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Sobre poéticas e políticas do circum-roraima: o caso do Watunna ye’kwana

On circum-roraima poetics and politics: the case of ye’kwana Watunna

Resumo

Este ensaio discute aspectos relativos à produção das textualidades indígenas, tomando como referência duas versões do Watunna, a cosmogonia ye’kwana: a do francês Marc de Civrieux e a do ye’kwana Marcos Rodrigues. Para tanto, acerca-se da pluralidade poética indígena do circum-Roraima, que é um rico espaço em termos de diversidade humana e cultural, localizado na tríplice fronteira Brasil-Guiana-Venezuela. Nossa proposta parte do pressuposto da necessidade de se cultivar uma área de investigação que aproxime a teoria literária da antropologia e que atente para as particularidades advindas das culturas e línguas indígenas. Isso significa que o registro escrito das artes verbais indígenas põe em jogo um processo complexo de criação, recriação, tradução e circulação, envolvendo não apenas uma dimensão poética, como também uma dimensão ética e política.

Palavras-chave:
textualidades indígenas; tradução; circulação; watunna

Abstract

This essay discusses aspects related to the production of indigenous textualities, taking as reference two versions of Watunna, the Ye'kwana cosmogony: that of the French Marc de Civrieux and that of the Ye’kwana Marcos Rodrigues. To do so, we approach the indigenous poetic plurality of circum-Roraima, which is a rich space in terms of human and cultural diversity, located on the triple border Brazil-Guyana-Venezuela. Our proposal assumes the need to cultivate an area of investigation that brings literary theory closer to anthropology and that takes into account the particularities arising from indigenous cultures and languages. This means that the written record of indigenous verbal arts brings into play a complex process of creation, recreation, translation, and circulation, involving not only a poetic dimension, but also an ethical and political one.

Keywords:
indigenous textualities; translation; circulation; watunna

Résumé

L'essai aborde certains aspects concernant la production des textualités indigènes, en prenant comme référence deux versions de Watunna, la cosmogonie ye'kwana: celle du Français Marc de Civrieux et celle du Ye’kwana Marcos Rodrigues. Pour ce faire, nous abordons la pluralité poétique indigène du circum-Roraima, qui est un espace riche en termes de diversité humaine et culturelle, situé sur la triple frontière Brésil-Guyane-Venezuela. Nous considérons ainsi la nécessité de cultiver un champ d'investigation qui rapproche la théorie littéraire de l'anthropologie et qui s'occupe des particularités issues des cultures et des langues autochtones. Ce qui signifie que les archives écrites des arts verbaux autochtones mettent en jeu un processus complexe de création, de recréation, de traduction et de circulation, impliquant non seulement une dimension poétique, mais aussi une dimension éthique et politique.

Mots-clés:
textualités indigènes; traduction; circulation; watunna

Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi. Ele tinha pedido que alguém daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar. Quando foi encontrá-la, ela estava parada perto de uma rocha. O pesquisador ficou esperando, até que falou: “Ela não vai conversar comigo, não?”. Ao que seu facilitador respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. “Mas é uma pedra.” E o camarada disse: “Qual é o problema?” (KRENAK, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 10)

O avanço das pesquisas no campo das ciências humanas, ocorrido, sobretudo, no âmbito da antropologia e dos estudos literários, já deu provas de que os modos de os povos indígenas pensarem e expressarem os seus sentimentos e pensamentos são um tanto distintos dos nossos, ocidentais. Essas diferenças se manifestam em todas as esferas de atividades que praticamos, dentre elas, nos modos de criar e de contar histórias. A citação acima, retirada do livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), de Ailton Krenak, evidencia e corrobora esse fato.

Nesse exemplo, está explícita uma cosmovisão que se diferencia infinitamente daquela dos brancos, não só pela evidente comunhão entre o homem e a natureza, mas também pela possibilidade de diálogo entre ambos, no caso, a anciã e a pedra. Essa diferença de mundos constitui uma das mais sérias dificuldades enfrentadas por todos aqueles que buscam alguma forma de entendimento em relação às artes verbais e rituais dos povos ameríndios, sobretudo se pensarmos na herança eurocêntrica que se implantou via colonização e da qual até hoje não conseguimos nos libertar.

Nesse sentido, é fundamental repensarmos as práticas institucionais homogeneizantes que simplesmente excluem as artes verbais indígenas do campo propriamente literário, ignorando os múltiplos atravessamentos entre linguagens e saberes que constituem parte significativa de nossa própria cultura. Assim é que, no âmbito dos estudos literários, observamos com espanto a escassa presença das produções indígenas nos cursos de Letras, mesmo num momento em que já existe um volume considerável de obras produzidas por autores indígenas, como sublinham Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz:

Assistimos atualmente a uma espécie de eclosão do que nomeio a priori uma literatura indígena no Brasil, que, a meu ver, configura um movimento literário, na medida em que pode ser observado nos seus aspectos coerentes e sistemáticos, como um grande texto que se dá a ler. Seus escritores representam uma população de cerca de 350.000 indivíduos, falantes de aproximadamente 180 línguas diferentes, além do português, e habitam desde a fronteira brasileira com a Venezuela até a fronteira com o Uruguai. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004ALMEIDA, Maria Inês; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG, 2004., p. 195)

Daí a necessidade de se cultivar uma área de investigação que aproxime a teoria literária da antropologia e que esteja atenta às particularidades advindas dessas línguas minoritárias e marcadas pela oralidade, considerando as aporias que emergem, justamente, quando as artes verbais passam ao âmbito da escrita. Se, por um lado, essa passagem representa a possibilidade de preservar determinadas manifestações culturais que correm o sério risco de desaparecer, por outro, há de saída uma perda, da qual - como nos mais elementares processos de tradução - é impossível escapar. Isso significa dizer que o registro, sob a forma escrita, das artes verbais indígenas põe em jogo um processo complexo de tradução, envolvendo não apenas a dimensão poética dessas produções, como também uma dimensão ética, política.

Considerando esse campo de estudos, ainda em formação no Brasil, o presente texto se propõe discutir aspectos referentes à poética e à política dos textos indígenas, mais especificamente o caso do Watunna1 1 O termo Watunna/Wätunnä é grafado de diferentes maneiras nos discursos etnográficos e nas comunidades ye'kwana. No presente ensaio empregamos as duas formas utilizadas nos textos a que recorremos. ye’kwana. Para tanto, acerca-se da pluralidade poética indígena do circum-Roraima, que é um rico espaço em termos de diversidade e potência humana e cultural. É nesse espaço amazônico, localizado no extremo norte da América do Sul, na tríplice fronteira Brasil-Guiana-Venezuela, que habita a maior percentagem da população indígena de todo o território nacional.

