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A metaforologia de Paul Ricœur: retorno à metáfora e à imaginação na teoria literária

Paul Ricœur’s metaphorology: A return to metaphor and imagination in literary theory

Resumo

Tem-se observado, especialmente em língua francesa e alemã - Paul Ricœur (1913-2005), Hans Blumenberg (1920-1996), Anselm Haverkamp (1943-), Katrin Kohl (1956-) são alguns expoentes -, uma volta aos estudos em torno da metáfora. O domínio já tem configurado um campo de estudos, chegando mesmo a receber denominação própria nessas línguas. Neste trabalho, percorremos a teoria da referência metafórica de Ricœur, como desenvolvida em seu seminal A metáfora viva (1975) e trabalhos ulteriores. Levantamos três ideias fundantes para o desenvolvimento de sua metaforologia: a tensão constitutiva do verbo ser metafórico; a suspensão da referência literal em favor de uma referência metafórica desdobrada; e a ficção como heurística do real. Postulamos, enfim, que a compreensão ricœuriana da metáfora incorpora um elemento extralinguístico: o ato imaginativo. Almejamos, assim, contribuir para um retorno aos estudos da metáfora e do imaginário na teoria literária, examinando, com Ricœur, como a metáfora logra realizar: tornar real a referência metafórica.

Palavras-chave:
metáfora; imaginário; metaforologia; Paul Ricœur; A metáfora viva

Abstract

A return to the studies on metaphor has been observed, especially in the French and German languages - Paul Ricoeur (1913-2005), Hans Blumenberg (1920-1996), Anselm Haverkamp (1943-), Katrin Kohl (1956-) are some of the main exponents. This area has already configured a whole field of studies, even receiving its own denomination in these languages. In this paper, we will go through Ricoeur's theory of metaphorical reference, as developed in his seminal The Rule of the Metaphor (1975) and later works. We suggest three foundational ideas for the development of his metaphorology: the constitutive tension of the metaphorical verb to be; the suspension of the literal reference in favor of an unfolded metaphorical reference; fiction as heuristic of the real. We postulate, finally, that the Ricoeurian understanding of metaphor incorporates an extralinguistic element: the imaginative act. We aim, thus, to contribute to a return to the studies of the metaphor and the imaginary in literary theory, examining, with Ricoeur, how metaphor manages to realize: making real the metaphorical reference.

Keywords:
metaphor; imaginary; metaphorology; Paul Ricœur; The rule of the metaphor

Resumée

On a observé, surtout en français et en allemand - Paul Ricœur (1913-2005), Hans Blumenberg (1920-1996), Anselm Haverkamp (1943-), Katrin Kohl (1956-) en sont quelques uns des représentants -, un retour aux études autour de la métaphore. Le domaine a déjà configuré un champ d'études, recevant même sa propre dénomination dans ces langues. Dans cet article, nous examinons la théorie de la référence métaphorique de Ricœur, telle qu'elle a été développée dans son ouvrage fondamental La métaphore vive (1975) et dans ses travaux ultérieurs. Nous soulevons trois idées fondamentales pour le développement de sa métaphorologie : la tension constitutive du verbe être métaphorique ; la suspension de la référence littérale en faveur d'une référence métaphorique dédoublée ; la fiction comme heuristique du réel. Nous postulons, enfin, que la compréhension Ricœurienne de la métaphore incorpore un élément extralinguistique : l'acte imaginatif. Nous voulons ainsi contribuer à un retour aux études sur la métaphore et l'imaginaire dans la théorie littéraire, en examinant, avec Ricœur, comment la métaphore parvient à réaliser: rendre réelle la référence métaphorique.

Mots-clé:
métaphore; imaginaire; métaphorologie; Paul Ricœur; La métaphore vive

Mas há outra metáfora que suprime o “como” e diz: isto é aquilo. Nela, o desejo entra em ação: não compara nem mostra semelhanças, mas revela - e mais: provoca - a identidade última de objetos que nos pareciam irredutíveis. (PAZ, 2014PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. São Paulo: CosacNaify, 2014., p. 73).

A potência criadora da linguagem é uma capacidade que atravessa diversas concepções em tempos e culturas dispersas. Uma investigação desse atributo realizador da linguagem - ou, mais que mero atributo: dessa faculdade verdadeiramente poética e produtiva da linguagem verbal, na acepção etimológica de poesia como criação - seria extensiva. Ainda assim, dois fatos da história judaico-cristã podem lembrar a relevância da manifestação produtiva da linguagem: na mística judaica da Cabala, o desdobramento da linguagem divina é emanação da própria luz divina, como descreve Gershom Scholem: “o discurso dos homens está conectado ao discurso divino, e toda linguagem, seja divina ou humana, deriva de uma fonte - o Nome Divino”1 1 Tradução nossa. No original: “the speech of men is connected with divine speech, and all language, whether heavenly or human, derives from one source - the Divine Name”. Todas as traduções constantes neste trabalho são de nossa autoria, salvo indicação em contrário. (SCHOLEM, 1974SCHOLEM, Gershom. Kabbalah. New York: New American Library, 1974., p. 46); ou ainda, na abertura bíblica do Evangelho de João, o logos que “se fez carne, e habitou entre nós” - isto é, a realização mais potente do verbo: a palavra divina que, atravessando estratos ontológicos extremos, se incorpora, em uma ontofania máxima.

Esse aspecto criador - no limite, realizador: a palavra que torna real - subsiste na linguagem, ainda que destituído de sua ascendência sagrada. Talvez possamos arriscar que esse é o princípio basilar de algumas das modernas apropriações e estudos da linguagem: o princípio de uma linguagem que engendra. Não é outro o partido que a psicanálise faz da língua - a cura pela fala; tampouco é outra a hipótese que funda, por exemplo, a análise do discurso - a construção ideológica a partir do texto.

Essa hipótese de fundo está na base da linguagem poética e, especialmente, de seu tropo, que, acredita-se, é o mais impregnado de potência significativa: a metáfora. A questão geral e fundante que propomos percorrer - ancorados em uma leitura cerrada de A metáfora viva (1975)RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., de Paul Ricœur (1913-2005) - é refratária, talvez, da mesma concepção criadora da linguagem que atravessa tantas culturas: como e o que a metáfora logra realizar e tornar real.

Particularmente, propomos neste conciso excurso descrever e sistematizar, no que segue, a teoria da referência metafórica, que Ricœur desenvolve em A metáfora vivaRICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975.. Depois de uma sumária incursão nos estudos da metáfora e de uma apresentação do pensamento e do escopo ricœuriano, apresentamos três estabelecimentos conceituais da metáfora, retomados por Ricœur: a metáfora e a palavra, para a retórica clássica; a metáfora e a predicação, para a semântica discursiva; e a metáfora e a referência, do ponto de vista hermenêutico. Em seguida, mostramos, também de forma sumária, um panorama descritivo do ato da imaginação, como desenvolvido por Ricœur em trabalhos posteriores à Metáfora, e uma constelação dos conceitos e ideias em torno do imaginário ficcional.

Em seguida, apresentamos três ideias fundantes que Ricœur postula para o entendimento metaforológico, corolários de suas proposições: a tensão constitutiva do verbo ser metafórico; a suspensão da referência literal em favor de uma referência metafórica desdobrada; e a ficção como heurística do real.

