Resumo
Com O mandarim, de Eça de Queirós, como cenário, este artigo explora as perspectivas de Max Weber e Georg Simmel acerca da modernidade. A análise busca conexões entre esses dois intelectuais e o autor português, revelando como elementos característicos do “desencantamento do mundo” - a cultura monetária e a racionalidade - apontam para uma surpreendente convergência entre Weber e Simmel.
Palavras-chave:
Modernidade; Simmel; Weber; Racionalidade; Cultura Monetária; Eça de Queirós
Abstract
With Eça de Queiros’ “The Mandarin” as a backdrop, this article explores Max Weber’s and Georg Simmel’s perspectives on modernity. The analysis seeks connections between these two intellectuals and the Portuguese author, revealing how characteristic elements of the “disenchantment of the world” - monetary culture and rationality - point to a surprising convergence between Weber and Simmel.
Key words:
Modernity; Simmel; Weber; Rationality; Monetary Culture; Eça de Queirós
Resumen
Con "El Mandarín" de Eça de Queirós como telón de fondo, este artículo explora las perspectivas de Max Weber y Georg Simmel sobre la modernidad. El análisis busca conexiones entre estos dos intelectuales y el autor portugués, revelando cómo elementos característicos del "desencanto del mundo" -la cultura monetaria y la racionalidad- apuntan a una sorprendente convergencia entre Weber y Simmel.
Palabras clave:
Modernidad; Simmel; Weber; Racionalidad; Cultura monetaria; Eça de Queirós
O presente artigo tem por finalidade investigar, de maneira não exaustiva, a presença de elementos concernentes a duas sociologias, a de Georg Simmel (1858-1918) e a de Max Weber (1864-1920), na obra O mandarim, do escritor português Eça de Queirós. À parte o chavão de que a literatura ficcional descreve uma época, O mandarim é afinado com os dilemas de seu tempo; isto porque destila, sob forma fantasiosa, aquilo que, sob forma teórica, também preocupa pensadores como Simmel e Weber: o prevalecimento da economia monetária, a tragédia da cultura, a vaga da burocracia racionalizante, a modernidade, enfim, como o lugar das mais radicais transformações nas relações humanas. O livro de Eça servirá aqui para guiar a discussão sobre esses temas, como uma espécie de tela sobre a qual as visões de Simmel e de Weber acerca da modernidade vão se deitar, a fim de poder compor um diálogo possível entre os três autores.
O mandarim (Queirós, 1951), publicado pela primeira vez em 1882, marca a transição de um Eça naturalista, objetivo e analítico, para um outro, romântico (ou neorromântico), escapista, dado à fantasia. De fato, o livro aponta mais para a fantasia do que para o ementário seco da realidade. “Un conte fantastique”, como o quer Eça. No entanto o aparente devaneio lírico que se permite o autor não impede que se lhe vislumbre a crítica da sociedade moderna. Quase como nas fábulas, que se referem indiretamente à realidade por recurso à inverossimilhança, em seu livro o que parece irreal se remete, no limite, ao trivial funcionamento do mundo tal como o conhecemos. Vamos - já é hora - a um breve resumo da história.
O livro, todo em primeira pessoa, conta a história de Teodoro. Funcionário público do Minho, Teodoro leva uma vida modesta e sem grandes aspirações, vivendo numa pensão, sem grandes divertimentos. Um certo dia, folheando um livro antigo, depara-se com uma página de onde se destaca a seguinte sentença:
No fundo da China existe um mandarim mais rico de que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição dum avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha? (Queirós, 1951, p. 27).
Lida a sentença, Teodoro recebe a visita do Diabo, que consegue convencê-lo a tocar a campainha,1 atacando a mediocridade de sua vida de vinte mil-réis mensais. Durante um mês, nada acontece. Transcorrido este período, Teodoro recebe a notícia de que o mandarim Ti-Chin-Fú morrera havia um mês e que lhe deixou toda sua fortuna como herança: 106 mil contos de réis. Transfigurado, Teodoro passa a gozar de maneira intensa o dinheiro ganho, gastando-o prodigamente com noitadas e viagens. Subitamente, após um curto período de boa-vida, Teodoro passa a ter visões em que o velho mandarim lhe aparece morto em seu quarto, motivo pelo qual começa a se culpar por ter tirado a vida de um velho e, consequentemente, a fonte de sustento de sua família. A partir de então, Teodoro busca expiar sua culpa mandando rezar missas em favor da alma do finado mandarim. De nada adianta, pois as visões continuam, como uma ameaça. A nata da sociedade europeia, cultora da figura fina do ricaço, fica consternada com o estado nervoso de Teodoro, que mergulha em depressão, apesar de toda a fortuna. Esgotados todos os recursos - incluindo aí viagens por toda a Europa em busca de simplesmente esquecer as visões -, Teodoro decide radicalizar sua busca por expiação: vai à China.
Ao chegar à China, Teodoro é recepcionado pelo General Camilloff, da embaixada russa em Pequim. Durante sua estada, conhece, em companhia do intérprete Sá-Tó, a China dos palácios e a China dos miseráveis. Périplos com Sá-Tó fazem Teodoro travar contato com uma realidade que lhe é estranha e que se lhe apresenta de forma às vezes misteriosa, às vezes pitoresca. Durante sua permanência na residência dos Camilloff, Teodoro aguarda o general conseguir junto à burocracia central o endereço do finado mandarim, enquanto acaba se apaixonando por Vladimira, esposa de Camilloff. No entanto, quando a paixão se intensifica, chega a notícia de que a burocracia palaciana finalmente achou o paradeiro da família de Ti-Chin-Fú. Seriam dois dias de viagem rumo à Mongólia, ao norte, diz Sá-Tó a um Teodoro apreensivo.