Perpassando fronteiras na Amazônia, aquelas fixadas por estreitos limites institucionais e geográficos, a região circum-Roraima constitui uma área etnográfica supranacional, caracterizada por uma riqueza cultural e literária, em certa medida, já bastante conhecida, porém ainda pouco estudada em sua complexidade e dinâmica únicas e peculiares. Nesse espaço cultural e geográfico entrecruzam-se saberes e línguas, e disso resulta uma pluralidade de cosmovisões que produzem, de forma muito particular, modos distintos de conceber o mundo e a existência humana. Daí que os textos indígenas dessa região tratem da origem da vida, dos homens, dos animais, da floresta, dos rios, das montanhas, assim como da vida após a morte, dos espíritos que em tudo vivem, das criaturas que habitam os céus, as águas e embaixo da terra, e da profecia relacionada ao tempo que está por vir. Essa profecia, contida em muitas das histórias tradicionais dos povos Ye'kwana e Yanomami, prenuncia a queda do céu, vaticinando o fim desse atual ciclo de criação da humanidade e de todo o mal existente hoje na Terra.

Tomando como base essa região cultural, chamamos a atenção para um conjunto monumental de textos indígenas produzidos no circum-Roraima: o Watunna. Em sua primeira versão impressa, Watunna - Mitología Makiritare é o belíssimo relato cosmogônico e histórico do povo So'to2 2 Termo empregado pelos Ye’kwana para se referirem a si próprios, cujo significado remete a gente, humano, porém atualmente é um designativo pouco utilizado (CIVRIEUX, 1992, p. 12-13). ou Makiritare3 3 Makiritare é um termo amplamente utilizado, de origem aruaque, que foi empregado pelos espanhóis para denominar esse povo desde 1759 (CIVRIEUX, 1992, p. 11). ou ainda Ye'kwana,4 4 O povo Ye’kwana é um povo de língua Caribe que vive, nos dias de hoje, em territórios da Venezuela e do Brasil. No Brasil, o povo Ye'kwana vive na Terra Indígena Yanomami. Segundo Fernando Yekuana Gimenes (2020, p.15), "além da comunidade Fuduuwaaduinha (Auaris), na TI Yanomami existem outras comunidades: a comunidade Waichannha (Waikás), com aproximadamente 142 pessoas, que se encontra à margem direita do rio Uraricoera, no município de Alto Alegre; a comunidade Tajääde'datoinha (Pedra Branca), com 18 pessoas. As duas ficam próximas à comunidade Fuduuwaaduinha (Auaris). Outra comunidade importante do povo Ye'kwana é a comunidade Kudaatainha (Tucuxin), com aproximadamente 150 pessoas, que se localiza na margem direita do rio Auaris, e que fica abaixo da comunidade Fuduuwaaduimha (Auaris)". como são hoje mais conhecidos, e foi coletado pelo geógrafo (de formação) e etnógrafo francês Marc de Civrieux junto ao povo Ye'kwana e publicado em língua espanhola, em 1970CIVRIEUX, Marc de. Watunna - Mitología Makiritare. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970., na Venezuela. Marc de Civrieux, quando ainda era um jovem paleontólogo, migrou da França para a Venezuela, em 1939, para participar de uma expedição franco-venezuelana, destinada a descobrir as cabeceiras do Rio Orinoco. O etnógrafo aproveitou essa oportunidade para fazer contato com diferentes Ye’kwana, iniciando, assim, uma relação que duraria mais de vinte anos, durante os quais se dedicou a coletar e interpretar as narrativas tradicionais que integrariam a obra.

A partir de 1960, Marc de Civrieux começou, de forma mais sistemática e com maior frequência, a publicar os textos coletados junto aos Ye’kwana. A princípio, ele afirmava que não compreendia toda a grandeza do conjunto, uma vez que as narrativas estavam organizadas em pequenos fragmentos isolados, que somente mais tarde se revelariam "una importante epopeya cosmogónica de vastas proporciones, cuya unidad profunda no aparecía todavía clara a nuestra mente" (CIVRIEUX, 1970CIVRIEUX, Marc de. Watunna - Mitología Makiritare. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970., p. 9)5 5 "uma importante epopeia cosmogônica de vastas proporções, cuja unidade profunda não aparecia todavia clara em nossa mente" (tradução nossa). .

Nos anos seguintes, com o aprofundamento das pesquisas, o estudioso passou a afirmar que se viu obrigado a reinterpretar muitos dos significados construídos para o complexo material mitológico que reuniu, quando, enfim, descobriu que os fragmentos anteriormente recolhidos se integravam num conjunto grandioso e coerente, ou seja, em uma grande narrativa de fundo mítico. Civrieux teve, então, condições de perceber com mais clareza o valor do Watunna e, por meio do conjunto narrativo, compreender melhor as peculiaridades culturais do povo Ye’kwana.

Dessa sorte, por meio de uma paciente investigação, o autor manteve contato profundo com esse monumento advindo da tradição oral, registrando-o e fixando-o por meio da escrita. O contato de longo prazo permitiu-lhe aprofundar a interpretação dessa rica peça narrativa - tão mal conhecida ainda entre nós, brasileiros, em geral, e roraimenses, em particular. O Watunna é um conjunto coerente de normas éticas e rituais que merecia, acreditava Civrieux, receber múltiplas interpretações antropológicas, e deveria também interessar a profissionais de outras áreas, como escritores, historiadores e artistas.

Em meio às muitas idas e vindas ao território ye’kwana, e à medida que efetuava a síntese dos textos indígenas, grandes quantidades de dados foram acumulados:

En 1959, nueve años después de la Expedición al Cunucunuma-Marahuaka, fue publicado Datos antropológicos de los indios Kunu-Hana, con abundante información sobre mitología, geografía, ecología y cultura kunuhana. Posteriormente salió Watunna, mitología Makiritare en 1970 y luego en 1992 Watunna, un ciclo de creación en el Orinoco [...]. (CIVRIEUX, 2015CIVRIEUX, Marc de. Mito y religión Kunuhana: anotaciones de una expedición al Cunucunuma. Anzoáteguí,Venezuela: Fondo Editorial del Caribe, 2015., p. 13)6 6 "Em 1959, nove anos depois da Expedição ao Cunucunuma-Marahuaka, foram publicados os Datos antropológicos de los índios Kunu-Hana, com abundante informação sobre mitologia, geografia, ecologia e cultura kunuhana. Posteriormente saiu Watunna, mitología Makiritare em 1970 e posteriormente em 1992 Watunna, un ciclo de creación en el Orinoco [...]" (tradução nossa).