O atributo referencial, epistêmico e imaginativo da metáfora, como desenvolvido pelo autor, não pode prescindir do imaginário do leitor-receptor, conceito errático mas frequentemente suscitado na obra, além de tangenciado em estudos posteriores do próprio Ricœur. Nesse último passo, arriscamos uma última indicação: de que, para Ricœur, o imaginário ficcional funciona como a metáfora viva.

Trataremos da metáfora fundamentalmente na poesia e na ficção. Os desdobramentos eminentemente teóricos aqui propostos almejam inscrever-se no domínio dos estudos literários, na expectativa de servir de aporte à teoria literária como trabalho de apuração e precisão da leitura da metáfora poética. O anseio que aqui perseguimos é, em parte, a precisão conceitual no âmbito teórico; em derradeira e maior parte, queremos testemunhar, com Octavio Paz, como a metáfora revela e provoca uma identidade última de objetos que nos pareciam irredutíveis (PAZ 2014PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. São Paulo: CosacNaify, 2014., p. 73).

Uma teoria da referência metafórica

Inserção: metáfora e arredores

Os antigos são um ponto de partida incontornável nos estudos da metáfora, como em tantos campos; e é também deles que parte Ricœur, nos dois primeiros estudos que iniciam A metáfora vivaRICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975.. Aristóteles e Quintiliano são, assim, os principais autores lidos e analisados, respectivamente em Entre retórica e poética: Aristóteles e O declínio da retórica: a tropologia. As acepções fundantes dos dois autores serão tomadas por Ricœur para, a um tempo, refutação e remodelação da compreensão da metáfora.

Aristóteles afirma que a “metáfora é a designação de uma coisa mediante um nome que designa outra coisa, transporte que se dá do gênero à espécie, da espécie ao gênero, da espécie à espécie ou segundo a relação de analogia” (ARISTÓTELES, Poética, 1457bARISTÓTELES -. Poética. Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015 [1457b]., 6-10). A relação basilar da metáfora para Aristóteles, condição para seu funcionamento, é a analogia. Seu processo particular é uma transferência, um transporte de elementos de significado, acepção que permanece legada a diversas conceituações de metáfora, desde aquelas apresentadas nos bancos escolares até a estilística e a linguística modernas. Quintiliano se diferencia:

Portanto, tropo consiste na transferência da significação natural e principal de uma expressão para outra por razões de adorno estilístico, ou como o definem muitos gramáticos, uma expressão transposta do lugar que lhe é próprio para outra em que o significado não é o próprio.(QUINTILIANOQUINTILIANO - . Institutio Oratoria. Trad. Bruno Fregni Bassetto. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. Tomo III: Livros VII, VIII e IX., IX, I, 4).

O processo central permanece - a transposição. Quintiliano, entretanto, distancia-se de Aristóteles quanto ao pressuposto disparador e quanto à abrangência potencial da metáfora. A condição metafórica é, não uma analogia, mas seu polo oposto: a expropriação de um significado impertinente, por assim dizer. Seu processo abrange não exclusivamente a metáfora, mas todos os tropos discursivos que potencialmente envolvem uma transferência significativa.

Essas definições fundantes, aqui sumariamente retomadas, aportam os conceitos centrais que perpassam parte do percurso de compreensão da metáfora em Ricœur. Katrin Kohl, pesquisadora da Universidade de Oxford, também parte desses autores, em seu panorâmico Metapher (2007)KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., para identificar e estabelecer alguns dos principais conceitos que orbitam em torno da metáfora: impertinência, domínios conceituais, processos metafóricos.2 2 Além desses, que importam especialmente à leitura de Ricoeur, a autora ainda elenca outros quatro aspectos, que fogem ao escopo e à delimitação deste trabalho: gramática da metáfora; dependência contextual; convenção e criatividade; funções. Ver esp. Kohl (2007), cap. 3.

Sobre a metáfora enquanto impertinência semântica, a autora conceitua: “a metáfora é o resultado de uma desestabilização da referência, que pode ser entendida processualmente como ‘transposição’ e, em termos do significado resultante, como ‘impertinência’” (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 26). A autora prossegue, circunscrevendo o conceito de impertinência à desestabilização da referência e mostrando quais seriam essas “instabilidades referenciais”: “o conceito de ‘impertinência’ é útil na medida em que ilustra o momento de desestabilização das referências convencionais ou daquelas experimentadas como 'reais' entre o significado e o significante” (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 26).3 3 “Die Metapher ist das Resultat einer Destabilisierung des Bezugs, die sich prozessual als ›Übertragung‹ und bezüglich der resultierenden Bedeutung als ›Uneigentlichkeit‹ verstehen lässt. [...] Der Begriff der ›Uneigentlichkeit‹ ist insofern hilfreich, als er das Moment der Destabilisierung herkömmlicher oder als ›wirklich‹ erfahrener Bezüge zwischen dem Bezeichneten und dem Bezeichnenden verdeutlicht.”

A acepção dos domínios conceituais na metáfora abriga, por sua vez, concordância em meio aos dissensos na teoria:

Em meio a todo dissenso acerca da metáfora, tende a haver concordância de que ela é constituída - ao menos em sua forma mais simples - por duas unidades ou duas concepções. A tradição da noção de “transposição” implica que essas concepções pertencem a distintos “domínios” conceituais, cognitivos ou semânticos (ou, na teoria do campo da imagem, “campos”) - domínios para os quais a metáfora espacial serve para criar uma estrutura imaginável.(KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 30).4 4 “Bei allem Dissens bezüglich der Metapher besteht tendenziell Einigkeit darüber, dass sie sich - zumindest in ihrer einfachsten Form - aus zwei Einheiten oder Vorstellungen konstituiert. Dabei impliziert die Tradition des ›Übertragungs‹-Begriffs, dass diese Vorstellungen unterschiedlichen konzeptuellen, kognitiven beziehungsweise semantischen ›Bereichen‹ (oder, in der Bildfeldtheorie, ›Feldern‹) angehören - wobei die Raummetapher dazu dient, eine vorstellbare Struktur zu schaffen.”

Dentre os processos metafóricos, que tipicamente são aglutinados na noção de transposição5 5 Ou, em outros idiomas: metaphora (gr.); translatio (lat.); Übertragung (al.), também traduzida ao português como transferência ou transporte. , Kohl diferencia e identifica cinco: substituição; transposição em si; interação; projeção ou “mapping”; entendimento/imaginação/representação de A por meio de/como B (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 41-42).

De forma sumária, apresentamos aqui a substituição e transposição, relevantes para a metaforologia de Ricœur. A substituição metafórica nomeia: “[...] o processo de eliminar uma palavra e substituir outra faculta a ideia de que a palavra ‘impertinente’ tenha ‘substituído’ a palavra ‘pertinente’. [...]” (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 41-42). Pela transposição, “a metáfora transpõe um atributo ou predicado de um ser a outro” (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 41-42).