Teodoro então parte em direção à Mongólia, deixando para trás sua paixão proibida, Vladimira, e uma China imperial, feita de papagaios, lanternas, odores e velhos letrados. O propósito de Teodoro, vale lembrar, era fazer uma grande distribuição de dinheiro e arroz à família do falecido, de forma a expiar sua culpa por ter assassinado o velho mandarim. Por isso, junto com a comitiva de cossacos que o acompanha, carrega enorme quantidade de moedas. A sua fama de homem endinheirado já corria metade da China e, muito por conta dessa fama, sobrevém uma tragédia que marcaria o destino da viagem, já bem perto do final. Teodoro e sua comitiva são atacados quando estacionam numa aldeia perto da Mongólia. Uma multidão, sabedora de sua fortuna, exige-lhe as moedas de ouro que carrega, no que é atendida. Como o dinheiro acaba, a turba, furiosa, põe-se a perseguir Teodoro, caçando-o noite adentro.
Milagrosamente, Teodoro sobrevive. É achado por um grupo de padres lazaristas, membros de um convento local, perto da região do assalto. Lá passa uns dias, refletindo sobre sua insana busca. Escreve uma carta para o General Camilloff, contando-lhe o incidente. Ao receber a resposta da missiva, Teodoro pasma. Fica sabendo que os burocratas palacianos (na verdade, os astrólogos do templo de Faqua, escreve Camilloff) erraram no cálculo. Não era ao norte a residência de Ti-Chin-Fú; era ao sul, para as bandas de Cantão. Aliás - o que era mais aterrador -, de acordo com os arquivos em Pequim, existiriam pelo menos três Ti-Chin-Fú, todos mandarins, e todos mortos recentemente. Apoplético, Teodoro decide regressar a Lisboa.
Aportando em Lisboa, as visões, que haviam cessado desde sua ida à China, recomeçam, enlouquecendo de vez Teodoro. Ele resolve então retornar ao antigo emprego, à antiga vida modesta, a fim de talvez apascentar o fantasma do velho chinês. Diante de sua derrocada, toda a sociedade lisboeta lhe pisoteia moralmente, injuriando-lhe o nome. Diante disto, num ímpeto, Teodoro muda os planos. Volta ao fausto de milionário, reacendendo as luzes de seu palacete, no que toda a gente da cidade de novo lhe bajula a honra. Por esse período, chega até a encontrar com o demônio, para quem Teodoro implora que traga de volta à vida o mandarim. No entanto, diante de um Teodoro profundamente ressentido, o satanás desaparece, esfumando-se. Nosso protagonista termina os dias amargurado, arrependido por conta de ter tocado a campainha, saudoso dos tempos em que vivia uma existência pequena na pensão de dona Augusta. Finaliza advertindo o próprio leitor para que nunca deseje mais do que suas próprias mãos podem lhe dar. Assim, fecha sua história com uma pequena lição de moral em que ensina como o (excesso de) dinheiro pode comprometer a vida - moral, espiritual e psíquica - de um homem comum.
A fim de armar de uma maneira eficiente e econômica a estrutura a que remeterei o texto de Eça a partir de agora, procederei a uma divisão de sua obra em quatro partes distintas, temporalmente sequenciais: I) Sua vida modesta de burocrata do reino, antes de se tornar legatário de sua vítima; II) Sua vida de nouveau riche, a transformação de seu caráter pelo dinheiro, as visões do fantasma do mandarim e a consequente busca pelo apaziguamento do espírito do finado; III) A aventura na China; IV) O retorno amargurado.
Georg Simmel é considerado o autor da vida nas grandes cidades. Delas traçou-lhe os principais tipos, mormente preferindo a liberdade ensaística a qualquer veleidade em compor a grande obra, súmula inteiriça de um pensamento objetivo e científico, stricto sensu. Preferia mais um perspectivismo, através do qual pudesse deixar sempre aberta a possibilidade de ir além em suas preocupações e no qual armasse suas ideias de forma a não esgotar os temas trabalhados (Waizbort, 2000, p. 36). No entanto isso não quer dizer que a atenção de Simmel tenha permanecido refém de um não comprometimento com relação a macrotemas. Pelo contrário, Simmel, apesar de prolífico ensaísta, sempre organizou a vida na cidade como o seu mais importante tema de análise, sobre o qual lançou um olhar - diriam muitos - quase antropológico. Assim, concebeu um sem-fim de textos em que a grande cidade aparece sempre como o fundo comum de seus exames sobre a vida moderna.
Em seu ensaio “A metrópole e a vida mental” (Simmel, 1973, p. 11-25), o autor examina como as grandes cidades, tal como a Lisboa de nosso Teodoro, são a sede dos grandes conflitos entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva - que veremos em breve. Para Simmel, o volume de estímulos de toda ordem na metrópole excede a capacidade habitual de processamento psicológico dos indivíduos. Nela, o prevalecimento da economia monetária regularia a velocidade e a qualidade das relações inter-humanas, mediatizando-as pelo elemento - extremamente singular nas obras de Simmel - do dinheiro. A metrópole se apresenta ao indivíduo como o lugar contra o qual deve ele se adequar, pelo cultivo do espírito, criando assim as condições para a preservação do self. A vida moderna, constituída por enormes demandas objetivas de competência e ações racionais, requer, para a sobrevivência psíquica dos indivíduos, que desenvolvam um órgão que os proteja contra a tendência do meio externo ao absorvimento das qualidades. Dessa forma, o homem metropolitano é levado a cultivar a sua personalidade através do intelecto.
Depois, nunca fui excessivamente infeliz - porque não tenho imaginação: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporação dum lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangível, ao que já fora alcançado por outros no meu bairro, ao que é acessível ao bacharel (Queirós, 1951, p. 23).
Antes de ter encontrado o Diabo, Teodoro considerava-se um homem tranquilo, contente com sua situação de burocrata. Não ter imaginação significava o mesmo que adotar uma postura cerebral diante da vida, daí seu positivismo de algibeira. Era uma “filosofia de vida” que o auxiliava a enfrentar os acres desafios diários que a cultura objetiva lhe impunha. Mas em que consiste a cultura objetiva? Que conflitos ela desperta, em conjunção com a cultura subjetiva? Vejamos.