Daí se depreende que, durante o processo, a impressionante riqueza e complexidade da mitologia poética ye'kwana foi se impondo por sua força e grandeza. Segundo Civrieux, esse povo em “nada tenía que envidiar a los mitos más célebres que han inspirado a la humanidad, en Babilonia, en Egipto, en Grecia, o en la Guatemala precolombina de los mayas-quichés” (CIVRIEUX, 1970CIVRIEUX, Marc de. Watunna - Mitología Makiritare. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970., p. 9).7 7 "nada tinha a invejar aos mais famosos mitos que inspiraram a humanidade, na Babilônia, no Egito, na Grécia ou na Guatemala pré-colombiana dos maias-quichés" (tradução nossa).

Uma segunda versão desse texto é o "Histórias e Saberes Ye'kwana", produzido em língua ye'kwana, e que foi compilado, organizado e traduzido para a língua portuguesa pelo indígena ye'kwana Marcos Rodrigues. O texto "Histórias e Saberes Ye'kwana" foi publicado em 2019RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas. Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230., em Roraima. Marcos Rodrigues coletou esse conjunto narrativo na comunidade indígena em que vive, Kudaatannha (Kuratanha), na fronteira Brasil-Venezuela, junto ao grande inchonkomo8 8 Para o povo Ye'kwana, um historiador é um inchonkomo, um sábio. É um grande conhecedor dos cantos tradicionais e de muitas histórias verdadeiras sobre o começo dos tempos, do mundo e dos homens - do Wätunnä. Segundo Marcos Rodrigues (2019, p. 131), "ele é capaz de manejar um vastíssimo repertório de cantos e rezas, incluindo aí um léxico especial da fala de rituais tradicionais da cultura ye'kwana". , o senhor Vicente Castro Yuudawaana. Esse ancião é um historiador muito respeitado por ser um grande conhecedor dos cantos tradicionais Acchudi9 9 Acchudi "são cantos de proteção que servem para proteger e garantir o bem-estar das pessoas. Todas as vezes que se vai comer uma carne de caça, ou qualquer outra comida, tem que rezar o Acchudi [...]" ( GIMENES, 2020 , p. 63). e Ädeemi10 10 "Diferentemente do que acontece com os Acchudi, os cantos Ädeemi são sempre associados à dança e acontecem em ocasiões de reuniões e de festas. A ocorrência se dá quando, por exemplo, chega o momento de colocar adorno na menina que virou moça ou quando se vai inaugurar uma casa nova [...]" (GIMENES, 2020, p. 76). , que são conjuntos de cantos e rezas, e do Wätunnä - as verdadeiras histórias para o povo Ye'kwana. Vicente Castro é conhecido como o wätunnä edhaajä, o "dono de histórias".

Em relação a esse patrimônio cultural do povo Ye'kwana, o professor e mestre em Letras Fernando Yekuana Gimenes salienta que

São histórias que não são inventadas de qualquer jeito e nem por qualquer pessoa porque elas foram e são contadas pelos nossos ancestrais. Antigamente, esse patrimônio só era transmitido oralmente, exigindo grande capacidade de memorização de longas sequências narrativas e estruturas de cânticos. As pessoas aprendiam Wätunä desde criança com seus pais e avôs, pois os velhos ensinavam e repassavam esses conhecimentos para os seus filhos. Nos nossos dias, esse aspecto está bastante modificado. (GIMENES, 2020GIMENES, Fernando Yekuana. Os cantos tradicionais ye'kwana. 2020. 138 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa da Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2019. , p. 13)

Diante de toda essa complexidade cultural, torna-se fundamental questionarmos de que modo esses atravessamentos entre línguas e culturas evidenciam um fenômeno que pode ser definido como o da invisibilidade das textualidades indígenas no âmbito da cultura literária brasileira. Trata-se de um fenômeno de apagamento cultural que só muito recentemente vem sendo revertido, quando textos de origem e caráter indígena passaram a desfrutar de um espaço importante na agenda de discussões teóricas e críticas no campo dos estudos literários brasileiros, sem que, todavia, tenhamos alcançado até então a profundidade suficiente para avaliarmos as dimensões poéticas e políticas dessas produções.

O fato de lidarmos com esses dois tipos de atravessamentos extremamente complexos - a passagem da oralidade à escrita, bem como a tradução de uma língua minoritária, no caso a língua ye’kwana, para uma língua nacional, o espanhol ou o português - exige uma reflexão crítica acerca dos diversos fatores implicados nesse processo, uma vez que a tradução, por si só, não garante uma ruptura com as práticas etnocêntricas determinadas pelas culturas dominantes. Como afirma Antoine Berman, é fundamental que uma determinada tradução não perca de vista a sua dimensão ética, pois “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada” (BERMAN, 2002BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru, São Paulo: Edusc, 2002., p. 17).

II

Estudar literariamente textos provenientes das artes verbais indígenas implica a possibilidade de levantar questões que tocam o campo da reflexão filosófica, antropológica e artística sobre a busca de compreensão do outro, bem como sobre os modos de entender, conceber, representar e interpretar o mundo. Nesse sentido, torna-se fundamental refletirmos acerca dos processos de criação e recriação das artes verbais indígenas do circum-Roraima, em especial do Watunna, o conjunto narrativo dos Ye'kwana, mediante a abordagem de questões que envolvem autoria, tradução, modos de transposição da oralidade para a escrita e, ainda, modos de circulação de textos originados da tradição oral indígena.

No Brasil, há uma longa tradição de coletar e publicar por escrito as histórias contadas por indígenas de diferentes etnias, por toda sorte de autores, tais como viajantes estrangeiros, missionários, etnógrafos e linguistas. A título de exemplo, citamos Sílvio Romero, Contos Populares do Brasil, publicado em 1883; Capistrano de Abreu, Rã-txa hu-ni ku-i... A língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçu, afluente do Muru; Curt Nimuendajú, As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, ambos publicados em 1914; Antônio Brandão de Amorim, Lendas em Nheêngatú e em Portuguez (1928); Herbert Baldus, Lendas dos Índios do Brasil (1946), entre outros.

