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Le mort hante le vif. A questão da ficção e o lugar do sujeito na literatura de Annie Ernaux

Le mort hante le vif. The Question of Fiction and the Place of the Subject in Annie Ernaux’s Literature

Resumo

Annie Ernaux vem ganhando um destaque cada vez maior na paisagem editorial brasileira, sobretudo após o Nobel de Literatura 2022 e as recentes traduções de cinco de seus livros pela editora Fósforo. Pretendo explorar, neste ensaio, o lugar aparentemente contraditório que a ficção ocupa em sua obra: em uma série de entrevistas (ERNAUX, 2011), a autora defende que sua produção literária implica, a um só tempo, a incorporação e o questionamento do ficcional. Para dar corpo ao meu argumento, examinarei dois longos trechos de um livro de Ernaux, Os anos (2008), propondo um diálogo com Wolfgang Iser, Ivan Jablonka, Luiz Costa Lima e Pierre Bourdieu. Meu objetivo é mostrar que o projeto de uma frase “cheia de coisas reais” não consegue se desvencilhar de certa elaboração ficcional, afinal, é a perspectivação pela via da ficção que permite colocar a vida e os fatos entre parênteses para melhor se aproximar deles e melhor pensá-los.

Palavras-chave:
Annie Ernaux; Os anos; ficção; sujeito; literatura francesa contemporânea

Abstract

Annie Ernaux has been the subject of considerable attention in the Brazilian publishing landscape, especially after her 2022 Nobel Prize in Literature and the recent translations of five of her books published by Fósforo. In this essay, I intend to explore the apparently contradictory place that fiction occupies in her work: in a series of interviews (ERNAUX, 2011), Ernaux argues that her literary production involves, at the same time, the incorporation and the questioning of the fictional. To flesh out my argument, I will examine two long excerpts from The Years (2008), proposing a dialogue with Wolfgang Iser, Ivan Jablonka, Luiz Costa Lima, and Pierre Bourdieu. My goal will be to show that the project of a sentence "full of real things" cannot be detached from a certain fictional elaboration; after all, it is the perspectivation through fiction that allows putting life and facts in parentheses in order to better approach them and better think of them.

Keywords:
Annie Ernaux; The years; fiction; subject; contemporary French literature

Résumé

Annie Ernaux s'impose de plus en plus dans le paysage éditorial brésilien, notamment après le Nobel de littérature 2022 et les récentes traductions de cinq de ses livres, publiées par la maison d’édition Fósforo. J'ai l'intention d'explorer dans cet essai la place apparemment contradictoire que la fiction occupe dans son œuvre : dans une série d'entretiens (ERNAUX, 2011), l'auteure soutient que sa production littéraire implique, à la fois, l'incorporation et la mise en question du fictionnel. Pour ce faire, j'examinerai deux longs extraits de Les années (2008), en proposant un dialogue avec Wolfgang Iser, Ivan Jablonka, Luiz Costa Lima et Pierre Bourdieu. Mon objectif sera de montrer que le projet d'une phrase "pleine de choses réelles" ne peut se détacher d'une certaine élaboration fictionnelle, après tout, c'est la mise en perspective par la fiction qui permet de mettre la vie et les faits entre parenthèses pour mieux les approcher et mieux les penser.

Mots-clés :
Annie Ernaux; Les années; Fiction; Sujet; Littérature française contemporaine

Falamos uma língua que não fizemos; usamos instrumentos que não inventamos; invocamos direitos que não instituímos; um tesouro de conhecimentos é transmitido a cada geração sem que ela mesma os tenha acumulado etc. É à sociedade que devemos esses bens variados da civilização e, se não vemos geralmente de que fonte os obtemos, sabemos, ao menos, que não são obra nossa.1 1 Tradução minha do original em francês: “Nous parlons une langue que nous n'avons pas faite; nous nous servons d'instruments que nous n'avons pas inventés; nous invoquons des droits que nous n'avons pas institués; un trésor de connaissances est transmis à chaque génération qu'elle n'a pas elle-même amassé, etc. C'est à la société que nous devons ces biens variés de la civilisation et si nous ne voyons généralement pas de quelle source nous les tenons, nous savons, du moins, qu'ils ne sont pas notre œuvre”. (Emile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse)

A ficção morreu, viva a ficção!

Abro este texto, que se debruçará sobre um livro da francesa Annie Ernaux, com uma definição que a própria escritora empresta à sua escrita: “Marguerite Duras ficcionaliza sua vida, eu me dedico, ao contrário, à recusa de toda ficção” (ERNAUX, 2011aERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a., p. 85).2 2 Neste trabalho traduzi todos os trechos da bibliografia em língua estrangeira. Trata-se de uma definição um tanto abrupta, claro, mas que tem o mérito de condensar dois traços mínimos e insistentes assumidos pelo projeto literário de Ernaux: a recusa explícita da ficção, que está, por sua vez, atrelada a um projeto de escrever a própria vida - cujo negativo poderia ser encontrado nos romances (logo, ficções) de Duras.

Na produção de Ernaux há com efeito um corte fundamental entre os seus três primeiros romances - Armoires vides (1974), Ce qu’ils disent ou rien (1977) e La femme gelée (1981) - e os livros que se seguem à publicação de La place3 3 La place conta com tradução para o português: ERNAUX, Annie. O lugar. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021. (1983). Se naqueles o discurso se coloca explicitamente sob o signo da ficção, nesses últimos, forja-se uma postura literária objetivante, calcada em uma exploração do real que pretende afastar qualquer tratamento ficcional dos acontecimentos.

Uma tal ruptura parece derivar de um impasse ligado ao acontecimento central de La place: a morte do pai, antigo operário e comerciante. Como narrar a vida desse pai real? Como escrever a distância que se cavou entre eles - ele, o pequeno comerciante de província, falante do patoá normando, alguém que dominava mal os códigos do francês padrão e que teve de abandonar a escola ainda criança para trabalhar; ela, a filha que traçou um percurso escolar brilhante e, pela educação formal e pelos livros, acabou se afastando de maneira irrevogável do mundo de origem, assumindo um falar padrão típico da região parisiense, lecionando literatura francesa em liceus e tornando-se, ela mesma, escritora e, mais do que isso, aburguesando-se - destino totalmente fora do horizonte de expectativas de sua família?

