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Para além da morte: L’instant De Ma Mort, de Maurice Blanchot

Beyond death: L’instant De Ma Mort, by Maurice Blanchot

Resumo

A partir do tema da morte, base de toda a narrativa de L’instant de ma mort, do escritor francês Maurice Blanchot, este artigo busca refletir sobre algumas questões derivadas desse tema, como, por exemplo: a relação entre o eu e o outro em um relato, a estreita relação que o texto blanchotiano mantém com os textos de Franz Kafka, os modalizadores que tornam o relato do narrador hesitante, a especificidade da palavra literária e, por fim, a ideia da impossibilidade da morte proposta pelo escritor ao longo de seu texto ficcional.

Palavras-chave:
L’instant de ma mort; Maurice Blanchot; morte

Abstract

Focusing on the theme of death, the basis of the entire narrative in L’instant de ma mort (The Instant of My Death), fromby French writer Maurice Blanchot, this article seeks to reflect for reflection ion some issues derived from thise theme, such as: the relationship between the self and the other in a narrative, the close relationlinks between among Blanchot’s text and Franz Kafka’s texts, the modifiers that make the narrator’s story hesitant, the specificity of the literary word and, at lastly, the idea of the impossibility of death proposed by the writer throughout his fictional text.

Keywords:
L’instant de ma mort; Maurice Blanchot; death

Résumé

À partir du thème de la mort, base de tout le récit de L’instant de ma mort, de l’écrivain français Maurice Blanchot, cet article s’applique à réfléchir sur certains sujets qui sont issus de ce thème comme, la relation entre le moi et l’autre dans un écrit, la relation étroite que le texte blanchotien alimente avec les textes de Franz Kafka, les modalisateurs qui rendent le récit du narrateur hésitant, la spécificité du mot littéraire et, enfin, l’idée de l’impossibilité de la mort proposée par l’auteur tout au long de son texte de fiction.

Mots-clés:
L’instant de ma mort; Maurice Blanchot; mort

III Pertencente te carrego: Dorso mutante, morte. Há milênios te sei E nunca te conheço. Nós, consortes do tempo Amada morte Beijo-te o flanco Os dentes Caminho candente a tua sorte A minha. Te cavalgo. Tento. Hilda Hilst. Da poesia

No curto texto de L’instant de ma mort1 1 No original em francês, constam somente 17 páginas em caracteres grandes, sendo que de texto mesmo somente oito páginas com 19 parágrafos; o que vem antes e depois do texto é sobretudo silêncio. , de Maurice Blanchot, narra-se, em terceira pessoa, o momento de quase-morte de um homem jovem em um determinado momento de guerra, um homem jovem impedido de morrer pela própria morte, como nos lembra o narrador. Nesta leitura crítica que aqui se inicia, não pretendo fazer um contraponto entre a experiência de guerra do personagem da narrativa em questão e a experiência de guerra do escritor Maurice Blanchot, ou seja, não tomo o percurso de uma análise autobiográfica do texto blanchotiano. L’instant de ma mort é, na perspectiva que pretendo trabalhar ao longo deste artigo, elemento ficcional, logo, elemento do logro e da mentira, como escreve o próprio autor sobre a obra literária em seu livro A parte do fogo: “Infelizmente, a obra de ficção nada tem a ver com honestidade: ela trapaceia e só existe trapaceando” (BLANCHOT, 1997 BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 187).

O texto de L’instant de ma mort tem início com o relato do narrador sobre a quase-morte de um jovem castelão: “Lembro-me de um homem jovem - um homem ainda jovem - impedido de morrer pela prórpia morte - e talvez o erro da injustiça” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 9)2 2 Todas as traduções dos textos em francês citados neste artigo são de minha autoria. No original: “Je me souviens d’un jeune homme - un homme encore jeune - empêché de mourir par la mort même - et peut-être l’erreur de l’injustice”. . Logo no primeiro parágrafo, temos um “eu” explícito, que seria o narrador, aquele que aparentemente domina o discurso que está sendo apresentado na narrativa, e que se opõe ao “homem jovem”, o ser de quem se fala, o outro, em outras palavras, o objeto rememorado. Todavia, a aparente simplicidade de seu relato dissimula sérias implicações que problematizam a estrutura de sua narrativa. O outro não é apenas aquele de quem falamos, aquele que julgamos conhecer ou pensamos poder alcançar. O outro é um Mistério, como bem escreve Levinas, em Le temps et l’autre: “A relação com o outro não é uma idílica e harmoniosa relação de comunhão, nem uma simpatia pela qual nos pondo em seu lugar, o reconhecemos como semelhante a nós, mas exterior a nós; a relação com o outro é uma relação com um Mistério” (LEVINAS, 2011LEVINAS, Emmanuel. Le temps et l’autre. Paris: PUF, 2011., p. 63)3 3 No original: “La relation avec l’autre n’est pas une idyllique et harmonieuse relation de communion, ni une sympathie par laquelle nous mettant à sa place, nous lere connaissons comme semblable à nous, mais extérieur à nous; la relation avec l’autre est une relation avec un Mystère”. . O outro está ao meu lado, mas o espaço que ocupa me é interdito, não posso falar do outro sem ter a consciência de que estarei falando do outro enquanto ausência, enquanto estrutura desconhecida: “Mas isso indica precisamente que o outro não é de modo algum um outro eu mesmo, participando comigo de uma existência comum” (LEVINAS, 2011LEVINAS, Emmanuel. Le temps et l’autre. Paris: PUF, 2011., p. 63)4 4 No original: “Mais cela indique précisément que l’autre n’est en aucune façon un autre moi-même, participant avec moi à une existence commune”. . Desse modo, o outro somente pode ser narrado a partir de modalizadores que salientem desde o primeiro momento a impossibilidade de narrar o outro em toda a sua extensão desconhecida. É por isso que o narrador faz uso do modalizador talvez.

