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Sobre o envelhecimento de Lolita no mundo administrado

On Lolita’s aging in the administered world

Resumo

O presente trabalho visa a apresentar alguns modelos da relação entre Lolita, de Vladimir Nabokov, e seu leitor, como alegorias da reação da literatura modernista tardia à administração crescente da cultura – ou, mais especificamente, da forma como o romance reage ao seu envelhecimento histórico sendo progressivamente determinado pela indústria cultural, a partir de sua caracterização por Adorno e Horkheimer (2006)ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.. Dois modelos principais são apresentados: o primeiro é caracterizado pelo modo como o romance manipula o leitor como forma de evitar ser manipulado por ele, forçando-o a julgar a possibilidade de arrependimento de seu narrador e limitando-o a uma experiência de satisfação vicária; e o segundo modelo se define pela exigência que o leitor seja assimilado à lógica de decifração contida no romance, submetendo-se integralmente à autoridade autoral.

Palavras-chave
Lolita; modernismo tardio; indústria cultural; autonomia da arte

Abstract

This essay proposes two models for the relationship between Vladimir Nabokov’s Lolita and its readers as allegories of the reaction of Late Modernist literature to the growing administration of culture – that is to say, as allegories of the way the novel reacts to its historical aging being progressively determined by the Culture Industry, as theorized by Adorno and Horkheimer (2006)ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.. Two basic models are outlined: the first one is defined by how the novel manipulates the reader in order to avoid being manipulated, forcing the reader to judge the possibility of the narrator’s moral redemption and limiting him or herself to vicarious experiences of pleasure; and the second model refers to how Lolita demands being deciphered by the reader, which points to him or her being completely dominated by authorial authority.

Keywords
Lolita; Late Modernism; Culture Industry; art’s autonomy

Resumen

El presente trabajo presenta algunos modelos de la relación de Lolita, de Vladimir Nabokov, con su lector, como alegorías de la reacción de la literatura modernista tardía a la administración creciente de la cultura – o, específicamente, de la forma como la novela reacciona a su envejecimiento histórico, siendo progresivamente determinado por la industria cultural, a partir de su caracterización por Adorno y Horkheimer (2006). Dos modelos principales son presentados: el primero es caracterizado por el modo como la novela manipula al lector, forzándolo a juzgar la posibilidad de arrepentimiento de su narrador y limitándolo a una experiencia de satisfacción vicaria; el segundo se define por la exigencia de que el lector sea asimilado a la lógica de descodificación contenida en la novela, sometiéndose integralmente a la autoridad autoral.

Palabras-clave
Lolita; modernismo tardío; industria cultural; autonomía del arte.

1.

É relativamente conhecida a ideia de Adorno (2011: 3-4)ADORNO, Theodor. Aesthetic Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011. de que os temas de obras de arte podem se extinguir e tornar-se inacessíveis. O exemplo dado por ele na Teoria Estética é o do adultério, cuja presença constante na literatura vitoriana adquire para os leitores posteriores uma opacidade que nos impede de manifestar empatia direta por suas situações, por conta de mudanças na estrutura familiar burguesa e o afrouxamento da monogamia, ou mesmo do casamento como instituição sagrada e inquebrantável. O caso por ele citado é o de Madame Bovary, mas o argumento serve também para O retrato de uma senhora, de Henry James, que, se não contém uma relação adúltera em seu núcleo, certamente depende da solidez do matrimônio como alicerce a partir do qual as tensões de seu enredo podem se organizar rumo à decisão final de Isabel Archer – que o tempo serviu para tornar tanto ainda mais enigmática quanto talvez desprovida de qualquer interesse mais sério. Mas o reverso da transitoriedade das formas e temas – que para Adorno poderia bem ser a própria substância da arte – é o de que, ao serem submergidos pela passagem do tempo rumo à irrelevância, estes mesmos elementos outrora centrais podem abrir caminho para que outros venham à tona, agora desentranhados desses conteúdos, e tornados parcialmente inorgânicos. É esse o caso nos dois romances mencionados com relação ao estilo, cuja relativa autonomização teria certamente agradado Flaubert e indignado James, intensificando uma tendência à indiferença – diversamente modulada em cada autor – do narrador diante do material narrado que é central, por exemplo, para a leitura feita por Jacques Rancière de Madame Bovary (RANCIÈRE, 2008RANCIÈRE, Jacques. “Why Emma Bovary had to be killed”. Critical Inquiry, The University of Chicago, n. 34, 2008.: 233-248).

Adorno nos lembra, contudo, que tal concepção não aponta para nenhum otimismo histórico-filosófico calcado na invencibilidade do espírito, já que o ocaso do material temático pode também arrastar consigo mesmo aquilo que o ultrapassa. Mesmo o que uma obra poderia possuir de autônomo é também sempre o selo de sua dependência da divisão do trabalho, sendo assim histórica e portanto igualmente perecível. Para dizer de outra forma, mesmo o que há de mais artístico na arte é em última instância indissociável daquilo que a ela se opõe, o que implica em dizer que mesmo formas podem se tornar vazias ou falsas.

Por outro lado, algo dessa ideia de Adorno – também ela histórica, afinal – envelheceu mal, ou precisa ao menos ser mais bem compreendido. Ironicamente, parte dela soa um pouco otimista demais: de sua perspectiva – a Teoria Estética foi publicada postumamente a partir de esboços redigidos ao longo dos anos 1960 –, talvez parecesse que a família nuclear burguesa estivesse mesmo se deteriorando, mesmo que potencialmente para ser substituída por algo ainda pior. Não se pode negar que ela vem andando já há algum tempo com uma aparência esquisita e que o cheiro que dela sai não é dos melhores; de outro lado, por exemplo, a ascensão recente do conservadorismo no Brasil tem no apelo à família tradicional uma de suas bases inegáveis, o que sugere que a perda de prestígio ideológico em certos círculos não basta para decretar sua extinção. De fato, não parece que o adultério tenha se tornado irrelevante ou incapaz de escandalizar ao menos parte da sociedade.1 1 Não deve ser preciso ir mais longe do que até o impeachment de Bill Clinton por conta de seu caso com Monica Lewinsky para defender esse ponto. Na verdade, conforme notado pelo próprio Adorno, esse tipo de tema continua existindo na literatura de folhetim e nas novelas de TV. Se, realmente, temas como o do adultério perderam qualquer relevância para a arte avançada, o que se deve também a questões de seu desenvolvimento interno, o contrário é também verdadeiro: a arte avançada é que perdeu sua relevância para esses temas, que continuam a povoar boa parte do imaginário social – ao contrário da literatura, efetivamente reduzida à irrelevância quase total quando não integralmente submetida à lei do mercado.