Com os textos indígenas do circum-Roraima, por onde passaram personalidades como Richard Schomburgk, Theodor Koch-Grünberg, Cesáreo Armellada, Marc de Civreux, Dom Alcuino Meyer, não foi diferente. No artigo intitulado “O espaço literário do circum-Roraima” (2017SÁ, Lúcia. “O espaço literário do circum-Roraima”. In: CARVALHO, Fábio Almeida de; MIBIELLE, Roberto; FONSECA, Isabel Maria (Orgs). Literatura e fronteira. Boa Vista: EdUFRR , 2017, p. 75-96., p. 75), Lúcia Sá afirma que poucas regiões têm alimentado mais a imaginação de estrangeiros do que o circum-Roraima:

Ao longo de séculos vários viajantes e escritores europeus, de Walter Raleigh a Arthur Conan Doyle, maravilharam-se com a estranha geografia da região com seus montes em formas de mesetas (tepuis), cascatas altíssimas, e corredeiras que cortam um lavrado relativamente seco, habitado por uma variedade de culturas de troncos linguísticos caribe e aruaque. Para cada um desses viajantes, a região do circum-Roraima passou a representar mundos perdidos do passado e do presente [...]. (SÁ, 2017SÁ, Lúcia. “O espaço literário do circum-Roraima”. In: CARVALHO, Fábio Almeida de; MIBIELLE, Roberto; FONSECA, Isabel Maria (Orgs). Literatura e fronteira. Boa Vista: EdUFRR , 2017, p. 75-96., p. 75-76)

O primeiro a coletar textos indígenas da região do circum-Roraima foi o alemão Richard Schomburgk, enviado da coroa britânica, e publicou Reisen in Britisch-Guiana (1847). Sessenta anos mais tarde, o corpus de textos caribes11 11 Designam-se como “textos caribes” as compilações de artes verbais dos povos Caribes, que são os grupos indígenas da América Central e da América do Sul falantes de línguas pertencentes à família linguística Caribe, tais como os Pemon, Macuxi, Ye’kwana, Ikpeng, Kuikuro, entre outros. foi ampliado por outro alemão, Theodor Koch-Grünberg, que coletou junto aos Pemon o maior repertório de narrativas das aventuras de Makunaima e seus irmãos, dentre outras histórias, e publicou em Berlim, em 1916, Mythen und Legenden der Taulipáng und Arekuna-Indiner.

Décadas depois, o corpus caribe se expande graças aos trabalhos do missionário capuchino Cesáreo Armellada e do francês Marc de Civrieux. O primeiro recolheu e produziu a coletânea de histórias Tauron Panton (1964), que incluiu o original de narrativas em pemon e a tradução em espanhol, bem como uma publicação de rezas pemons no livro Pemontón Taremuru (1972). O segundo coletou textos junto aos Ye'kwanas e produziu o Watunna - Mitología Makiritare, relato cosmogônico e histórico do povo Ye'kwana, trabalho que o consagrou como o grande mitólogo do rio Orinoco e que foi publicado em espanhol, em 1970, e traduzido para o inglês por David Guss, em 1980, com consideráveis modificações editoriais, conforme bem nota Lúcia Sá (2012SÁ, Lúcia. Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012., p. 42).

O Watunna - Mitología Makiritare é referenciado como um dos (poucos) textos clássicos da América Indígena, não só por sua estrutura e extensão, mas também porque condensa e partilha "forte consciência não apenas sobre o homem e a concepção de mundo dos habitantes da região do circum-Roraima, mas também sobre a riqueza biótica e imaginativa da grande floresta tropical da América", a Amazônia (BROTHERSTON, 2007BROTHERSTON, Gordon. "Popol Vuh: contexto e princípios de leitura". In: BROTHERSTON, Gordon; MEDEIROS, Sérgio (Orgs.). Popol Vuh. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 11-37., p. 12).

O povo Ye’kwana, protagonista do Watunna, alimentou uma intensa rede de comunicação e de trocas comerciais com outros indígenas do norte-amazônico, tanto a Oeste, até a região dos Piaroa, como a Leste, até a região do lavrado, com os povos Pemon e Macuxi, como também, atualmente, com os não indígenas, tanto na Venezuela quanto no Brasil, mais precisamente, no estado de Roraima. Outro aspecto característico desse povo é a arte da navegação nos grandes rios da região, principalmente o Orinoco, e por isso os Ye’kwana são conhecidos na Venezuela e no Brasil como las gentes de las aguas. Grandes negociantes e viajantes,

todas as trocas comerciais nas quais se engajam os Ye’kwana são orientadas, ainda hoje, pela ética moral contida nas histórias do Watunna. Esse conjunto narrativo contém a história do povo Ye'kwana, mas também a profecia sobre o seu desaparecimento, quando findar o ciclo atual em que agora vivem. (ANDRADE, 2009ANDRADE, Karenina Vieira. “Wätunna: a força de uma profecia Ye’kuana”. Tellus. Ano 9, n. 1, Campo Grande: UCDB, jul./dez. 2009, p. 11-31. , p. 26)

Nesse processo, como de resto ocorreu com os demais povos indígenas que vivem no Brasil, os Ye'kwana passaram a ocupar muitos outros espaços em que antes não se faziam presentes, dentre os quais espaços relacionados à atividade intelectual, como a escola, na condição de professores e de estudantes, e as universidades, em especial, a Universidade Federal de Roraima. Mais recentemente, também passaram a assumir a condição de escritores de suas narrativas tradicionais e de seus cantos. As histórias do Watunna são transmitidas oralmente através das sucessivas gerações. É interessante notar que há diversos níveis de conhecimento que podem ser atingidos por meio delas, os quais vão desde aspectos relacionados ao cotidiano - como benzer os alimentos, para que não façam mal a quem os come -, até os níveis mais altos da vida cultural - como propiciar a boa colheita ou tornar a casa grande indestrutível, por exemplo. Apesar disso, é importante assinalar que todo indivíduo ye’kwana, seja homem, seja mulher, conhece, em alguma medida, as principais histórias do Watunna, pelo menos aquelas sobre os temas mais debatidos, como o surgimento do mundo e dos seres que nele habitam.