Além dos conceitos de impertinência, domínio conceitual e processos metafóricos, a autora diferencia três formas de abordagem nos estudos da metáfora, entendida enquanto transposição de uma impertinência (Übertragung einer Uneigentlichkeit). Essas visadas se diferenciam segundo uma primazia na:

- elaboração cognitiva de uma concepção (significado cognitivo “puro”) - isto é, imaginamos, pré-linguisticamente, emoção como fogo ou um discurso impactante como um raio,

- elaboração cognitivo-linguística de concepções (significado cognitivo-linguístico) - isto é, imaginamos, sob a confluência de estruturas e/ou convenções linguísticas, a emoção como fogo e um discurso impactante como raio,

- expressão, no resultado do trabalho cognitivo-linguístico - isto é, imaginamos a emoção e o discurso impactante como tais, mas substituímos a expressão “enfurecido” (zornig) por “incendiado de fúria” (zornentbrannt) e a expressão “impactante” (eindrucksvoll) por “raio” (Blitz). (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 9-10, grifos da autora).6 6 “- in der kognitiven Verarbeitung von Vorstellungen (›rein‹ kognitive Bedeutung) - d.h. wir imaginieren vorsprachlich Emotion als Feuer und eindrucksvolle Rede als Blitz, - in der kognitiv-sprachlichen Verarbeitung von Vorstellungen (kognitiv-sprachliche Bedeutung) - d.h. wir imaginieren unter Einbezug sprachlicher Strukturen und/oder Konventionen Emotion als Feuer und eindrucksvolle Rede als Blitz, - im Ausdruck, dem Resultat der kognitiv-sprachlichen Arbeit - d.h. wir imaginieren die Emotion und die eindrucksvolle Rede als solche, aber ersetzen den Ausdruck ‘zornig’ durch ›zornentbrannt‹ und den Ausdruck ›eindrucksvoll‹ durch ‘Blitz’.”

É notável que, para o salto metáfora-imaginário que proporemos, entre os polos puramente cognitivo e linguístico descritos por Kohl, a impertinência metafórica é atravessada pelo ato de imaginar. A autora afirma, mais adiante, “que, na elaboração de expressões metafóricas, participam processos tanto verbais-associativos quanto imaginais; especialmente a interpretação de metáforas inovadoras requer, de acordo com essa abordagem, um ‘pensar imagético’ [bildliches Denken]” (KOHL, 2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., p. 13).7 7 “[...] dass in der Verarbeitung metaphorischer Sprache sowohl verbal-assoziative als auch imaginale Prozesse beteiligt sind; besonders die Interpretation innovativer Metaphern erfordert diesem Ansatz zufolge ein ‘bildliches Denken’ [...]”.

Os estabelecimentos conceituais aqui sumarizados permitem situar o percurso teórico que Ricœur realiza em A metáfora viva. Em primeiro lugar, a obra está posicionada no que Kohl define como o polo “expressivo” da metáfora, isto é, há uma preponderância da abordagem verbal e linguística - o que, entretanto, não exime Ricœur de tangenciar o polo cognitivo e imaginativo, fronteiras que autor atravessaria definitivamente em ensaios posteriores à Metáfora.8 8 Os três ensaios, explorados adiante em 2.3. Imaginário e metáfora em Paul Ricoeur, são: The metaphorical process as cognition, imagination and feeling, de 1978; Imagination et métaphore, de 1982; e L’imagination dans le discours et dans l’action, de 1986. Em segundo lugar, e em decorrência da abordagem preferencialmente linguística, os conceitos sistematizados por Kohl oferecem um campo seguro para a inserção e compreensão das teses Ricœurianas. Para Ricœur, a metáfora atravessa domínios conceituais a princípio estanques - atravessamento que se realiza por algum ou alguns dos cinco processos metafóricos de Kohl; domínios conceituais que constituem a “estrutura imaginável” dos campos significativos; estanqueidade que é a impertinência conceitual, cognitiva ou epistêmica entre os domínios. Em terceiro lugar, o “pensar imagético” ou “pensar imaginativo” asseverado por Kohl permeia a obra de Ricœur: há um componente metafórico que não se esgota na linguagem e que é preciso rastrear, no leitor-receptor, como manifestação do imaginário ficcional e poético.

A metáfora: percurso de compreensão em Ricœur

A metáfora é estudada por Ricœur a partir de três pontos de vista, balizados e delimitados por três unidades verbais de referência: a palavra, a frase (ou oração) e o discurso (obra).

Para a antiga retórica, a palavra era tomada por unidade referencial. À metáfora, então, cabia perfazer um “deslocamento e extensão do sentido das palavras, cuja explicação resultaria de uma teoria da substituição”, aportando uma “denominação desviante” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 7-8).9 9 [La métaphore consiste dans un] “déplacement et dans une extension du sens des mots; son explication relève d’une théorie de la substitution”. O autor diferencia entre sentido próprio, figurado e a apropriação denominativa:

Certos nomes pertencem propriamente a certos conjuntos de coisas (classes e espécies); pode-se chamar sentido próprio ao sentido desses termos. Por contraste, a metáfora e os outros tropos são sentidos impróprios ou figurados [...]. O termo de empréstimo, tomado em seu sentido figurado, é substituído a uma palavra ausente [...]. Entre o sentido figurado do termo de empréstimo e o sentido próprio da palavra ausente [...] existe uma razão de transposição. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 66, ênfase do autor).10 10 “Certains noms appartiennent en propre à certaines sortes (genres et espèces) de choses; on peut appeler sens propre le sens de ces termes. Par contraste, la métaphore et les autres tropes sont des sens impropres ou figurés [...] Le terme d’emprunt, pris en son sens figuré, est substituée à un mot absent [...]. Entre le sens figuré du mot d’emprunt et le sens propre du mot absent, [...] il existe une relation qu’on peut appeler la raison de la transposition [...].”

A palavra enquanto denominação admite o antigo pressuposto de um sentido próprio, de que fala Ricœur. É essa pressuposição de uma associação fixa que, na metáfora, torna-se mais rarefeita: as palavras metafóricas não se ancoram no contexto e em sua apropriação classificatória, mas “remetem às partes faltantes do contexto”; entretanto, para Ricœur, “a constância do sentido é tão somente a constância dos contextos; e essa constância não é natural; a estabilidade é, ela mesma, um fenômeno a explicar” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 102).11 11 [Les mots métaphoriques se bornent] “à renvoyer aux parties manquantes du contexte [...]”; [mais] “la constance du sens n’est jamais que la constance du des contextes; et cette constance ne vas pas de soi; la stabilité est elle-même un phénomène à expliquer.”

Ricœur prioriza, nesse primeiro ponto de vista, o processo de substituição metafórico, e, notadamente, substituição de palavras que não existem. O aparente paradoxo - substituir algo (uma palavra) que não existe - encontra certa resolução na “palavra ausente” de Ricœur: ali onde não há uma palavra, onde há uma lacuna lexical, pode entrar uma palavra metafórica para substituir o vazio. É o caso, por exemplo, da expressão o pé da cadeira: a palavra - emprestada de outra categoria, outro domínio conceitual (pé, propriamente falando, pertence a seres animados: humanos e animais) - é então sobreposta à lacuna lexical. Em um passo ulterior, Ricœur chamará essa substituição de desprezo categorial: “a visão do semelhante, que produz o enunciado metafórico, não é uma visão direta, mas uma visão que podemos chamar, ela também, de metafórica [...]. [O] novo estado de coisas é percebido apenas na espessura de um estado de coisas deslocado por um desprezo categorial” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 290).

