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Le Spleen de Paris: 150 anos

Paris Spleen: 150 years

Os poemas em prosa de Baudelaire, reunidos postumamente em junho de 1869BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes de Charles Baudelaire. Tome IV. Paris: Michel Lévy, 1869., publicados com o título Petits poèmes en prose (Le Spleen de Paris), no quarto volume das Obras completas (1869) do poeta, organizadas por Théodore de Banville e Charles Asselineau, teriam marcado um “começo absoluto”, segundo a apreciação de Georges Blin. São inovadores na intenção do poeta de aplicar “à descrição da vida moderna, ou sobretudo de uma vida moderna e mais abstrata” o procedimento aplicado anteriormente por Aloysius Bertrand à “pintura da vida antiga”, em seu Gaspard de la Nuit (1842BERTRAND, Aloysius. Gaspard de la Nuit. Paris: Angers, 1842. ). A esse interesse inédito pelo transitório, que caracteriza a modernidade, associa-se ainda a descoberta de uma nova forma: “uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima”, conforme se lê na carta endereçada ao editor Arsène Houssaye, que encabeça a primeira série de poemas em prosa publicada no jornal La Presse em 26 de agosto de 1862. Por um lado, é possível reconhecer também, nos poemas em prosa, linhas de continuidade em relação à tradição romântica, a manutenção de um eu biográfico, sempre em tensão com o plano da ficção. Por outro lado, Le Spleen de Paris coloca em xeque a própria noção de poesia lírica, o que nos permite enxergá-lo como ponto de partida de uma tradição antilírica ou antipoética que se consolidaria anos mais tarde. Concebidas para a publicação em jornais, muitos dos quais de grande circulação e voltados para um público tradicionalmente avesso à poesia, as “bagatelas laboriosas” de Baudelaire, para retomar uma expressão usada por ele em uma carta a Sainte-Beuve datada de 4 de maio de 1865, destacam-se também pela ambivalência em relação às “coisas modernas”, constituindo mais um desafio para a recepção leiga e especializada. Não por acaso, esta última demorou tanto tempo para se afirmar. Até o final da década 1950, os trabalhos críticos dedicados aos poemas em prosa de Baudelaire eram significativamente menos numerosos que aqueles consagrados aos poemas em verso, conforme a apreciação de Claude Pichois (1958PICHOIS, Claude. “Esquisse d’un état présent des études baudelairiennes”, L’Information littéraire. Jan-fev 1958. ). Nas últimas décadas, contudo, o livro e sua complicada história editorial têm despertado o interesse de diversos críticos, como Edward Kaplan (2015KAPLAN, Edward. Baudelaire et le Spleen de Paris. L’esthétique, l’éthique et le religieux. Traduction d’Élise Trogrlic. Paris: Classiques Garnier, 2015.), Steve Murphy (2000), Patrick Labarthe (2000LABARTHE, Patrick. Patrick Labarthe commente les “Petits poèmes en prose” de Baudelaire. Paris: Gallimard, 2000.) e Antoine Compagnon (2014COMPAGNON, Antoine. Baudelaire l’irréductible. Paris: Flammarion, 2014. ), para citar apenas algumas referências.