Em geral, as mulheres são as que detêm menor conhecimento sobre as histórias do Watunna. Mesmo um ye’kwana mais jovem, por vezes, sabe mais histórias do que muitas mulheres mais idosas, caso esteja interessado em dedicar-se à memorização das narrativas. Esse processo de aprendizagem, que dura toda a vida, poderá transformar o aprendiz em um historiador, em um cantor12 12 Em ye'kwana, achudi edhaajä, dono do canto. ou em um föwai13 13 Pajé. , um especialista a quem se recorre quando necessário e que é responsável pelo ensinamento da nova geração, conforme a antropóloga Karenina Andrade (2009ANDRADE, Karenina Vieira. “Wätunna: a força de uma profecia Ye’kuana”. Tellus. Ano 9, n. 1, Campo Grande: UCDB, jul./dez. 2009, p. 11-31. , p. 17).

III

As produções indígenas, entendidas em suas múltiplas manifestações, se organizam em formações discursivas distintas. Um primeiro tipo de ocorrência seria a das artes verbais em sua expressão puramente oral, podendo resultar em manifestações produzidas nas próprias línguas indígenas e/ou em línguas estrangeiras de origem europeia, como é o caso da língua portuguesa, no contexto das comunidades indígenas. Esse tipo de manifestação é ainda pouco estudado, talvez pela própria dificuldade em circunscrever esse objeto, pois, como sublinha Paul Zumthor, “falta-nos uma poética geral da oralidade que serviria de relé às pesquisas particulares e proporia noções operatórias, aplicáveis ao fenômeno das transmissões da poesia oral pela voz e pela memória, à exclusão de qualquer outra” (2010ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010., p. 1).

Um segundo tipo de ocorrência está, portanto, relacionado à passagem desse registro da oralidade para o registro escrito, porém essa passagem pode se dar a partir de uma vasta gama de estratégias. A primeira delas, e a mais comum até os dias de hoje, é a das grandes compilações realizadas por pesquisadores, em geral antropólogos ou linguistas, que recolhiam e traduziam as narrativas orais, conferindo aos indígenas o papel de informantes. Esses textos, comumente nomeados de estórias, mitos ou lendas, estão presentes, por exemplo, nos trabalhos de Capristano de Abreu e de Theodor Koch-Grünberg, acima referenciados. No primeiro caso, é interessante ressaltar que Capistrano de Abreu, no breve prefácio de seu livro, nomeia os seus dois informantes - Bôrô (Vicente Penna Sombra) e Tuxinin -, contando brevemente a história de cada um deles e de como os conheceu, e também assinala, em todas as narrativas coletadas, qual dos dois foi o responsável pela narração: “Vão adiante sob a sigla T os textos por ele [Tuxinin] fornecidos, como sob a de B vão os do Vicente” (ABREU, 1914ABREU, João Capistrano de. râ-txa hu-ni-ku-i: a língua dos caxinauás do rio Ibuaçu afluente do Muru. Rio de Janeiro: Tipografia Leuzinger, 1914., p. 6). Theodor Koch-Grünberg, por sua vez, explicita, no Prólogo dos Mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná quem são seus informantes (Akuli, índio Arekuná, e Mayuluaípu, Taulipang), bem como as condições em que se deu a participação de cada um no processo de coleta e de tradução das narrativas que compõem o livro. Além disso, antes de cada uma das cinquenta narrativas que compõem o conjunto, o etnógrafo indica qual dos dois informantes forneceu o texto.14 14 Sobre o caso, Fábio Almeida de Carvalho (2015, p. 52) afirma que essa sinalização “propicia distinguir as vozes presentes nos textos, pois que fornece os créditos à exata parcela de participação dos informantes indígenas, Akuli e Mayuluaípu”.

Outro tipo de ocorrência está presente no livro Moqueca de maridos - mitos eróticos indígenas (1995), de Betty Mindlin e narradores indígenas, bem como em Quando a terra deixou de falar - cantos da mitologia marubo (2013), de Pedro Cesarino. Na primeira obra, os indígenas constam como narradores e dividem a autoria do livro com a antropóloga, embora não sejam nomeados individualmente na capa - talvez por serem numerosos -, apenas na parte interna da obra. Já no caso de Pedro Cesarino a estratégia é um pouco diferente: o antropólogo assina a organização, tradução e apresentação dos textos, e todos os “cantores” são nomeados na própria capa.

Além disso, há também os textos produzidos em regime de parceria entre indígenas - que não mais ocupam a posição de meros "informantes" -, e pesquisadores brancos, como é o caso do belíssimo A Queda do céu: palavras de um xamã Yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010), texto que coloca em xeque a própria antropologia, porque, segundo Eduardo Viveiros de Castro (2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O recado da mata” (prefácio). In: KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu - palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras , 2015, p. 11-41., p. 12), “desloca, inverte e renova o discurso da antropologia sobre os povos ameríndios, redefinindo suas condições metodológicas e pragmáticas de enunciação”.

Podemos elencar, ainda, os textos escritos pelos próprios indígenas quando assumem o papel de autores, embora a organização da obra seja feita de forma coletiva. Esses textos, em geral, são registros de narrativas ou saberes tradicionais, como a prática da medicina, por exemplo, e que foram compilados no âmbito das escolas da floresta, com o apoio de instituições, tais como universidades, igrejas e profissionais que assessoram projetos de organizações indígenas; esse é o caso do texto "Histórias e Saberes Ye'kwana" (2019RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas. Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230.), de Marcos Rodrigues, do qual trataremos adiante.

Por último, podemos mencionar as produções de caráter mais individualizado, que reúnem textos publicados por editoras em línguas nacionais, como é o caso de Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Graça Graúna, Kaká Werá, Olívio Jekupé, Márcia Kambeba, Julie Dorrico, dentre muitos outros que ora despontam no cenário literário brasileiro. Nesse caso, em sua maioria, o texto surgiu diretamente na forma escrita, não tendo existido um registro oral anterior à sua publicação, embora as tradições indígenas estejam invariavelmente presentes.

Cada uma dessas diferentes manifestações da cultura indígena define um tipo de relação específica no que diz respeito à autoria dessas obras. Assim, refletir sobre as particularidades dos métodos de criação e de coleta praticados com fins antropológicos, linguísticos, religiosos, educacionais e, nos dias de hoje, também literários, parece importante para compreender esse fenômeno de emergência de uma literatura indígena no Brasil. Esses usos delimitam as formas de expressão e os conteúdos e desvelam as relações mantidas por esses diferentes tipos de fontes com os processos de criação, produção e publicação das literaturas indígenas.