A partir de então, Ernaux escreve sobre a (sua própria) vida. Mas escrever a própria vida pode ter sentidos muito diversos, e é precisamente contra uma escrita que entrega ao leitor os “júbilos e misérias do pequeno eu” - para retomar o título de um capítulo de Luiz Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional - que Ernaux se situa. O que o seu empreendimento literário coloca a todo tempo é que esse “eu” não existe de modo autônomo e soberano - dono e senhor de si. O “eu” e os sujeitos que ocupam a escrita da autora são sempre descentrados deles mesmos, sendo as suas trajetórias expostas como a soma de linguagens, determinações sociais, sexuais e históricas, em contínuo atravessamento pelas experiências e eventos histórico-políticos de sua época. Um tal projeto se desenrola em um território aberto aos campos disciplinares da sociologia e da história, como podemos ler nas derradeiras páginas de Une femme (1988), narrativa publicada logo após La place e que compõe com esse último um dístico, afinal, trata-se agora de retraçar a vida de sua mãe, recentemente falecida. Lemos no penúltimo parágrafo de Une femme o impulso à objetivação e ao rigor no trato da realidade:

Isto não é uma biografia, nem um romance naturalmente, talvez algo entre a literatura, a sociologia e a história. Foi preciso que minha mãe, nascida em um meio dominado, do qual ela quis sair, se tornasse história, para que eu me sentisse menos só e factícia no mundo dominante das palavras e das ideias para o qual, segundo seu desejo, passei. (ERNAUX, 2011bERNAUX, Annie. Une femme. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011b. p. 553-597., p. 597).4 4 No original: “Ceci n’est pas une biographie, ni un roman naturellement, peut-être quelque chose entre la littérature, la sociologie et l’histoire. Il fallait que ma mère, née dans un milieu dominé, dont elle a voulu sortir, devienne histoire, pour que je me sente moins seule et factice dans le monde dominant des mots et des idées où, selon son désir, je suis passée”.

Esse encadeamento literatura-sociologia-história não vem sem tensão, afinal já apontei no primeiro parágrafo que Ernaux recusa algo que normalmente é associado ao “saber tácito” sobre a literatura, como diria Wolfgang Iser: sua natureza ficcional. Mas é preciso perscrutar o óbvio: o que Ernaux entende por ficcional? Que ficcional ela quer extirpar de sua literatura? É mesmo possível que seu projeto se mantenha de pé sem qualquer traço de ficção?

De início, em uma série de entrevistas reunidas e publicadas no volume L’écriture est un couteau [A escrita é uma faca], a autora afirma que “toda ficcionalização dos eventos é descartada e que, salvo lapso de memória, eles são verídicos em todos seus detalhes” (ERNAUX, 2011aERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a., p. 23). Eis estabelecida uma demarcação, como aquela que separaria seu projeto do de Duras: a ficção - entendida como “invenção” - é abolida em benefício de um compromisso com a realidade e a verdade. Realidade/verdade e ficção passariam a compor, então, duas zonas antagônicas e impermeáveis na perspectiva de Ernaux, e ela pretende se livrar, precisamente, dessa segunda.

No entanto, uma postura assim dualista pode ser enunciada sem grandes consequências para a produção discursiva literária? De maneira mais direta: tal postura dualista se mantém de pé nos livros de Ernaux? Não seria possível complexificar um pouco esse estado de coisas e dizer que, sim, a ficção está presente a reboque no texto da escritora? Afinal, não é ela mesma que afirma que, se há algo que ela busca há um certo tempo, esse algo é precisamente o ajuste entre “de um lado um desejo e um projeto, de outro as técnicas possíveis de ficção (esse termo sendo evidentemente tomado em seu sentido de construção e de fabricação, não de imaginação)” (ERNAUX, 2011aERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a., p. 126-127)?

Esse ajuste denuncia a distância entre intenção (o projeto de uma “escrita do real” afastada da ficcionalização dos fatos) e gesto (a justa medida entre esse projeto e o apelo a técnicas ficcionais). Ele traduz não somente a distância entre intenção e gesto, mas, mais precisamente, a constatação de que a intenção somente pode ser atingida por esse gesto; isto é, a condição de possibilidade do projeto de uma frase “cheia de coisas reais” (ERNAUX, 2011aERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a., p. 113) é a convocação de certas operações ficcionais, se por aqui as compreendermos precisamente como técnicas ou, ainda, de acordo com o historiador Ivan Jablonka, como ferramentas metodológicas, “fabricações intelectuais capazes de se distanciar dos fatos precisamente para pensar os fatos” (JABLONKA, 2018JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018., p. 171).

Penso que a escrita de Ernaux está muito próxima da heterologia de Jablonka, que defendeu recentemente, em um instigante ensaio - L’Histoire est une littérature contemporaine5 5 O livro foi muito recentemente traduzido no Brasil por Veronica Galindez. Ver: JABLONKA, Ivan. A história é uma literatura contemporânea. Trad. Veronica Galindez. Brasília: Editora UnB, 2021. A versão consultada para a escrita deste artigo, como pode ser aferido nas referências bibliográficas, é uma tradução para o inglês feita por Nathan Bracher. -, a aproximação entre ciências sociais e literatura. O que o historiador propõe não é que a história seja de certo modo literária por recorrer a certas ornamentações textuais, a certos arabescos de estilo, a certa “poesia” da escrita (o que, por si só, indicaria uma visão um tanto distorcida da própria literatura); muito menos que a literatura seja histórica ao tentar se passar pelo real, ou declarar o real, ou duplicar o real (o que, por si só, indicaria uma visão um tanto raquítica da própria história). Pelo contrário, da perspectiva de um historiador, Jablonka indica que ambas podem se aliar em torno do projeto comum de um texto-pesquisa, que reuniria em uma única narrativa o passado, a prova e a pesquisa. Tal texto não somente apresentaria uma pesquisa enquanto conteúdo acabado e embalado a ser transmitido, mas seria ele próprio um campo em que se desenrola uma pesquisa propriamente formal, implicando a ativação de certas ficções no interior da argumentação - “a ficção de método, hipótese, conceito, expressão de um problema, elo de uma argumentação, forma de uma narração” (JABLONKA, 2018JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018., p. 177) - conjunto sempre controlado e submetido à prova das provas (“l’épreuve des preuves”).

Estabelece-se, nesse sentido, uma clara valorização da ficção em sua dimensão epistemológica, enquanto elemento indispensável à produção do conhecimento sobre o presente e o passado e sobre a sociedade. Em um mesmo golpe, Jablonka rejeita a ficção literária por ser pretensamente o negativo desse empreendimento epistemologicamente orientado: é um “mundo envolvente sem relação com o real” (JABLONKA, 2018JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018., p. 175), uma ficção “assertiva, lúdica e prazerosa em sua inércia” (JABLONKA, 2018JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018., p. 177).