O advérbio talvez se insinua na fala do narrador como fator de impossibilidade do “Lembro-me” relatar de modo verossímil o acontecido ao “homem jovem”, o que já seria um obstáculo importante para leituras de cunho autobiográfico. Talvez é a marca da hesitação e da dúvida. Logo de início o leitor se depara com a possibilidade do relato não poder se sustentar em uma verdade real, de ser o relato um relato ficcional que, solto das amarras de uma verdade próxima, estabeleceria outras possíveis verdades, todas elas em diálogo com o que o texto provoca, em níveis estéticos e de pensamentos: “Sobre o talvez, primeiro, cuja modalidade vai ficcionalizar e fragilizar tudo o que se segue, toda a narrativa e toda a interpretação que ele põe em prática” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 67)5 5 No original: “Sur le peut-être d’abord dont la modalité va fictionnaliser et fragiliser tout cequisuit, tout lerécit et toutel’interprétation qu’il meten œuvre”. . E não podemos esquecer que, antes mesmo do modalizador talvez, temos por duas vezes a presença da morte.

A morte surge na fala do narrador ora como verbo, morrer, ora como substantivo, morte. E essas duas acepções ganharão muitas outras no desenvolvimento do relato do narrador. A morte - como podemos intuir desde o título da narrativa de Blanchot - é o espaço do acontecimento, de um instante que mesmo breve se perpetuará no corpo físico do homem jovem, aquele que estará impossibilitado de morrer pela própria morte. Ele terá em sua própria carne a marca da sentença final da morte: o seu demorar enquanto morto, porém vivo. A sentença do castelão se assemelhará à sentença imposta ao condenado de “Na Colônia Penal”, de Franz Kafka: “- Ele não conhece a própria sentença? [...] - Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne” (KAFKA, 1998KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 36). Essa punição na carne sente-a também o escritor, aquele que cede à exigência de escrever: “A exigência de escrever é tão severa, tão completa que o escritor é inevitavelmente tentado a contornar, a se desviar, e mesmo se fazer de surdo a um chamado que nada diz, mas que ele não cessa de ouvir” (LAPORTE, 1990LAPORTE, Roger. Études. Paris: P.O.L. Éditeur, 1990., p. 183)6 6 No original: “L’exigence d’écire est si sévère, si entière que l’écrivain est inévitablement tenté de biaiser, de se détourner, voire de se fairesourd à un appel qui ne dit rien, mais qu’il ne cesse d’entendre”. . E Roger Laporte assegura, em Études, que “ninguém mais do que Kafka foi dilacerado por esse conflito” (LAPORTE, 1990LAPORTE, Roger. Études. Paris: P.O.L. Éditeur, 1990., p. 183)7 7 No original: “nul plus que Kafka ne fut déchiré par ce conflit”. . O que vem a dialogar com a concepção de literatura de Maurice Blanchot, quando o escritor diz, em A parte do fogo, que: “Temos às vezes a impressão de que Kafka nos oferece uma chance de entrever o que é a literatura” (BLANCHOT, 1997 BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 19). A morte presente em Blanchot se configura como uma extensão da morte kafkiana, morte que se traduzirá na carne.

A sentença de morte imposta ao castelão de Blanchot será proferida pelos nazistas que baterão em sua porta e exigirão que ele seja executado por estar provavelmente de conluio com os aliados. No terceiro parágrafo, o narrador relata: “Em uma grande casa (o Castelo, dizia-se), bateram à porta muito timidamente. Sei que o homem jovem veio abrir aos hóspedes que sem dúvida pediam socorro” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 09)8 8 No original: “Dans une grande maison (le Château, disait-on), on frappa à la porte plutôt timidement. Je sais que le jeune homme vint ouvrir à des hôtes qui sans doute demandaient secours”. . A representatividade do Castelo é bastante forte na literatura francesa e europeia, significando muitas vezes organização, poder, verdade soberana e domínio sobre a morte do outro que não soube defender ou dispor de sua própria morte. O Castelo será um dos possíveis motivos pelo qual o castelão será logo mais libertado fisicamente, mas não libertado de sua sentença. Em relação à representatividade do Castelo em L’instant de ma mort, Derrida, em Demeure: Maurice Blanchot, comenta: “O nome ‘o Castelo’, o fato de se tratar de uma morada burguesa de certo modo enobrecida e a esse título respeitada na Europa inteira, mesmo na Europa pós-revolucionária, eis algo que vai encarnar um papel determinante nessa história” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 72)9 9 No original: “Le nom ‘leChâteau’, le fait qu’ils’agit d’une demeure bourgeoise en quelque sorte anoblie et à ce titre respectée de l’Europe entière, même de l’Europe post-révolutionnaire, voilà qui va jouer um role déterminant dans cette histoire”. . O caráter determinante do Castelo, sobre o qual comenta Derrida, se refere à sua circunvizinhança, onde pontos importantes da narrativa ocorrem. Será por sua potencial representatividade que o castelão será dado à morte e dela será salvo. Nesse terceiro parágrafo, o modalizador talvez cede espaço a outro, ao dizia-se, o que claramente reforça a incerteza do que é apresentado pelo narrador.

