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Apresentação

Introduction

Publicamos neste volume da Alea, dedicado a homenagear a obra de Severo Sarduy, dois documentos do arquivo pessoal de Jorge Schwartz, gentilmente cedidos para nossa revista pelo professor da Universidade de São Paulo e atual diretor do Museu Lasar Segall. Trata-se de uma carta datada em 10 de maio de 1984, enviada por Severo Sarduy a Jorge Schwartz, e de um texto de caráter autobiográfico, anexo à carta, também assinado e datado em 1984, intitulado “Una cronologia”.

Escrita em francês, a máquina, em papel timbrado da Editions du Seuil e assinada pelo escritor, a carta tem um tom íntimo, de amigos com afinidades artísticas e evidentes vínculos profissionais. Sarduy agradece a Schwartz por presentes brasileiros enviados e faz comentários sobre uma proposta que parece ter recebido de troca de editor, decisão que confia a Haroldo de Campos e a Jorge Schwartz. Nas linhas finais o escritor anuncia ao amigo: “Envio-lhe à parte uma breve historia da minha vida, que é – como chamavam na época de S. Zweig – uma biografia romanceada. Minha própria mãe intervém antes do meu nascimento” (folha 1)1 1 Tradução minha, EPG. .

Esse documento de feição autobiográfica que acompanha a carta, um verdadeiro achado bibliográfico2 2 O Prof. Dr. Jorge Schwartz informa jamais ter divulgado antes o documento e até o momento não localizamos sua eventual publicação por parte de Sarduy. São conhecidos alguns textos na bibliografia do escritor cubano com a alusão paratextual “cronologia” [Ver na Obra Completa de Severo Sarduy (Ed. Gustavo Guerrero e Françoise Whal, Madrid, ALLCA, Col. Archivos, 1999) o texto datado em 1975 “Severo Sarduy (1937 ...)”, que contém uma cronologia. Também em Severo Sarduy (Madrid: Ed. Fundamentos, 1976), Julián Rios incluí o texto ”Cronologia” ], porém, tudo leva a acreditar que esse texto de 1986 constitui outra variação do tema. , se integra a um conjunto muito singular de textos do escritor cubano, aquele formado pelas múltiplas simulações autobiográficas que este escreveu ao longo de sua vida. Esses textos, atravessados pela invenção ficcional e por múltiplas operatórias do simulacro, oferecem um material valioso para compreender como a escrita autobiográfica foi assumida por Sarduy como um poderoso artefato de simulação de formas de vida, que lhe permitiram construir uma imagem de escritor, refletir sobre sua própria pratica criativa e ainda construir uma imagem da comunidade literária à qual desejou adscrever-se.

Se organizássemos o lapso temporal que abrange essa cronologia, teríamos um período aproximado de cinquenta anos, começando antes do nascimento do escritor, em torno de 1932, e terminando em 1984. As duas primeiras páginas do documento são muito parecidas em termos de conteúdo com as duas primeiras paginas de “Severo Sarduy (1937...)”, mas a situação enunciativa é bem mais interessante neste de 1984. Diferente daquela, esta versão tem um parágrafo inicial em que o autobiógrafo declara sua impossibilidade de contar atendendo a um sentido cronológico, e convida Mercedes Aguilar, sua mãe, a assumir o relato. A partir desse momento, assistimos a uma apresentação dramática da história, com a introdução de marcações teatrais e a intervenção direita das personagens na cena. Sarduy é uma delas, naturalmente. Também a partir da terceira página, o texto de 1984 modifica e enriquece substancialmente as informações que encontramos no de 1975. Este inclui, por exemplo, dados sobre o primeiro poema que publicara Sarduy em 1953 e acrescenta informações posteriores a 1974 (a última entrada da primeira cronologia é de 1974), além de reflexões teóricas e metapoéticas de inestimável valor para compreender o universo criativo de Sarduy.