Se podemos, com efeito, ponderar que a ficção literária não tem a pretensão a priori nem de estabelecer, a partir de um quadro metodologicamente orientado, a verdade, nem de estabilizar e cristalizar certas categorias socialmente partilháveis de apreensão e percepção do mundo, nem por isso ela é puro enclausuramento em si mesma, um “mundo envolvente sem relação com o real”, ou uma mera “invenção”, como daria a crer Jablonka (ou mesmo Ernaux). Pelo contrário, e essa é uma lição de Wolfgang Iser, a ficção literária pode ser entendida como o engendramento de um espaço de jogo sempre aberto: jogo entre os campos referenciais e sua deformação no texto (o que implica deslocamentos, jogos de espelho, correspondências, contrastes, rupturas, deslizamentos semânticos); jogo entre o mundo empírico e sua metaforização (a metáfora sendo entendida aqui não como um mero adorno discursivo, mas como um processo de perspectivação). Tal dinâmica, se é aberta e instável, nem por isso é inocente ou inconsequente.

Todavia, um tal horizonte de discussão não está sob os radares de Ernaux e Jablonka. O próprio Jablonka, enquanto historiador, faz questão de delimitar um território que, aliás, afasta qualquer interpretação panficcionalista de sua proposta: “nas ciências sociais a ficção nunca é rainha; ela é sujeita a regras, subordinada a outros fins que si mesma” (JABLONKA, 2018JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018., p. 177).

Nesse jogo movediço de identificações e distanciamentos, o morto assombra e habita o vivo. Se resolvi manter a expressão original - “Le mort hante le vif”6 6 Cabe ressaltar que pincei esta expressão de um ensaio de Michel de Certeau acerca das relações entre história e psicanálise e das diferentes estratégias temporais mobilizadas tanto pela prática analítica quanto pela historiografia. Em seu texto, “le mort hante le vif” vem descrever o traço mnésico, isto é, o retorno do esquecido, uma ação do passado que deve travestir-se para aparecer em um presente que a reprime. Há uma certa homologia com o que acontece com a ficção em Ernaux: ela é renegada, reprimida, mas acaba retornando sob outros trajes. Ver: CERTEAU, 1987. -, é porque ela tem a astúcia de explorar os sentidos do verbo “hanter” em francês. O morto (a ficção) visita o vivo (a literatura de Ernaux), mas também a ficção (o morto) assombra, obseda a literatura de Ernaux (o vivo). Ou seja, o morto é, a um só tempo, um convidado aprazível, um habitué dos salões dos vivos, mas também um elemento um tanto inquietante, pois visita e assombra, afaga e atormenta, frequenta e persegue o vivo. Com essa expressão, eu queria condensar a provocação que venho trazendo desde o início do texto: a literatura de Annie Ernaux, sua escrita do real, ganha corpo não a despeito da ficção, mas antes acolhendo-a - mesmo que a acolhida seja ainda perturbada por ressalvas e por uma certa dose de recusa e ironia -, domando-a, sendo assombrada por ela.

Para dar prosseguimento ao meu argumento, é importante agora anunciar o objeto central e o passo a passo de minha análise. O objeto que analisarei é o livro da autora mais aclamado pela crítica literária, traduzido recentemente para o português por Marília Garcia: Les années [Os anos] (2008).7 7 ERNAUX, Annie. Os anos. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021. Trata-se de um livro radical: uma autobiografia impessoal, a trajetória de uma geração que desponta nos anos 1940, um livro narrado sob o modo coletivo que pretende extirpar a singularidade do eu e as formas reflexivas que lhe são associadas, o me e o mim.

Diz a autora no posfácio a L’écriture comme un couteau, lembrando-se retrospectivamente do momento em que Os anos eram apenas um projeto: “quero contar uma vida de mulher, mais ou menos a minha, que seja a um só tempo distinta e confundida no movimento de sua geração. [...] Penso cada vez mais em uma ‘autobiografia vazia’, isto é, coletiva, sem eu [je], com somente a gente [on] e nós [nous]” (ERNAUX, 2011aERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a., p. 144-145).

O que buscarei explorar é como essa diluição enunciativa, essa dispersão do eu que lembra tanto o célebre prefácio de Barthes em Sade, Fourier, Loyola,8 8 “[...] tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte” (BARTHES, 2005, p. 16-17). Fiquei tentado a tomar emprestada de Barthes a noção de “biografema”, tornada célebre em A câmara clara, para examinar a obra ernaudiana, mas esse passo metodológico demandaria um desvio e uma justificação teórica que, por si só, constituiria um texto à parte (afinal, como conciliar Barthes e Bourdieu?). é uma estratégia inervada pela ficção. Sendo o sujeito enunciador de Os anos um nós ou um a gente indeterminado, o eu autobiográfico se vê então preterido, alijado, transmutado em um ela: uma terceira pessoa, “ficção de método” - e aqui retomo a noção potente de Ivan Jablonka - que permite que o eu seja visto à distância, de um ponto de vista (que se quer) totalmente exterior. Essa distância de sua própria história e de seu próprio eu responde ainda a um projeto de exploração da realidade sustentado no diálogo com a sociologia de Pierre Bourdieu, para quem não há o indivíduo, e sim o social individuado.

Ela, a gente, nós: formações do eu

Como disse mais acima, em narrativas como La place, Ernaux recorre a um eu narrativo que organiza o enredo, os fatos e as sensações e dá moldura ao que é dito - embora esse eu seja, ressalto, desde sempre adotado não sem tensão, e o projeto seja torná-lo impessoal e inscrito em uma ampla rede dialógica de pertencimentos e afiliações sociais, sexuais e políticas. Se em L’usage de la photo (2005) encontramos dois eus que partilham a escrita, o livro sendo um empreendimento conjunto com Marc Marie, em Les années, a escritora dá esse passo além, rejeitando o eu gramatical e fabricando, de maneira mais radical, um sujeito da enunciação coletivo.

Na sequência, acompanharei com vagar alguns excertos selecionados do livro. Devido ao caráter curto deste ensaio, creio que tal visada "micrológica" trará mais rendimento que um sobrevoo por diversas passagens, o qual ofereceria a vantagem do panorama, mas a perda do detalhe, que é o que me interessa. Será possível, assim, observar e avaliar a articulação entre os sujeitos centrais que modulam o livro: o on, o nous e o elle.