Com o objetivo de apontar uma direção para se pensar uma “teoria literária ameríndia”, como sugere Marília Librandi-Rocha (2012LIBRANDI-ROCHA, Marília. “Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia”. O eixo e a roda, v. 21, n. 2, Belo Horizonte, 2012, p. 170-202.), de modo que essa prática translíngue que envolve a tradução e publicação das artes verbais indígenas possa contribuir para desestabilizar uma noção homogeneizante daquilo que é considerado literário, abordaremos brevemente, a seguir, quatro aspectos que tocam as dimensões poéticas e políticas dessa questão: autoria; tradução; modos de transposição da oralidade para a escrita; e, por fim, os modos de circulação de textos originados da tradição oral indígena do circum-Roraima. Para tanto, abordaremos as duas versões anteriormente já mencionadas do Watunna.

Em relação à questão da autoria, já assinalamos que a obra Watunna - Mitología Makiritare é assinada pelo etnógrafo francês Marc de Civrieux. Segundo revela o próprio autor na introdução do livro, ele coletou os textos a partir de uma vivência de longo prazo com os indígenas. Na edição americana organizada e traduzida por David M. Guss e publicada primeiramente em 1980, Watunna - An Orinoco Creation Cycle, o tradutor incluiu um prefácio intitulado “A Teller’s Preface”, no qual esse processo é descrito como uma atividade de cooperação, pois, após ter reunido e organizado todos esses fragmentos, Civrieux reuniu-se novamente com os indígenas para conferir o resultado final, assumindo o papel do “contador de histórias”, porém submetendo o seu trabalho à avaliação do próprio povo Ye’kwana:

Surprised and delighted, they gathered around to listen, correcting and adding new details as they were needed. When some episode had been misplaced, they signalled: “No. That comes before.” Or: “It comes later.” When something had been forgotten, they said: “Here, you are missing this little piece,” and went on to relate it. And so the ‘montage’ was approved and became and entirely spontaneous, collective collaboration. (GUSS, 1997GUSS, David M. “A Tellers’s Preface” (prefácio). In: CIVRIEUX, Marc de. Watunna: an Orinoco creation cycle. Tradução e edição de David M. Guss. Austin: University of Texas Press, 1997, p. xiii-xiv., p. xiii)15 15 “Surpresos e encantados, eles se reuniam para ouvir, corrigindo e acrescentando novos detalhes, conforme necessário. Quando algum episódio estava fora de ordem, eles sinalizavam: “Não. Aquilo veio antes.” Ou: “Isso vem depois.” Quando algo tinha sido esquecido, eles diziam: “Aqui está faltando esse pedacinho,” e passavam a relatá-lo. E assim a ‘montagem’ foi aprovada e tornou-se uma colaboração coletiva inteiramente espontânea” (tradução nossa).

Apesar disso, não há menção aos indígenas que participaram desse processo complexo de coleta e fixação do texto, ao contrário do que ocorreu nos trabalhos de Capistrano de Abreu e Theodor Koch-Grünberg, aos quais nos referimos anteriormente, em que os narradores não apenas foram nominalmente mencionados, como houve também a preocupação, por parte dos pesquisadores, em descrever alguns traços psicológicos desses indivíduos. Além do mais, nos dois casos mencionados acima, os pesquisadores associam as narrativas aos narradores, ficando claro para o leitor qual deles relatou uma determinada versão das histórias compiladas. Já no caso de Civrieux, ainda que seja inegável a dedicação do pesquisador ao povo Ye’kwana, chama a atenção esse apagamento dos narradores indígenas que contribuíram para a realização do trabalho, dando a impressão de que a “colaboração coletiva” termina por diluir a participação individual. Essa concepção de uma dissolução do indivíduo no seio da comunidade parece, de fato, conduzir o pensamento de Civrieux, pois no prefácio de sua primeira edição do Watunna , o autor comenta:

No hay margen, en las mitologías, para la fantasía subjetiva de ‘artistas’ individuales ni para la improvisación. Cada episodio, cada símbolo, tiene importancia y significado ejemplar. Expresión espontánea del alma colectiva, el mito sobrepasa los límites del hecho síquico individual y sería vano buscar su autor. Hay un solo poeta: la comunidad. (CIVRIEUX, 1970CIVRIEUX, Marc de. Watunna - Mitología Makiritare. Caracas: Monte Ávila Editores, 1970., p. 33)16 16 “Não há margem, nas mitologias, para a fantasia subjetiva de ‘artistas’ individuais nem para a improvisação. Cada episódio, cada símbolo, tem importância e significado exemplares. Expressão espontânea da alma coletiva, o mito ultrapassa os limites do fato psíquico individual e seria inútil buscar seu autor. Há um só poeta: a comunidade” (tradução nossa).

Essa última observação parece desconsiderar, inclusive, uma importante tradição entre os Ye’kwana, que é o aprendizado das histórias e da arte de narrá-las, como já comentamos em outro momento. Além disso, não se sabe ao certo, em termos metodológicos, como foi feito o trabalho que envolveu a compilação desses textos; as informações fornecidas pelo etnógrafo restringem-se aos problemas mencionados anteriormente, tanto em relação à coleta das narrativas, que se estendeu por décadas, como em relação à organização dos fragmentos, que eram inúmeros. Esses fatos, porém, não lançam luz às questões mais diretamente linguísticas que envolvem a tradução desses textos, ou mesmo às dificuldades e impasses da transposição do registro oral ao escrito.

Enfim, com relação ao Watunna de Civrieux, é o etnógrafo quem de fato leva os créditos pela autoria do texto. Mas, quanto a isso, temos de reconhecer que aqueles eram outros tempos, com outra lógica e outras práticas, ainda que pesquisadores anteriores, inclusive do início do século, tenham agido de forma um pouco diferente. De todo modo, essas ocorrências são comuns, e Lucia Sá cita, mais especificamente, o caso do indígena tariana Maximiano José Roberto, que

passou boa parte de sua vida reunindo histórias, transcrevendo-as ao nheengatu (tupi moderno) e traduzindo-as ao português, nunca deixando de discutir sua importância e estrutura com aqueles que as forneciam. Essas histórias, apesar disso, foram publicadas sob o nome de outras pessoas: Barbosa Rodrigues, Brandão de Amorim e Ermano Stradelli. (SÁ, 2012SÁ, Lúcia. Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012., p. 24)

Nos dias de hoje, no entanto, é praticamente incabível realizar um trabalho desse porte com indígenas e, pelo menos, não compartilhar com eles a autoria da obra publicada. No caso de Civrieux, ao que parece, a presença deles já bastava e foi-lhes dado o papel de meros informantes.