O Castelo de Blanchot pode ser associado a outro castelo: ao Castelo de Kafka (2006KAFKA, Franz. O Castelo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.). A presença de Kafka na obra crítica e ficcional de Blanchot é incontestável - basta lermos a narrativa Aminadab, de Blanchot (1942 BLANCHOT, Maurice . Aminadab. Paris: Gallimard, 1942.), para testemunharmos a presença fantasmagórica do escritor tcheco. O Castelo blanchotiano, ao ocupar o mesmo espaço do Castelo kafkiano, reforça o movimento de presença-ausência da palavra literária. Não se pode chegar ao Castelo de Kafka do mesmo modo como não podemos entrar definitivamente no Castelo-escrita blanchotiano, pois a palavra, em sua totalidade de ausência, não permite. Apenas nos é permitido entrevê-lo e interpretá-lo enquanto ausência física, ausência estrutural, uma vez que as palavras podem ser lidas, tocadas, embora nunca possam apresentar de fato o que representam: “A palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é” (BLANCHOT, 1997 BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 311). Se na fala cotidiana a palavra não nos dá o ser em toda a sua plenitude, se nada relaciona de fato a palavra gato ao ser gato, essa relação em desastre da palavra ganha contornos mais violentos no espaço literário: “A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala ‘se fala’. A linguagem assume então toda a sua importância; torna-se o essencial” (BLANCHOT, 2011 BLANCHOT, Maurice . O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011., p. 35). Daí a impossibilidade de delimitarmos pontos de apoio (verdades) para a compreensão da narrativa blanchotiana, pois não se pode confiar na palavra, principalmente quando literária.

No Castelo, quem batia à porta não eram hóspedes em busca de abrigo, mas os nazistas: “Desta vez, berraram: ‘Todos para fora’” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 09)10 10 No original: “Cette fois, hurlement: ‘Tous dehors’”. . Na sentença de morte proferida pelos nazistas, fato surpreendente, não há a marca exclamativa, como se o grito se desse no próprio silêncio. Algo abafa a intensidade da ordem. A morte já se revelara. Em toda a narrativa, as frases que deveriam ser exclamativas, com a marca do sinal de exclamação para sugerir intensidade, tornam-se movimentos de desabamentos surdos, porém consistentes. A morte passa a percorrer, e a desafiar, as estruturas mais sedimentadas de L’instant de ma mort. Mas o perigo se apresentará mais cruel no parágrafo seguinte: “Um tenente nazista, em um francês vergonhosamente normal, fez sair primeiro as pessoas mais velhas, depois duas mulheres jovens” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 10)11 11 No original: “Un lieutenant nazi, dans un français honteusement normal, fit sortir d’abord les personnes les plus âgées, puis deux jeunes femmes”. . A sentença de morte se dará por meio da própria língua materna do castelão, através de um “francês vergonhosamente normal”. A crueldade do nazista está em submeter o outro à morte através da sua própria língua, aquela que o auxiliou a nomear o mundo, aquela que, por assim dizer, o gerou e o abrigou do desconhecido do mundo. O castelão é traído pelo que lhe era mais leal, a sua língua. O tenente nazista continua: “‘Fora, fora’. Desta vez, ele gritava. O homem jovem não procurava no entanto fugir, mas avançava lentamente, de uma maneira quase sacerdotal. O tenente o sacudiu, mostrou-lhe os cartuchos, as balas, houvera claramente combate, o chão era um chão de guerra” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 10)12 12 No original: “‘Dehors, dehors.’ Cette fois, il hurlait. Le jeune homme ne cherchait pourtant pas à fuir, mais avançait lentement, d’une manière presque sacerdotale. Le lieutenant le secoua, lui montra des douilles, des balles, il y avait eu manifestement combat, le sol était un sol guerrier”. .

Com sua atitude “quase sacerdotal”, o castelão iniciará a sua paixão13 13 Tomo de empréstimo a quarta definição de paixão que me é dada por Derrida em Demeure: “‘Paixão’ conota ainda a passibilidade, ou seja, também a imputabilidade, a culpabilidade, a responsabilidade, um certo Schuldigsein, uma dívida originária do ser-diante-da-lei” (DERRIDA, 1998, p. 27). No original: “‘Passion’ connote encore la passibilité, c’est-à-dire aussil’imputabilité, la culpabilité, la responsabilité, un certain Schuldigsein, une dette originaire de l’être-devant-la-loi”. . Novamente não observamos nenhum sinal exclamativo: “Fora, fora”. Ao sair de seu Castelo na companhia do tenente, com os olhos baixos vendo as marcas da guerra, a sentença de morte se insinua cada vez mais profunda em sua pele. Ela o dilacera, corrompendo a sua carne. Em sua paixão, carregando uma cruz ausente, no entanto, não menos pesada, o homem jovem, que não procurou fugir, já se sabe morto, já pertence a um outro mundo, o mundo do desconhecido, e em seus bolsos vazios não há moedas para poder barganhar a travessia junto a Caronte. Ele se encontra, por assim dizer, entre dois mundos: entre os vivos e os mortos, do mesmo modo como o caçador Graco, de Franz Kafka, quando caiu de um desfiladeiro da Floresta Negra e morreu, embora ainda continuasse vivo: “- Estou aqui, mais que isso não sei, mais que isso não posso fazer. Meu barco não tem leme, navega com o vento que sopra nas regiões inferiores da morte” (KAFKA, 2002KAFKA, Franz. Narrativas do Espólio. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 72). Passivamente o castelão percorre o limbo da morte. A passividade a que faço alusão é a passividade blanchotiana. Em L’écriture du désastre, Blanchot (1980 BLANCHOT, Maurice . L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980.) comenta que a estrutura da palavra passivité guarda dois significados importantes, pois pas pode se referir tanto ao substantivo passo quanto ao advérbio de negação não. Vale ressaltar que, segundo o escritor, esses dois significados não se anulam, mas se complementam, e só podem existir em sua relação neutra. Ou seja, a passividade blanchotiana se produz nessa contingência em que o ir relaciona-se ao não ir, movimento propriamente neutro, que lança aquele que o incorpora para fora de si. Nesse movimento estão principalmente os escritores que cedem à exigência literária, aqueles que veem sua vida marcada pela passividade - eles não podem se demorar muito no terreno literário; no entanto, não desejam ficar por muito tempo no terreno de suas vidas comuns. Esse conflito é a marca da passividade.