O ponto de vista semântico emerge quando a metáfora é observada na oração, “no quadro da frase e tratada como um caso não mais de denominação desviante, mas de predicação impertinente12 12 “[...] la métaphore est replacée dans le cadre de la phrase et traitée comme un cas non plus de dénomination déviante, mais de prédication impertinente.” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 8, ênfases do autor), isto é: a metáfora altera uma identidade semântica pré-estabelecida, por meio de uma atribuição a priori imprópria. É esse o ponto de vista prioritário dos quatro estudos subsequentes de A metáfora viva: “A metáfora e a semântica do discurso”, “A metáfora e a semântica da palavra”, “A metáfora e a nova retórica”, “O trabalho da semelhança”. Ricœur elenca e detalha diversos traços constitutivos da linguagem em seu nível frasal, emprestados principalmente de Benveniste,13 13 Ricoeur distingue seis traços duplos, a saber: “todo discurso se produz como evento, mas se deixa compreender como sentido”; o discurso apresenta, a um tempo, “função identificante e função predicativa”; na “estrutura dos atos de discurso, pode-se considerar, em cada um, um aspecto de locução e um aspecto de ilocução”; “uma quarta dupla - do sentido e da referência (Sinn und Bedeutung)”; “referência à realidade e referência ao locutor”; por fim, “a distinção do semiótico e do semântico” no discurso (RICOEUR, 1975, p. 92-100, tradução nossa). dentre os quais destacaremos dois, determinantes para o estabelecimento posterior da referência metafórica de Ricœur: a função identificante e a função predicativa da linguagem.

Ao primeiro traço do discurso cabe designar o singular, cuja unicidade é um real, em diversos graus ontológicos. Ao segundo traço cabe atribuir, não algo singular, mas universal. A primeira função identifica e dá singularidade; a segunda função atribui e confere uma universalidade. Diz Ricœur:

A função identificante designa sempre Seres que existem (ou cuja existência é neutralizada, como na ficção); [...] a noção de existência está ligada à função singularizante da linguagem [...]. Ao contrário, a função predicativa concerne o inexistente, visando o universal. A triste querela entre a função singularizante e a predicativa, na Idade Média, foi possível apenas pela confusão entre a função singularizante e a função predicativa; não há sentido em se perguntar se a bondade existe, mas se alguém, que é bom, existe. A dissimetria entre as duas funções implica também a dissimetria ontológica do sujeito e do predicado. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 94).14 14 “La fonction identifiante désigne toujours des Êtres qui existent (ou dont l’existence est neutralisée, comme dans la fiction); [...] la notion d’existence est liée à la fonction singularisante du langage [...]. En revanche, la fonction prédicative concerne l’inexistant en visant l’universel. La malheureuse querelle entre la fonction singularisante et la fonction prédicative, au Moyen Âge, n’a été possible que par la confusion entre la fonction singularisante et la fonction prédicative: il n’y a pas de sens à se demander si la bonté existe, mais si un tel, qui est bon, existe. La dissymétrie des deux fonctions implique donc aussi la dissymétrie ontologique du sujet et du prédicat.”

Na metáfora observada em uma oração - na qual há uma predicação de qualquer tipo, portanto -, um elemento universal é atribuído a outro elemento, singular. Dois aspectos importantes acontecem nessa atribuição. Ocorre, primeiro, a apropriação de uma alteração, pela incorporação de uma nova pertinência semântica, ou seja, novos elementos semânticos e de significado são atribuídos ao ente original. Então, a metáfora procede a uma reidentificação daquilo que guardava certa unicidade, o ente inicial.

Em resumo, na metáfora oracional há uma nova pertinência semântica, atribuída ao ente singular, o que ocasiona uma reidentificação da identidade inicial. É esse entendimento da metáfora que importará de maneira determinante à teoria da referência metafórica de Ricœur. A função identificante (ou singularizante) e a função predicativa (universal) são atravessadas pela metáfora. A função identificante-singularizante, quando aposta à função predicativa-universal, sofre uma reidentificação metafórica.

O ponto de vista hermenêutico, correspondente à extensão suprafrasal - a obra, o texto -, é o partido preponderante nos dois últimos estudos, “Metáfora e referência” e “Metáfora e discurso filosófico”. A partir desse ponto, Ricœur passa a sugerir suas próprias teses. Para ele, é apenas do ponto de vista interpretativo que a metáfora pode dar a ver uma referência para o enunciado metafórico, “enquanto poder de ‘redescrever’ a realidade”, ativando “o poder heurístico desdobrado pela ficção”:

Uma nova problemática emerge com esse novo ponto de vista [hermenêutico]: não se trata mais da forma da metáfora enquanto figura de discurso focalizada sobre a palavra; nem mesmo apenas o sentido da metáfora enquanto instauração de uma nova pertinência semântica; mas a referência do enunciado metafórico enquanto poder de ‘redescrever’ a realidade. [...] A metáfora se apresenta, então, como uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criativa da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobrado pela ficção. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 10; ênfases do autor).15 15 “une nouvelle problématique émerge en liaison avec ce nouveau point de vue [herméneutique]: elle ne concerne plus la forme de la métaphore en tant que figure du discours focalisée sur le mot; ni même seulement le sens de la métaphore en tant qu’instauration d’une nouvelle pertinence sémantique; mais la référence de l’énoncé métaphorique en tant que pouvoir de ‘redécrire’ la réalité [...]. La métaphore se présente alors comme une stratégie de discours qui, en préservant et développant la puissance créatrice du langage, préserve et développe le pouvoir heuristique déployé par la fiction.”

As palavras que o próprio Ricœur destaca sintetizam o percurso investigativo da obra e apontam sua culminância no postulado: existe uma referência para o enunciado metafórico, que, por isso, tem a capacidade de redescrever a realidade. Outro salto teórico é o tratamento, agora explicitamente focado na ficção. Se, até o sexto estudo, o autor havia dado preferência a uma leitura clássico-retórica ou linguístico-semântica de forma generalizante, o primado discursivo passa a ser a obra literária.

O poder heurístico-investigativo do real, segundo a descrição do processo metafórico ao nível hermenêutico, passa por uma suspensão da referência (literal), pela superposição de uma referência desdobrada (metafórica) pela ficção, que então pode se erigir como referência redescritiva. O passo de Ricœur pela escolha da obra ficcional não é fortuito: a obra literária é justamente aquela que não pode prescindir “de que seja suspensa a referência do discurso descritivo”; é justamente ela que, tacitamente, exige essa suspensão de um real, para que uma ficção se instale:

[...] por sua estrutura própria, a obra literária desdobra um mundo apenas sob a condição de que seja suspensa a referência do discurso descritivo. [...] Pode ser, com efeito, que o enunciado metafórico seja precisamente aquele que mostra claramente a relação entre referência suspensa e referência desdobrada. Assim como o enunciado metafórico é aquele que conquista seu sentido como metafórico sobre as ruínas do sentido literal, ele é também aquele que adquire sua referência sobre as ruínas do que podemos designar, por simetria, de sua referência literal. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 278-279).16 16 “[...] par sa structure propre, l'œuvre littéraire ne déploie un monde que sous la condition que soit suspendue la référence du discours descriptif. [...] Il se peut en effet que l’énoncé métaphorique soit précisément celui qui montre en clair ce rapport entre référence suspendue et référence déployée. De même que l’énoncé métaphorique est celui qui conquiert son sens comme métaphorique sur les ruines du sens littéral, il est aussi celui qui acquiert sa référence sur les ruines de ce qu’on peut appeler, par symétrie, sa référence littérale.”