Adianto, em poucas linhas, a organização de Os anos. O livro começa e termina com listas um tanto heteróclitas e insólitas de imagens e lembranças, que recordam o projeto fragmentário de Georges Perec em Je me souviens (1978): passagens de livros, trechos de canções e de filmes, imagens da infância, memórias de viagens, slogans de anúncios publicitários, gírias. Esse conjunto paratático - que desliza entre lembranças pessoais e outras coletivas, sem que se estabeleça a fronteira entre elas - tem como destino comum a morte: “Tudo se apagará em um segundo. O dicionário acumulado do berço ao leito final será eliminado. O silêncio e nenhuma palavra para dizê-lo” (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 932).9 9 No original: “Tout s’effacera en une seconde. Le dictionnaire accumulé du berceau au dernier lit s’éliminera. Ce sera le silence et aucun mot pour le dire”. O livro é concebido, então, para “salvar alguma coisa do tempo em que a gente não estará nunca mais” (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 1085)10 10 No original : “Sauver quelque chose du temps où l’on ne sera plus jamais”. e atenuar essa dupla desaparição (nunca mais, plus jamais). Entre esses inventários liminares que mimetizam o tópos do momento da morte - nos últimos lampejos de lucidez, toda uma vida é revista num relance -, Os anos se constrói como um arranjo formalmente guiado que tenta abarcar não somente uma existência individual, mas a de toda uma geração.

Cada seção do livro - demarcada, sem qualquer título ou subtítulo, por grandes blocos textuais precedidos e sucedidos por grandes espaços em branco (o equivalente a quatro ou cinco linhas em branco) - é composta por parágrafos que se articulam em torno de três matrizes textuais principais:

Matriz 1: a descrição de uma imagem (temos écfrases de 10 fotos, de um vídeo cassete e de um filme super-8) e a tentativa de ultrapassar sua mudez para encontrar quem é a personagem ela, que aparece sucessivamente de imagem em imagem (primeiro um bebê, depois uma adolescente, depois uma jovem casada, posteriormente uma jovem mãe, em seguida uma mulher de meia idade separada, e assim por diante): como ela se representava nesse momento? Que memória ela tinha no período de captura da foto? Que futuro ela alimentava para si?

Matriz 2: a descrição de uma ou mais refeições de família, em que o sujeito não é mais elle, mas on, ils, nous e na qual se busca traçar o destino da história e da sociedade nas conversas, nos gestos dos familiares reunidos em torno de uma mesa, nas refeições compartilhadas, nos ambientes;

Matriz 3: a apresentação de um quadro de época, que encadeia pequenas descrições de situações, objetos, faits divers e imagens que condensam o que foram determinadas décadas, determinados anos e como esse on, esse nous e essa elle atravessam tal período.

É importante dizer que cada uma das grandes “seções” do livro se organiza diversamente, não encadeando necessariamente imagem-refeições-quadro de época, mas sempre começando pela descrição de uma foto, um vídeo ou um super-8. Além do fato de as descrições comporem essas soleiras, outro princípio de ordenação é oferecido pela passagem cronológica do tempo (desde uma foto de 1941 até outra de 2006).

No meu recorte, gostaria de focalizar, num primeiro momento, esse terceiro tipo de entrecho encontrado em Les années, o “quadro de época”. Como o que será analisado é o uso dos pronomes, a citação está no original, uma proposta de tradução constando em nota de rodapé:

[…] On nous fournissait de quoi nous amuser, le hula hoop, Salut les copains, Âge tendre et tête de bois, on n’avait droit de rien, ni voter, ni faire l’amour ni même donner son avis. […] L’avenir n’était qu’une somme d’expériences à reconduire, service militaire de vingt-quatre mois, travail, mariage, enfants. On attendait de nous l’acceptation naturelle de la transmission. Devant ce futur assigné, on avait confusément envie de rester jeunes longtemps. Les discours et les institutions étaient en retard sur nos désirs mais le fossé entre le dicible de la société et notre indicible nous paraissait normal et irrémédiable, ce n’était pas même quelque chose qu’on pouvait penser, seulement ressentir chacun dans son for intérieur en regardant À bout de souffle (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Une femme. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011b. p. 553-597., p. 973-974, grifos meus).11 11 Tradução: Nos forneciam divertimentos, o bambolê, Salut les copains, Âge tendre et tête de bois, não se tinha direito a nada, nem votar, nem fazer amor, nem mesmo dar sua opinião. O futuro não era senão uma soma de experiências a serem renovadas, serviço militar de vinte e quatro meses, trabalho, casamento, crianças. Esperavam de nós a aceitação natural da transmissão. Diante desse futuro dado de antemão, a gente tinha confusamente o desejo de permanecer jovens por muito tempo. Os discursos e as instituições estavam atrasados quanto aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível nos parecia normal e irremediável, não era nem mesmo algo em que se podia pensar, somente sentir, cada um em seu foro íntimo, assistindo Acossado.

A passagem vem após a descrição de uma foto em que ela - a personagem que atravessa o livro - está em meio à sua turma de liceu, em 1959. Do pronome ela (de quem ainda falarei), a narrativa desliza, então, rumo às pessoas gramaticais on e nous, que deixei marcadas em negrito. O que nos interessa nesse longo quadro é o contraste estabelecido entre um estado da sociedade - com seu regime do dizível e do pensável e com suas normas e expectativas estabelecidas - e o desejo dos jovens - que ultrapassa esse dizível e esse pensável, mas que permanece em um estado difuso, sem ganhar corpo em produções discursivas, em atitudes, comportamentos e intervenções coletivas no espaço público. O desejo reprimido é deslocado e se aloja lá onde o olhar simbólico da sociedade não pode penetrar. No trecho acima, aliás, é descrito o espaço em que esse desejo se aloja e melhor se expressa, de acordo com a célebre fórmula que o Godard de À bout de souffle elabora e atribui a André Bazin: “Le cinéma substitue à notre regard un monde qui s’accorde à nos désirs”.12 12 Tradução: “O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que se coloca de acordo com nossos desejos”.

Falei de um contraste, mas vejamos com mais vagar como ele é estabelecido no parágrafo acima. Há uma certa oposição entre dois pronomes: on, pronome indefinido neutro, e nous, primeira pessoa do plural. On é semanticamente o pronome sujeito mais plástico da língua francesa, descrito por Benveniste, inclusive, como a expressão de “uma generalidade indecisa” (BENVENISTE, 1971BENVENISTE, Émile. Structure des relations de personne dans le verbe. In: BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1971. p. 225-236., p. 235). Trata-se de um pronome cuja tradução para o português não pode ser fixada, precisamente por causa desse caráter metamórfico. Os sentidos mais aproximados são dados pela partícula “se” (índice de indeterminação do sujeito, como na frase On se demande sur le destin/Interroga-se sobre o destino) e pelo pronome “nós” (por exemplo, Chez nous, on aime lire/Lá em casa, adoramos ler). No entanto, em francês esse uso é muito mais amplo, podendo o on designar uma infinidade de entes, de acordo com o contexto em que é usado. Pode indicar, em suma: i) um sujeito indeterminado (por exemplo, On frappe à la porte/Estão batendo na porta); ii) um sujeito coletivo indeterminado (por exemplo, On ira mourir/todo mundo irá morrer); e iii) todas as pessoas do discurso (eu, você, ele/ela, nós, vocês, eles/elas). Ernaux manipula deliberadamente essa multiplicidade de sentidos.