Já a versão do Watunna do indígena Marcos Rodrigues, o texto “Histórias e Saberes Ye'kwana” (2019RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas. Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230.), segue em outra direção. De início, é importante notar que Marcos Rodrigues é ye'kwana, além disso, falante nativo de sua língua, morador da comunidade Kudatanha e, ademais, assume a autoria do texto, acrescentando, todavia, o dado de que ele coletou as narrativas com o mais renomado e importante "historiador" de seu povo, o pajé Vicente Castro, que por acaso é também seu pai. Vicente Castro é reconhecidamente um dos maiores guardiões dos conhecimentos do povo Ye'kwana. Segundo Marcos Rodrigues, as narrativas que constituem o texto "Histórias e Saberes Ye'kwana" foram registradas em sua própria língua em um caderno, porque Vicente Castro não quis gravá-las:

Ele disse que era para melhor memorizar e que eu anotasse todas as histórias do Wätunnä no caderno, porque assim era mais seguro. Enquanto ele ficava deitado na sua rede, em sua casa, ele contava as histórias e eu escutava e anotava tudo. Eu tentava fica [sic] bem concentrado porque ele só queria contar uma única vez e não repetia mais. Quando acabava de contar a história ele me perguntava como que eu havia entendido e anotado, então eu recontava a história e se estivesse correta, do jeito que ele queria, ele confirmava e a versão de cada uma era finalizada. E foi assim que cada história foi nascendo e o nosso Wätunnä - Histórias e Saberes Ye’kwana ficando pronto. (RODRIGUES, 2019RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas. Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230., p. 129)

Em segundo lugar, é importante notar que ele também acrescenta a informação de que realizou o trabalho na condição de professor da escola e por solicitação da sua comunidade, que alegava que a escola ye'kwana precisava se tornar mais ye'kwana e que, para isso, precisava de livros sobre a sua cultura e suas histórias tradicionais. Marcos Rodrigues teve de enfrentar o problema relacionado à necessidade de traduzir do ye'kwana para o português, uma vez que, como professor e pesquisador, ele realizava o trabalho de coleta, fixação na forma escrita e de tradução com o objetivo de produzir material didático para o ensino, tanto da cultura e da língua Ye'kwana na escola, mas também da língua portuguesa. Prova disso é que a edição do Watunna de Marcos Rodrigues é bilíngue, enquanto a de Marc de Civrieux foi publicada em espanhol e depois traduzida para o inglês, mas jamais foi traduzida para a língua ye'kwana ou para a língua portuguesa.

A partir daí, podemos pensar imediatamente na questão de como essas duas obras circulam: enquanto o livro de Marc de Civrieux ganhou várias edições em espanhol e em inglês, tornando-se um clássico da literatura indígena, e circulou em diferentes esferas discursivas (etnografia, antropologia, literatura e em alguns filmes), a obra de Marcos Rodrigues, publicada bem mais recentemente, surge como texto para circular preferencialmente na escola, como recurso didático para o povo Ye'kwana. Apesar disso, temos a convicção de que o tempo pode demonstrar que esse texto, feito/acontecimento do povo Ye'kwana, tem potencial para circular em outros meios discursivos e culturais.

Para finalizar, não podemos deixar de ressaltar, mais uma vez, o papel do francês Marc de Civrieux, que contribuiu de forma valorosa para o aprofundamento da etnologia ye'kwana e para o conhecimento das formas de manifestação da arte verbal do circum-Roraima. Por outro lado, a recente publicação de Marcos Rodrigues é um acontecimento mais do que necessário, devendo servir como exemplo para que muitos outros indígenas se lancem à empreitada de registrar e publicar as narrativas tradicionais de seus povos. No entanto, consideramos com pesar que a ausência de circulação do Watunna nos meios literários brasileiros só pode ser entendida como o sintoma de uma doença grave, da qual precisamos, urgentemente, curar-nos: o apagamento, em termos poéticos e políticos, de nossas raízes ameríndias. Dessa situação geral, fica a certeza de que as textualidades indígenas têm o importante papel de nos fazerem refletir acerca do nosso modo de pensar e agir, bem como de nos relacionarmos com os múltiplos outros que nos constituem.