Este dossiê comemorativo dos 150 anos de publicação de Le Spleen de Paris que ora entregamos ao público apresenta-se como um testemunho da diversidade de questões colocadas pelos poemas em prosa e, em especial, como uma amostra privilegiada do vasto leque de abordagens críticas que a obra tem sido capaz de suscitar. O conjunto se abre com uma contribuição de Jean-Luc Steinmetz sobre a relação de Baudelaire com a tradição selenita. O crítico procura mostrar, sempre em diálogo com outros poetas lunares, de que maneira a imagem da lua se configura na obra do poeta de Le Spleen de Paris como um signo maldito, de melancolia e soturnidade. Em seguida, Marcos Siscar propõe um debate com dois importantes leitores de Baudelaire: Jean Starobinski e Walter Benjamin. Analisando a figura do bufão nos pequenos poemas em prosa e questionando a associação direta dessa figura com elementos biográficos (Starobinski) e históricos (Benjamin), o crítico propõe uma outra maneira de ler a presença do personagem na prosa baudelairiana e sua relação com o tópico do declínio do gênero poético. Henri Scepi analisa as contribuições de Baudelaire para o pensamento sobre a arte moderna, destacando dentre elas a proposição de uma “teoria do presente”, em suas implicações sobre as relações do poeta com o tempo, a história, a tradição e a memória. Andrea Schellino propõe uma análise da concepção de história de Baudelaire, em diálogo com a crítica do poeta à doutrina do progresso e com sua afirmação da universalidade do pecado original. Partindo de uma breve revisão da fortuna crítica do Spleen de Paris, Inês Oseki-Dépré revisita um dos temas centrais daquele conjunto, a metrópole moderna. Seu trabalho aborda ainda as relações dos poemas em prosa com os poemas em verso, inscrevendo-se na linguagem de Barbara Johnson, para quem a prosa baudelairiana se configura como um exercício de descontrução da poesia em verso. Eduardo Veras e Gilles Abes assinam juntos um artigo sobre as referências aos poemas em prosa nas cartas de Baudelaire. O trabalho procura evidenciar a importância da correspondência do poeta para a compreensão de sua poética, especialmente no que concerne ao projeto de composição de um livro que reuniria aquela produção. Aurélia Cervoni, destrinchando uma frase pinçada em “Anywhere out of the world”, revisita a questão da primazia do artifício e do universo mineral, em detrimento do vegetal, na poética de Baudelaire, dialogando em especial com a tradição romântica. Dois outros poemas que ocupam lugar central no conjunto em prosa merecem atenção detalhada no dossiê: “Le Gâteau” é relido por Jeanne Dorn, que procura relativizar a leitura corrente que vê no poema uma crítica de Baudelaire a Rousseau e sua teoria do bom selvagem. A pesquisadora mostra, ao contrário, que o poema segue em diversos aspectos os rastros do autor do Discours sur l’origine de l’inégalité parmi les hommes. Já Rita Loiola focaliza as ambivalências da relação entre o poeta e o público em Le Spleen de Paris, a partir de uma leitura cuidadosa de “Le Chien et le flacon”. O endereçamento ao leitor é discutido pela pesquisadora em sua relação com a agressividade e a ironia. O dossiê se encerra com a contribuição de Maria Alice Gabriel, que analisa a experiência baudelairiana da memória em diálogo com uma linhagem de escritores que passa por Marcel Proust e pelo memorialista mineiro Pedro Nava.

Os organizadores deste dossiê, apresentado em duas línguas e concebido desde o princípio sob o signo da polifonia crítica, agradecem pelas contribuições dos dois hemisférios, que ratificam a importância de Baudelaire e de seus poemas em prosa para a literatura moderna e testemunham do vigor dos estudos baudelairianos no Brasil como na França.

Aos leitores, o convite à viagem, à leitura, ao debate.

Referências Bibliográficas:

  • BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes de Charles Baudelaire Tome IV. Paris: Michel Lévy, 1869.
  • BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975, vol.1; 1976 vol.2. Coll. Bibliothèque de la Pléiade.
  • BERTRAND, Aloysius. Gaspard de la Nuit Paris: Angers, 1842.
  • COMPAGNON, Antoine. Baudelaire l’irréductible Paris: Flammarion, 2014.
  • KAPLAN, Edward. Baudelaire et le Spleen de Paris. L’esthétique, l’éthique et le religieux Traduction d’Élise Trogrlic. Paris: Classiques Garnier, 2015.
  • LABARTHE, Patrick. Patrick Labarthe commente les “Petits poèmes en prose” de Baudelaire Paris: Gallimard, 2000.
  • MURPHY, Steve. Logiques du dernier Baudelaire: lectures du Spleen de Paris Paris: Honoré Champion, 2003.
  • PICHOIS, Claude. “Esquisse d’un état présent des études baudelairiennes”, L’Information littéraire Jan-fev 1958.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Aceito
    01 Abr 2019
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