E tanto o castelão quanto o caçador Graco enfrentam esse conflito de modo mais intenso, quando o ir e o não ir se aderem por completo criando uma terceira existência, uma existência da ordem do desconhecido, possivelmente da própria morte - dela que nada sabemos de fato. Em seu lento caminhar, em total abandono ao perigo que o cercava, como se desde o momento em que fora expulso de sua morada já pertencesse ao espaço da morte, sendo por assim dizer um morto vivo ou um morto não morto ou um vivo em instância de morte, o castelão é sacudido pelo tenente nazista, pela realidade à sua volta, que se refletia pelas balas e pelos cartuchos espalhados pelo chão. Todavia, já imerso em sua passividade, o homem jovem nada responde. A guerra já não mais lhe pertence, bem como o mundo ao seu redor. O seu corpo ainda vive (não ir), mas já morto (ir). Não compreendendo a atitude do homem jovem, o tenente em uma linguagem desarrazoada tenta fazê-lo reagir à guerra: “O tenente se sufocou em uma linguagem estranha, e colocando debaixo do nariz do homem já menos jovem (se envelhece rápido) os cartuchos, as balas, uma granada, gritou claramente: ‘Eis aonde você chegou’” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 10)14 14 No original: “Le lieutenant s’étrangla dans un langage bizarre, et mettant sous le nez de l’homme déjà moins jeune (on vieillit vite) les douilles, les balles, une grenade, cria distinctement: ‘Voilà à quoi vous êtes parvenu’”. . O tempo, o outro tempo, arrebatara o castelão. Ele não mais pertence ao espaço do tenente nazista, ao nosso tempo, mas a um outro tempo: ele, em sua paixão, envelheceu rapidamente. Ele pertence agora a outras margens, de belezas desconhecidas. Um tempo que somente pode ser vislumbrado no terreno literário. Um tempo próprio da passividade blanchotiana: “Mudança de idade. E o que vai se passar terá aberto um outro tempo. Anacronia absoluta de um tempo distinto” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 77)15 15 No original: “Changement d’âge. Et cequiva se passer aura ouvert un autre temps. Anachronie absolue d’un temps disjoint”. . Tempo da morte; do morrer.

É chegado o momento da execução; o batalhão todo se organiza em fila para abater o já-não-mais-tão-jovem-homem: “O nazista colocou em fila seus homens para atingir, segundo as regras, o alvo humano. O homem jovem diz: ‘Faça ao menos entrar minha família.’ Ou seja: a tia (94 anos), sua mãe mais jovem, sua irmã e sua cunhada, um longo e lento cortejo, silencioso, como se tudo já estivesse terminado” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 10-11)16 16 No original: “Le nazi mit en rang ses hommes pour atteindre, selon les règles, la cible humaine. Le jeune homme dit: ‘Faites au moins rentrer ma famille.’ Soit: la tante (94 ans), sa mère plus jeune, sa sœur et sa belle- sœur, un long et lent cortège, silencieux, comme si tout était déjà accompli”. . Em seu processo de execução, o tenente não menciona a sua culpa, a sua infração. Contudo, ao se deixar levar sem oferecer resistência é como se ele já soubesse a sua infração, surgindo, nesse momento da narrativa, uma insinuação bem trabalhada que se esconde no segredo de poucas palavras. A possível execução entra em acordo com a última linha do terceiro parágrafo do relato do narrador: “Sei que o homem jovem veio abrir aos hóspedes que sem dúvida pediam socorro”. As palavras hóspedes e socorro, em período de guerra, demarcam os extremos de uma batalha, a divisão territorial que está em jogo, bem como demarcam o pensamento divergente daqueles que estão em conflito, pois provavelmente o castelão estava abrigando refugiados/hóspedes que estavam sendo perseguidos pelo outro extremo da guerra, os nazistas.

Na execução, nada sugere que os demais familiares ou os hóspedes sofrerão a mesma punição do castelão. Aparentemente apenas ele se encontra no alvo do tenente nazista e espera. O batalhão em fila e ele esperam. Esperando também o comando do tenente. Não lhe resta mais nada do homem-ainda-jovem. A sua face já é por demais cadavérica - se envelhece rapidamente ao morrer. A espera de uma morte já anunciada e executada no momento em que era expulso de sua morada. A cada passo sacerdotal, o castelão se distanciava de si e ia ao encontro de sua morte, encontrando na outra margem o seu outro já morto. De seu cortejo fúnebre, apenas as mulheres fazem parte, ele restando provavelmente como o último homem de sua família. As mulheres, como as mitológicas Moiras, observam o ser-morto-vivo. De sua espera, o narrador relata: “Sei - o sei - que aquele que os Alemães já visavam, não mais esperando senão a ordem final, experimentou então um sentimento de leveza extraordinária, uma espécie de beatitude (nada bom - no entanto), - alegria soberana? O encontro da morte e da morte?” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 11)17 17 No original: “Je sais - le sais-je - que celui que visaient déjà les Allemands, n’attendant plus que l’ordre final, éprouva alors un sentiment de légèreté extraordinaire, une sorte de béatitude (rien d’heureux cependant), - allégresse souveraine? La rencontre de la mort et de la mort?”. .

