Carlos Reis (nascido em Angra do Heroísmo, 1950), professor catedrático emérito da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, carrega consigo um currículo extremamente vasto, o que obriga as entrevistadoras a fazer um recorte para esta apresentação, destacando aqueles trabalhos diretamente vinculados ao tema da entrevista, sem necessariamente referir tudo o que o entrevistado realizou durante os longos anos dedicados à pesquisa e ao ensino dos vários campos dos estudos literários.
Foi na Universidade de Coimbra que Carlos Reis se licenciou, no início dos anos 1970, e foi também nessa instituição que viria posteriormente a doutorar-se e lecionar. A pesquisa em curso para a escrita da sua tese de licenciatura, intitulada Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós - publicada em livro em 1975 - permitiu que o jovem estudante de Coimbra conseguisse ser dispensado do serviço militar em plena guerra colonial. Salvo pelo Eça. Se o escritor oitocentista, no entanto, não foi, por milagre, canonizado, restou-lhe ser canônico. E é consolidada a contribuição de Carlos Reis para os estudos do cânone da literatura portuguesa, com destaque para a obra queirosiana. Trabalhos que dão continuidade aos de outros mestres de referência, como Ernesto Guerra da Cal.
Nesta seara, publicou o incontornável Introdução à leitura de Os Maias (1978), bíblia da qual os estudantes do 11º ano do ensino português (equivalente ao 2º ano do ensino médio no Brasil) muito provavelmente já leram algum salmo. Esse diálogo entre a pesquisa científica e o ensino, vale a nota, é uma constante na sua produção bibliográfica. Outras obras de introdução à leitura direcionadas aos alunos do ensino médio foram por ele escritas, além de ter tido um papel central na elaboração dos currículos nacionais para o ensino de língua portuguesa e suas literaturas em Portugal.
Sua atenção, no entanto, não se detém em Eça - embora o autor de O crime do padre Amaro ocupe boa parte do seu tempo; não poderia ser de outra forma, basta olharmos para projetos grandiosos como a Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, da qual é coordenador (em curso desde 1992 a edição conta, atualmente, com 23 volumes publicados). Carlos Reis escreveu também diversos estudos sobre a literatura portuguesa do século XX, sendo um pioneiro no estudo do período a que chamamos neorrealismo. É igualmente um grande especialista na obra de José Saramago, autor de Diálogos com José Saramago (1998). Mais: Carlos Reis era diretor da Biblioteca Nacional de Portugal em 1998, ano em que o autor de Ensaio sobre a Cegueira foi galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, tendo presenciado pessoalmente este episódio histórico para a literatura de língua portuguesa.
No que concerne especificamente à sua pesquisa, Reis tem se aproximado cada vez mais, como a sua bibliografia mais recente demonstra, dos estudos narrativos de forma mais alargada, não se dedicando somente à literatura, mas também a outras mídias, como o cinema e a televisão. No prefácio de seu Dicionário de Estudos Narrativos (2018), faz referência aos estudos narrativos midiáticos que, em suas palavras, são um campo onde entrou para ficar.
Esta entrevista buscou acenar a algumas das várias áreas de saber privilegiadas por Carlos Reis, vendo a imediata relação entre o dossiê temático do presente número da revista Alea, “Eça de Queirós, nosso contemporâneo”, e o trabalho de uma vida do entrevistado. Temas como personagem e figuração em Eça de Queirós, sobrevidas queirosianas ou intermidialidade e estudos narrativos em Eça de Queirós dificilmente poderão ignorar a inestimável contribuição teórica deste que é um dos nomes de referência nos estudos da literatura portuguesa, da teoria da literatura e dos estudos narrativos.1
AUTORAS (AA): Em entrevista à Tânia Pinto Ribeiro, o professor afirmou o seguinte: “Sou discípulo constante do Eça no sentido em que encontro, a cada momento, a cada passo, resposta para aquilo que são as inquietudes, as dificuldades, as crises da nossa vida pública”. Para si, está lá - no Eça - tudo?
CARLOS REIS (CR): Nunca está tudo num escritor, se por esse tudo entendemos os temas e as situações marcantes das nossas vidas e do nosso mundo. Nem em Camões nem em Shakespeare está tudo, mas estão, neles e em Eça, partes de nós e daquilo que queremos encontrar e que, por outras vias, não encontramos. Por isso, o estar tudo tornaria desnecessária a procura incessante que fazemos nas obras dos grandes escritores. Lendo-as ou relendo-as.
AA: Ainda como continuação da pergunta anterior, quando fala na “nossa vida pública”, refere-se a um caráter intrinsecamente português? Ou os perfis de personagem que Eça elabora e as mentalidades que expõe adequam-se também a outras culturas?
