventilador, formas soltas, partes de algo, fragmentos já inservíveis. Levávamos essas coisas em um carrinho de mão e as empilhávamos na rua, onde outros tentavam dar a elas alguma ordem. Construíamos ruínas para salvar-nos da ruína. Serviu para alguma coisa essa fadiga? Não resgatamos ninguém e talvez resgatamos a nós mesmos, persuadindo-nos de que podíamos reagir, fazer algo útil. Ou talvez isso não ocorreu inteiramente em vão (tradução minha). Outros planejam e decidem as batalhas, mas no final da contenda alguém deve recolher os restos. A paz começa com os trapeiros da glória, os que se fazem cargo dos escombros, recolhem os sapatos, os botões, os pentes rotos, as armas sem uso, o que antes teve um sentido e um destino. Isso éramos nós, a turma do lixo, das imundícies, os que levam pedaços de um lado a outro em uma litania dos objetos” (2018, p. 387). Não é casual que uma das últimas frases desse texto seja: “perteneces al sitio donde estás dispuesto a limpiar la mierda” (2018, p. 397); pertences ao sítio onde estás disposto a limpar a merda (tradução minha).
  • 24
    Sobre o ensaio, o fragmento e o aforismo cf. O livro de João BarrentoBARRENTO, João. O gênero intranquilo: anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. 160 p. (O gênero intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010).
  • 25
    Os golpes de sino caem como centavos.
  • 26
    Bateu todos os recordes de heroísmo, mas não aceitou a imerecida condenação de estar vivo e quis identificar-se com seus colegas mortos em uma última missão suicida. O episódio será vinculado ao Alejandro Bejarano (o homem toupeira) dos anos posteriores ao sismo.
  • 27
    A réplica durou para mim dois pai-nossos (tradução minha).
  • 28
    Comentei que o mais grave do terremoto não era o que tínhamos vivido, mas os danos que continuariam nos atingindo com o tempo. Essas notícias adiadas aguardavam-nos como um veneno lento (tradução minha).
  • 29
    contos inteiros de CortázarCORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Sudamericana, 1986. com a mnemotecnia que somente torna possível a idolatria (tradução minha).
  • 30
    “Soube então que tinha morrido sete anos antes, enquanto fazia guarda no Hospital General. Ao lutar com os sucessivos rascunhos, tinha dialogado mentalmente com ele, pensando como ele julgaria determinada cena, sem saber que falava com um morto. Pareceu-me absurdo não o ter procurado antes, pressupor que nos encontraríamos. Essa tristeza foi substituída pela irritação. Xavier Cara morreu pela corrupção do governo mexicano. O prédio de Ginecologia e Obstetrícia, destinado a receber a vida, tinha sido construído por auxiliares da morte.” (tradução minha). Segundo dados oficiais no Hospital General de México, uma das maiores instituições de atenção pública da capital, fundado em 1905 e composto por vários pavilhões térreos ou com no máximo um andar, morreram 295 pessoas. As duas unidades mais afetadas, que a rigor ruíram, foram a de Ginecologia e Obstetrícia, à qual nos anos 1960 foram acrescentados seis andares, e o prédio de Residência Médica, que também ganhou oito andares no período. Nele, morreram 85 pacientes, 94 bebês recém-nascidos, médicos e paramédicos, administrativos e visitas. Foram salvas 129 pessoas e 47 foram oficialmente consideradas desaparecidas. O resgate dos corpos durou 20 dias (tradução minha). Em Las voces del temblor, Elena Poniatowska recolhe a matéria de Marie-Pierre Toll (para o News) sobre o salvamento da médica Marta Torres, operação que durou 28 horas durante 13 das quais recebeu transfusões de sangue para mantê-la com vida. A única parte visível de seu corpo era a mão direita em meio a escombros que ameaçavam soterrá-la. A equipe de resgate foi composta por franceses e mexicanos (Cf. PONIATOWSKA, 2005PONIATOWSKA, Elena. Nada, nadie: las voces del temblor. México: Era , 2005., p. 243-245). Villoro retoma o acontecimento algumas páginas antes para sublinhar a fala de um dos voluntários participantes do resgate segundo o qual a médica teria resistido todo esse tempo entre as ruínas “porque sabia que os demais médicos que trabalhavam na unidade de Gineco-obstetrícia já estavam mortos” (VILLORO, 2018VILLORO, Juan. El vértigo horizontal: una ciudad llamada México. Barcelona: Anagrama; Almadía, 2018. 408 p., p. 380). O comentário antecipa a notícia diferida da morte do amigo, mas também as possíveis formas de sobrevivência (tradução minha).
  • 31
    Quando mudo de casa ou de país, a primeira coisa que encaixoto é meu exemplar de Rayuela. O romance de Cortázar envelheceu, mas a dedicatória é meu principal fetiche, uma caixa preta com uma última mensagem: “Amigo é aquele que sente por nós”, escreveu com caligrafia de estudante. Estas palavras querem dar a ele a razão.
  • 32
    A instância desse com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria. Mas isso significa que a amizade tem um estatuto ontológico e, ao mesmo tempo, político. A sensação do ser está, de fato, sempre re-partida e com-partilhada e a amizade nomeia esse compartilhar (tradução minha).
  • 33
    A contrapelo de suas intenciones [Rousseau] demonstra que uma pessoa vale o mesmo que seu entorno; a cidade não nos pertence; nos lhe pertencemos
  • 34
    “Ninguém sobrevive em silêncio” Depois de uma tragédia, a linguagem é como o confuso alfabeto da máquina de escrever: surge em desordem, mas pouco a pouco se articula para outorgar sentido àquilo que não possui. Falamos para entender o que desafia o entendimento. Com mais superstição que certezas, pensamos que, se uma coisa pode ser dita, também pode ser superada. As palavras saram (tradução minha).
  • 35
    Um resgatista levantava o punho e os demais ficavam em silêncio para escutar se alguém vivia. Esse gesto solidário deveria determinar nossa vida em comum: abrir um espaço para ouvir o outro.
  • 36
    Não pensei em escrever um poema, embora muitos o leram dessa forma. Se tivesse que escolher um gênero para o texto, não optaria por um literário, mas sismológico: trata-se de uma “réplica”. Parti de uma frase que escrevi ao recordar o terremoto de 1985 trinta anos depois da tragédia e que aparece na página 397 deste livro: “pertences ao sítio onde estás disposto a limpar a merda” (tradução minha).
  • 37
    És do lugar onde recolhes/o lixo./ Onde dois raios caem/no mesmo sítio./Porque vistes o primeiro/esperas o segundo. E segues aqui [...] És, se tanto, o catador da história. O que recolhe desperdícios depois da tragédia/ O que acomoda os tijolos,/ junta as pedras,/encontra um pente/dois sapatos que não combinam/uma carteira com fotografias./ Aquele que ordena partes soltas/troços de troços/restos, só restos [...] És aquele que é daqui/Aquele que acaba de chegar e já é daqui/O que diz “cidade” para dizer você e eu/e Pedro e Marta e Francisco e Guadalupe/ O que está faz dois dias sem luz nem água/O que ainda respira/O que levantou o punho para pedir silêncio/ Os que obedeceram/Os que levantaram o punho/Os que levantaram o punho./Os que levantaram o punho para escutar se alguém/ vivia./Os que levantaram o punho para escutar se alguém/ vivia e ouviram um murmúrio/Os que não deixam de escutar (tradução minha).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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