Como já dito, as grandes cidades são a sede do conflito entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva, alimentado pela ascendência da economia monetária sobre a administração da vida prática. A primazia do dinheiro na sociedade moderna é indicativa, segundo Simmel, de dois processos que, embora concomitantes, são fundamentalmente contraditórios: o primeiro abarca o favorecimento da autodeterminação do indivíduo, sua emancipação no que concerne a antigos vínculos exclusivistas, daí apontando para o desenvolvimento de uma liberdade, antes jamais concebida em termos puramente individuais - componentes estes que propiciam o surgimento de uma cultura subjetiva; o segundo processo diz respeito ao crescente incremento na divisão social do trabalho e ao prevalecimento da economia monetária - itens que servem à construção de uma cultura objetiva. Na verdade, todos esses processos, na dinâmica da cidade, se entrelaçam, retroalimentando-se mutuamente. A personalidade metropolitana, liberada dos antigos constrangimentos que outrora sustentavam arquitetonicamente a integração entre os homens, tem a chance de se desenvolver de maneira plural, sem mais as peias que a economia monetária desfaz (Simmel, 1978, p. 297-298). No entanto é mais do que uma chance de se libertar: de acordo com Simmel, numa sociedade onde economia monetária é vigente, onde tudo é regido pela ideia de equivalência, torna-se praticamente imperativo o cultivo2 da personalidade, sem o qual o indivíduo seria esmagado pelas forças reificantes daquilo que reúne ao mesmo tempo libertação e alienação: o dinheiro.
Embora franqueie ao homem moderno o desenvolvimento de uma maior independência - que quase poderia se confundir com uma maior liberdade -, a cultura objetiva alarga o espaço entre as coisas e as pessoas, firmando-se maciça e impessoalmente sobre as relações sociais, ao passo que termina negando ao homem aquilo mesmo que lhe prometera - a liberdade. Tal como a coquette, que se oferece para logo em seguida negar, o conjunto da cultura objetiva antecipa ao homem apenas um naco da liberdade de que realmente fruiria, caso não sucumbisse aos seus ditames. Se não lhe reprime formalmente o florescimento das qualidades pessoais, tampouco endossa a vigência dessas qualidades na direção da vida prática. Assim, sob o incremento da independência individual metropolitana, jaz a sonegação dos valores intrínsecos do homem, pois as exigências de impessoalidade, calculabilidade e previsibilidade, próprias da economia monetária, não suportam a convivência com o diverso, o amorfo, o imprevisível.
Tal como se dá no clássico argumento de Marx (1982) sobre o fetichismo da mercadoria, pelo qual as relações sociais assumiriam, com relação à mercadoria, “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”(Marx, 1982, p. 81, grifo nosso), a tragédia da cultura simmeliana baseia-se na alienação da cultura subjetiva em favor de sua objetivação, tornando mesmo aquilo que deveria ser raro ou singular um raso embrutecimento das qualidades. Simmel acredita que o que Marx entreviu na mercadoria é apenas um caso particular do que constitui o destino universal dos conteúdos culturais (Simmel, 1988, p. 205). A tragédia da cultura aparece em Simmel como a assunção preliminar de que a existência humana não se dá sem conflitos polarizados pelo sujeito e pelo objeto, mas também como a evidência de que “a mente gera inúmeras produções que continuam a existir em sua autonomia específica, independentemente da alma que as criou” (Simmel, 1988, p. 177, tradução nossa, grifo nosso)3 Assim, a tragédia da cultura em Simmel requer a mobilização constante de duplos como longe-perto, ter-não ter, igual-diferente, efêmero-eterno, entre outros, que lhe sirvam de suporte para a própria tragicidade. Praticamente toda a estória de Teodoro jaz sobre essa tragicidade: primeiro, um homem sem muitos recursos, mas tranquilo; depois, um homem endinheirado, mas cheio de culpa; num momento, obsidiado, embora cúpido; noutro, triste, conquanto farto; no começo, uma pessoa forte, porque sem grandes paixões; no final, um homem fraco, porque esvaído em desejos e culpa.
Leitmotiv da estória de Teodoro, o dinheiro adquire um papel essencial na tragédia simmeliana da cultura, pois funciona como o elemento que friamente nivela tudo que se lhe dá a avaliar. Encapsulando as contradições entre a cultura subjetiva e a cultura objetiva, o dinheiro consegue ser a pedra de toque de tudo quanto existe na sociedade. Subordina o estilo de vida metropolitano às necessidades de tornar equivalentes os desiguais, intercambiáveis os sem par, e disponíveis os ocultos. Nessa tarefa, o dinheiro força o nivelamento das qualidades que ele mesmo ajuda a despertar, libertariamente - pois, como vimos, a economia monetária, por sua natureza, libera o indivíduo do cativeiro da dependência pessoal, fomentando-lhe a autodeterminação. De acordo com Simmel, esse paradoxo acarreta o surgimento de duas formas de ação, concernentes aos distintos modos de operacionalização da personalidade sob estados sociais de pressão igualmente distintos: no primeiro, quando o indivíduo está sob o domínio do privado, seja recluso à família ou numa reunião social, ele pode se largar ao cultivo da personalidade, demonstrando mais os sentimentos e exercitando a sociabilidade; no segundo caso, quando está sob o império da economia monetária, na vida prática, o indivíduo deve se guiar pela impessoalidade, nivelando-se conforme aquilo que for mais razoável, num rescaldo do próprio self que, antes à mostra e cultivado, agora deve permanecer subsumido à lógica operativa do dinheiro.