A possível “alegria soberana” do castelão nos faz lembrar de Bataille, em A literatura e o mal, ao se referir ao conto “O Veredicto”, de Kafka:

A soberania só existe a esse preço, só pode se dar o direito de morrer: nunca pode agir, jamais reivindicar direitos que só a ação tem, a ação que nunca é autenticamente soberana, tendo o sentido servil inerente à busca dos resultados, a ação, sempre subordinada (BATAILLE, 2015BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. , p. 154).

A soberania não é um exercício de poder, não é a escravidão do outro, mas entrega, adesão completa a um movimento que nos dilacera, que nos impulsiona a um outro patamar da existência, no qual as leis que conhecemos não teriam mais nenhuma valia. O orgasmo nos dá uma ideia do que seria essa entrega soberana - é quando saímos de nós que somos soberanos, e não quando imputamos ao outro nosso poder. Em sua entrega sem restrições ao espaço da morte, o castelão se apresenta soberano, gozando de uma alegria que, para ser contínua, deve aquele que a experimenta pertencer para sempre ao espaço interdito aos demais homens: “Essa soberania da alegria é paga com a morte” (BATAILLE, 2015BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. , p. 153). E mais uma vez o diálogo entre Kafka e Blanchot torna-se possível, agora através da alegria soberana.

O aposto interrogativo “o sei” mais mais uma vez coloca em questão a veracidade do fato relatado, mais uma vez o narrador hesita. Em L’instant de ma mort nada pode ser creditado como verdade. O leitor é levado a acreditar que o narrador testemunha não um fato crível, mas um fato ficcional, uma criação de sua fala já desde o início também ficcional:

Sublinho o “talvez”, a modalidade de todo seu discurso; e um pouco mais alto quando ele escreve: “Sei - o sei -”, sem ponto de interrogação, “o sei” quer dizer “talvez” - e libera um estremecimento na asserção, na certeza, estremecimento que dá sua marca e sua modalidade essencial a todo o discurso do possível talvez. [...] nada é constatável: tudo somente pode ser. (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 88)18 18 No original: “Je souligne le ‘peut-être’, la modalité de tous ses discours; et un peu plus haut quand il écrit: ‘Je sais - lesais-je -”, sans point d’interrogation, ‘lesais-je’ veutdire ‘peut-être’ - et libère un tremblement dans l’assertion, dans la certitude, tremblement qui donne sa marque et sa modalité essentielle à tout ce discours du possible peut-être. [...] rien n’est constatable: tout seulement peutêtre”.

O aposto interrogativo confirma também a distância que existe entre o narrador e o outro, marcando uma relação que somente pode se efetuar através da distância dos elementos participativos. O espaço do outro nos é interdito, principalmente o espaço de sua temporalidade: “se envelhece rápido”. O outro somente é narrado em um tempo verbal diferente do nosso, aqui, o outro é rememorado em um passado presentificado diferente do presente da enunciação do narrador:

Outrem não está no mesmo plano que eu. [...] se eu lhe falo, eu o invoco, e lhe falo como àquele que não posso atingir nem reduzir a meu bel-prazer, se ele me fala, ele me fala através da infinita distância que o separa de mim, e sua palavra me anuncia precisamente este infinito [...] (BLANCHOT, 2010 BLANCHOT, Maurice . A conversa infinita 1: a palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010., p. 104-5).

Não há proximidade com o outro, salvo a proximidade que se dá através da ausência de aproximação; por isso, os performativos talvez, dizia-se, o sei frequentam a narrativa de L’instant de ma mort. E a própria palavra demarca essa distância, não só entre os pares em diálogo como entre o sujeito e o mundo: “A linguagem corrente chama um gato de gato, como se o gato vivo e o seu nome fossem idênticos, como se o fato de nomear não consistisse em reter dele somente a ausência, o que ele não é” (BLANCHOT, 1997 BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 313). Na espera de sua execução, o castelão já morto, embora vivo, experimenta um “sentimento de leveza extraordinária”, um gozo que apenas a morte pode conceder, um sentimento de estar-a-morrer-em-vida. Desse sentimento, o não-mais-tão-jovem-homem cinde a realidade da morte que conhecemos, a morte enquanto fim, enquanto término de um ciclo. A morte experimentada pelo personagem faz dele um ser anterior à morte, ou melhor, faz dele um ser impossível de morrer. Impossibilidade que se dá no terreno do literário.

De acordo com Agamben, no texto “Ideia da morte”, do livro Ideia da prosa, a morte é linguagem: “O anjo da morte, que em certas lendas se chama Samael, e do qual se conta que o próprio Moisés teve de o afrontar, é a linguagem” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução de João Barreto. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 126). No cotidiano, ao nos comunicarmos com o outro, ao falarmos das coisas do mundo para o outro ou para nós mesmos, não é o referente da palavra que será entregue por nós, mas a ausência desse referente que está simbolicamente associado à palavra posta em comunicação. A palavra no mundo não traz o ser/coisa que é proferido por nós, mas a ausência desse ser/coisa, pois a palavra gato conduzida ao nosso ouvinte exige a supressão do animal a que fazemos referência. E, nesse espaço da palavra-ausência, o outro irá preenchê-la, à nossa revelia, com um gato qualquer, um gato plural, diversificado, totalmente diferente do nosso. É no diálogo da supressão que a morte detém a linguagem humana e faz dela a sua própria linguagem: “A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime” (BLANCHOT, 1997 BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997., p. 310). Há uma sucessão de mortes no momento em que dialogamos com o outro: a morte do ser para dar lugar ao referente, a morte do referente para dar lugar à palavra e a morte da palavra para que surja a ideia ou o significado que ela traria em sua estrutura desde já esvaziada. Desse modo, a morte se torna necessária ao homem, pois o morrer da palavra é o que possibilita ao homem nomear o mundo, bem como a nomear a si mesmo como homem. Sem a possibilidade da morte não haveria o desenvolvimento da linguagem humana, logo não haveria a organicidade do mundo. Mas aquilo que se fala já é a ausência do ser.

