Em novembro de 2025, cumprem-se 180 anos do nascimento de Eça de Queirós, um dos maiores escritores da literatura de língua portuguesa e autor de indiscutíveis clássicos da literatura mundial. Fala-se em clássicos e imediatamente pensamos na bela definição de Italo Calvino (1993) quando diz que são livros que exercem uma influência particular em nossa imaginação, seja como recordação, seja como resquício escondido nas camadas do inconsciente individual ou coletivo; livros que proporcionam uma experiência significativa; que, em cada releitura, reeditam a mesma sensação de descoberta da primeira leitura; que nunca esgotam tudo o que tinham a dizer; que chegam carregando todas as interpretações anteriores, rastros das culturas por onde passaram; que, quanto mais pensamos que os conhecemos, mais originais, inesperados e inovadores se tornam na sua releitura. Clássicos, para Calvino, são livros aos quais você não pode permanecer indiferente; livros que substituem o ruído do presente por um zumbido que persiste no tempo, por isso sempre motivam um renovado discurso crítico, como acontece com a obra do mestre português.
Eça de Queirós é um dos autores que Harold Bloom (2003) inclui na sua ideia de genialidade1, ao registrá-lo em sua conhecida lista dos escritores mais criativos das letras universais. Trata-se de um modernizador, de um eterno contemporâneo, conforme o definem os editores convidados para este número de Alea na apresentação do dossiê.
Como homenagem ao escritor português em seu aniversario 180, Alea dedica este número a sua obra, particularmente àquilo que a faz contemporânea, pensando nos próprios traços de contemporaneidade que a escrita queirosiana comporta e, ainda, nas possiblidades que abre para uma releitura crítica atualizada. Nessa linha, convocamos a recepção de trabalhos interessados em situar a obra de Eça de Queirós em diálogo com práticas artísticas, tendências teóricas e desafios epistemológicos do mundo contemporâneo, e como retorno recebemos um número elevado de colaborações que, depois de passar pelo processo avaliativo, permitiram configurar um sugestivo sumário.
Modernidade e realismo, poder e autoridade, transgressão e ordem, eis os temas que circulam no dossiê, agora lidos a partir de cruzamentos interdisciplinares (literatura e antropologia, literatura e filosofia, literatura e ecologia), de originais aproximações intelectuais (Eça e Simmel, Weber ou Marx), de inovadoras abordagens teóricas e de análises que desvendam a contemporaneidade da obra de Eça de Queirós. Essas releituras críticas confirmam, mais uma vez, o sentido clássico de seus livros.
Já para a seção de Artigos reservamos dois instigantes textos. O primeiro analisa as noções de “imagem sublime” e “temporalidade do trauma” na obra de Georges Didi-Huberman, em diálogo com pensadores como Freud, Warburg e Benjamin. O texto traça a evolução do conceito “sublime” desde a Antiguidade até sua reformulação moderna, destacando a sua conexão com o trauma (motivo central na arte e na literatura do século XX), e estuda a relação ambígua que os trabalhos de Didi-Huberman sobre história da arte têm com o referido conceito. Assim, o artigo destaca a resistência de Didi-Huberman para adotar explicitamente o conceito de sublime, preferindo abordagens que enfatizem a materialidade e a temporalidade complexa das imagens. O estudo mostra como a obra do pensador francês desenvolve uma arqueologia das imagens que interliga arte, trauma e história, desafiando narrativas totalizantes e revelando as fraturas da modernidade.
No segundo texto dessa seção, deparamo-nos com um original trabalho de perfil crítico-autobiográfico, que resume uma trajetória de mais de 50 anos de trabalho de Roberto González Echevarría sobre a obra monumental do escritor cubano Alejo Carpentier. Sabemos que González Echevarría é o crítico mais lúcido e incisivo que Carpentier já teve, e que Carpentier foi o escritor que com mais sistematicidade aparece na obra do crítico cubano. Também sabemos da profunda amizade que ambos mantiveram, cheia de tensões pelo lugar intelectual que ocuparam nos embates da política cultural cubana dos anos setenta e oitenta do século passado. Nesse sentido, o leitor de Alea tem o privilégio de assistir ao que o próprio crítico chama de uma viagem à sua semente carpenteriana e a sua despedida do grande romancista.