Por outro lado, situar Lolita, de Vladimir Nabokov (1991)NABOKOV, Vladimir. The annotated Lolita (ed. Alfred Appel Jr.). Nova York: Random House, 1991.,2 2 Foi usada também a tradução da editora Objetiva, de 2011. em uma dinâmica marcada pela perda de capacidade de empatia por seu tema sugeriria que com a pedofilia teria ocorrido o mesmo que com o adultério ou o casamento. Ao contrário, provavelmente a pedofilia se tornou mais polêmica desde a publicação de Lolita (em 1955, na França, e em 1958 nos EUA), e seu narrador em primeira pessoa, cinicamente confesso e notavelmente carismático, quase parece fabricado in vitro para provocar a repulsa ultrajada de leitores que sejam de alguma forma sensíveis ao tema. E o romance de Nabokov foi de fato escandaloso, tendo ultrapassado em muito os círculos limitados da alta cultura literária aos quais parecia destinado a permanecer circunscrito, com seus jogos eruditos e uma estrutura regida pela frustração sistemática do leitor. Nesse sentido, Lolita é um romance curioso na história literária do século XX, pois é simultaneamente obra de arte avançada e sensação extraliterária, tendo alçado sua heroína ao estatuto de ícone da indústria do entretenimento ao lado de outros como Marilyn Monroe, de acordo com Vickers (2008)VICKERS, Graham. Chasing Lolita: how popular culture corrupted Nabokov’s little girl all over again. Chicago: CRP, 2008.. Nabokov não foi o responsável pela invenção do nome “Lolita”, mas certamente o foi por sua popularização. Porém, o significado corrente do termo tem pouco a ver com seu romance de origem, encaixando-se melhor em uma leitura enganosa ou em sua ignorância total. Isso é notado tanto por M. Durham (2008)DURHAM, M. Gigi. The Lolita effect: the media sexualization of young girls and what we can do about it. Nova York: Overlook Press, 2008., autora de um estudo sobre a sexualização crescente das crianças nos EUA, que reconhece o descompasso entre a questão, o título de seu trabalho e o do romance de Nabokov, quanto pelo próprio romancista, que, em uma de suas entrevistas reunidas em Strong Opinions (1973: 107), admite que a fama alcançada pela garotinha por ele imaginada em muito ultrapassa a sua própria. Essa imagem independente de Lolita foi auxiliada em seu voo ascendente por suas adaptações para o cinema, em especial a de Stanley Kubrick, de 1962. Brian Boyd, o principal biógrafo de Vladimir Nabokov, relata uma série de anedotas que denotam a fama surpreendente alcançada pela personagem a perdurar até hoje, com momentos que beiram o surreal, como a ocasião em que Nabokov atendeu à campainha de sua casa em uma noite de Halloween para se deparar com uma criança de oito ou nove anos fantasiada de Lolita, com direito a raquete de tênis, ou as bonecas (dotadas de orifícios) em tamanho natural da personagem surgidas na década de 1970, e mesmo uma foto de gosto duvidoso em que seu filho Dmitri aparece em uma cama cercado de candidatas ao papel de Lolita para um suposto filme (BOYD, 1991BOYD, Brian. Vladimir Nabokov: the american years. Princeton: Princeton University Press, 1991.: 373, 415).

O sucesso comercial inesperado do romance de Nabokov, jamais alcançado por qualquer outro de seus livros, deveu-se em larga medida à instrumentalização de seu escândalo, que foi convertido pelo tino publicitário da editora Putnam em fama e lucro. Apenas a possibilidade desse movimento já assinala uma mudança qualitativa profunda no papel social da literatura, contrastando com a complicada história de publicação de um romance central para ao alto modernismo de língua inglesa como o Ulysses de Joyce – tradição na qual Nabokov se insere, mesmo que a certa distância.3 3 Sobre a relação entre Nabokov e o alto modernismo inglês, ver FORSTER JR, 2005: 85-100. Com efeito, a disposição para a afronta aos bons costumes burgueses é uma característica genuína da literatura modernista, presente por exemplo na escatologia multiforme que atravessa o Ulysses, que não deixa de funcionar como uma expansão do horizonte do representável na arte. O ânimo polêmico antiburguês poderia assumir uma variedade de formas, da junção de estética experimental e política conservadora à maneira de Eliot – isto é, antiburguesa mas pró-aristocrática, e não pró-revolução4 4 Ver sobre isso, por exemplo, EAGLETON, 2003: 159-184. – até a junção de vanguarda estética e política esmiuçada por Peter Bürger (2008)BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008..