Ao se relacionar com a ausência da palavra e nessa ausência problematizar a própria constituição da palavra, a linguagem ficcional não interage com a morte, mas com a impossibilidade da morte - a morte, então, compreendida como fim ou finalidade. Na literatura, não há a morte da palavra para que dela surja um significado prontamente viável. No texto literário, a morte cede espaço à sua impossibilidade que, por conseguinte, faz surgir uma certa produtividade ruidosa que alarma muitas pessoas: “[...] a linguagem literária - expressão de desejos ocultos, da vida obscura - é a perversão da linguagem um pouco mais até do que o erotismo é a perversão das funções sexuais. Daí o ‘terror’ que, no fim, impera nas ‘letras’” (BATAILLE, 2016 BATAILLE, Georges. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016., p. 193). Ao não se pretender objetiva, a linguagem literária perverte a já estabelecida ação perversa da palavra no uso cotidiano e exige do leitor uma entrega mais intensa, quase absoluta; exige do leitor o uso do seu pensamento fora de todo e qualquer projeto já preestabelecido pelo mundo: “Se palavras como ‘cavalo’ ou ‘manteiga’ entram num poema, fazem-no liberadas das preocupações interessadas. Por mais que estas palavras, ‘manteiga’, ‘cavalo’, sejam aplicadas a fins práticos, o uso que a poesia faz delas libera a vida humana desses fins. [...] a poesia leva do conhecido ao desconhecido”. (BATAILLE, 2016 BATAILLE, Georges. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016., p. 177)

Da impossibilidade da morte do castelão, o narrador se pergunta: “O encontro da morte e da morte?”. Como se daria o encontro de duas possibilidades da morte, já que acreditamos existir apenas uma morte, a morte de todos? Ao nascermos, já somos resquícios de uma morte primeira que nos é própria, morte imemorial: “O espermatozoide e o óvulo são, em seu estado elementar, seres descontínuos, mas se unem e, em consequência, uma continuidade se estabelece entre eles para formar um novo ser a partir da morte, da desaparição dos seres separados” (BATAILLE, 2014BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. , p. 38). E, desde então, ao nos tornarmos adultos, caminharemos em direção à morte e nos utilizaremos dela enquanto linguagem para nomearmos o mundo. Nós pertencemos à morte em sentido mais amplo - uma morte de conjunto em que todos os homens fazem parte, uma morte que se situa no porvir -, e não à vida. O viver passa a ser um complemento à morte ou à ideia que temos da morte. O encontro do qual fala o narrador é o encontro da morte individual do castelão com a morte em sentido de conjunto. Encontro da morte em estado de iminência com a morte já realizada:

Tratou-se talvez do encontro da morte que não é nunca senão uma iminência, nunca senão uma instância, nunca senão uma prorrogação, uma antecipação, o encontro da morte como antecipação com a morte mesmo, com essa morte que ela, ao contrário, já chegou segundo o inelutável: encontro entre o que vai chegar e o que chegou (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 82)19 19 No original: “Il s’est peut-être agi de la rencontre de la mort qui n’est jamais qu’une imminence, jamais qu’une instance, jamais qu’un surcis, une anticipation, la rencontre de la mort comme anticipation avec la mort même, avec cette mort quielle, au contraire, est déjà arrivée selon l’inéluctable: rencontre entre ce qui va arriver et ce qui est arrivé”. .

Contudo, o encontro das mortes é interrompido por algo subitamente inesperado:

Nesse instante, brusco retorno ao mundo, rebentou o barulho considerável de uma próxima batalha. Os camaradas da resistência queriam levar socorro àquele que eles sabiam em perigo. O tenente se afastou para se dar conta do que acontecia. Os Alemães permaneciam em ordem, prontos a demorar assim em uma imobilidade que parava o tempo (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 11-12)20 20 No original: “À cet instant, brusque retour au monde, éclata le bruit considérable d’une proche bataille. Les camarades du maquis voulaient porter secours à celui qu’ils savaient en danger. Le lieutenant s’éloigna pour se rendre compte. Les Allemands restaient en ordre, prêts à demeurer ainsi dans une immobilité qui arrêtait le temps”. .

Outra temporalidade penetra na narrativa quando um barulho irrompe e interrompe a execução do quase-morto-castelão. Ao sair do seu estágio quase-mortis, ao retornar ao mundo, o já-não-mais-tão-jovem-homem se depara com uma terceira temporalidade à sua volta: não é mais a temporalidade de antes da chegada dos nazistas, tampouco a temporalidade de sua paixão, da passividade-mortis, mas sim uma temporalidade em suspensão, “em uma imobilidade que parava o tempo”. E essa suspensão se propagará até o momento final do relato do narrador. A temporalidade em suspensão, em termos blanchotianos, tende a significar o momento em que presente, passado e futuro se fundem de uma tal forma que criam um outro tempo, um tempo neutro. Um tempo de neutralidade excessiva.