Não obstante tal distinção, essa última forma de agir - dada a preponderância da economia monetária na sociedade moderna - possui uma tendência a engolfar até aquelas áreas, digamos, formalmente menos permeáveis ao domínio monetário, como o amor ou a moral, por exemplo. Há, mesmo em esferas como essas, uma espécie de subversão valorativa que não espelha senão o quão imersos os homens estamos na lógica totalitária da economia monetária. Teodoro, por exemplo, tendo herdado a enorme quantia do mandarim, não tardou a buscar a subjugação de tudo e de todos pelo dinheiro, arrancando-lhes a simpatia e o respeito através dos maços de mil-réis e, sobretudo, subordinando seu prazer ao quantificável, ao monetariamente quantificável:
Então começou a minha vida de milionário.[...] Todas as noites eu caía, em êxtases de místico, aos seus pés cor de jaspe [sobre uma mulher que frequentara sua cama]. Todas as manhãs lhe alastrava o regaço de notas de vinte mil-réis: ela repelia-as primeiro com um rubor, - depois, ao guardá-las na gaveta, chamava-me o seu anjo Totó (Queirós, 1951, p. 55-56).
Como aprisiona, amalgamados, a alma subjetiva e o espírito objetivo (Simmel, 1988, p. 182), o dinheiro encerra, por assim dizer, uma unidade de contrários, fazendo refém aquele que livrou dos laços da dependência exclusivamente pessoal. O dinheiro arregimenta o mundo à sua forma e se instala, pois, como alfa e ômega das relações humanas. Para Simmel,
[a] mente moderna se tornou mais e mais calculista. A exatidão calculista da vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da ciência natural: transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas as partes do mundo por meio de fórmulas matemáticas (Simmel, 1973, p. 14).
A matematização do mundo e das relações sociais advém, pois, do lugar central que o dinheiro adquire ao ser o meio por excelência. Seu poder de abstração e de equivalência, somado ao fato de que, objetivamente, tudo na sociedade moderna é passível de ser quantificado, acentua o caráter quase religioso do dinheiro para o homem metropolitano. No limite, tendo em vista a crescente quantidade de coisas - não apenas mercadorias - que se prestam a serem compradas pelo dinheiro e o fato de que o dinheiro em si mesmo se converte em um valor absolutizado (Simmel, 1978, p. 232), ele passa de meio por excelência a fim absoluto. Ou, como bem percebem Öelze e Souza (1998, p. 13):
A confusão entre meio e fim instaurada pelo dinheiro é necessária, na medida em que o fim a ser atingido, por ser mediado, exige tal concentração no meio, [sic] que o mesmo se confunde com o próprio fim.
E, com respeito ao caráter divino do dinheiro, prosseguem:
Como a maior parte das pessoas passa a vida inteira na busca do dinheiro, cria-se a ilusão de que sua posse produz a satisfação definitiva e a felicidade. Nesse contexto, adquire todo o sentido a fórmula simmeliana do dinheiro como o Deus moderno. (Öelze; Souza, 1998)
O dinheiro, como o fim absoluto de uma existência, levou Teodoro a tocar a campainha. A promessa de milhares de contos de réis significava a perspectiva de possuir, em grande quantidade, o meio de todos os meios, a redenção de sua vida insossa de funcionário do Reino. No entanto o que importava para Teodoro não era só o que o dinheiro podia comprar - viagens, vinhos, mulheres -, mas a posse física mesma do dinheiro, o gozo em contar as moedas, o sabor da quantidade. Destaco aqui duas passagens, uma de Eça, outra de Simmel:
- Ouro!
Um caixeiro sugeriu-me com doçura:
- Talvez lhe fosse mais cômodo em notas...
Repeti secamente:
- Ouro!
Atulhei as algibeiras, devagar aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos; as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro; e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais - como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro (Queirós, 1951, p. 50-51).
Como o dinheiro nada mais é do que um meio indiferente para fins concretos e infinitamente variados, sua quantidade é sua única determinação importante para nós. Com referência ao dinheiro, não perguntamos o quê e como, mas quanto. [...] A limitação do interesse pelo dinheiro à questão “quanto” - em outras palavras, o fato de que sua qualidade consiste exclusivamente em sua quantidade - tem muitas consequências importantes para nossa análise (Simmel, 1978, p. 259, tradução nossa).4
A sobreposição da cultura objetiva sobre a subjetiva, emblemática da tragédia da cultura na sociedade moderna, somada ao seu elemento-chave - o dinheiro -, provoca o surgimento de dois tipos humanos específicos da metrópole, que constituem talvez seus produtos mais autêntico: o blasé e o cínico. Simmel, ao diagnosticar a atitude blasé, a remete a dois fatores, não excludentes entre si. Primeiro, a própria vida na metrópole. Segundo Simmel, devido à quantidade e à velocidade com que diariamente a metrópole impõe seus estímulos aos habitantes, eles acabam por empalidecer aquele mesmo órgão tornado, desde sempre, imprescindível para a vida na grande cidade. Trata-se do efeito da concentração acentuada, sobre os nervos, dos diversos sons, ritmos, cores, cheiros, mas também dos muitos horários, assuntos, procedimentos e saberes que a metrópole transfere aos indivíduos, enredando-os de tal forma que sua capacidade reativa, sobrecarregada, cessa de funcionar (Simmel, 1973, p. 16). Esta, diria Simmel, seria a fonte fisiológica da atitude blasé. O segundo fator tido como indutor de tal comportamento faz radicar na economia monetária a causa da indiferença típica do indivíduo blasé. Aqui, a atitude blasé nasce com o calmo esmaecimento da faculdade de discriminar as diferenças qualitativas, provocado pela instilação constante dos conteúdos da vida objetiva, que se derramam por sobre o psiquismo dos indivíduos. Estes, por só conhecerem o idioma do dinheiro, não conseguem se relacionar com as coisas senão rebaixando-as a um nível do qual se possa indagar, no máximo, a sua quantidade. A percepção esclerosada da realidade pelo indivíduo blasé, além de aplainar a topografia acidentada do mundo das qualidades e dos sentimentos, encerra “o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1973, p. 16, grifo nosso).