Referências

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  • ANDRADE, Karenina Vieira. “Wätunna: a força de uma profecia Ye’kuana”. Tellus Ano 9, n. 1, Campo Grande: UCDB, jul./dez. 2009, p. 11-31.
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  • BROTHERSTON, Gordon. "Popol Vuh: contexto e princípios de leitura". In: BROTHERSTON, Gordon; MEDEIROS, Sérgio (Orgs.). Popol Vuh São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 11-37.
  • CARVALHO, Fábio Almeida de. Makunaima ≈ Macunaíma: contribuições para um estudo de um herói transcultural Rio de Janeiro: E-Papers, 2015.
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  • CIVRIEUX, Marc de. Mito y religión Kunuhana: anotaciones de una expedición al Cunucunuma Anzoáteguí,Venezuela: Fondo Editorial del Caribe, 2015.
  • GIMENES, Fernando Yekuana. Os cantos tradicionais ye'kwana 2020. 138 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa da Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2019.
  • GUSS, David M. “A Tellers’s Preface” (prefácio). In: CIVRIEUX, Marc de. Watunna: an Orinoco creation cycle Tradução e edição de David M. Guss. Austin: University of Texas Press, 1997, p. xiii-xiv.
  • KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Do Roraima ao Orinoco V. 1. Tradução de Cristina Alberts-Franco. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
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  • RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230.
  • SÁ, Lúcia. Literaturas da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.
  • SÁ, Lúcia. “O espaço literário do circum-Roraima”. In: CARVALHO, Fábio Almeida de; MIBIELLE, Roberto; FONSECA, Isabel Maria (Orgs). Literatura e fronteira Boa Vista: EdUFRR , 2017, p. 75-96.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O recado da mata” (prefácio). In: KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu - palavras de um xamã Yanomami Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras , 2015, p. 11-41.
  • ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
  • 1
    O termo Watunna/Wätunnä é grafado de diferentes maneiras nos discursos etnográficos e nas comunidades ye'kwana. No presente ensaio empregamos as duas formas utilizadas nos textos a que recorremos.
  • 2
    Termo empregado pelos Ye’kwana para se referirem a si próprios, cujo significado remete a gente, humano, porém atualmente é um designativo pouco utilizado (CIVRIEUX, 1992CIVRIEUX, Marc de. Watunna. Un ciclo de creación en el Orinoco. Caracas: Monte Ávila Editores , 1992., p. 12-13).
  • 3
    Makiritare é um termo amplamente utilizado, de origem aruaque, que foi empregado pelos espanhóis para denominar esse povo desde 1759 (CIVRIEUX, 1992CIVRIEUX, Marc de. Watunna. Un ciclo de creación en el Orinoco. Caracas: Monte Ávila Editores , 1992., p. 11).
  • 4
    O povo Ye’kwana é um povo de língua Caribe que vive, nos dias de hoje, em territórios da Venezuela e do Brasil. No Brasil, o povo Ye'kwana vive na Terra Indígena Yanomami. Segundo Fernando Yekuana Gimenes (2020ANDRADE, Karenina Vieira. “Wätunna: a força de uma profecia Ye’kuana”. Tellus. Ano 9, n. 1, Campo Grande: UCDB, jul./dez. 2009, p. 11-31. , p.15), "além da comunidade Fuduuwaaduinha (Auaris), na TI Yanomami existem outras comunidades: a comunidade Waichannha (Waikás), com aproximadamente 142 pessoas, que se encontra à margem direita do rio Uraricoera, no município de Alto Alegre; a comunidade Tajääde'datoinha (Pedra Branca), com 18 pessoas. As duas ficam próximas à comunidade Fuduuwaaduinha (Auaris). Outra comunidade importante do povo Ye'kwana é a comunidade Kudaatainha (Tucuxin), com aproximadamente 150 pessoas, que se localiza na margem direita do rio Auaris, e que fica abaixo da comunidade Fuduuwaaduimha (Auaris)".
  • 5
    "uma importante epopeia cosmogônica de vastas proporções, cuja unidade profunda não aparecia todavia clara em nossa mente" (tradução nossa).
  • 6
    "Em 1959, nove anos depois da Expedição ao Cunucunuma-Marahuaka, foram publicados os Datos antropológicos de los índios Kunu-Hana, com abundante informação sobre mitologia, geografia, ecologia e cultura kunuhana. Posteriormente saiu Watunna, mitología Makiritare em 1970 e posteriormente em 1992 Watunna, un ciclo de creación en el Orinoco [...]" (tradução nossa).
  • 7
    "nada tinha a invejar aos mais famosos mitos que inspiraram a humanidade, na Babilônia, no Egito, na Grécia ou na Guatemala pré-colombiana dos maias-quichés" (tradução nossa).
  • 8
    Para o povo Ye'kwana, um historiador é um inchonkomo, um sábio. É um grande conhecedor dos cantos tradicionais e de muitas histórias verdadeiras sobre o começo dos tempos, do mundo e dos homens - do Wätunnä. Segundo Marcos Rodrigues (2019RODRIGUES, Marcos. “Histórias e Saberes Ye'kwana”. In: CARVALHO, Fábio Almeidade; FONSECA, Isabel Maria; RAPOSO, Celino Alexandre (Orgs.). Leitura de textos indígenas. Boa Vista: EdUFRR, 2019, p. 125-230., p. 131), "ele é capaz de manejar um vastíssimo repertório de cantos e rezas, incluindo aí um léxico especial da fala de rituais tradicionais da cultura ye'kwana".
  • 9
    Acchudi "são cantos de proteção que servem para proteger e garantir o bem-estar das pessoas. Todas as vezes que se vai comer uma carne de caça, ou qualquer outra comida, tem que rezar o Acchudi [...]" ( GIMENES, 2020 GIMENES, Fernando Yekuana. Os cantos tradicionais ye'kwana. 2020. 138 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa da Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2019. , p. 63).
  • 10
    "Diferentemente do que acontece com os Acchudi, os cantos Ädeemi são sempre associados à dança e acontecem em ocasiões de reuniões e de festas. A ocorrência se dá quando, por exemplo, chega o momento de colocar adorno na menina que virou moça ou quando se vai inaugurar uma casa nova [...]" (GIMENES, 2020GIMENES, Fernando Yekuana. Os cantos tradicionais ye'kwana. 2020. 138 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa da Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2019. , p. 76).
  • 11
    Designam-se como “textos caribes” as compilações de artes verbais dos povos Caribes, que são os grupos indígenas da América Central e da América do Sul falantes de línguas pertencentes à família linguística Caribe, tais como os Pemon, Macuxi, Ye’kwana, Ikpeng, Kuikuro, entre outros.
  • 12
    Em ye'kwana, achudi edhaajä, dono do canto.
  • 13
    Pajé.
  • 14
    Sobre o caso, Fábio Almeida de Carvalho (2015CARVALHO, Fábio Almeida de. Makunaima ≈ Macunaíma: contribuições para um estudo de um herói transcultural. Rio de Janeiro: E-Papers, 2015. , p. 52) afirma que essa sinalização “propicia distinguir as vozes presentes nos textos, pois que fornece os créditos à exata parcela de participação dos informantes indígenas, Akuli e Mayuluaípu”.
  • 15
    “Surpresos e encantados, eles se reuniam para ouvir, corrigindo e acrescentando novos detalhes, conforme necessário. Quando algum episódio estava fora de ordem, eles sinalizavam: “Não. Aquilo veio antes.” Ou: “Isso vem depois.” Quando algo tinha sido esquecido, eles diziam: “Aqui está faltando esse pedacinho,” e passavam a relatá-lo. E assim a ‘montagem’ foi aprovada e tornou-se uma colaboração coletiva inteiramente espontânea” (tradução nossa).
  • 16
    “Não há margem, nas mitologias, para a fantasia subjetiva de ‘artistas’ individuais nem para a improvisação. Cada episódio, cada símbolo, tem importância e significado exemplares. Expressão espontânea da alma coletiva, o mito ultrapassa os limites do fato psíquico individual e seria inútil buscar seu autor. Há um só poeta: a comunidade” (tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    19 Mar 2021
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