CR: Há alguma coisa desses dois componentes. Primeiro, porque Eça conheceu a nossa vida pública oitocentista como poucos ou nenhuns, no seu tempo. Apesar de (ou talvez por isso mesmo...) ter vivido quase sempre fora de Portugal. Mas para além disso e do que existe de intrinsecamente português na nossa vida pública, Eça tematizou sentidos tão amplos e transcendentes como a fugacidade do tempo e a inevitabilidade da morte, a atração amorosa e a relação com Deus, o apelo da Natureza e os excessos da civilização. Esses, tal como outros sentidos, não são exclusivamente portugueses. E é porque foi capaz de escrever sobre o seu tempo e sobre aquilo que o transcende que Eça atingiu o estatuto de escritor universal e trans-histórico.
AA: Construiu-se um mito de rivalidade entre Eça de Queirós e Machado de Assis que, em outras entrevistas, buscou demonstrar que não era a versão exata da história. A que propósito serve alimentar esta suposta rivalidade?
CR: Não serve de nada, a não ser cultivar uma versão primariamente folhetinesca e anedótica da vida literária.
AA: Numa passagem de Os Maias, a propósito de Carlos da Maia tornar-se médico, e não Doutor de Leis como supunham os amigos do avô, Afonso da Maia profere uma daquelas graves citações que só cabem a grandes personagens: “Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é incontestavelmente curar”. Afinal, qual é a grande doença de Portugal (para além do próprio ato de adoecer)? O país ainda padece do mesmo mal na atualidade?
CR: Infelizmente, o país ainda padece de alguns desses males e, entre eles, daquele de que Afonso a Maia falou e a que eu chamaria a “doença de estar doente”. Outras “doenças” portuguesas, no tempo de Eça: a resignação perante a decadência, a preguiça, a acomodação, o culto do lado sombrio das coisas, o provincianismo (a começar pelo lisboeta), a fixação no passado - e assim por diante. Assusta-me pensar que alguns destes males (ou todos eles) ainda nos atormentam.
AA: Seus trabalhos mais conhecidos são, notadamente, aqueles sobre os estudos queirosianos (e saramaguianos, que havemos de referir). No entanto sabe-se que se dedicou por muito tempo à literatura do século XX, tendo publicado, em 1983, a tese O discurso ideológico do neo-realismo português. O que o levou a escolher esse tema? Como foi publicar um estudo literário que, inevitavelmente, aborda questões políticas em um contexto em que a redemocratização ainda era um assunto recente?
CR: Por isso mesmo. Aquela minha tese é, em grande medida, datada, porque queria responder (não digo que o tenha feito) a lacunas importantes, em matéria de temas de investigação e da sua abordagem. O neorrealismo era um desses temas, pouco estudado até então (ou nulamente, no plano acadêmico) e polarizado em duas posições extremas: o ataque fortemente depreciativo e censório ou a apologia partidária e um pouco míope, no plano crítico. A minha tese não é política, na aceção primária do termo; ela está centrada, isso sim, na questão da ideologia e na sua leitura semiótica. Que também estava, então, na ordem do dia, sem ser uma simples moda, como alguns pensam.
AA: Ainda sobre os escritores do século XX (e XXI), publicou, em 1998, Diálogos com José Saramago e, mais recentemente, repetiu o exercício com Diálogos com Lídia Jorge (2025). Temos três perguntas nesse sentido. A primeira: por que essa opção de formato para explorar a obra de um escritor ou escritora? A segunda: o que o levou a querer travar diálogo com um e com o outro? E, finalmente, a sua forma de dialogar mudou neste intervalo de anos?
CR: Tentarei dar respostas sintéticas. Primeira: o formato do diálogo é problematizador e interpelativo, não se limita à sucessão perguntas-respostas; nesse sentido, ele pode ser mais revelador, até por essa feição confrontacional. Segunda: a dimensão, a obra e o significado de cada um daqueles escritores responde por si: são pessoas que têm muito a dizer. E disseram. Terceira: a minha forma de dialogar mudou, inevitavelmente; agora sou outra pessoa, ou seja, alguém que já tinha uma primeira experiência de “diálogo”. Além disso, do outro lado estavam figuras diferentes. Muito diferentes.
AA: A intermidialidade é outra área de pesquisa que tem recebido a sua atenção. Seus estudos sobre este tema têm evidenciado as estreitas relações, por exemplo, entre a pintura e o romance realista. Que relações são essas, do ponto de vista estético-ideológico?
CR: Coloco a questão do ponto de vista estético - ou melhor: interartístico -, mais do que ideológico, embora saiba que essa componente pode aparecer em estudos intermediáticos (e aparece com frequência). Aquelas relações são, em parte, um efeito virtuoso do desenvolvimento dos estudos narrativos (é essa a minha perspetiva de trabalho), da sua interdisciplinaridade e da noção, digamos, comparatística, segundo a qual os textos literários encerram uma dinâmica capaz de os fazer dialogar com outras artes. E, por vezes, isso acontece, aquém da consciência do escritor e mesmo antes do surgimento de novas linguagens artísticas. Por isso, tenho valorizado a premonição do cinema em Flaubert, em Eça ou em Machado de Assis.