Essa postura blasé se encontra também na vida de Teodoro. Como se estivesse chagado pelo dinheiro e pela vida orgíaca que procurou levar a partir da herança recebida, nosso personagem perde, pouco a pouco, a têmpera e a sensibilidade. Antes, se o tínhamos humano e algo doce, era porque em seu espírito não havia ainda percutido a ideia de ter muito dinheiro. Comparemos as seguintes passagens:
Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. [...] Pouco a pouco o tenente, envolvido num lençol como um ídolo em seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta.[...] Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:
- Ai, D. Augusta, que anjo que é! (Queirós, 1951, p. 20-21)
Apoiei-me à varanda: e ri, com tédio, vendo a agitação efêmera daquela humanidade subalterna.[...] Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginação, num instante, e de um só sorvo. Mas logo uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e, sentindo o mundo a meus pés, bocejei como um leão farto. (Queirós, 1951, p.46-47).
Em vários outros trechos podemos perceber a atitude blasé de Teodoro, caracterizada frequentemente como uma oscilação brusca entre o gozo irrefreado e o tédio crescente até o ponto em que simplesmente Teodoro se torna insensível. Entretanto, antes de chegar a este nível, ele passa por uma fase de marcado sabor cínico, este, aliás, constituinte do outro tipo discreto de homem metropolitano percebido por Simmel. Ambos - o cínico e o blasé - são fabricações do mesmo artífice - a economia do dinheiro -, mas são distintos em suas manifestações. Enquanto a pessoa blasé tem a capacidade de discriminar embotada, imersa que está na lógica operativa do dinheiro, o indivíduo cínico, da mesma forma impregnado pelos valores objetivo-monetários, ainda possui, resguardado, o poder de reagir diante de estímulos e valores, com uma diferença a mais: ele se satisfaz em nivelar as coisas com que lida, e somente lhes encontra sentido na atividade mesma de rebaixá-las a um padrão comum (Öelze; Souza, 1998, p. 14). Um trecho de Eça ilustra bem o comportamento de Teodoro, que, não obstante os fortes traços de blaseísmo, lançava-se também em ondas de cinismo violento:
Descri para sempre dos Anjos louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessado; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica (Queirós, 1951, p. 57).
É como se o cínico, à semelhança do que ocorre na vida financeira, adotasse e assumisse os riscos de uma referência universalmente padronizada através da qual pudesse uniformizar racionalmente a profusão de valores existentes, com o que garantiria para si a salvaguarda de seus próprios interesses e o aprisionamento progressivo de sua razão às grades geladas da economia monetária. Desta forma, tanto o indivíduo blasé quanto o cínico padecem sob o mesmo signo: o da inexorabilidade da sucumbência ao dinheiro.
A ida de Teodoro à China determina no livro um momento de virada. Para Simmel, o embarque do nosso herói rumo ao oriente significa a antevisão de uma aventura. E, para Weber, a China representa um tipo de mundo em que tanto a burocracia quanto o estilo de vida diferem daquelas formações sociais tipicamente ocidentais, com as quais não se identificam senão negativamente. Até agora vimos como Teodoro, de homem simples que era - um bem-caracterizado burocrata, para irmos de Weber -, transformou-se num híbrido de blasé e cínico, granjeando para si, no final das contas, culpa e necessidade de expiação. A resolução de ir à China a fim de aplacar o espírito do finado e a fome de sua família5 encerra duas dimensões que, a princípio mutuamente impermeáveis, acabam por se confundir, trazendo à tona o sabor de um Oriente feito de aventuras, fortes impressões e finos gozos, mas também a expressão de uma China como sendo o lugar da rigidez das normas, do estático equilíbrio cosmo-confuciano, da expiação. Vale a pena começar por esta concepção, invocando para tanto a parte da sociologia weberiana que trata do caso chinês, mais especificamente dos letrados chineses - o nosso mandarim - e da racionalidade confuciana. Com isso, acredito cumprir a obrigação de estabelecer um nexo teórico entre a caracterização que Eça faz da China e dos chineses e o exame acerca da especificidade da visão de mundo tipicamente confuciana que resta subjacente ao grande tema weberiano da racionalidade.
Recuperemos o ponto nodal de toda a história. Teodoro apertara a campainha. Ao ceder à argumentação satânica de que toda a fortuna compensaria o assassínio e de que, ademais, o crime seria perpetrado sem se ver “o espirrar do sangue”, à distância, “como quem chama um criado” (Queirós, 1951, p. 35),6 Teodoro, sem saber, acabara ferindo, ainda que remotamente, não apenas o corpo de Ti-Chin-Fú, mas toda uma ordem cósmica da qual seu tranquilo espírito cristão-ocidental nunca poderia dar notícias. Além disso, sendo o personagem um “positivo”, para quem só os fatos lógicos se lhe apresentariam como verdadeiros, ele não poderia acreditar na existência de outra forma de organização do mundo que fosse periférica ao seu espírito de burocrata. Assim, a China inicialmente se revela para Teodoro por meio daquilo que mais cabalmente contrasta com a vida de um burocrata da Europa: pelas paisagens e pela própria forma de organização da vida administrativa.
As impressões iniciais de Teodoro, em chegando à China, atingem-lhe mais os sentidos do que a razão. Odores de todos os tipos, cores de toda sorte, paisagens inesquecíveis que ajudam a compor, no sentido simmeliano, como ainda veremos, a aventura de Teodoro. Recepcionado pelo General Camilloff, é logo inquirido por este se sabe alguma palavra do chinês. Teodoro responde: “chá” e “mandarim”. Camilloff redargui que é muito pouco para conseguir a honra de desposar a viúva de Ti-Chin-Fú e para ganhar do imperador a glória de se tornar um mandarim. Teodoro então o contesta, revelando, crua, uma das dessemelhanças basilares entre a forma burocrática ocidental e aquela chinesa, única, excepcional:
- Mas porque mas recusaria? - exclamei. - Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte duma repartição pública... Possuo milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo... [...]
- Não é - disse ele enfim - que o Imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca (Queirós, 1951, p. 85-86).