Em síntese, a metáfora é [i] desvio nominativo de uma palavra, pela substituição de uma lacuna lexical que atravessa domínios conceituais distintos; [ii] instauração de uma nova pertinência semântica, no nível da oração, culminando na reidentificação da função identificante-singularizante da linguagem; e [iii] redescrição da realidade, no nível hermenêutico da obra literária, pela superposição de uma “referência duplicada”, em relação ao que seria uma pura mimese ficcional e em relação à identificação singularizante de um ente na linguagem. É nessa última acepção que a metáfora - e, com ela, a linguagem - ganha a força de uma “verdade metafórica” e de uma “intenção realista”.

A função poética [...] visa redescrever a realidade pelo caminho desviado de uma ficção heurística. A metáfora é, a serviço da função poética, a estratégia do discurso pela qual a linguagem se despoja de sua função de descrição direta para aceder ao nível mítico, no qual sua função de descoberta é desbloqueada. Podemos nos arriscar a falar de verdade metafórica para designar a intenção ‘realista’ que se liga ao poder de redescrição da linguagem poética. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 311).17 17 “La fonction poétique [...] vise à redécrire la réalité par le chemin détourné de la fiction heuristique. La métaphore est, au service de la fonction poétique, cette stratégie de discours par laquelle le langage se dépouille de sa fonction de description directe pour accéder au niveau mythique où sa fonction de découverte est libérée. On peut se risquer à parler de vérité métaphorique pour désigner l’intention ‹‹ réaliste ›› qui s’attache au pouvoir de redescription du langage poétique.”

É a partir desses últimos desenvolvimentos, especialmente da metáfora inserida na hermenêutica - a metáfora que desdobra uma referência duplicada, que redescreve e instaura uma nova heurística do real -, que Ricœur oferece algumas de suas maiores contribuições: a teoria da referência metafórica, o caráter tensional do verbo ser metafórico, a ficção como heurística do real. Segundo a primeira, o autor descreve o horizonte do efeito metafórico: a metáfora dá a ver uma referência duplicada, desdobrada pela própria metáfora. Pela segunda, Ricœur descreve o modo de funcionamento da metáfora: o amálgama de uma duplicidade identificatória, que incorpora uma negação e uma reidentificação - distanciando-se, aqui, de qualquer dos processos antes enunciados por Kohl (2007KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007.). Diz ele: “não há outro modo de fazer justiça à noção de verdade metafórica que não seja pela inclusão da ponta crítica do ‘não é’ (literalmente) na veemência ontológica do ‘é’ (metaforicamente)” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 321).18 18 “[...] il n’est pas d’autre façon de rendre justice à la notion de vérité que d’inclure la pointe critique du ‹‹ n’est pas ›› (littéralement) dans la véhémence ontologique du ‹‹ est ›› (métaphoriquement).” Pela terceira, o autor alça a ficção ao posto de modo privilegiado de perquirição do real, uma vez que o “modo imaginativo”, de que trataremos adiante, suspende, necessariamente, a referência real.

É essa tensão inerente ao verbo ser - não é e é como - que leva à referência e ao efeito de verdade metafóricos. O mesmo Ricœur conclui, ao dizer que “essa constituição tensional do verbo ser” marca “a tensão entre o mesmo e o outro na conjunção relacional” (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 321), ou seja, entre uma identidade (pré-metafórica), uma predicação (impertinente) e a identidade alterada (metafórica).

A identidade alterada é um paradoxo que apenas a metáfora logra carregar, ou, ainda, que apenas ela logra transpor. Emprestando um título também de Ricœur, a metáfora é um si-mesmo como outro na linguagem. O si-mesmo - que, como outro, é descoberto pela linguagem poética e que é portador de uma “intenção realista” - precisa, entretanto, atravessar o ato da imaginação.

A imaginação e a metáfora em Paul Ricœur

Já em A metáfora viva, Ricœur assevera uma “hipótese poética” que propõe “um mundo sob o modo imaginativo, fictício”, capaz de suscitar “outras possibilidades de existir”:

Mas a ‘hipótese poética’ não é a ‘hipótese matemática’: é a proposição de um mundo sob o modo imaginativo, fictício. Assim, a suspensão da referência real é a condição de acesso à referência sob o modo virtual. [...] Não seria a função da poesia suscitar um outro mundo, - um mundo outro que corresponda às possibilidades outras de existir, às possibilidades que sejam nossos possíveis mais próprios? (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 288).19 19 “Mais ‹‹ l’hypothèse poétique ›› n’est pas l’hypothèse mathématique; c’est la proposition d’un monde sur le mode imaginatif, fictif. Ainsi la suspension de la référence réelle est la condition d’accès à la référence sur le mode virtuel. [...] N’est-ce pas la fonction de la poésie de susciter un autre monde, - un monde autre qui corresponde à des possibilités autres d’exister, à des possibilités qui soient nos possibles les plus propres?”

O modo imaginativo, fictício, como Ricœur sinaliza nesse passo, parece corresponder à “suspensão da referência real”, que faculta o acesso à referência virtual. Mesmo Ricœur parece reconhecer certo limite da linha investigativa que vinha executando até então, valendo-se da “imagem poética”, com sua “origem psíquica”, para suscitar a “fenomenologia da imaginação”:

Se então a fenomenologia da imaginação se estende além da psicolinguística e mesmo da descrição do ver-como, é porque ela segue o fio da retumbância da imagem poética na profundidade da existência. A imagem poética torna-se uma ‘origem psíquica’. O que era ‘um novo ente da linguagem’ torna-se um ‘recrudescimento de consciência’, ou antes, um ‘recrudescimento de ser’. Mesmo na ‘poética psicológica’, mesmo nos ‘devaneios sobre o devaneio’, o psiquismo permanece ‘ensinado’ pelo verbo poético. (RICŒUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 272).20 20 “Si donc la phénoménologie de l’imagination s’étend au-delà de la psycho-linguistique et même de la description du voir-comme, c’est qu’elle suit le fil du ‹‹ retentissement ›› de l’image poétique dans la profondeur de l’existence. L’image poétique devient une ‹‹ origine psychique ››. Ce qui était ‹‹ un nouvel être du langage ›› devient un ‹‹ accroissement de conscience ››, mieux, une ‹‹ croissance d’être ››. Jusque dans la ‹‹ poétique psychologique ››, jusque dans les rêveries sur la rêverie ››, le psychisme reste ‹‹ enseigné ›› par le verbe poétique.”

Em O processo metafórico como cognição, imaginação e sensação, texto publicado em 1978 - três anos após a publicação de A metáfora, portanto -, Ricœur reconhece e almeja demonstrar a função da imaginação na constituição semântica da metáfora: “minha tese [...] é que imagens e sentimentos possuem uma função constitutiva” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 143, ênfase do autor).21 21 “My thesis is [...] that images and feelings have a constitutive function.” Em particular, o autor procura demonstrar que há um “papel semântico da imaginação (e, por implicação, do sentimento) no estabelecimento do sentido metafórico” (RICŒUR, 1978, p. 144). 22 22 “[...] semantic role of imagination (and by implication, feeling) in the establishment of metaphorical sense.”