Encontramos a oposição on/nous nas frases: “On nous fournissait de quoi nous amuser” e “On attendait de nous l’acceptation naturelle de la transmission”. Em ambas, há uma relação desigualmente distribuída entre on e nous. On é o sujeito agente (de uma expectativa, de uma doação) e o nous é o sujeito paciente (de quem se espera algo, a quem algo é dado). Assim, é como se a escritora sugerisse uma homologia simples que viesse contrapor sociedade (on) e indivíduos (nous).

No entanto, nesse mesmo parágrafo há uma reversão, ou melhor, uma sobreposição. On também desempenha a função de nous: “on n’avait droit de rien”; “devant ce futur assigné, on avait confusément envie de rester jeunes longtemps”. Nesse deslizamento de sentidos, sociedade e jovens, que até então eram colocados em uma relação desigual, se confundem. Com esse jogo, a escritora reverte a impressão inicial de uma pura clivagem para indicar a artificialidade de tal procedimento, uma vez que a juventude não somente se sente pressionada por demandas sociais, como também as incorpora.

Sendo a escrita de Ernaux colocada deliberadamente sob o signo da indagação sociológica, conseguimos vislumbrar, nesse jogo entre on e nous, a encarnação do próprio conceito de habitus de Pierre Bourdieu - autor de predileção da autora. Para Bourdieu, o agente social não é o mero suporte da estrutura macrossocial (atitude que o sociólogo atribui aos “althusserianos”); ele é, pelo contrário, um corpo biológico que entra em relação com o social por meio da incorporação de habitus, isto é, disposições - modos de dizer, de pensar, de ver, séries de ações, percepções e reações - para lidar com o universo das coisas e dos seres socialmente constituídos (BOURDIEU, 1989bBOURDIEU, Pierre. A génese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL ; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 1989b. p. 59-73.). Tais disposições envolvem uma lida com o mundo que não passa necessariamente pela racionalização - “não era nem mesmo algo em que se podia pensar” - e equivalem a um deixar-estar e a um deixar-fazer que aparece aos agentes como um destino (BOURDIEU, 1989aBOURDIEU, Pierre. Le mort saisit le vif. As relações entre a história reificada e a história incorporada. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989a. p. 75-106., p. 105) - “o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível nos parecia normal e irremediável”.

No entanto, quando conhecida, essa lei social aparece como violência, e é precisamente nesse ponto que a escrita de Ernaux se aproxima da pragmática do discurso sociológico. Ela constata a violência que pode emergir da distância entre a necessidade social - a reprodução e a aceitação da transmissão - e o horizonte aberto de expectativas de toda uma geração. Na visada retrospectiva de Os anos, tal intervalo só podia ser intuído e trabalhado subjetivamente, no momento de sua emergência, de modo racionalmente difuso, na sala escura do cinema.

Tal trabalho subjetivo, aliás, não se dá frente a um filme qualquer, mas sim a À bout de souffle, obra ícone da radicalidade formal da Nouvelle Vague e retrato de uma juventude cujas experiências e expectativas abertas colocavam entre parênteses e solapavam certas normas jurídicas, morais, sexuais, de gênero etc. Não à toa, durante uma das andanças do protagonista e anti-herói Michel Poiccard pelas ruas de Paris, a câmera focaliza - de maneira oblíqua em um close aparentemente lateral à narrativa - o pedaço de um cartaz colado na parede externa de um cinema. Trata-se de um anúncio do filme de Robert Aldrich, Ten seconds to hell (traduzido em francês como Tout près de Satan), e o que traga o foco da câmera e do espectador é o slogan do cartaz, que pode ser interpretado tanto como o mote que sela a vida e o destino de Poiccard quanto como um chamado à juventude: "Il faut vivre dangereusement jusqu'au bout", isto é, "é preciso viver perigosamente até o fim".

É como se a sala de cinema aludida em Os anos já estivesse imantada pelo rumor do tempo, por uma rebelião enjaulada que só se destravaria na sublevação de Maio de 68 e que só seria encabeçada pela geração imediatamente posterior àquela encarnada em Os anos. Por isso, uma terceira pessoa do plural se infiltra na sequência da narrativa: “Ils nous vengeaient de toute la contention de notre adolescence, du silence respectueux des amphis, de la honte à recevoir des garçons en cachette dans les chambres de la cité” (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 990, grifo meu).13 13 Tradução: “Eles se vingavam por nós de toda a contenção de nossa adolescência, do silêncio respeitoso dos auditórios, da vergonha de receber garotos às escondidas nos quartos da moradia”.

* * *

Outro sujeito que ganha centralidade em Os anos é elle [ela]: categoria gramatical que desempenha o papel de uma máscara que adere e se descola, a um só tempo, do eu da escritora e que abre caminho para que seja explorado o caráter ex-cêntrico da (sua) identidade.

É importante dizer, de saída, que o livro deixa uma certa margem para que o leitor consiga estabelecer certas identificações ou correspondências entre essa personagem ela e a escritora Annie Ernaux. Com efeito, ao longo da narrativa, há diversos elementos autobiográficos dispersos: tal como Ernaux, ela nasceu em Lillebonne (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 934), passou a infância em Yvetot, onde seus pais tinham um café-mercearia (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 944), em sua infância estudou no pensionato Saint-Michel (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 956), etc. Esses elementos poderiam ser inventariados às dezenas. No entanto, o mero inventário dessas remissões se mostraria infrutífero, pois ele nos levaria à mesma constatação circular: eis aqui, no fundo, a escritora e sua história, elle é Ernaux, e Ernaux é elle. Esse trabalho detetivesco, de resultados tão mirrados, esconde a verdadeira riqueza de ler e se aprofundar em Os anos: entender o lugar dessas remissões autobiográficas no interior do texto. Elas são selecionadas e agenciadas de que maneira? Eis onde se mostra o trabalho propriamente ficcional levado a cabo pela escritora:

Sur cette photo en noir et blanc, au premier plan, à plat ventre, trois filles et un garçon, seul le haut du corps est visible, le reste plongeant dans une pente. Derrière eux, deux garçons, l’un debout et penché se détache sur le ciel, l’autre est agenouillé, semblant agacer l’une des filles de son bras tendu. En fond, une vallée noyée dans une espèce de brume. Au dos de la photo : Cité universitaire. Mont-Saint-Aignan. Juin 63. Brigitte, Alain, Annie, Gérald, Annie, Ferrid. Elle est la fille du milieu, aux cheveux coiffés en bandeaux à l’imitation de George Sand, aux épaules larges et dénudées, la plus « femme ». Ses poings serrés émergent bizarrement de dessous son buste couché. Pas de lunettes. La photo a été prise dans la période séparant le passage des examens et les résultats. C’est un temps de nuits blanches, de discussions dans les bars et les chambres en ville, suivies de caresses déshabillées jusqu’au seuil d’imprudence sur fond de Javanaise. De sommeils dans l’après-midi d’où elle sort avec l’impression coupable de s’être mise hors du monde, comme le jour où le Tour de France et Jacques Anquetil étaient passés depuis longtemps quand elle s’est réveillée. Elle est entrée dans la fête et elle s’y ennuie. Les deux filles qui l’entourent sur la photo appartiennent à la bourgeoisie. Elle ne se sent pas des leurs, plus forte et plus seule. À trop les fréquenter, à les accompagner dans les surboums, elle a l’impression de déchoir. Elle ne pense pas non plus avoir rien de commun maintenant avec le monde ouvrier de son enfance, le petit commerce de ses parents. Elle est passée de l’autre côté mais ne saurait dire de quoi, derrière elle sa vie est constituée d’images sans lien. Elle ne se sent nulle part, seulement dans le savoir et la littérature (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 979, grifos meus).14 14 Tradução: Nessa foto em preto e branco, no primeiro plano, deitados de bruços, três moças e um moço, somente a parte de cima do corpo está visível, o resto mergulhando em uma ladeira. Atrás deles, dois moços, um em pé e debruçado se destaca contra o céu, o outro está ajoelhado, parecendo aborrecer uma das moças com seu braço esticado. No fundo, um vale afogado em uma espécie de bruma. No verso da foto: Cidade universitária. Mont-Saint-Aignan. Junho de 63. Brigitte, Alain, Annie, Gérard, Annie, Ferrid. Ela é a menina do meio, com o cabelo dividido em bandós imitando George Sand, com ombros largos e desnudados, a mais “mulher”. Seus punhos cerrados emergem estranhamente de baixo de seu busto deitado. Sem óculos. A foto foi tirada no período que separa a aplicação das provas e os resultados. É um tempo de noites em claro, de conversas nos bares e nos quartos de estudantes, seguidas de carícias despidas até o limite da imprudência, ao som da “Javanaise”. De cochilos à tarde, dos quais ela sai com a impressão culpada de ter se colocado para fora do mundo, como no dia em que o Tour de France e Jacques Anquetil já tinham passado há muito tempo quando acordou. Ela entrou na festa e se entendia. As duas moças que estão em torno dela na foto são burguesas. Não se sente parte do grupo, mais forte e mais sozinha. De tanto sair com elas, acompanhá-las em festinhas, tem a impressão de decair. Não pensa tampouco ter agora algo em comum com o mundo operário de sua infância, com o pequeno comércio de seus pais. Ela passou para o outro lado, mas não saberia dizer do quê, olhando para trás, sua vida é constituída de imagens sem nexo. Ela não se vê em lugar nenhum, somente no saber e na literatura.

Esse trecho, um tanto longo, tem o mérito de condensar o lugar e o estatuto ocupados por e atribuídos a esse elle em Os anos. Já no primeiro parágrafo, no qual se descreve uma fotografia, a legenda da imagem deixa entender que uma das pessoas fotografadas é ela, uma certa Annie. Ao mesmo tempo, as pistas se embaralham ainda nessa descrição, pois, segundo a legenda, há duas Annie. Para além do tema já clássico do duplo, o que entrevemos nessa duplicação é a impossibilidade de saber ao certo qual delas é Annie Ernaux.

O segundo parágrafo, por sua vez, é um segundo “retrato”, que revela aquilo que a fotografia não consegue, em sua opacidade (ou, pelo contrário, em sua extrema transparência), mostrar: o conflito que habitava a adolescente fotografada. O início desse parágrafo é, aliás, uma tentativa irônica de direcionar a visão do leitor: “Ela é a garota do meio”. Tentativa irônica pois não temos a fotografia sob nossos olhos, nos restando intuir que a garota do meio é a terceira personagem entre as seis listadas da legenda, Annie. O que cabe ao leitor, nesse parágrafo, é discernir e montar imaginariamente a imagem dessa garota a partir dos elementos selecionados e fornecidos por esse retrato textual que se desdobra ante os nossos olhos.

O retrato se desenvolve em um presente que emula a imediaticidade da hipotipose (afinal, estamos falando de um retrato textual) e rompe o distanciamento temporal para melhor presentificar a cisão que preenche a personagem. Trata-se de uma cisão subjetiva que se sobrepõe a uma cisão social: “Ela não se sente parte do grupo”, isto é, ela não é uma burguesa como as meninas da fotografia. Ao mesmo tempo, “ela tampouco pensa ter agora algo em comum com o mundo operário de sua infância, o pequeno comércio de seus pais”. Tendo acesso a um mundo que lhe era, até então, interdito, e tendo incorporado algumas de suas disposições - ouvir Serge Gainsbourg, frequentar um liceu privado, “farrear”, viver uma vida de intello (“cabeção”) -, é impossível um retorno inocente ao mundo de origem: “ela passou para o outro lado, mas não saberia dizer de que”.

Em suma, o que Ernaux faz, nesse parágrafo, é acumular, frase a frase, dados da vida subjetiva da personagem que levam à constatação final de não pertencimento a um lugar fixo no xadrez do mundo social, restando a essa Annie a projeção para si de um espaço de pertencimento imaginário, ligado ao universo simbólico do saber e da literatura. Entre o simbólico e o real, o lugar dominado e o lugar dominante, o passado e o presente, desenha-se a fratura que acompanha o tipo sociológico do trânsfuga de classe, tão caro ao pensamento bourdieusiano e que parece estar subentendido em todo esse parágrafo. É Priscila Coutinho, socióloga brasileira, quem consegue sintetizar de maneira precisa esse conflito, ao ler Vincent de Gaulejac:

o deslocamento de classe, que conduz o indivíduo ao pertencimento simultâneo a grupos sociais distintos, cujas relações são historicamente marcadas pela dominação de um sobre o outro, leva a conflitos psicológicos ligados ao embate entre a identidade herdada, originária, que lhe é conferida pelo meio familiar, e a identidade adquirida, ou seja, aquela construída ao longo da trajetória. (COUTINHO, 2022COUTINHO, Priscila de Oliveira. Entre o roçado e a coca-cola: uma sociobiografia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2022., p. 39).