O neutro blanchotiano não é um simples operador, nem mesmo um conceito claro, mas um movimento ou performance que se dá na escrita, seja ela literária ou crítica. O neutro de Blanchot é a abstenção de ter que escolher entre um e outro elemento, de seguir uma ou outra teoria, de ter que se posicionar contra ou a favor de uma ideia ou do ter que dizer sim ou não. O neutro é a suspensão da escolha, é a própria passividade: é o ir e o não ir em um mesmo movimento que suspende todo e qualquer movimento antes projetável. O neutro é o tempo em suspensão, nem passado, nem futuro, nem presente:

Poderíamos evocar aqui todos os textos de Blanchot sobre o neutro - o nem-nem mais além da dialética, claro, mas também mais além da gramática negativa que a palavra neutro, ‘ne uter’, pareceria indicar. O neutro é a experiência ou a paixão de um pensamento que não pode se deter em nenhum dos opostos sem, no entanto, vencer a oposição - nem isso nem aquilo - nem felicidade nem infelicidade (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 121)21 21 No original: “Nous pour rions en appeler ici à tous les textes de Blanchot surleneutre - le ni-ni au-delà de la dialectique, bien entendu, mais aussi au-delà de lagrammairenégative que le mot neutre, ‘ne uter’, semblerait indiquer. Le neutre, c’estl’expérience ou lapassion d’une penséequi ne peuts’arrêter à aucun des opposés sans pour autant surmonter l’opposition - ni ceci ni cela - ni bonheur ni malheur”. .

Da neutralidade do tempo, o castelão não apenas sobreviverá à execução, como permanecerá para sempre executado: “Não se ressuscita dessa experiência da morte inelutável, mesmo se se sobrevive a ela. Apenas é possível sobreviver a ela sem sobreviver de fato” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 79-80)22 22 No original: “On ne ressuscite pas de cette expérience de la mort inéluctable, même si on y survit. On ne peutqu’ysurvivresans y survivre.” .

No parágrafo em que o tempo parava, dois verbos se destacam no relato do narrador: se afastar (s’éloigner) e demorar (demeurer). Constatamos que, ao escutar o barulho de uma próxima batalha, o tenente não corre, nem mesmo anda a passos rápidos, mas se afasta, semelhante ao passo sacerdotal do castelão, um movimento não compatível com a rapidez dos jogos de guerra: “Ninguém parte nem se salva, sobretudo o homem jovem, o último homem, mas cada um se afasta” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 95)23 23 No original: “Personne ne partni ne se sauve, surtout pas le jeune homme, le dernier homme, mais chacuns’éloigne”. . E em outra posição está o verbo demorar. Em português, demeurer pode ser traduzido por demorar, permanecer, ficar, residir; no entanto, em L’instant de ma mort, em grande parte de seu curto texto, demeurer, e sua variante demeure, significa se manter sob o abrigo da morte, no abrigo do distanciamento que é a própria morte: de/meure (morada), meure de meurt/mourir (morrer). Em Demeure, Derrida enfatiza: “E a palavra ‘morada, demorar’” volta frequentemente ao texto que permanece então intraduzível [...] ali onde a forma significante ‘demora’ joga com o que morre, com a ‘experiência inexperimentada’ de quem morre” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 100-1)24 24 No original : “Et le mot ‘demeure, demeurer’ revient souvent dans le text qui demeure alors intraduisible [...] là où la forme signifiante ‘demeure’ joue avec ce qui meurt, avec l’‘expérience inéprouvée’ de qui meurt”. .

Distante do perigo, salvo pelo exército dos russos, o castelão busca refúgio no “Bosque das urzes”. Na verdade, ele se afasta de seu Castelo, em momento algum corre, o tempo não exige dele tamanha façanha. O tempo está em suspenso, demora. No entanto, “após quanto tempo” - o narrador continua ainda hesitante - o castelão “reencontrou o sentido do real”. Qual real? Além de lidar com a sua quase-mortis, o já-velho-homem tem que lidar com as consequências da guerra: “Em todo lugar, incêndios, uma sequência de fogo contínuo, todas as fazendas queimavam. Um pouco mais tarde, ele soube que três rapazes, filhos de fazendeiros, alheios a todo combate, que nenhum erro tinham além da juventude, tinham sido abatidos”. Se antes as balas e os cartuchos não o comoviam, uma vez que já se sabia morto, agora, a partir do momento em que a realidade novamente surge, os corpos e as injustiças da guerra invadem o seu olhar, a sua perspectiva de mundo: “cavalos inchados [...] atestavam uma guerra que tinha durado”. E novamente nos é apresentado o caráter atemporal do tempo: “Na realidade, quanto tempo tinha se passado?” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 12-3)25 25 No original: “‘Bois des bruyères’ [...] après combien de temps [...] il retrouvale sens du réel. Partout, des incendies, une suite de feu continu, toutes les fermes brûlaient. Un peu plus tard, il apprit que trois jeunes gens, fils de fermiers, bien étrangers à tout combat, et qui n’avaient pour tort que leur jeunesse, avaient été abattus. [...] chevaux gonflés [...] attestaient une guerre qui avait duré. En réalité, combien de temps s’était-il écoulé?” .

A realidade surge, mas logo se adere ao tempo em suspensão, à atemporalidade neutra que circunda o castelão. Nada dura, tudo perdura, demora, a guerra demora, a morte dos rapazes demora, a quase-mortis do castelão demora, a realidade demora se afastando, escoando pelas linhas finais da narrativa. Não há realidade nos moldes como conhecemos, mas vestígios - assim como os cartuchos e as balas no chão - de uma realidade que já se encontra corrompida pelo neutro de Blanchot:

Não há um só tempo, e como não há um só tempo, como um instante não tem nenhuma medida em comum com um outro por causa da morte, por causa da morte interposta, na interrupção por causa da morte, caso se possa dizer, segundo a causa da morte, então, não há cronologia ou cronometria. Não se pode, mesmo quando se retomou o sentido do real, medir o tempo (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 107)26 26 No original: “Il n’y a pas unseultemps, et commeil n’y a pas unseultemps, comme un instant n’a aucune commune mesure avec un autre à cause de la mort, pour cause de mort interposée, dans l’interruption pour cause de décès, si on peut dire, selon la cause de la mort, eh bien, il n’y a pas de chronologie ou de chronométrie. On ne peut pas, même quand on a repris lesensduréel, mesurer le temps”. .