Já o escândalo de Lolita se encaixa com dificuldade nesse esquema combativo. Afinal, a mudança histórica definida pela centralidade crescente da forma mercadoria em todas as esferas da vida social, caracterizada em sua relação com a cultura por Adorno e Horkheimer (2006)ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006., não se restringe a questões relacionadas à circulação das obras, como a princípio parece ser o caso com relação ao alto modernismo; nesse sentido mais superficial, vale notar que, passadas as dificuldades iniciais, o próprio Ulysses se tornou uma mercadoria cultural de elite, com direito a uma Joyce Industry que segue de vento em popa, extraindo continuamente material do romance para produzir textos críticos. Ao contrário, como Lolita nos deixa ver, a lógica própria à mercadoria vai integrando progressivamente o próprio processo de produção das obras de forma inaudita, abrindo a possibilidade de que essa lógica seja não simplesmente tematizada, mas tornada, mesmo involuntária ou inconscientemente, material a ser peculiarmente elaborado. Isto é, à definição de Jameson do modernismo tardio apresentada em Modernidade singular (2005: 229 e segs.) como diferente do alto modernismo precisamente por acontecer após este – ou seja, sem o direito a uma reivindicação da originalidade de sua posição, essencial ao éthos modernista –, deve-se acrescentar o movimento da subsunção formal à subsunção real da produção artística, tal como argumentado por Brown (2015: 11-31)BROWN, Nicholas. “A obra de arte na era de sua subsunção real ao capital”. In: DURÃO, F. A.; MUSSI, D.; MARANHÃO, D. P. Marxismo, cultura e educação: contribuições do VII colóquio internacional Marx e Engels. São Paulo: Nankin editorial, 2015:, por exemplo, a partir de Marx. Ela consiste, grosso modo, na integração não só da circulação, mas também da produção artística à lógica da mercadoria, que considera os objetos produzidos como mero suporte de um valor de troca que em última instância determina todo o seu processo de elaboração. Se Lolita não se encontra integralmente dentro dessa lógica, certamente reage até hoje à sua ameaça, e seu caso é sintomático da encruzilhada na qual a produção artística se encontrava no momento de consolidação da indústria cultural, e que se inscreve à força na filigrana do romance, mesmo que contra a vontade de seu autor. Um exemplo algo involuntário disso seria o de um recurso formal caro a Nabokov que funciona como uma bizarra solução de compromisso entre integridade artística e interesse pecuniário via propriedade intelectual: Boyd (1991: 221)BOYD, Brian. Vladimir Nabokov: the american years. Princeton: Princeton University Press, 1991. nos informa que Nabokov, temendo represálias, planejava publicar Lolita com um pseudônimo, mas, também como forma de provar sua autoria, caso isso fosse vantajoso, inseriu no romance uma personagem com uma versão anagramática de seu nome, Vivian Darkbloom.

Lolita, então, está sendo localizado em um ponto singularmente problemático da história da perda progressiva da relevância da literatura e da arte avançada em geral na sociedade, que só vem acentuando-se desde então. Trata-se de um momento em que convergem tanto a passagem acidentada do modernismo para o pós-modernismo quanto a consolidação da indústria cultural, caracterizada pela redução daquilo que ultrapassa a mera sobrevivência – uma definição possível da cultura – à manutenção da barbárie.5 5 Sobre a relação entre cultura e administração discutida nesses termos, ver especialmente ADORNO, 2010: 107-131 e HULLOT-KENTOR, 2010: 5-22. Trata-se, evidentemente, de uma construção esquemática, e pode ser útil o recurso à caracterização feita por Hal Foster (1996: 29-32)FOSTER, Hal. The return of the real. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1996. da relação entre as vanguardas históricas e as neovanguardas relativamente contemporâneas de Lolita a partir do conceito freudiano de retroação (Nachträglichkeit): de acordo com Foster, é a própria existência das neovanguardas que permite identificar a posteriori o sentido histórico das vanguardas, que são assim ressignificadas pela acentuação e complexificação de sua crítica à instituição arte. De nosso lado, a continuidade de um impulso antiartístico do modernismo, ao ser acentuado e talvez mesmo cumprido na arte posterior, é projetado retroativamente no modernismo de forma ainda mais intensa, expondo a autonomia artística como a ilusão ideológica que sempre fora, ainda que tal ilusão tornasse possível às obras dizerem aquilo que a ideologia esconde.6 6 Para um comentário sucinto de Adorno sobre a relação entre ideologia e autonomia da arte, cf. ADORNO, 2012: 68.

Porém, existe aqui a intenção de ensaiar um passo adiante dessa dinâmica: não apenas o modernismo tardio reconfigura retroativamente o modernismo – o mesmo se dando com o pós-modernismo –, mas também a indústria cultural, cuja mecânica básica é visível no processo de envelhecimento histórico de Lolita, tem sido igualmente capaz de ressignificar as obras que são integradas à sua esfera crescente de atuação, por exemplo através da apropriação de conteúdos e do rebaixamento de sua posição no tecido social. Isto é, para voltar ao argumento de Adorno com que iniciamos, a retirada e neutralização tanto da imagem de Lolita, assim reduzida a ícone pop, quanto do romance como palco para uma discussão moral, com seu potencial polêmico reduzido a instrumento publicitário, preparam o terreno para sua transformação retroativa, com o auxílio da interpretação, em crítica daquilo que o dilacera. Para dizer de outra forma, é justamente onde o romance dá mostras de sua heteronomia constitutiva, ou onde sua lei interna baixa a guarda ao incorporar como material os próprios elementos a ela contrários, que ele é atacado, e também onde se defende antecipadamente. Mas, levando a sério a afirmação de Adorno sobre a transitoriedade ser sua substância, é precisamente nesse movimento – que demanda a interpretação para ser capturado em conceitos7 7 Sobre isso, ver HULLOT-KENTOR, 2010: 23-41 – que o sentido histórico de Lolita pode seguir tentando se realizar. E não deixa de ser apropriado que o preço a ser pago pelo romance seja parte de si: se na Teoria estética Adorno propõe que a arte é a transcrição inconsciente da história do sofrimento humano, que parte desse sofrimento possa aos poucos se tornar definitivamente inacessível ou indiferente, e assim talvez impossível de ser redimido, é um sinal inquestionável do avanço da cultura administrada.