Tal situação liminar e contraditória é vivenciada pelo sujeito no momento de sua emergência como uma justaposição de sensações e impressões, uma relação fraca entre um presente opaco e um passado que se desenrola como um rio de “imagens sem nexo”. O que a escrita de Ernaux - interlocutora de Bourdieu - permite é, precisamente, uma tomada de distância objetivante. De um ponto de vista discursivo e de acordo com uma racionalidade que emprega mecanismos tipicamente ficcionais (a seleção e a combinação), tal distanciamento permite partir dos dados caóticos e simultâneos da realidade subjetiva (viver um desacordo aparentemente inominável) a fim de dispô-los textualmente e, nessa disposição temporal e sintaticamente orientada, atribuir-lhes sentido. Distancia-se da realidade para melhor se aproximar dela.

O olhar do sujeito; a lente da ficção

“O ficcional desvia-se da persona de seu próprio agente, seu autor, possibilitando que ele se veja à distância” (COSTA LIMA, 1991COSTA LIMA, Luiz. Persona e sujeito ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Dispersa Demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 40-56., p. 51). Essa citação integra um ensaio basilar de Luiz Costa Lima, Persona e sujeito ficcional. A persona consiste em uma carapaça simbólica a que o indivíduo adere para se proteger de sua fragilidade biológica e que se concretiza em certos papéis performados socialmente. A persona, como ainda nos mostra Costa Lima, tem como principal atributo elaborar para si um ponto de vista, uma lente que guia o indivíduo em sua relação com o mundo, segundo um singular regime de visibilidade que autoriza ver certas coisas, sob a luz, e manter outras à distância, sob a sombra.

O sujeito ficcional seria, por sua vez, precisamente a instância discursiva que permite ultrapassar a unanimidade dessa lente (que se naturaliza e, com isso, assume o estatuto de verdade) e clarear outras zonas de percepção e sensação até então invisíveis ao indivíduo - tanto ao produtor, que tem de se desdobrar ao forjar essa nova lente e se abrir ao que ela exibe de singularmente novo, quanto ao receptor, que acolhe essa nova lente e, nesse movimento, ultrapassa a si próprio.

No entanto, se é possível falar de um sujeito ficcional em Ernaux, ele tem seus limites muito bem traçados em Os anos. Wolfgang Iser afirma que “os atos de seleção e combinação já revelaram que o mundo do texto, por eles construído, não é idêntico ao do contexto” (ISER, 2013ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013., p. 45), isto é, o mundo representado no texto cria um sistema duplo de referências como se designasse o mundo real, mas, no mesmo lance, já não sendo o mundo real, pois se trata de um “mundo” constituído por uma determinada configuração de signos. O que importa a Ernaux é controlar esse jogo criado pela ambivalência referencial, atribuindo-lhe uma forma de racionalidade que, apesar de ser formalmente ficcional, permite, pragmaticamente, a produção de um texto cujo horizonte é a busca de veracidade. Neutraliza-se, ou melhor, controla-se nesse lance a dinâmica de perspectivação e duplicação dos campos referenciais.

Em Os anos, essa ficção do eu - ela e seus correlatos on e nous - é criada tendo como horizonte a suspensão de uma verdade ainda dominante de nossos tempos - je suis (quelqu’)un [eu sou um (alguém)]. O ato de pôr entre parênteses a unidade do eu por meio da exploração de seus estados sucessivos, que não perfazem um todo homogêneo e permanecem referidos como algo relativo a ela, permite perscrutar certas zonas do passado para nelas identificar uma outra verdade subterrânea ou um outro estado da verdade.

Nesse sentido, a lente ficcional criada por Ernaux - a distância do ela - é uma lente que visa não a uma total refração do eu em estados de descontrole da identidade ou de despersonalização, e sim a uma melhor compreensão dos estados de um social individuado. Explora-se a realidade e a história para melhor entender e dar corpo àquilo que Bourdieu diz a respeito do ato de individuação: não existe, de um ponto de vista sociologicamente orientado, o indivíduo; o que existe, e Annie Ernaux nos mostra, é um social incorporado, individuado em um corpo biológico, mortal - ela -, que interage e responde aos estímulos das relações sociais.

Em suma, cria-se o intervalo não tanto para explorá-lo em sua potência de metaforização do mundo empírico, mas antes para melhor discernir e compreender a história coletiva em seu estatuto de história incorporada à memória individual:

Et c’est avec les perceptions et les sensations reçues par l’adolescente brune à lunettes de quatorze ans et demi que l’écriture ici peut retrouver quelque chose qui glissait dans les années cinquante, capter le reflet projeté sur l’écran de la mémoire individuelle par l’histoire collective. (ERNAUX, 2011cERNAUX, Annie. Les années. In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie. Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085., p. 957).15 15 Tradução: E é com as percepções e as sensações recebidas pela adolescente morena de óculos de catorze anos e meio que a escrita aqui pode reencontrar algo que deslizava nos anos cinquenta, captar o reflexo projeto na tela da memória individual pela história coletiva.

Ernaux nos mostra, enfim, que a história, enquanto dimensão vivida da experiência, só pode ser trazida ao discurso como um entrecruzamento no qual o on e o nous estão misturados ao elle e no qual um moi permanece refratado, colocado à distância, mas ainda assim presente nas franjas da narrativa, apesar de tudo.