Em um primeiro estágio, o que o autor chama de imaginação produtiva é a “esquematização de uma operação sintética” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 147):23 23 “[...] schematizing a synthetic operation.” “a imaginação é esse estágio na produção de gêneros nos quais um parentesco geral ainda não alcançou o nível de repouso e paz conceitual, mas permanece preso na guerra entre distância e proximidade, entre afastamento e imediação” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 148-149).24 24 “Imagination is this stage in the production of genres where generic kinship has not reached the level of conceptual peace and rest but remains caught in the war between distance and proximity, between remoteness and nearness.” Em um segundo estágio, afastando-se do aspecto quase-verbal da imaginação e adentrando o aspecto quase-ótico, propriamente imagético, Ricœur descreve “o segundo aspecto da imaginação, sua dimensão pictórica” pela “exibição de relações que retratam”: são “imagens ‘vinculadas’, isto é, representações concretas suscitadas pelo elemento verbal e por ele controladas” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 150).25 25 “[...] ‘bound’ images, that is, concrete representations aroused by the verbal element and controlled by it.” O terceiro e último passo imaginativo é chamado por Ricœur de “suspensão”, “o momento de negatividade trazido pela imagem no processo metafórico” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 151).26 26 “suspension”, “the moment of negativity brought by the image in the metaphorical process.” A função poética não oblitera a referência, mas a torna ambígua, uma referência de segunda ordem que Ricœur chama de “referência dividida” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 153).27 27 “[...] split reference.” O autor enuncia uma de suas teses finais, sobre a relação entre a imaginação e a metáfora, a partir desse tríplice processamento da imaginação: “imaginação e sentimento não são extrínsecos à emergência do sentido metafórico e à referência dividida. Não são substitutos para uma falta de conteúdo informativo, mas completam a intenção cognitiva total” (RICŒUR, 1978RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978., p. 158).28 28 “imagination and feeling are not extrinsic to the emergence of the metaphorical sense and of the split reference. They are not substitutive for a lack of informative content in metaphorical statements, but they complete their full cognitive content.” A imaginação, nos três passos descritos, completa a expressão metafórica e pode então, pelo estabelecimento de uma referência dividida, alcançar um grau ontológico.

Em Imaginação e metáfora, de 1982, os mesmos passos do ato imaginativo são retomados, mas algumas de suas implicações são levadas a outro alcance: “o trabalho da imaginação consiste na captura de uma tensão [...] entre identidade e diferença”. Ela faculta, então, “a aptidão a produzir novas classes lógicas por assimilação das diferenças, isto é: não acima das diferenças, como no conceito, mas nas e pelas diferenças” (RICŒUR, 1982RICŒUR, Paul. Imagination et métaphore. Psychologie Médicale, Lille, 14, 1982., p. 7, ênfases do autor).29 29 “l’aptitude à produire non pas au dessus des différences, comme dans le concept, mais dans et par les différences.” Um outro passo é executado, atingindo mais especificamente o domínio da metáfora na obra ficcional: a epoché ou suspensão da referência ordinária é obra de um ato de imaginação, e é, a um tempo, contraparte da imagem ficcional, detentora da capacidade de projetar novas realidades.

Em A imaginação no discurso e na ação, de 1986, o autor retoma e sintetiza as passagens anteriores, mas logra franquear o domínio discursivo: a imaginação é a possibilidade da “crítica do real”, porque produz uma “alteridade fundamental”. A imagem ficcional não é tomada pelo real, mas produz um ato de distinção, que critica o mesmo real: “a imaginação é o instrumento mesmo da crítica do real. [...] O ato de distinção, altamente consciente de si mesmo, pelo qual uma consciência coloca algo à distância do real, produz assim a alteridade no coração mesmo de sua experiência [...]” (RICŒUR, 1986RICŒUR, Paul. L’imagination dans le discours et dans l’action. In: RICŒUR, Paul. Essais d’herméneutique. Paris: Éditions du Seuil , 1986. v. II, p. 213-228., p. 216, ênfase do autor)30 30 “l’imagination est l’instrument même de la critique du réel. [...] L’acte de distinction, hautement conscient de lui-même, par lequel une conscience pose quelque chose à distance du réel et ainsi produit l’altérité au coeur même de son expérience [...]”

A pletora de caracteres levantados por esses desenvolvimentos posteriores de Ricœur sugere a força potencial crescente que o autor confere à metáfora, à ficção, e, especialmente, à imaginação. Em todos esses elementos - desde a descrição fenomenológica da imaginação até sua capacidade de assimilação diferencial e de alteridade crítica - parece residir o “recrudescimento de consciência” e “de ser” que o autor havia sinalizado na obra de 1975: a metáfora e a obra ficcional adquirem, com Ricœur, um atributo epistemológico e, também, ético.

O imaginário como metáfora

Dentre as leituras e pesquisas bibliográficas ora levantadas, podemos acentuar, de forma sumária, dois passos de estabelecimento conceitual, além de três enunciados relevantes para a compreensão da metáfora em Paul Ricœur. Dentre os primeiros, podemos relevar que a metáfora incorpora uma nova pertinência semântica, perfazendo uma reidentificação. Acentuemos, ainda, que a metáfora atravessa e reverte, por assim dizer, a função identificante-singularizante e a função predicativa-universal, pela via da teoria da referência metafórica. Dentre os últimos, três das importantes proposições de Ricœur identificam alguns caracteres da metáfora: a tensão no verbo ser metafórico: em toda metáfora subjaz um não é e é como; a referência literal suspensa em favor de uma referência metafórica suscitada, uma referência desdobrada; a ficção como heurística - aproximação progressiva e redescritiva - do real.

Se arriscarmos ainda uma última súmula, temos, em uma ponta, a incursão semântica e ontológica que a metáfora alcança, pela via da referência metafórica; em outra ponta, a forma constitutiva, tensional e referencial dessa incursão. Ficam assim estabelecidas as hipóteses e teorias que descrevem a relação entre metáfora e realidade, principalmente no âmbito linguístico-expressivo indicado por Kohl.

A “hipótese poética”, “o modo imaginativo, fictício”, trazidos à baila por Ricœur, são abordados, pelo próprio autor, em uma caracterologia sistemática: a imaginação procede a uma esquematização sintética, no nível quase-verbal; a uma enformação pictórica, em nível quase-ótico; enfim, a uma ambiguação e divisão referencial. Isto é: a tensão metafórica essencial para Ricœur, não é e é como, repousa sobre um modo imaginativo, uma hipótese fictícia. O primeiro elemento tensional constitui a suspensão necessária, a negatividade original; o é como metafórico, por sua vez, constitui o passo imaginativo-ficcional antecipado por Ricœur, realização de um ato de imaginação. A metáfora permite imaginar uma possibilidade que tanto é conhecimento, ou seja, diz algo verdadeiro sobre o real, quanto é imaginação prospectiva, isto é, imagina um futuro, uma possibilidade.

Metaforologia e o paradoxo da identidade alterada

Palavra de Ir-Ao-Fundo, a palavra que lemos. Os anos, as palavras desde então. Somos nós, ainda.31 31 Celan (2021, p. 43). Tradução de Maurício Mendonça Cardozo.

Os estudos sobre a metáfora ao longo do séculos XX e XXI têm atravessado a linguística, os estudos literários, a epistemologia e até as modernas ciências cognitivas, chegando mesmo a configurar um campo particular de estudos e a receber uma denominação própria entre pesquisadores em língua alemã, a Metaphorologie, da qual Hans Blumenberg (1920-1996) e Anselm Haverkamp (1943-), Katrin Kohl (1956-) são alguns expoentes, com seus respectivos Paradigmen zu einer Metaphorologie (1960), Theorie der Metapher (1996) e Metapher (2007)KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007..