Na hipótese a ser agora explorada, os pontos em que Lolita se mostra mais vulnerável seriam justamente os de contato entre o romance e aquilo que aponta para além de si – e portanto sobre o qual ele não consegue possuir controle efetivo, por mais que possa desejá-lo. Nesse sentido, Lolita apresenta uma ambivalência com relação ao contato externo que se cristaliza nas diferentes imagens do leitor projetadas pelo próprio romance, cuja figura mais básica consiste em pouco mais do que um consumidor distraído e relativamente indiferente – mas, vale frisar, ainda assim necessário. Nessa chave, o tipo de leitor projetado a partir de um livro como Lolita só pode ser muito distinto daquele concebido a partir de um romance modernista como o Ulysses; sua autonomia, por mais ilusória que em última instância possa ter sido, encontrava-se menos ameaçada por conta de sua própria situação histórica, o que reverbera em sua forma, de nossa perspectiva, como uma limitação inicial nas possibilidades de elaboração dessa posição. Para tornar as coisas mais claras, passemos a esboçar alguns modelos da relação entre Lolita e seu leitor, no sentido de uma alegoria da reação da literatura (modernista tardia) à administração crescente da cultura – ou, mais especificamente, da forma como o romance reage ao seu envelhecimento histórico sendo progressivamente determinado pela indústria cultural.

2.

Visto de certa distância, o enredo de Lolita poderia ser assim resumido: assombrado por seu desejo por garotas de certo tipo, denominadas ninfetas, cuja origem é localizada em um romance infantil frustrado, Humbert Humbert, um europeu erudito e jocoso, dotado de um charme másculo e melancólico – é como ele próprio gosta de se definir constantemente –, viaja para os EUA e acaba indo parar na casa da família Haze. A princípio enojado tanto pelo quarto que alugaria quanto por Charlotte, a dona da casa (seu marido já há muito tempo havia morrido), Humbert deseja sair dali o mais rápido possível, mas muda de ideia ao se deparar com a jovem Dolores Haze – a Lolita do título –, que se torna à primeira vista sua ninfeta quintessencial. Com o intuito de ficar próximo de sua nova amada, o narrador resolve morar na casa das Haze. Charlotte fica interessada em Humbert, que só tem olhos para Dolores, de quem tenta tirar o máximo de proveito erótico sem conspurcar a pureza. A relação conflituosa entre mãe e filha leva a sra. Haze a mandar Lolita para um acampamento de férias, mas não sem antes propor Humbert em casamento. Ele aceita, reconhecendo a oportunidade para se aproximar de Lolita. Charlotte, contudo, não vê a hora de se livrar definitivamente da filha, e tenciona mandá-la direto do acampamento para um internato para moças, para o desespero de seu marido, que chega mesmo a cogitar assassinar a esposa. Mas o destino se encarrega da tarefa ingrata: Charlotte encontra o diário de Humbert, onde ele confessa tanto seu desprezo por ela quanto seu amor por Lolita, sendo logo em seguida atropelada e morta por um carro desavisado.

Agora livre da esposa e responsável por sua ninfeta – que, ainda no acampamento, nada sabe da tragédia ocorrida –, Humbert decide partir da cidade de Ramsdale e viajar com Lolita pelos EUA, pretendendo drogá-la todas as noites com soníferos para dela se aproveitar sexualmente, mas ainda preservando sua pureza infantil. Já na primeira noite juntos, porém, o plano das pílulas acaba em fiasco e, sem saber o que fazer enquanto Lolita ao seu lado cochila, é a própria garota que seduz Humbert com a proposta de sexo, que ela julga ser uma brincadeira secreta infantil nada relacionada à origem dos bebês. Humbert dela se aproveita seguidas vezes, confessando depois que sua mãe não está doente em um hospital como ele havia dito, mas morta, e eles seguem viajando por aproximadamente um ano pelo EUA, com a rotina alternando entre sexo, estrada e atrações turísticas para distrair a menina até a próxima rodada de sexo. Acabam por se estabelecer na cidade de Beardsley, e a relação entre ambos segue cada vez mais conflituosa, com Humbert desesperado para dominar Lolita, pagando cada vez mais dinheiro em troca de favores sexuais desempenhados por ela com frieza. Após uma briga particularmente feia, a garota inexplicavelmente propõe que eles saiam novamente viajando pelos EUA, seguindo uma trilha por ela traçada. Humbert aceita e eles partem de Beardsley, mas o narrador tem a sensação de que estão sendo seguidos e observados por um homem misterioso. As situações na viagem vão ficando cada vez mais absurdas até que ambos adoecem. Enquanto Humbert está de cama em um hotel, Dolores é levada do hospital onde estava internada em Elphinstone pelo estranho, para o desespero do narrador, que não consegue encontrar sua amada ou descobrir a identidade de seu raptor. Ele refaz seu caminho, buscando pistas em livros de registro de hotéis, mas por baixo da ironia cultivada e maldosa do homem que dele zombara continuamente com nomes falsos relacionados a Lolita e à literatura, nada consegue encontrar de sólido. Humbert passa a viver uma vida vazia após duas temporadas em sanatórios, sofrendo tanto pela ausência de sua amada quanto pela culpa pelo mal por ele causado, até que um dia recebe uma carta inesperada de Dolores (agora Sra. Richard F. Schiller) pedindo dinheiro. Ele vai ao seu encontro para descobri-la já totalmente acabada – para seus padrões bastante seletivos, ao menos –, e surpreende-se ao dar-se conta de que mesmo assim, desprovida de sua ninfescência, continua a amá-la. Não sem relutância, ela finalmente sussurra o nome do homem com quem havia fugido de Elphinstone: é o dramaturgo Clare Quilty. Humbert segue então para a mansão de Quilty, decidido a assassiná-lo – tarefa que executa em um confronto bizarro que ganha ares de autopurificação, purgando-o de seus próprios crimes cometidos contra a pureza infantil de Lolita. Ele acaba sendo preso e, dilacerado pela culpa, inicia a escrita de suas memórias, de início planejadas para serem parcialmente lidas em seu julgamento, mas gradualmente convertidas em uma tentativa de reparação simbólica, garantindo por meio da arte uma forma de imortalidade à ninfeta que seguira amando até o fim. O ápice de sua reflexão arrependida é o famoso trecho em que se lembra de ouvir os sons de crianças brincando ao longe:

Leitor! O que eu ouvia era apenas a melodia de crianças brincando, nada mais, e tão límpido era o ar que em meio ao vapor daquelas vozes combinadas, majestosas e mínimas, remotas e magicamente próximas, reveladoras e divinamente enigmáticas – podia-se ouvir de tempos em tempos, como que desprendido, um jorro quase articulado de riso animado, ou a pancada de um bastão na bola, ou o estrépito contido de um carrinho de brinquedo, mas na verdade tudo estava longe demais para que o olho conseguisse distinguir qualquer movimento nas ruas riscadas de leve no solo. Fiquei ouvindo aquela vibração musical da minha encosta distante, esses relances de exclamações isoladas com uma espécie de murmúrio contido a lhes servir de fundo, e então percebi que a coisa desesperadamente dolorosa não era Lolita ausente do meu lado, mas a voz dela ausente em toda aquela harmonia. (NABOKOV, 2011______. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.: 358)

A beleza sinestésica do trecho coloca-se decididamente como ápice de um arrependimento que já vinha sendo preparado há algum tempo, especialmente após o sumiço de Lolita. Críticos como Alfred Appel Jr, o editor de The Annotated Lolita, situam a cena em uma sequência de descrições da paisagem americana que só agora se diferencia em definitivo da arte de um pintor e finca os pés na elaboração romanesca. A justificativa de Appel (NABOKOV, 1991NABOKOV, Vladimir. The annotated Lolita (ed. Alfred Appel Jr.). Nova York: Random House, 1991.: 388-389 e 450-451) é a de que se trata da primeira paisagem enfaticamente povoada de Lolita, e sua beleza se deve mais à mistura de sons humanos, que se diferenciam momentaneamente uns dos outros para depois retornar à massa sonora, do que à natureza que era comumente seu foco, por exemplo nas vistas das montanhas e demais paisagens de beira de estrada durante suas viagens. Ser capaz de povoar sua representação outrora apenas figurativa com um conteúdo humano que o leva a assumir sua culpa seria uma marca importante do amadurecimento empático do narrador, que teria desenvolvido uma abertura para o sofrimento alheio que o força a transcender os limites do próprio solipsismo para se tornar um verdadeiro artista, nos termos do curioso posfácio de Nabokov ao texto. Assim, Lolita se converteria quase de última hora em um romance de formação do artista, embora de um formato bastante peculiar. Ainda nessa linha, Sweeney (2005: 73-76)SWEENEY, Susan Elizabeth. “‘By some sleight of hand’: how Nabokov rewrote America”. In: CONNOLLY, J. W. (Org.). The Cambridge Companion to Nabokov. Cambridge UK: Cambridge University Press, 2005. argumenta que a origem das descrições de paisagens ao estilo natureza indomada era informada por quadros do Novo Mundo vistos na infância europeia de Humbert, e que portanto o seu deleite diante da natureza teria um fundo nostálgico que vai sendo gradualmente substituído pela abertura para o novo; da mesma forma ocorre com o contraste entre a primeira descrição de Elphinstone, próxima de uma maquete, e essa paisagem povoada final em uma cidade análoga, mas agora vista, não como reprodução, mas como lugar vivo. Porém, essa visão triunfante – em última instância da América sobre a mentalidade europeia retrógrada – pode ser também invertida, com a verdadeira maquete dizendo respeito não a Elphinstone, mas à moralidade encenada.

Afinal, este breve resumo do enredo foi bastante tendencioso para o lado do amadurecimento moral de Humbert. Visto desse ângulo, Lolita funciona como um romance de base realista com um tema um pouco mais chocante e um protagonista de contornos trágicos marcado pela dor da perda de seu verdadeiro amor. Nesse sentido, o que poderia haver de mais tradicional do que a equivalência entre beleza e verdade sob a qual está apoiada a apoteose moral do narrador? Nomi Tamir-Ghez (1984: 157-176)TAMIR-GHEZ, Nomi. “The art of persuasion in Nabokov’s Lolita”. In: ROTH, P. A. (ed.) Critical Essays on Vladimir Nabokov. Boston: G.K. Holland Co., 1984., em um ensaio influente na crítica nabokoviana, expõe os mecanismos retóricos de que Humbert faz uso, para além da construção manipulativa sofisticada que se alimenta da sensibilidade nabokoviana, com sua típica atenção ao detalhe, o senso de humor inusitado e uma desenvoltura linguística ímpar, de modo a assinalar o triunfo do romancista sobre o narrador. Mas definitivamente não são apenas os críticos que sucumbem à sedução linguística: por exemplo, o blurb da quarta capa da mais recente edição brasileira, pela editora Objetiva, traz uma citação retirada da Vanity Fair que afirma ser Lolita “a única história de amor convincente do nosso século”, o que soa no mínimo estranho; também a adaptação para o cinema de 1997, dirigida por Adrien Lyne, se entrega à caracterização de Humbert como herói trágico sem qualquer traço de sua ironia constitutiva, dando ao filme um ar de solenidade que é às vezes involuntariamente cômico.