Na seção de Entrevistas, o leitor encontrará o diálogo de três pesquisadoras da Universidade de Coimbra com o Prof. Dr. Carlos Reis, Catedrático Emérito da Faculdade de Letras dessa tradicional universidade portuguesa. A conversa discorre por tópicos reconhecíveis na obra de Reis, especialmente, seus estudos sobre a obra de Eça de Queirós e o interesse mais recente pelos estudos de intermedialidade, com destaque para sua “Última Lição” na Universidade de Coimbra, no dia 28 de setembro de 2020, por ocasião da aposentadoria, momento em que o mestre volta ao tema que inaugurou sua vida científica na universidade, a obra de Eça de Queirós, agora propondo uma releitura intermedial da ficção queirosiana. Ao encerrar a conversa, fica evidente que os estudos de intermedialidade parecem não estar concluídos com a conferência de despedida das salas de aula, configurando o campo de interesse atual do eminente professor, a quem agradecemos sua participação neste número de Alea.
Fechando o número, na seção de Tradução, publicamos a tradução, do espanhol para o inglês, do conto Catalina la maga, do escritor cubano Luis Cabrera Delgado, uma das figuras mais relevantes da literatura infanto-juvenil em Cuba e América Latina, recentemente falecido, à idade de 80 anos. Psicólogo de formação e com uma prolífica trajetória como narrador, dramaturgo, roteirista, jornalista e crítico, Cabrera Delgado deixou mais de 50 livros publicados, sendo sua premiada obra de literatura infanto-juvenil traduzida para as línguas russa, alemã, portuguesa, italiana e, agora, para o inglês. O trabalho de tradução para o inglês britânico do conto Catalina la maga mostra os desafios de acessar a uma área especializada dentro do campo mais vasto da tradução literária: a tradução de literatura infantil (TLI), uma área muitas vezes preterida, mas que exige do tradutor uma disposição especial para captar quatro elementos cruciais na análise da linguagem: estilo, sentido, adequação e sonoridade, conforme explicam as tradutoras na apresentação deste valioso trabalho tradutório. Aproveitamos para agradecer aos herdeiros do escritor pelo gesto desinteressado de autorizar a tradução e publicação de Catalina la Maga nas páginas de Alea e dedicamos este trabalho à memória de Luis Cabrera Delgado.
Participam neste número pesquisadores de diversas instituições brasileiras: Universidade Estadual de Campinas, Universidade Católica de Minas Gerais, Universidade Federal de Ouro Preto, Universidade Federal do Paraná, Universidade Estadual do Paraná, Universidade Estadual Vale do Acaraú, Instituto Nacional da Propriedade Industrial e Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Também contamos com a colaboração de pesquisadores de universidades de Portugal (Universidade de Lisboa, Universidade de Coimbra, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade da Beira Interior, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade de Porto, Universidade de Aveiro e Universidade de Évora); de Itália (Università Degli Studi di Padova e Universidade de Turim); dos Estados Unidos (Universidade de Massachusetts Amherst e Universidade de Yale) e do Reino Unido (Universidade de Essex). Agradecemos a todos pelas valiosas colaborações.
Estendemos nosso agradecimento à equipe de pareceristas que participou no processo de avaliação de originais e especialmente aos Editores Convidados, Prof. Dr. José Vieira e Prof. Dr. Carlos Nogueira, pela colaboração na convocação do dossiê, pelas valiosas palavras de apresentação e por sua entusiasta participação em todas as etapas de preparação do número. Como sempre, esperamos que o volume seja do agrado de nossos leitores, pois são eles os que continuam dando sentido ao nosso trabalho.
Referências bibliográficas
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Para Bloom, genialidade é a capacidade de certos escritores de expandir e iluminar a consciência de seus leitores, de transformar sua percepção do mundo. Há uma célebre frase em Gênio (2003), em que Bloom propõe um teste simples: se a obra, além do entretenimento, não expande nossa consciência, iluminando-a, então esse escritor é apenas um talento, não um gênio, pois não toca o que há de primordial em nosso ser. Um gênio, segundo sua perspectiva, não apenas diverte, mas ilumina, transforma e expande a compreensão do leitor sobre si mesmo e sobre o mundo. Cf. BLOOM, 2003, p.37
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