Se, de maneira geral, tentássemos definir os temas de reflexão recorrentes na peça, diríamos que a escrita, a pintura e o barroco são três tópicos irremediavelmente atados ao relato de vida. Mas todos esses momentos “sérios” de reflexão, assim como todas as informações biográficas oferecidas (de grande interesse para a crítica, sobretudo para aquela interessada na reconstrução historiográfica do processo criativo de Sarduy), ficam imersos em um texto cujo tom geral é de irreverência, de deboche, de ironia e de subversão paródica. A descrição de seu nascimento ou o adendo final do texto ilustram de maneira eloquente como a tradição do choteo cubano entrou no universo de referências literárias de Sarduy; como sua personalidade transgressora assumiu a irreverência para representar tudo aquilo que lhe foi mais caro: sua mãe, sua literatura, Wahl, ele mesmo. Parece que por trás do riso estava seu autêntico mundo.

Mas essa cronologia não deve ser lida fora da estrutura dialógica dentro da qual foi concebida, considerando que a figura do interlocutor da carta aparece também de maneira implícita em alguns momentos do texto autobiográfico. Severo parece dar uma piscadela cúmplice a Schwartz quando lhe diz: “Mi Buenos Aires querido/ cuando yo te vuelva a ver [...] Creo que si no fuera cubano sería judío argentino” (Folha 4).

Schwartz e Sarduy se conheceram em Paris, por mediação de Emir Rodriguez Monegal. Evidentemente houve uma rápida proximidade intelectual entre eles. A admiração do argentino pelo cubano não precisaria de muita explicação; na década de 1980 já Sarduy tinha uma obra consolidada. A admiração em sentido inverso pode ser explicada porque na época Schwartz preparava seus trabalhos sobre as vanguardas e com certeza seu pensamento e seu talento devem ter seduzido Sarduy.

Havia realmente uma intenção de privacidade no ato de enviar a Schwartz o documento como anexo a uma carta? Ou escrevia Sarduy sob o duplo imperativo de dirigir-se ao amigo, mas também ao crítico, ao acadêmico, ao estudioso da literatura hispano-americana? Inclino-me a pensar que o peso da segunda hipótese é muito grande. Sabemos que a construção da figura de escritor, como operação de legitimação de uma escrita, se articula a uma prática criativa e às suas propostas estéticas, mas também e sobretudo às intervenções do escritor em outros espaços (definidamente públicos, como as entrevistas, ou privados, mas que em determinado momento se tornam públicos, como as cartas, os diários, etc.). Penso, nesse sentido, que o compromisso ético de Sarduy com a escrita o convocou a fazer de todo ato escritural, inclusive em suas formas mais íntimas, como a carta, um lugar de expressão e reflexão do seu projeto estético, para o qual a construção de si mesmo, como instância da escrita, teve um lugar central.

Esperamos que a publicação desses documentos seja de ampla utilidade para todos os interessados na inesgotável obra de Severo Sarduy. Agradecemos ao Prof. Dr. Jorge Schwartz a generosidade de compartilhar esse valioso material e de fazê-lo através das páginas da Alea. Fique todo este esforço como uma modesta homenagem a Severo Sarduy no ano em que celebramos os 80 anos de sua presença permanente entre nós.

Elena Palmero González

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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    Tradução minha, EPG.
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    O Prof. Dr. Jorge Schwartz informa jamais ter divulgado antes o documento e até o momento não localizamos sua eventual publicação por parte de Sarduy. São conhecidos alguns textos na bibliografia do escritor cubano com a alusão paratextual “cronologia” [Ver na Obra Completa de Severo Sarduy (Ed. Gustavo Guerrero e Françoise Whal, Madrid, ALLCA, Col. Archivos, 1999) o texto datado em 1975 “Severo Sarduy (1937 ...)”, que contém uma cronologia. Também em Severo Sarduy (Madrid: Ed. Fundamentos, 1976), Julián Rios incluí o texto ”Cronologia” ], porém, tudo leva a acreditar que esse texto de 1986 constitui outra variação do tema.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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