AA: Pensando ainda na pintura: o retrato, em particular, ocupa um lugar relevante na figuração de personagens queirosianas. Que funções e estratégias desempenha o retrato enquanto dispositivo narrativo?
CR: Sem dúvida. O retrato em Eça começa por ser uma metáfora (assim: o romancista deve pintar a realidade, ideia presente no Eça aprendiz de realista), para ser também uma dinâmica representacional que a narrativa incorpora, pelo menos, de duas formas: pela referência, muitas vezes ecfrástica, a retratos como elementos ficcionais; em segundo lugar, tentando homologar, pela própria linguagem da narrativa, a retórica e os protocolos da pintura. Sobre isso publiquei um estudo intitulado “Sair do caixilho: retrato e intermedialidade n’Os Maias”, numa revista espanhola em 2022.2
AA: No dia 28 de setembro de 2020, por ocasião da sua jubilação, proferiu a sua “Última Lição”, intitulada “Para uma releitura intermediária da ficção queirosiana”, para mais de 100 pessoas no auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. Nesta lição tratou o modo como a obra literária de Eça de Queirós antecipa algumas estratégias de artes ainda por serem criadas, como o cinema. Como isto se daria?
CR: Essa é uma reflexão que está em curso, razão pela qual ainda não publiquei a tal lição. O próprio título era cauteloso. Nessa reflexão, lido com questões em aberto, entre o plano socio-literário e o plano propriamente técnico e narrativo. Ou seja: estou a tentar perceber por que razão ou razões Eça (e outros que já referi) parecia carecer de instrumentos representacionais que fossem além do potencial da palavra literária; o cinema, longe ainda do que é hoje, estava a nascer, e os grandes escritores antecipavam processos e dispositivos que ele viria a instalar e a aperfeiçoar. A noção-chave, aqui, não é a analogia de linguagens, mas a homologia de processos e de signos.
AA: As obras de Eça de Queirós têm sido alvo de adaptações para o cinema, o teatro, e até a dança. Do seu ponto de vista, o que é que na obra de Eça continua a ser tão apelativo para os públicos do século XXI?
CR: Acho que algumas coisas que antes disse respondem à pergunta. Várias delas estão subsumidas na famosa e estafada questão da atualidade de Eça, muitas vezes entendida de forma superficial.
AA: Se, hoje, decidisse escrever uma tese para ficar completamente dedicado a um tema e nenhum outro por alguns bons anos, sobre o que escreveria?
CR: Ficou dito: a problemática da intermedialidade desafia-me e, por isso, esse seria o meu campo de trabalho para a tese que já não escreverei. Até mesmo para mostrar como certas abordagens (ditas) de referência intermidiática são meramente descritivas. Como quem diz: descrevem os bonecos.
Referências
- QUEIRÓS, Eça de. Os Maias - episódios da vida romântica Lisboa: Imprensa Nacional, 2018.
- REIS, Carlos. O discurso ideológico do Neo-Realismo português Coimbra: Almedina, 1983.
- REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago Lisboa: Caminho, 1998.
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REIS, Carlos. Carlos Reis em entrevista: «Na literatura está muito da nossa maneira de ser, da nossa atitude perante a vida.», 2015. Disponível em: https://imprensanacional.pt/carlos-reis-em-entrevista-1-4-na-literatura-esta-muito-da-nossa-maneira-de-ser-da-nossa-atitude-perante-a-vida/ Acesso em: 30 abr. 2025
» https://imprensanacional.pt/carlos-reis-em-entrevista-1-4-na-literatura-esta-muito-da-nossa-maneira-de-ser-da-nossa-atitude-perante-a-vida/ - REIS, Carlos. Dicionário de Estudos Narrativos Coimbra: Almedina, 2018.
- REIS, Carlos. Intermedialidade: hipóteses de trabalho e casos de estudo. Revista 2i: Estudos de Identidade e Intermedialidade, v. 1, n. Especial, p. 31-41, 2019.
- REIS, Carlos. Diálogos com Lídia Jorge Lisboa: Dom Quixote, 2025.
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REIS, Carlos. Sair do caixilho: retrato e intermedialidade n´Os Maias Moenia, v. 28, 2023. DOI: https://doi.org/10.15304/moenia.id8638 Acesso em: 30 bbr. 2025.
» https://doi.org/10.15304/moenia.id8638
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1
Para o texto de apresentação e as perguntas utilizamos a variante brasileira do português. No entanto, não alteramos a grafia original das respostas do entrevistado, na variante portuguesa. Acreditamos que esta poliglossia é bela e enriquecedora.
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2
Moenia, vol. 28, de 2022 (em https://revistas.usc.gal/index.php/moenia/article/view/8638 ). Acesso em: 30 jul. 2025.
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Declaração de Disponibilidade de Dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Parecer Final dos Editores
Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
13 Maio 2025 -
Aceito
30 Jul 2025