Esse tipo de debate em torno do romance assume o aspecto de um julgamento, o que é certamente um caminho por ele preparado, conforme notado por Tamir-Ghez: Humbert se dirige constantemente ao leitor, alternando entre chamá-lo assim e de membro do júri – o que se justifica narrativamente, conforme já dito, pela intenção inicial, logo abandonada, de usar suas memórias como prova em um julgamento. Em sentido bastante diverso, seria possível reconstruir o romance de modo a privilegiar não o suposto amadurecimento moral de Humbert, mas a forma como o seu tom se adequa aos diferentes momentos da narrativa com o intuito de manipular o leitor e ganhá-lo para a sua causa. Durante toda a primeira parte do livro, anterior à relação sexual com Lolita, a narrativa é acima de tudo jocosa, com Humbert exibindo ao máximo seu carisma e erudição, alternando momentos de um narcisismo absurdo e autoconsciente e autodepreciação bem-humorada, permeados pela sátira mordaz à superficialidade dos modos americanos, que serve para acentuar seu charme cultivado do Velho Mundo. Nessa primeira parte, o humor ajuda a recobrir e atenuar diversos momentos de crueldade variada, como a forma extremamente derrisória como se refere a Charlotte Haze ou a violência física que confessa já ter exercido sobre Valeria, sua primeira esposa. Também o lirismo apaixonado dedicado às ninfetas, às vezes comicamente exagerado, cumpre sua função nessa lógica de sedução do leitor, acentuando-se ao longo da narrativa até assumir uma coloração declaradamente elegíaca em sua parte final. É uma façanha notável que o narrador consiga arrancar ao menos um pouco da piedade do leitor, levando em conta a série de atrocidades de tamanhos diversos por ele cometidas, especialmente contra Dolores Haze,8 8 Para uma defesa desse argumento, ver DAWSON, 2005: 115-131. e certamente a fuga de Lolita e a fragilidade psíquica de Humbert não atrapalham sua manipulação. Deixando de lado as complexidades do sistema de justificativas contraditórias mobilizadas em favor da atenuação de sua culpa, vale notar apenas que oscilam principalmente entre a degradação mundana da cultura comercial americana e o poder sobrenatural exercido pelas ninfetas.

As duas posições sobre a possibilidade do arrependimento de Humbert aqui esboçadas são esquemáticas, efetivamente existindo mais como um contínuo do que como dois polos. Porém, o que é relevante para o modelo de relação entre Lolita e seu leitor é a conjunção entre este e um membro do júri, que não julgará a inocência do narrador, e sim a verdade de seu arrependimento. O que a princípio poderia parecer um respeito à forma como o próprio texto declara querer ser lido, acaba por se revelar em última instância como submissão a uma autoridade que não sustenta a palavra final do romance, estando mais próxima de uma armadilha para o leitor desavisado do que de qualquer outra coisa. Para dizer de outra forma, o leitor nesse primeiro modelo figura como uma espécie de funcionário do texto, responsável por um veredito que só admite duas possibilidades básicas e permanece indiferente com relação às nuances que vão de uma à outra, excluindo uma terceira que tentasse considerar os momentos de verdade de ambas. Ou seja, o leitor deve ser mantido sob rédea curta, e nesse sentido pode-se dizer que o narrador chega a ter uma refém, como fica claro – ao menos sob essa luz inusitada – nas memoráveis frases finais de Lolita:

E não sinta piedade de C.Q. Era preciso escolher entre ele e H.H., e [era desejável] que H.H. continuasse a existir por mais alguns meses, de modo a permitir-lhe fazê-la viver nas mentes de futuras gerações. Estou pensando em auroques e anjos, no segredo dos pigmentos duráveis, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. E essa é a única imortalidade que você e eu podemos compartilhar, minha Lolita. (NABOKOV, 2011______. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.: 360)

Não é necessário considerar a redenção de Humbert como integralmente falsa para colocar as coisas nesses termos. Provisoriamente, poderíamos dizer que ele realmente acredita em sua própria redenção, o que, se escamoteia um problema moral (que nesse formato não nos interessa aqui), ao menos coloca em suspenso a hipótese de que suas frases finais sejam pura má fé (o que nos interessa menos ainda). De qualquer modo, há no trecho tanto um apelo a uma autoridade última – que portanto não pode vir do narrador em primeira pessoa, que é quem nos força a julgar –, que deteria a palavra final sobre ele, quanto a ligação nem tão sutil entre a imortalidade de Lolita e a autorrealização de Humbert como verdadeiro artista. Tal ligação não precisa ser verdadeira – e, de fato, dificilmente é – para que notemos a forma como ela demanda ser vista, dando com isso um vislumbre de mecanismos mais profundos. Pois o que assim fica claro não é uma autoridade do romance sob o leitor mas, pelo contrário, uma desconfiança ou mesmo medo. De que outra forma se justificaria uma tentativa tão intensa de controlar sua posição, afinal?

Deve-se acrescentar nesse ponto que a desconfiança do próprio romance diz respeito ao leitor que se deixar levar pela série de armadilhas deixadas para ele. Ela pode funcionar tanto como mecanismo de defesa contra a intrusão de uma sensibilidade distraída que se deixa levar pela superfície da narrativa quanto como profecia que se autorrealiza: quando o leitor cai nas armadilhas espalhadas, por exemplo reduzindo seu contato com o romance ao julgamento moral de Humbert, há o triunfo oculto na confirmação do que já era sabido de antemão pelo livro, e que levou justamente à construção do mecanismo de captura. Para além do que poderia ser pensado como Schadenfreude ou desperdício de energia, resta a suspeita de que a série de armadilhas possa ter sido destinada não só a esse tipo de leitor, capturado pelo enredo e pela identificação com os personagens, mas que também possam funcionar como uma provação a ser superada pela dedicação do leitor ao contato com o romance. Nesse sentido, elas poderiam consistir em um processo de aprendizado do modo de se relacionar com o objeto, que se mostra aqui de forma provisória e negativa por sua resistência antecipada à manipulação e ao controle, moldando de volta o sujeito que tenta manipulá-lo, ao mesmo tempo que acentua tal intenção ao provocá-la. Trata-se de um aprendizado historicamente relevante como forma de fazer frente à administração da cultura, contra a qual o romance mostra a sua primeira camada, buscando ser um objeto que administra seu leitor – ou, no melhor dos casos, mostra os riscos envolvidos em tal postura – para não se ver administrado por ele. É uma relação regida pela paranoia, e que seria impensável em um romance modernista como o Ulysses, cujo hermetismo autocentrado a princípio soa como indiferença, mas no trabalho de leitura revela confiança e generosidade para com o leitor – ao menos no contraste com Lolita –, talvez por ter surgido em um mundo ainda não tão administrado quanto o de Nabokov. E esse modelo funciona também para o outro polo do julgamento, pois a distinção entre a verdade e a mentira da redenção de Humbert esconde a falsa oposição entre conteúdo e forma, da pura ênfase no enredo como aprendizado à pura ênfase na retórica como manipulação – uma maneira de segmentar o objeto que o prepara e aproxima da produção em série justamente ao afastá-lo da mediação necessária entre todo e parte.

