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Rumo à prosa

On the way to prose

TRADUÇÕES

Rumo à prosa

On the way to prose

Pierre Alferi

Apresentação

Masé Lemos (UNIRIO) e Paula Glenadel (UFF)

Nascido em 1963 em Paris, filho do filósofo Jacques Derrida e da psicanalista Marguerite Aucouturier, Pierre Alferi publicou em 1989 sua tese de doutorado Guillaume d'Ockham. Le Singulier, mas não prosseguiu a carreira acadêmica na filosofia. Em 1991, publicou seu primeiro livro de poesia, Les Allures naturelles, escrito e publicado ao mesmo tempo que seu livro de ensaio Chercher une phrase, onde explorava questões sobre a linguagem e a literatura a partir de uma espécie de reflexão prática em torno da escrita de seu livro de poesia. Alferi publicou, desde então, diversos livros, como Le Chemin familier du poisson combatif (1992), Kub Or (1994), Sentimentale journée (1997), La Voie des airs (2004), e ainda os romances Fmn (1994), Le cinéma des familles (1999), e Les Jumelles (2009).

Kiwi: Roman-feuilleton, de 2012, é o seu mais recente trabalho, publicado pela P.O.L., editora francesa conhecida por seu catálogo de poesia, ou melhor, pela publicação de ovnis: objetos verbais não identificados. Nesse contexto, apresentar e explicar com precisão o gênero literário ou mesmo os gêneros literários praticados por Alferi torna-se inviável. Para ele, como para alguns dos mais interessantes "poetas", ou melhor, pós-poetas franceses contemporâneos, o que importa é a aposta na forma e na superfície da linguagem. A sua escrita consiste em um conjunto de operações práticas com a linguagem que cria máquinas textuais através de procedimentos e agenciamentos com materiais concretos, existentes no mundo. Para realizar essas operações práticas, eles se utilizam da linguagem tanto verbal quanto não verbal, em mídias variadas, e se apropriam também dos gêneros literários; todo este material está à disposição como ferramentas em uma caixa. As formas literárias, classificadas em gêneros, são imitadas, colocando-se em relevo o automatismo dos diversos modos de usar da literatura, de maneira irônica, como é o caso do acima citado "romance-folhetim".

Considerado um dos mais inovadores poetas ou pós-poetas de sua geração, Alferi tem trabalhando bastante em colaboração com outros artistas. Com a fotógrafa Suzanne Doppelt, parceira no livro Kub Or, fundou a Revista Détail, e com o poeta Olivier Cadiot, La Revue de Littérature Générale, que, apesar de sua curta duração – foram apenas dois números entre 1995 e 1996 –, teve grande impacto na cena francesa. Com o escultor Jacques Julien, produziu o DVD Ça commence à Séoul (2007) e o DVD Cinépoèmes & films parlants (2006), entre outros discos e performances, com o músico Rodolphe Burger.

Alferi, que também se dedica ao trabalho de tradutor – traduziu para o francês obras de John Donne, Giorgio Agamben e Meyer Schapiro, entre outros –, ainda é pouco conhecido no Brasil, tendo tido apenas um breve ensaio sobre "Política" publicado na Revista Inimigo rumor nº 16, em tradução de Carlito Azevedo e Marcos Siscar, além de algum material poético traduzido e apresentado por Marília Garcia no site da revista Modo de usar & Co.

O interesse em traduzir Alferi para o português faz parte de um esforço para expandir a concepção atual de escrita poética na direção de um trabalho que questiona a poesia pura, a poesia lírica da revelação e do embelezamento do cotidiano, como fazem também diversos poetas brasileiros contemporâneos. Rumo à prosa, pequeno ensaio escrito em 1994, questiona exatamente o privilégio dado à poesia por sua capacidade de transcendência, em detrimento da prosa, tida como rasteira. Ao reverter essa expectativa, Alferi retoma o interesse poético pela prosa, ou seja, por uma escrita que se inclina para escutar o barulho do mundo, do nosso mundo, esse mundo que nos interpela. O título francês do ensaio, altamente significativo dessa discussão, é intraduzível e ambivalente, pois concentra as duas palavras verso (vers) e prosa (prose) numa expressão que indica a direção do movimento dessa nova escrita.

Vers la prose encontra-se publicado na Revista digital Remue.net (http://remue.net/cont/alferi1.html).

Rumo à prosa

Pierre Alferi

A prosa não é um gênero nem o oposto da poesia. Ela é o ideal baixo da literatura, melhor dizendo, um horizonte, e lhe sopra um ritmo, uma política.

Quanto ao ritmo, temos o costume de medi-lo por meio das formas evidentes que ele assume nos versos regulares. Sem dúvida a prosa tem o seu, mas, dizia Cícero, nada fácil de ser reconhecido. Temos também o costume de louvar na poesia, mesmo que seja para enquadrá-la, a "palavra das origens" à qual a prosa deveria sua pulsação primeira, mais ou menos ensurdecida. Esta lenda impôs o uso laxista da "prosa" para designar o que não é verso, formalmente impreciso, prosa que fazemos sem saber. Mas podemos distinguir o ritmo, que não deixa de ter regularidade, de sua medida, irregular em prosa; e reivindicar para esta a tarefa poética mais delicada. Podemos também contar a história dos nascimentos às avessas, dizer que da prosa saiu toda a poesia moderna e que ela se dirige rumo à prosa.