Nesse quadro, A metáfora viva, de Ricœur, prepara um salto epistêmico-cultural para os estudos da metáfora em língua alemã. É na esteira do teórico francês que almejamos, com a exploração do “campo metaforológico”, contribuir para a abordagem da metáfora e do imaginário nos estudos literários brasileiros, não apenas enquanto teorias, mas, em última instância, como leitura e aporte hermenêutico - como já desenvolvido, em parte e entre outras, por Paula e Sperber (2011PAULA, Adna Candido de; SPERBER, Suzi Frankl. Teoria Literária e Hermenêutica Ricœuriana: Um diálogo possível. Dourados: Editora UFGD, 2011.).

A fundamentação eminentemente teórica esboçada aqui sugere alguns estabelecimentos. Em Ricœur, a metáfora está imersa em uma constelação de paradigmas: reidentificação, referência desdobrada, tensão no verbo ser metafórico, heurística do real são alguns dos núcleos do pensamento ricœuriano aqui descritos. A “suspensão voluntária da descrença” de Coleridge é levada, por Ricœur, a outro limite: a ficção impõe uma suspensão incontornável do real, para desdobrar um real mais impregnado de peso, desviado de sua orientação prévia. Para o autor, a tensão constitutiva reside na própria metáfora: é percebida e é atributo metafórico em si. É constante, entretanto, uma reiteração entre identificação, desidentificação e reidentificação, quer na metáfora, quer no imaginário: uma identidade é atravessada e ultrapassada.

Duas indagações gerais acerca dessa teorização são remanescentes. Uma delas, já notada por Costa Lima (2002)COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2. e também levantada por Köppe e Winko (2013KÖPPE, Tilmann; WINKO, Simone. Neuere Literaturtheorien. 2., aktualisierte und erweiterte Auflage. Stuttgart: Springer Verlag, 2013.), diz respeito ao potencial crítico e interpretativo da teoria de Ricœur: ela estaria circunscrita ao campo teórico ou poderia alcançar, de fato, a experiência da leitura literária de uma obra particular? A outra questão, que aqui apenas enunciamos, diz respeito à relação entre metáfora e imaginário ficcional: uma seria condição para o outro, ou poderíamos aventar certo paralelismo entre ambos?

As questões permanecem abertas, como também permanece aberto o paradoxo da identidade alterada que constitui a metáfora e o imaginário. “A palavra que lemos” não é mais aquela primeira, uma pura palavra lida, mas esta, radicalmente outra: “palavra de Ir-Ao-Fundo”; não obstante, “somos nós ainda”; somos, ainda, “os anos, as palavras desde então”.