Ainda outro modo de cristalizar a imagem desse modelo pode vir a calhar como forma de sugerir um outro. Trata-se do momento em que Lolita finalmente sussurra no ouvido de Humbert o nome de seu rival tão longamente perseguido:

Silenciosamente, a fusão se completou e tudo se encaixou na devida ordem, no padrão da ramagem que fui entrelaçando ao longo destas memórias com a finalidade expressa de fazer o fruto maduro cair no momento certo; sim, com a finalidade expressa e perversa de reproduzir [...] aquela paz dourada e monstruosa por força da conclusão lógica e satisfatória, que mesmo o leitor mais refratário agora também há de estar experimentando. (NABOKOV, 2011______. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.:317)

Há aí uma versão em miniatura da dinâmica que atravessa todo o romance. Humbert afirma ter construído seu relato de forma a que esse instante preciso culminasse na queda do fruto maduro da revelação, mas ela só ocorre para si próprio, e não para o leitor de primeira viagem, que precisará aguardar ainda mais vinte páginas para que a identidade de Quilty seja revelada com todas as letras. A paz dourada e monstruosa por ele descrita só pode então ser sentida nesse momento por ele, mas o narrador afirma que ela é também experimentada pelo leitor, ainda que no exato instante em que ele permanece dela excluído. Isto é, a satisfação da revelação é reduzida a uma experiência vicária no instante exato em que se concretiza, como se o romance, ao descrever o que supostamente estamos sentindo, assim nos dispensasse de sentir qualquer coisa. Trata-se de uma lógica perturbadoramente próxima da interpretação feita por Žižek (2008: 33)ŽIŽEK, Slavoj. The sublime object of ideology. New York: Verso, 2008. do riso enlatado comum nos sitcoms americanos, mas dentro de uma obra de arte avançada: a risada pré-gravada que sai da televisão após as piadas nos alivia do dever de rir, permitindo que tenhamos efetivamente nos divertido por meio do riso que vem da máquina, por mais impassíveis que diante dela tenhamos ficado. É a acentuação dessa tendência alienadora na cultura que permite converter retroativamente esse momento de Lolita em sua crítica: é possível aqui ao menos apontar para a hipótese de que, conforme o indivíduo do capitalismo avançado perde a capacidade de se relacionar com os objetos – e precisamente por conta de suas determinações objetivas, em um desenvolvimento da lógica do fetichismo da mercadoria –, estes passam também a prescindir dos sujeitos, sentindo em nosso lugar ou reduzindo o leitor, no caso de Lolita, a mero apêndice a ser acoplado à maquinaria textual, com obras que seguem assim tendendo a se tornar progressivamente opacas. A diferença entre o riso enlatado da televisão e o romance é que, nele, essa dinâmica se efetiva apenas retroativamente, constituindo-se apenas pela passagem do tempo em uma de suas camadas, que pode ser reconfigurada pela atividade interpretativa capaz de revelar seu potencial crítico, cujo efeito, se não equivale à “paz dourada e monstruosa” de Humbert, talvez seja ao menos dela aparentado.

Já foi mencionada aqui a tendência de Nabokov a jogos anagramáticos, exaustivamente explorados por autores como Shapiro (1999: 15-35)SHAPIRO, Gavriel. “Setting his myriad faces in his text: Nabokov’s authorial presence revisited”. In: CONNOLLY, J. W. (Org.). Nabokov and his fiction: new perspectives. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1999.. Trabalhos como este nos alertam para a presença cifrada do nome do duplo de Humbert no instante de sua revelação, o que fica perdido na tradução para o português: “Quietly the fusion took place [...]” traz em seu início o nome de Quilty ligeiramente embaralhado. Trata-se, contudo, de um dado que só pode se tornar disponível enquanto tal para os iniciados na estética nabokoviana, e que portanto já conhecem de antemão a identidade de Quilty. Para dizer de outra forma, o momento preciso dessa revelação não permite acesso à “paz dourada e monstruosa” nem aos leitores de primeira viagem, que pouco podem saber sobre as sutilezas formais do romance, e nem aos já iniciados em seus mistérios, que não podem tirar nenhuma satisfação da revelação nesse momento, posto que já é para eles conhecida de antemão. O estudo detido das estruturas de significação de Lolita e a atenção à sua sofisticada arquitetura narrativa, com a rede de coincidências absurdas que ultrapassam o controle e as capacidades perceptivas do narrador, aponta para uma presença organizadora mais profunda que, de acordo com Appel (1967: 210)APPEL Jr, Alfred. “Lolita: The springboard of parody”. Wisconsin Studies in Contemporary Literature, v. 8, n. 2, University of Winsconsin Press, 1967., monta um labirinto para seu protagonista cujo centro é Quilty. Porém, sua figura ganha corpo e densidade somente na medida em que os seus contornos são percebidos espalhados por todo o romance, garantindo-lhe um peso narrativo que assim cria um nó lógico, o que torna Lolita um romance policial impossível ou invertido: somente a atenção ciosa da presença tentacular de Quilty seria capaz de tornar sua revelação efetivamente impactante.