Aqui se expressa a primeira das grandes diferenças. Para Weber, a burocracia, tal como a desenvolvida pela moderna empresa capitalista ocidental e compartilhada com o moderno Estado administrativo, somente alcança seu pleno desenvolvimento - no sentido de um esgotamento de possibilidades latentes - no Ocidente; funcionários especializados, diz Weber, podem ter existido em qualquer tempo ou país; mas jamais tiveram o mesmo desenvolvimento e importância de que têm gozado os burocratas no moderno ocidente (Weber, 1967, p. 3). Assim, a burocracia, tal como encontrada no moderno Ocidente, está subordinada à mesma espiral racionalizante característica da modernidade ocidental, exatamente da mesma forma como as outras áreas sublinhadas por Weber na introdução de A ética protestante e o espírito do capitalismo. O surgimento de uma máquina burocrática, impessoal, pública, especializada, operando através de jurisdições específicas e regida por normas de administração escritas e documentadas demandou o aparecimento de um funcionário feito à imagem de tal sistema. Um funcionário que considere seu cargo uma profissão e que dele extraia alguma estima social específica, um funcionário assalariado, devidamente treinado, inscrito verticalmente num plano de carreiras e que, ao final de tudo, faça jus a uma pensão (Weber, 1982, p. 232-238): Teodoro, por exemplo.
A mesma organização não se dá no caso chinês. De acordo com Weber, a burocracia chinesa de nenhum modo está montada sob as mesmas bases que a ocidental e, se a imita, estilizando suas formas, logo a denega, ostentando conteúdos radicalmente estranhos, tanto ao modelo ocidental de organização administrativa quanto à forma específica de apropriação e entendimento do mundo no ocidente. Predica-se antes como uma burocracia patrimonial (Weber, 1999, p. 233-287) e requer, em função disto, outro tipo de funcionário. Um funcionário que, da mesma forma como aquele do Ocidente, espelhe o funcionamento da própria sociedade a que pertence. Com uma diferença, no entanto: no modelo chinês, este funcionário - o mandarim - deve corresponder ao “gentleman ideal” (Weber, 1951, p. 131-133) confuciano, deve ser recrutado de um corpo sempre a postos de letrados, constituindo-se, portanto, num tipo muito peculiar e dominante na administração e na vida social chinesas. Some-se a isto o fato de pairar por sobre toda a vida ética e prática um confucionismo - conjunto de máximas éticas que determina o comportamento mundano e visa ao aperfeiçoamento moral - que acaba deixando marcas na própria forma de se organizar lá o Estado.
O General Camilloff estava certo. Teodoro nunca poderia integrar o corpo de letrados chineses. A burocracia ocidental geralmente requer um funcionário bacharelado, neste sentido, um letrado. Todavia - e aqui reside boa parte da diferença entre o burocrata e o letrado chinês -, enquanto as repartições europeias preferem, via de regra, o funcionário especializado, treinado para um ofício determinado, a burocracia celeste chinesa não pode prescindir do letrado, alguém por excelência generalista, educado sob a influência de um certo humanismo e que, embora admitido por concurso público, não guarda o menor parentesco com o moderno especialista. Repositória do conhecimento acumulado de milênios, a figura do letrado encarna uma biblioteca viva, para a qual o conhecimento da escrita - em que pesem a riqueza e a complexidade do conteúdo pictórico do idioma chinês e seu contraste com o aspecto extremamente sintético da língua falada (Weber, 1982, p. 486) - funciona como primeira conditio sine qua non para seu estabelecimento como funcionário do imperador. O letrado não é, pois, um especialista. Formado durante anos a fim de prestar um sem-fim de concursos, cada qual a dirigi-lo a um pedestal mais alto dentro da administração imperial, o letrado desde sempre cultiva uma “intelectualidade requintada e puramente literária”(Weber, 1982, p. 494, grifo nosso) que, somada ao comedimento nas atitudes e às aspirações esteticamente moduladas à autoperfeição, preenche os requisitos para ser um gentleman, algo, enfim, em nada relevante para o funcionamento do sistema ocidental de administração burocrática. Teodoro não poderia ser um deles pelo fato de que não compartilhava da mesma visão de mundo do mandarim. Estaria inapto ao cargo não porque faltaria ao seu diploma de bacharel qualquer teor substantivo, mas porque este já denunciava a sua condição de especialista, antecipando-o como um alienígena aos olhos orientais. Faltava-lhe, repito, a comunhão do mesmo ideal de vida de um mandarim, sem o qual não adiantaria nem tentar se vestir como um chinês, no que Teodoro, contudo, até logrou certo sucesso, conforme lemos:
E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim idéias, instintos chineses: - o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do Imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas... Alma e ventre eram já totalmente um Mandarim. (Queirós, 1951, p. 89-90)
E lemos mais:
Eu devorava, de olho ávido, esses monumentos da Antiguidade asiática, numa curiosidade de conhecer as impenetráveis classes que os habitam, o princípio das instituições, a significação dos Cultos, o espírito das suas letras, a gramática, o dogma, a estranha vida interior dum cérebro de letrado chinês... Mas esse mundo é inviolável como um santuário...(Queirós, 1951, p. 100)
O confucionismo é considerado por Weber, ao contrário do puritanismo, uma ética de ajustamento racional ao mundo. Reduzindo a tensão com este mundo a um nível mínimo (Weber, 1951, p. 227), faz os homens buscarem se lhe adequar, sem se preocuparem com o outro mundo. Nesse sentido, não é correto falar em ascese se quisermos descrever o confucionismo. Nele não há doutrina da salvação, pelo simples fato de que não há a concepção de pecado (Weber, 1951, p. 228-229). Tampouco nele existe predestinação ou vocação, tal como existe na vinculação entre capitalismo e protestantismo, pelo mero fato de que a religião na China estaria, de acordo com Weber, infinitamente mais envolta em magia do que no Ocidente, localizando-se, pois, anteriormente a qualquer desencantamento do mundo. Sob a égide do Confucionismo, o que se pratica na vida não é a glorificação do nome de Deus, mas uma espécie de desenvolvimento tenaz e obsessivo da personalidade bem temperada, do ajustamento harmônico ao cosmos no qual o menor desvio - geralmente desvios dos governantes - é entendido como o motivo para as pequenas e as grandes tragédias, desde vendavais, terremotos até doenças, pragas, ou - como é o caso do nosso Ti-Chin-Fú - a morte inacreditável de um mandarim. Weber assim descreveu a preponderância dessa ordem cósmica:
As ordens cósmicas do mundo eram consideradas fixas e invioláveis, e as ordens da sociedade eram apenas um caso especial disso. Os grandes espíritos das ordens cósmicas obviamente desejavam apenas a felicidade do mundo e, especialmente, a felicidade do homem. O mesmo se aplicava às ordens da sociedade. A tranquilidade “feliz” do império e o equilíbrio da alma só poderiam e deveriam ser alcançados se o homem se adaptasse ao cosmos internamente harmonioso. Se o homem, no caso individual, não obtivesse sucesso, a irracionalidade humana e, acima de tudo, a liderança desordenada do Estado e da sociedade seriam os culpados. Assim, em um decreto do século XIX, a prevalência de ventos fortes em uma província foi atribuída à negligência em certas funções policiais, a saber, na entrega de suspeitos e no prolongamento indevido de julgamentos. Isso fez com que os espíritos se tornassem inquietos (Queirós, 1951, p.152-153, tradução nossa).7
Interpretemos o desaparecimento de Ti-Chin-Fú por esta lógica. Talvez o fato de Teodoro ter fulminado o velho mandarim à distância - o que para seus familiares (os do mandarim) representaram um enigma e, provavelmente, uma condenação - tenha interferido no curso natural das coisas, fraturando um equilíbrio cósmico de que, afinal, a vida do velho letrado fazia parte (até porque ele, enquanto um mandarim, era parte do governo). Se levarmos ao pé da letra o que prediz o confucionismo, a saber, que os males mundanos são derivados de descompensações ou desarranjos cósmicos, podemos deduzir que toda a saga de Teodoro na China - incluindo aí o assalto que lhe deixou sem parte da herança e quase morto - não significa mais do que, digamos, a “vingança do cosmos” com respeito ao fato de Teodoro haver tão discricionariamente assassinado quem talvez ainda não devesse morrer. Só assim faria sentido Teodoro regressar a Portugal mais pobre do que antes, sem ter encontrado a família de Ti-Chin-Fú e, ainda por cima, às voltas novamente com as visões de um moribundo mandarim: “Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa” (Queirós, 1951, p. 67, grifo nosso).
A mesma parte III, que se refere à ida de Teodoro à China, pode ser lida também através da chave da aventura, sobre a qual Simmel (1971, p. 187-198) nos deu um pequeno ensaio. Se Weber talvez enxergasse na experiência chinesa um choque entre visões de mundo conflituosas, Simmel logo veria nela a oportunidade para a aventura; onde Weber encontrasse limitação, Simmel acharia uma saída. O caráter extraordinário da incursão de Teodoro na China confere, por si só, uma qualidade ímpar aos acontecimentos desenrolados naquela terra, fazendo-os destacados de qualquer série de acontecimentos ordinários dos quais a vida normal é composta. É justamente aqui que a aventura principia. Segundo Simmel, uma experiência só pode ser entendida como uma aventura de acordo com a sua posição relativa à totalidade da vida (Simmel, 1971, p. 187). Constitui-se numa aventura aquele acontecimento ou experiência que se configura em relação à totalidade do curso da vida tal como uma ilha em relação ao continente (Simmel, 1971, p. 189), ou seja, fugindo-lhe de seu horizonte incorporativo, escapando-lhe de sua tutela lógica. Deve existir uma ruptura essencial mediante a qual o indivíduo, descolado da vivência do cotidiano, reconheça, justamente em face desse cotidiano ausente ou suspenso, o caráter de necessidade e o sentido próprio da aventura. Porque tão sobrelevada em relação à totalidade da vida, porque tão absurdamente extraordinária - a experiência da aventura delimita ela mesma seu fim e seu começo, como se em si comportasse ainda um istmo que a ligasse ao continente da vida comum. Sobre o momento em que Teodoro decide partir rumo à China, escreve Eça:
Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada (Queirós, 1951, p. 76).
No entanto, sem embargo de possuir um sentido que lhe delimita o fim e o começo com relação à totalidade da vida, a aventura, entendida de acordo com sua organização intrínseca é, como diz Simmel, independente do “antes” e do “depois”. Assim, demanda do aventureiro nada mais do que o comprometimento do seu presente, nele não importando nem o condicionamento do passado, nem os planos do futuro - o aventureiro então descobre-se um “indivíduo ahistórico” (Simmel, 1971, p. 190, grifo nosso). Além disso, a aventura se instaura como um conjunto único de experiências dispostas de tal maneira que, de as rememorar, o aventureiro mais pensa que fizeram parte de um sonho.
Todo o período em que permaneceu na China - inclusive aquele passado “no jardim sob os sicômoros”, onde ia “tecendo horas de seda e ouro aos pés pequeninos da generala” (Queirós, 1951, p. 54, grifo nosso),8 -, todos os eventos vividos em busca da família do mandarim podem ser descritos, pois, como uma aventura, tal como Simmel a concebe. Tanto é assim que bastou Teodoro embarcar no navio de volta a Portugal para que as antigas visões lhe revisitassem; ou seja, cessado o sonho e finda a aventura, logo soergueu-se a realidade e recomeçou o pesadelo de uma culpa não remida. O retorno a Lisboa, marcado pela volta, recrudescida, das visões do fantasma do mandarim e pela consequente degenerescência psíquico-moral de Teodoro, só fez confirmar que sua visita à China não fora senão um intermezzo entre a totalidade de uma vida que, não obstante a teimosia de Teodoro em remendar-lhe o curso, persistiu em manter seus desígnios inalterados; para o bem ou para o mal, sua busca na China nada mais logrou do que a suspensão temporária, sob a forma de aventura, do curso normal de sua vida. Pode-se dizer que, sendo Teodoro um blasé, a aventura na China lhe significou o maior dos estímulos, o que satisfez melhor sua busca por novidades, o mais forte, o mais extenso e, no entanto, o último, porquanto o mais letal: “Desde então uma saciedade enervante mantém-me semanas inteiras num sofá mudo e soturno, pensando na felicidade do não ser...” (Queirós, 1951, p. 159, grifo nosso).