Referências

  • BARTHES, Roland. Prefácio. In: BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9-19.
  • BENVENISTE, Émile. Structure des relations de personne dans le verbe. In: BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale Paris: Gallimard, 1971. p. 225-236.
  • BOURDIEU, Pierre. Le mort saisit le vif. As relações entre a história reificada e a história incorporada. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989a. p. 75-106.
  • BOURDIEU, Pierre. A génese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico Trad. Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL ; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 1989b. p. 59-73.
  • CERTEAU, Michel de. Histoire et psychanalyse entre science et fiction Paris: Gallimard , 1987.
  • COSTA LIMA, Luiz. Persona e sujeito ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos Dispersa Demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 40-56.
  • COUTINHO, Priscila de Oliveira. Entre o roçado e a coca-cola: uma sociobiografia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2022.
  • ERNAUX, Annie. L’écriture comme un couteau. Entretien avec Frédéric-Yves Jeannet. Paris: Gallimard , 2011a.
  • ERNAUX, Annie. Une femme In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie Paris: Gallimard , 2011b. p. 553-597.
  • ERNAUX, Annie. Les années In: ERNAUX, Annie. Écrire la vie Paris: Gallimard , 2011c. p. 925-1085.
  • ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
  • JABLONKA, Ivan. History is a Contemporary Literature: Manifesto for the Social Sciences. Trad. Nathan J. Bracher. Londres: Cornell University Press, 2018.
  • 1
    Tradução minha do original em francês: “Nous parlons une langue que nous n'avons pas faite; nous nous servons d'instruments que nous n'avons pas inventés; nous invoquons des droits que nous n'avons pas institués; un trésor de connaissances est transmis à chaque génération qu'elle n'a pas elle-même amassé, etc. C'est à la société que nous devons ces biens variés de la civilisation et si nous ne voyons généralement pas de quelle source nous les tenons, nous savons, du moins, qu'ils ne sont pas notre œuvre”.
  • 2
    Neste trabalho traduzi todos os trechos da bibliografia em língua estrangeira.
  • 3
    La place conta com tradução para o português: ERNAUX, Annie. O lugar. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021.
  • 4
    No original: “Ceci n’est pas une biographie, ni un roman naturellement, peut-être quelque chose entre la littérature, la sociologie et l’histoire. Il fallait que ma mère, née dans un milieu dominé, dont elle a voulu sortir, devienne histoire, pour que je me sente moins seule et factice dans le monde dominant des mots et des idées où, selon son désir, je suis passée”.
  • 5
    O livro foi muito recentemente traduzido no Brasil por Veronica Galindez. Ver: JABLONKA, Ivan. A história é uma literatura contemporânea. Trad. Veronica Galindez. Brasília: Editora UnB, 2021. A versão consultada para a escrita deste artigo, como pode ser aferido nas referências bibliográficas, é uma tradução para o inglês feita por Nathan Bracher.
  • 6
    Cabe ressaltar que pincei esta expressão de um ensaio de Michel de Certeau acerca das relações entre história e psicanálise e das diferentes estratégias temporais mobilizadas tanto pela prática analítica quanto pela historiografia. Em seu texto, “le mort hante le vif” vem descrever o traço mnésico, isto é, o retorno do esquecido, uma ação do passado que deve travestir-se para aparecer em um presente que a reprime. Há uma certa homologia com o que acontece com a ficção em Ernaux: ela é renegada, reprimida, mas acaba retornando sob outros trajes. Ver: CERTEAU, 1987CERTEAU, Michel de. Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Paris: Gallimard , 1987..
  • 7
    ERNAUX, Annie. Os anos. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021.
  • 8
    “[...] tal sujeito é disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte” (BARTHES, 2005BARTHES, Roland. Prefácio. In: BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9-19., p. 16-17). Fiquei tentado a tomar emprestada de Barthes a noção de “biografema”, tornada célebre em A câmara clara, para examinar a obra ernaudiana, mas esse passo metodológico demandaria um desvio e uma justificação teórica que, por si só, constituiria um texto à parte (afinal, como conciliar Barthes e Bourdieu?).
  • 9
    No original: “Tout s’effacera en une seconde. Le dictionnaire accumulé du berceau au dernier lit s’éliminera. Ce sera le silence et aucun mot pour le dire”.
  • 10
    No original : “Sauver quelque chose du temps où l’on ne sera plus jamais”.
  • 11
    Tradução: Nos forneciam divertimentos, o bambolê, Salut les copains, Âge tendre et tête de bois, não se tinha direito a nada, nem votar, nem fazer amor, nem mesmo dar sua opinião. O futuro não era senão uma soma de experiências a serem renovadas, serviço militar de vinte e quatro meses, trabalho, casamento, crianças. Esperavam de nós a aceitação natural da transmissão. Diante desse futuro dado de antemão, a gente tinha confusamente o desejo de permanecer jovens por muito tempo. Os discursos e as instituições estavam atrasados quanto aos nossos desejos, mas o fosso entre o dizível da sociedade e o nosso indizível nos parecia normal e irremediável, não era nem mesmo algo em que se podia pensar, somente sentir, cada um em seu foro íntimo, assistindo Acossado.
  • 12
    Tradução: “O cinema substitui ao nosso olhar um mundo que se coloca de acordo com nossos desejos”.
  • 13
    Tradução: “Eles se vingavam por nós de toda a contenção de nossa adolescência, do silêncio respeitoso dos auditórios, da vergonha de receber garotos às escondidas nos quartos da moradia”.
  • 14
    Tradução: Nessa foto em preto e branco, no primeiro plano, deitados de bruços, três moças e um moço, somente a parte de cima do corpo está visível, o resto mergulhando em uma ladeira. Atrás deles, dois moços, um em pé e debruçado se destaca contra o céu, o outro está ajoelhado, parecendo aborrecer uma das moças com seu braço esticado. No fundo, um vale afogado em uma espécie de bruma. No verso da foto: Cidade universitária. Mont-Saint-Aignan. Junho de 63. Brigitte, Alain, Annie, Gérard, Annie, Ferrid. Ela é a menina do meio, com o cabelo dividido em bandós imitando George Sand, com ombros largos e desnudados, a mais “mulher”. Seus punhos cerrados emergem estranhamente de baixo de seu busto deitado. Sem óculos. A foto foi tirada no período que separa a aplicação das provas e os resultados. É um tempo de noites em claro, de conversas nos bares e nos quartos de estudantes, seguidas de carícias despidas até o limite da imprudência, ao som da “Javanaise”. De cochilos à tarde, dos quais ela sai com a impressão culpada de ter se colocado para fora do mundo, como no dia em que o Tour de France e Jacques Anquetil já tinham passado há muito tempo quando acordou. Ela entrou na festa e se entendia. As duas moças que estão em torno dela na foto são burguesas. Não se sente parte do grupo, mais forte e mais sozinha. De tanto sair com elas, acompanhá-las em festinhas, tem a impressão de decair. Não pensa tampouco ter agora algo em comum com o mundo operário de sua infância, com o pequeno comércio de seus pais. Ela passou para o outro lado, mas não saberia dizer do quê, olhando para trás, sua vida é constituída de imagens sem nexo. Ela não se vê em lugar nenhum, somente no saber e na literatura.
  • 15
    Tradução: E é com as percepções e as sensações recebidas pela adolescente morena de óculos de catorze anos e meio que a escrita aqui pode reencontrar algo que deslizava nos anos cinquenta, captar o reflexo projeto na tela da memória individual pela história coletiva.

Editado por

Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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