E essa é uma relação com o leitor prevista pelo próprio romance, algo evidente no memorável capítulo da “cryptogrammic paper chase”, quando Humbert busca pistas nos livros de registros de hotéis que apontem para a identidade de seu duplo maligno. E é o recurso ao tema do duplo, parodiado de todas as formas possíveis no romance (cf. APPEL, 1967APPEL Jr, Alfred. “Lolita: The springboard of parody”. Wisconsin Studies in Contemporary Literature, v. 8, n. 2, University of Winsconsin Press, 1967.:230 e segs.), que deixa ver um último modelo da relação entre Lolita e o leitor, que poderá ser aqui apenas sugerido. No capítulo em questão, Humbert aponta indiretamente para a relação que é, de acordo com o romancista por trás dele, essencial à verdadeira leitura literária – a disputa entre autor e leitor:9 9 É sintomático que a frase de Nabokov tenha duas versões. Primeiro ele localizara o verdadeiro conflito das obras primas de ficção não entre personagens, mas entre o autor e o mundo. Em uma entrevista posterior (NABOKOV, 1973:183), contudo, ele se corrige, dizendo que o verdadeiro conflito se dá entre autor e leitor.

Seu traço principal era a paixão tantalizante. Deus do céu, como me provocava! Desafiava sempre minha erudição. Tenho orgulho suficiente por conhecer algumas coisas para mostrar-me modesto por não saber de tudo; e confesso não ter captado todos os elementos daquela perseguição criptográfica. (NABOKOV, 2011______. Lolita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.: 291)

Em uma entrevista para a revista Playboy, Nabokov (1973: 20)______. Strong opinions. Nova York: Vintage, 1973. define Lolita como seu mais belo quebra-cabeças, composto e solucionado simultaneamente. Certamente, muitos leitores tentaram resolvê-lo por vezes com uma sofisticação surpreendente, sendo o catálogo das numerosas aparições de Quilty nos interstícios da narrativa (41, segundo Appel) um exemplo dos mais básicos. De nossa perspectiva, porém, a orientação geral dessa postura aponta para a figura demiúrgica do autor como instância doadora de um significado oculto a ser decifrado, o que vai bem ao gosto de Nabokov.

Para concluir, esta última versão da relação entre Lolita e leitor é regida pela lógica de um narcisismo cuja superfície reconfortante, a apontar para a possibilidade de uma solução definitiva do enigma da obra, esconde um fundo cujo limite autoritário não é menos paranoico do que o modelo anterior, mas em sentido diverso. Ler como o paper chaser é buscar nas pistas de Quilty o rosto de seu criador, que nessa configuração parece interessado apenas em olhar para o espelho. Tal postura equivale a tornar a obra um monumento cujo sentido predeterminado é avesso à história, fruto de um medo – bastante compreensível – de suas consequências potencialmente destrutivas, evidentes no primeiro modelo, mais vulnerável à penetração insidiosa da indústria cultural. Ao aceitar somente um leitor submisso à lógica de sua identidade, a obra corre o risco de tornar seu eco irremediavelmente silencioso, convertendo-se em instrumento da dominação por meio da recusa a priori a um contato que não seja assimilação, mero clássico mudo ao lado de outros. Entre a abertura para a erosão interna e externa cristalizada no leitor distraído que se deixa manipular, de um lado, e o fechamento autoidentitário cuja verdadeira face é o elitismo assustado, de outro, Lolita oscila indecisa ou paralisada, com medo de envelhecer e provavelmente ponderando sua própria impossibilidade.

  • 1
    Não deve ser preciso ir mais longe do que até o impeachment de Bill Clinton por conta de seu caso com Monica Lewinsky para defender esse ponto.
  • 2
    Foi usada também a tradução da editora Objetiva, de 2011.
  • 3
    Sobre a relação entre Nabokov e o alto modernismo inglês, ver FORSTER JR, 2005FORSTER Jr, John Burst. “Nabokov and modernism”. In: CONNOLLY, J. W. (Org.). The Cambridge Companion to Nabokov. Cambridge UK: Cambridge UP, 2005.: 85-100.
  • 4
    Ver sobre isso, por exemplo, EAGLETON, 2003EAGLETON, Terry. “Rumo a uma cultura comum”. In: ______. A ideia de cultura. São Paulo: Editora Unesp, 2003.: 159-184.
  • 5
    Sobre a relação entre cultura e administração discutida nesses termos, ver especialmente ADORNO, 2010______. “Culture and administration”. In: ______. The Culture Industry. Abingdon: Routledge, 2010.: 107-131 e HULLOT-KENTOR, 2010HULLOT-KENTOR, Robert. “The exact sense in which the Culture Industry no longer exists”. In: DURÃO, Fabio A. (Org.). Culture Industry Today. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2010.: 5-22.
  • 6
    Para um comentário sucinto de Adorno sobre a relação entre ideologia e autonomia da arte, cf. ADORNO, 2012ADORNO, Theodor. Aesthetic Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011.: 68.
  • 7
    Sobre isso, ver HULLOT-KENTOR, 2010______. “What barbarism is?”. In: DURÃO, Fabio A. (Org.). Culture Industry Today. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2010.: 23-41
  • 8
    Para uma defesa desse argumento, ver DAWSON, 2005DAWSON, Kellie. “Rare and unfamiliar things: Vladimir Nabokov’s ‘monsters’”, Nabokov Studies, v. 9, International Vladimir Nabokov Society e Davidson College, 2005.: 115-131.
  • 9
    É sintomático que a frase de Nabokov tenha duas versões. Primeiro ele localizara o verdadeiro conflito das obras primas de ficção não entre personagens, mas entre o autor e o mundo. Em uma entrevista posterior (NABOKOV, 1973______. Strong opinions. Nova York: Vintage, 1973.:183), contudo, ele se corrige, dizendo que o verdadeiro conflito se dá entre autor e leitor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2015
  • Aceito
    04 Dez 2015
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