Vimos como, por meio da estória de O mandarim, se revela uma série de problemas e categorias dos quais se ocuparam tanto Simmel quanto Weber. A modernidade - nervosa, rápida e monetarizada em Simmel, e racional, impessoal e universalizante em Weber - foi o pano de fundo desta análise. Preferi considerar cada visão separadamente, mais por cuidado com a forma do texto do que por considerar os autores estranhos um ao outro. Se em Simmel tivemos a inexorabilidade da economia monetária fazendo sucumbir toda tentativa de autenticidade subjetiva, em Weber encontramos a racionalidade da administração burocrática ocidental uniformizando condutas e descartando as qualidades pessoais; quando em Simmel descobríamos o dinheiro, em Weber achávamos a racionalidade; o que era estilo de vida, em Simmel, em Weber, era visão de mundo.
Claro, essas correlações nunca são tão evidentes; ficam mais no plano da sugestão, no campo das afinidades eletivas. No entanto a sociologia dita compreensiva de Weber e o ensaísmo quase filosófico de Simmel, por se preocuparem ambos com o sentido da ação humana, nunca restarão incomunicáveis; são complementares, nunca estranhos. E no que são postos a examinar os dilemas e as atitudes de Teodoro, os dois autores lhes encaminham, ad hoc, suas teorias e justificativas, de forma a abrangerem, cada um à sua maneira, o mistério da sociedade capitalista - que, diga-se de passagem, continua a nos alimentar de perguntas e mais perguntas.
Referências
- MARX, Karl. A mercadoria. In: O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. v. 1.
- ÖELZE, Berthold; SOUZA, Jessé (orgs.). Simmel e a modernidade Brasília: Ed. UnB, 1998.
- QUEIRÓS, Eça de. O mandarim Porto: Lello & Irmão, 1951.
- SIMMEL, Georg. On Individuality and Social Forms Chicago: The University of Chicago Press, 1971.
- SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
- SIMMEL, Georg. La Tragédie de la Culture et Autres Essais Paris: Editions Rivages, 1988.
- SIMMEL, Georg. The Philosophy of Money Londres: Routledge; Kegan Paul, 1978.
- WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel São Paulo: Ed. 34, 2000.
- WEBER, Max. The Religion of China New York: The Free Press, 1951.
- WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1967.
- WEBER, Max. Ensaios de sociologia Rio de Janeiro: Zahar Editores , 1982;
- WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora UnB, 1999. v. 2.
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1
Trata-se do velho tema da venda da alma ao Diabo em troca de fortuna. Eça nos conta uma estória já relativamente esgotada pela literatura ocidental do século XIX. Já no início daquele século surgia na Europa um livrinho que em pouco tempo faria um enorme sucesso: “A história maravilhosa de Peter Schlemihl”, de autoria de Adelbert Von Chamisso, naturalista e poeta alemão de origem francesa. Na estória, Schlemihl vende a sua própria sombra ao Diabo em troca de uma bolsa mágica de onde nunca param de sair moedas de ouro.
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2
A ideia de cultivo está presente no conceito de cultura subjetiva de Simmel a partir do exemplo do cultivo de uma pereira selvagem, cf. Simmel (1971, p. 227-234).
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3
No original: “l’esprit engendre d’innombrables productions qui continuent d’exister dans leur autonomie spécifique, indépendamment de l’âme qui les a créés”.
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4
No original: “Since money is nothing but the indifferent means for concrete and infinitely varied purposes, its quantity is its only important determination as far as we are concerned. With reference to money, we do not ask what and how, but how much. [...] The limitation of the interest in money to the question ‘How much’ - in other words, the fact that its quality consists exclusively in its quantity - has many important consequences for our analysis”.
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5
As opções com que Teodoro trabalha, ao longo de sua estada na China, são várias: desposar a viúva do mandarim; fazer colossais distribuições de arroz, de dinheiro, ou ainda de ouro; ocupar o seu antigo posto na administração local; substituir-lhe moralmente como um novo mandarim; realizar grandes festejos em memória do velho Ti-Chin-Fú entre outras do mesmo gênero.
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6
Notem que a forma como o Diabo sugere assassinar o mandarim pressupõe uma espécie de racionalização operacional do ato de matar, uma sofisticação do modus operandi de tal forma que, no limite, como o próprio Satanás lhe diz, é como chamar o criado, é um simples tlim-tlim de campainha. Assim, num primeiro momento, o que antes era repugnante e condenável aparece, mascarado que está sob a técnica racional, como um ato aparentemente vazio, ordinário ou singelamente amoral.
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7
No original: “The cosmic orders of the world were considered fixed and inviolated and the orders of society were but a special case of this. The great spirits of the cosmic orders obviously desired only the happiness of the world and especially the happiness of man. The same applied to the orders of society. The ‘happy’ tranquillity of the empire and the equilibrium of the soul should and could be attained only if man fitted himself into the internally harmonious cosmos. If man in the individual case did not succeed, human unreasonableness and, above all, disorderly leadership of state and society were to be blamed. Thus, in a nineteenth century edict the prevalence of bad winds in a province was traced to negligence in certain police duties, namely, in surrendering suspects and unduly drawing out trials. This had caused the spirits to become restless”.
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8
Refiro-me ao idílio entre Teodoro e a esposa do General. Para Simmel, o amor (love affair), mesmo o mais curto, seria a maior das aventuras.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
15 Maio 2025 -
Aceito
30 Jul 2025