Referências

  • ARISTÓTELES -. Poética Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015 [1457b].
  • CELAN, Paul. A Rosa de Ninguém Die Niemandsrose. Trad. Mauricio Mendonça Cardozo. São Paulo: Editora 34 , 2021.
  • COSTA LIMA, Luiz. Teoria da literatura em suas fontes Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2.
  • KOHL, Katrin. Metapher Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007.
  • KÖPPE, Tilmann; WINKO, Simone. Neuere Literaturtheorien 2., aktualisierte und erweiterte Auflage. Stuttgart: Springer Verlag, 2013.
  • PAULA, Adna Candido de; SPERBER, Suzi Frankl. Teoria Literária e Hermenêutica Ricœuriana: Um diálogo possível. Dourados: Editora UFGD, 2011.
  • PAZ, Octavio. O Arco e a Lira São Paulo: CosacNaify, 2014.
  • QUINTILIANO - . Institutio Oratoria Trad. Bruno Fregni Bassetto. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. Tomo III: Livros VII, VIII e IX.
  • RICŒUR, Paul. La métaphore vive Paris: Éditions du Seuil, 1975.
  • RICŒUR, Paul. The Metaphorical Process as Cognition, Imagination, and Feeling, Chicago, Critical Inquiry, v. 5, n. 1 (Special Issue on Metaphor), p. 143-159, Autumn, 1978.
  • RICŒUR, Paul. Imagination et métaphore. Psychologie Médicale, Lille, 14, 1982.
  • RICŒUR, Paul. L’imagination dans le discours et dans l’action. In: RICŒUR, Paul. Essais d’herméneutique Paris: Éditions du Seuil , 1986. v. II, p. 213-228.
  • SCHOLEM, Gershom. Kabbalah New York: New American Library, 1974.
  • 1
    Tradução nossa. No original: “the speech of men is connected with divine speech, and all language, whether heavenly or human, derives from one source - the Divine Name. Todas as traduções constantes neste trabalho são de nossa autoria, salvo indicação em contrário.
  • 2
    Além desses, que importam especialmente à leitura de Ricoeur, a autora ainda elenca outros quatro aspectos, que fogem ao escopo e à delimitação deste trabalho: gramática da metáfora; dependência contextual; convenção e criatividade; funções. Ver esp. Kohl (2007)KOHL, Katrin. Metapher. Stuttgart: Verlag J. B. Metzler, 2007., cap. 3.
  • 3
    “Die Metapher ist das Resultat einer Destabilisierung des Bezugs, die sich prozessual als ›Übertragung‹ und bezüglich der resultierenden Bedeutung als ›Uneigentlichkeit‹ verstehen lässt. [...] Der Begriff der ›Uneigentlichkeit‹ ist insofern hilfreich, als er das Moment der Destabilisierung herkömmlicher oder als ›wirklich‹ erfahrener Bezüge zwischen dem Bezeichneten und dem Bezeichnenden verdeutlicht.”
  • 4
    “Bei allem Dissens bezüglich der Metapher besteht tendenziell Einigkeit darüber, dass sie sich - zumindest in ihrer einfachsten Form - aus zwei Einheiten oder Vorstellungen konstituiert. Dabei impliziert die Tradition des ›Übertragungs‹-Begriffs, dass diese Vorstellungen unterschiedlichen konzeptuellen, kognitiven beziehungsweise semantischen ›Bereichen‹ (oder, in der Bildfeldtheorie, ›Feldern‹) angehören - wobei die Raummetapher dazu dient, eine vorstellbare Struktur zu schaffen.”
  • 5
    Ou, em outros idiomas: metaphora (gr.); translatio (lat.); Übertragung (al.), também traduzida ao português como transferência ou transporte.
  • 6
    “- in der kognitiven Verarbeitung von Vorstellungen (›rein‹ kognitive Bedeutung) - d.h. wir imaginieren vorsprachlich Emotion als Feuer und eindrucksvolle Rede als Blitz, - in der kognitiv-sprachlichen Verarbeitung von Vorstellungen (kognitiv-sprachliche Bedeutung) - d.h. wir imaginieren unter Einbezug sprachlicher Strukturen und/oder Konventionen Emotion als Feuer und eindrucksvolle Rede als Blitz, - im Ausdruck, dem Resultat der kognitiv-sprachlichen Arbeit - d.h. wir imaginieren die Emotion und die eindrucksvolle Rede als solche, aber ersetzen den Ausdruck ‘zornig’ durch ›zornentbrannt‹ und den Ausdruck ›eindrucksvoll‹ durch ‘Blitz’.”
  • 7
    “[...] dass in der Verarbeitung metaphorischer Sprache sowohl verbal-assoziative als auch imaginale Prozesse beteiligt sind; besonders die Interpretation innovativer Metaphern erfordert diesem Ansatz zufolge ein ‘bildliches Denken’ [...]”.
  • 8
    Os três ensaios, explorados adiante em 2.3. Imaginário e metáfora em Paul Ricoeur, são: The metaphorical process as cognition, imagination and feeling, de 1978; Imagination et métaphore, de 1982; e L’imagination dans le discours et dans l’action, de 1986.
  • 9
    [La métaphore consiste dans un] “déplacement et dans une extension du sens des mots; son explication relève d’une théorie de la substitution”.
  • 10
    “Certains noms appartiennent en propre à certaines sortes (genres et espèces) de choses; on peut appeler sens propre le sens de ces termes. Par contraste, la métaphore et les autres tropes sont des sens impropres ou figurés [...] Le terme d’emprunt, pris en son sens figuré, est substituée à un mot absent [...]. Entre le sens figuré du mot d’emprunt et le sens propre du mot absent, [...] il existe une relation qu’on peut appeler la raison de la transposition [...].”
  • 11
    [Les mots métaphoriques se bornent] “à renvoyer aux parties manquantes du contexte [...]”; [mais] “la constance du sens n’est jamais que la constance du des contextes; et cette constance ne vas pas de soi; la stabilité est elle-même un phénomène à expliquer.”
  • 12
    “[...] la métaphore est replacée dans le cadre de la phrase et traitée comme un cas non plus de dénomination déviante, mais de prédication impertinente.”
  • 13
    Ricoeur distingue seis traços duplos, a saber: “todo discurso se produz como evento, mas se deixa compreender como sentido”; o discurso apresenta, a um tempo, “função identificante e função predicativa”; na “estrutura dos atos de discurso, pode-se considerar, em cada um, um aspecto de locução e um aspecto de ilocução”; “uma quarta dupla - do sentido e da referência (Sinn und Bedeutung)”; “referência à realidade e referência ao locutor”; por fim, “a distinção do semiótico e do semântico” no discurso (RICOEUR, 1975RICŒUR, Paul. La métaphore vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975., p. 92-100, tradução nossa).
  • 14
    “La fonction identifiante désigne toujours des Êtres qui existent (ou dont l’existence est neutralisée, comme dans la fiction); [...] la notion d’existence est liée à la fonction singularisante du langage [...]. En revanche, la fonction prédicative concerne l’inexistant en visant l’universel. La malheureuse querelle entre la fonction singularisante et la fonction prédicative, au Moyen Âge, n’a été possible que par la confusion entre la fonction singularisante et la fonction prédicative: il n’y a pas de sens à se demander si la bonté existe, mais si un tel, qui est bon, existe. La dissymétrie des deux fonctions implique donc aussi la dissymétrie ontologique du sujet et du prédicat.”
  • 15
    “une nouvelle problématique émerge en liaison avec ce nouveau point de vue [herméneutique]: elle ne concerne plus la forme de la métaphore en tant que figure du discours focalisée sur le mot; ni même seulement le sens de la métaphore en tant qu’instauration d’une nouvelle pertinence sémantique; mais la référence de l’énoncé métaphorique en tant que pouvoir de ‘redécrire’ la réalité [...]. La métaphore se présente alors comme une stratégie de discours qui, en préservant et développant la puissance créatrice du langage, préserve et développe le pouvoir heuristique déployé par la fiction.”
  • 16
    “[...] par sa structure propre, l'œuvre littéraire ne déploie un monde que sous la condition que soit suspendue la référence du discours descriptif. [...] Il se peut en effet que l’énoncé métaphorique soit précisément celui qui montre en clair ce rapport entre référence suspendue et référence déployée. De même que l’énoncé métaphorique est celui qui conquiert son sens comme métaphorique sur les ruines du sens littéral, il est aussi celui qui acquiert sa référence sur les ruines de ce qu’on peut appeler, par symétrie, sa référence littérale.”
  • 17
    “La fonction poétique [...] vise à redécrire la réalité par le chemin détourné de la fiction heuristique. La métaphore est, au service de la fonction poétique, cette stratégie de discours par laquelle le langage se dépouille de sa fonction de description directe pour accéder au niveau mythique où sa fonction de découverte est libérée. On peut se risquer à parler de vérité métaphorique pour désigner l’intention ‹‹ réaliste ›› qui s’attache au pouvoir de redescription du langage poétique.”
  • 18
    “[...] il n’est pas d’autre façon de rendre justice à la notion de vérité que d’inclure la pointe critique du ‹‹ n’est pas ›› (littéralement) dans la véhémence ontologique du ‹‹ est ›› (métaphoriquement).”
  • 19
    “Mais ‹‹ l’hypothèse poétique ›› n’est pas l’hypothèse mathématique; c’est la proposition d’un monde sur le mode imaginatif, fictif. Ainsi la suspension de la référence réelle est la condition d’accès à la référence sur le mode virtuel. [...] N’est-ce pas la fonction de la poésie de susciter un autre monde, - un monde autre qui corresponde à des possibilités autres d’exister, à des possibilités qui soient nos possibles les plus propres?”
  • 20
    “Si donc la phénoménologie de l’imagination s’étend au-delà de la psycho-linguistique et même de la description du voir-comme, c’est qu’elle suit le fil du ‹‹ retentissement ›› de l’image poétique dans la profondeur de l’existence. L’image poétique devient une ‹‹ origine psychique ››. Ce qui était ‹‹ un nouvel être du langage ›› devient un ‹‹ accroissement de conscience ››, mieux, une ‹‹ croissance d’être ››. Jusque dans la ‹‹ poétique psychologique ››, jusque dans les rêveries sur la rêverie ››, le psychisme reste ‹‹ enseigné ›› par le verbe poétique.”
  • 21
    “My thesis is [...] that images and feelings have a constitutive function.”
  • 22
    “[...] semantic role of imagination (and by implication, feeling) in the establishment of metaphorical sense.”
  • 23
    “[...] schematizing a synthetic operation.”
  • 24
    “Imagination is this stage in the production of genres where generic kinship has not reached the level of conceptual peace and rest but remains caught in the war between distance and proximity, between remoteness and nearness.”
  • 25
    “[...] ‘bound’ images, that is, concrete representations aroused by the verbal element and controlled by it.”
  • 26
    “suspension”, “the moment of negativity brought by the image in the metaphorical process.”
  • 27
    “[...] split reference.”
  • 28
    “imagination and feeling are not extrinsic to the emergence of the metaphorical sense and of the split reference. They are not substitutive for a lack of informative content in metaphorical statements, but they complete their full cognitive content.”
  • 29
    “l’aptitude à produire non pas au dessus des différences, comme dans le concept, mais dans et par les différences.”
  • 30
    “l’imagination est l’instrument même de la critique du réel. [...] L’acte de distinction, hautement conscient de lui-même, par lequel une conscience pose quelque chose à distance du réel et ainsi produit l’altérité au coeur même de son expérience [...]”
  • 31
    Celan (2021CELAN, Paul. A Rosa de Ninguém. Die Niemandsrose. Trad. Mauricio Mendonça Cardozo. São Paulo: Editora 34 , 2021., p. 43). Tradução de Maurício Mendonça Cardozo.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2022
  • Aceito
    20 Abr 2022
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