Assim, Charles-Albert Cingria, em um capítulo de La Civilisation de Saint-Gall intitulado "Renascimento, pela 'prosa', de toda a poesia ocidental", narra a história recente do ritmo. O evento que relata é, em torno de 880, a descoberta por Notker, monge gago, de uma nova maneira de colocar palavras em um canto. Foi para não esquecer, como mnemotécnica, que ele precisou inventar essas palavras. Mas elas não compunham versos reconhecíveis. Sabendo o que é poesia – a arte chamada poesia –; ele não está seguro, apesar do prazer que experimenta, que sejam poesia essas palavras, tão bem dispostas e assonantes, que inventa. Ele pensa, ao contrário, que é prosa; então dizemos as prosas, e o gênero, saído de Saint-Gall, obtém reconhecimento imediato, atravessando os mares com a impetuosidade de uma tempestade. O ritmo, aqui dado pela música, foi então o primeiro. Mas, transposto às palavras, que entretanto dotou de uma verdadeira prosódia, usou a princípio uma medida irregular. Eis a prosa.

Na verdade, qualquer coisa, mesmo os barulhos da água e os ritmos de engenhos de madeira ou de ferro, parecia-lhe capaz de fazer as palavras se acoplarem e rimarem. Ekkehard conta que, de seu dormitório, Notker ouvia certos gemidos e estalidos periódicos de uma roda girando lentamente devido à pouca água. Imediatamente ele fez uma prosa. Prosa no sentido também que ora a natureza, ora a técnica, passam por ali, sem dificuldade, segundo sua cadência.

A primazia do ritmo cria uma arte "dionisíaca". Cingria cita Nietzsche e, sobretudo, Petrarca. Entretanto, a poesia moderna (em língua vulgar) se inspirou nos ritmos irregularmente medidos. Este nascimento prosaico orientou sua história. O lamento de Santa Eulália, primeiro documento de poesia francesa, é uma sequência. Dante e Petrarca são apenas os últimos trovadores e também os maiores. Ora, o canto dos trovadores é o lai, e o lai vem dos tropos e das sequências, que são a prosa ordenada ao longo do século XII. Seu nascimento é esquecido. Logo a poesia se fechará, impondo ao ritmo – e, se necessário, à música – uma forma regular a priori, uma métrica rígida que suplantou barulhos da água, gemidos e estalidos. Mas a era da nova poesia ainda não terminou. Ela se revitaliza pela forma irregular primitiva. E Cingria termina citando Cendrars, Whitman, Une saison en enfer.

Essa história vale tanto quanto os mitos. Podemos ter objeções, ou reagir friamente diante do lugar comum que consagra a música como modelo de todo ritmo, preferir a roda lenta, os engenhos de madeira e de ferro. Pelo menos, o mito mostra uma poesia nos antípodas dessa "palavra das origens" duas vezes inacreditável, uma poesia que deve sua modernidade à prosa que está no seu início e no seu coração. A genealogia que Cingria traçava se prolonga, de fato, até nós, após o abandono da antiga métrica: na França, por exemplo, da Prose du transsibérien de Cendrars, de Zone de Apollinaire, do Voleur de talan de Reverdy a Ponge, a Michaux, Novarina, Lucot, Cadiot. Os retornos pânicos ao antigo código, por um lado, e, por outro lado, as repudiações espetaculares de um gênero julgado como inaceitável ou obsoleto, a prática obstinada do corte e do enjambement à custa de qualquer outro sinal de reconhecimento do verso, tudo isso mostra na poesia de hoje a assombração da prosa.

Com efeito, ela se afirma: projeto não heroico, ao rés do chão. E ela não é mais alheia ao poema do que ao romance, e nem menos. Pensar a prosa, apenas pensar nela, encará-la, sonhá-la, é querer para a literatura – toda – o rigor de uma prosódia irregular, de uma poética mutante, e simultaneamente o abandono à existência profana e ao estado "vulgar" (contemporâneo) da linguagem. Se a prosa designa essa tensão máxima entre uma forma que não reconhece nenhum modelo e um campo real que não deixa nenhum ponto de vista mais elevado do que o resto, então os romances não a atingem mais frequentemente do que os poemas.

E esse horizonte, essa ideia, por mais livres e amplos que sejam, convocam uma política (portanto, uma crítica) da literatura. Sem prejulgar essa política por vir, falar da literatura enquanto prosa deve permitir – de novo, a partir de agora, enquanto se espera – evocar um trabalho, programas de escrita complexos, precários, sem que por isso se busque apoio em categorias estilísticas; e evocar um modo, mil modos que os livros têm de se afinarem com a "prosa do mundo", sem que por isso se fale de temas (não há temas).

Diante da prosa real, a poesia parece mais propriamente assumir a tarefa de coletar: onde recortar? E o romance, mais propriamente a de tudo recolher: como dar consistência? Nem uma, nem o outro, nem alguma das técnicas mistas do momento encontra mais na prosa esse caminho em linha reta – prosa oratio – em direção ao mundo, ou qualquer nome que se queira dar às circunstâncias, ao elemento no qual submergimos. Ela jaz nos meandros da sintaxe e na violência dos cortes, esperta, bruta; todos os golpes estão valendo, exceto os que já foram dados.

Essas observações são banais. Esperar que haja algo novo, algum trabalho, é o mínimo.

Simplesmente, nessa época de regateio, há muitos escritores que eludem a dificuldade de escrever e a demanda imperiosa, muito pouco clara (principalmente porque ele está, por toda parte, e de maneira excelente, "representado") do mundo. Isso gera uma literatura de complacência que muitos críticos, eludindo a dificuldade de ler, atestam. De modo que é preciso peneirar toneladas de escritos, de diálogos, de versos, para recolher trinta gramas de prosa. O que pode ser mais acessível, contudo, mais módico? A prosa é apenas um rumor ao qual sabe bem responder um humor, não grave, mas baixo como ela.

Tradução de Masé Lemos (UNIRIO) e Paula Glenadel (UFF)

Com nosso agradecimento a Marcos Siscar, pela sua leitura atenta e sugestões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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