A bem da verdade, o castelão ainda se encontrava naquele tempo, no tempo em que demorava de frente para o batalhão, já se sabendo morto muito antes de ouvir os estouros das balas vindas em sua direção. Tempo da alegria soberana proporcionada pela morte.

No antepenúltimo parágrafo, o narrador observa:

Demorava, no entanto, no momento em que o fuzilamento não mais estava senão em espera, o sentimento de leveza que eu não saberia traduzir: liberado da vida? o infinito que se abre? Nem felicidade, nem infelicidade. Nem a ausência de temor e talvez já o passo mais além. Sei, imagino que esse sentimento inanalisável mudou o que lhe restava de existência. Como se doravante a morte fora dele não pudesse senão se chocar com a morte nele. ‘Estou vivo. Não, você está morto’ (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 15)27 27 No original: “Demeurait cependant, au moment où la fusillade n’était plus qu’en attente, le sentiment de légèreté que je ne saurais traduire: libéré de la vie? l’infini qui s’ouvre? Ni bonheur, ni malheur. Ni l’absence de crainte et peut-être déjà le pas au-delà. Je sais, j’imagine que ce sentiment inanalysable changea ce qui lui restait d’existence. Comme si la mort hors de lui ne pouvait désormais que se heurter à la mort en lui. ‘Je suis vivant. Non, tu es mort’”. .

Liberado da vida, sim, pois a partir do momento de sua expulsão da morada, do Castelo, uma outra se originou, a morada da morte. Morada que o arrebatou para uma outra instância temporal, uma instância neutra, que não caberia ser classificada nem como felicidade nem como infelicidade, mas como uma instância outra, do Outro, do Misterioso. E, nessa instância, o encontro antes interrompido das mortes poderia ser consumado. No último diálogo, “Estou vivo. Não, você está morto”, quem diz estar vivo e quem diz estar morto? O narrador se refere ao castelão, ou o castelão toma a fala e diz estar vivo, e não morto? Os dois se tornaram um só, como acontece quando o escritor cede ao espaço literário e se torna tão personagem quanto o personagem que faz surgir por meio de sua escrita, como fala Blanchot? Como reivindica a exigência literária?

Talvez sim, talvez não. Em uma narrativa que privilegia a hesitação, seria grosseiro e mesmo pretencioso afirmar qualquer coisa. Validar uma resposta, apenas uma, como verdadeira, deixando de lado as demais verdades, todas elas literárias, todas elas performáticas, seria negar o neutro de Blanchot: “Que importa. Somente demora o sentimento de leveza que é a própria morte ou, para dizê-lo mais precisamente, o instante de minha morte doravante sempre em instância” (BLANCHOT, 2002 BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002., p. 17) . A morte sempre em instância, sempre em porvir, vindo, que nada fecha ou conclui, que tudo abre, que tudo fende, dilacera. Morte que nos acompanha para além da própria morte.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa Tradução de João Barreto. Lisboa: Edições Cotovia, 1999.
  • BATAILLE, Georges. O erotismo Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
  • BATAILLE, Georges. A literatura e o mal Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
  • BATAILLE, Georges. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
  • BLANCHOT, Maurice . Aminadab Paris: Gallimard, 1942.
  • BLANCHOT, Maurice . L’écriture du désastre Paris: Gallimard, 1980.
  • BLANCHOT, Maurice . A parte do fogo Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • BLANCHOT, Maurice . L’instant de ma mort Paris: Gallimard, 2002.
  • BLANCHOT, Maurice . A conversa infinita 1: a palavra plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010.
  • BLANCHOT, Maurice . O espaço literário Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
  • DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998.
  • HILST, Hilda. Da poesia São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • KAFKA, Franz. Narrativas do Espólio Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • KAFKA, Franz. O Castelo Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • LAPORTE, Roger. Études Paris: P.O.L. Éditeur, 1990.
  • LEVINAS, Emmanuel. Le temps et l’autre Paris: PUF, 2011.
  • 1
    No original em francês, constam somente 17 páginas em caracteres grandes, sendo que de texto mesmo somente oito páginas com 19 parágrafos; o que vem antes e depois do texto é sobretudo silêncio.
  • 2
    Todas as traduções dos textos em francês citados neste artigo são de minha autoria. No original: “Je me souviens d’un jeune homme - un homme encore jeune - empêché de mourir par la mort même - et peut-être l’erreur de l’injustice”.
  • 3
    No original: “La relation avec l’autre n’est pas une idyllique et harmonieuse relation de communion, ni une sympathie par laquelle nous mettant à sa place, nous lere connaissons comme semblable à nous, mais extérieur à nous; la relation avec l’autre est une relation avec un Mystère”.
  • 4
    No original: “Mais cela indique précisément que l’autre n’est en aucune façon un autre moi-même, participant avec moi à une existence commune”.
  • 5
    No original: “Sur le peut-être d’abord dont la modalité va fictionnaliser et fragiliser tout cequisuit, tout lerécit et toutel’interprétation qu’il meten œuvre”.
  • 6
    No original: “L’exigence d’écire est si sévère, si entière que l’écrivain est inévitablement tenté de biaiser, de se détourner, voire de se fairesourd à un appel qui ne dit rien, mais qu’il ne cesse d’entendre”.
  • 7
    No original: “nul plus que Kafka ne fut déchiré par ce conflit”.
  • 8
    No original: “Dans une grande maison (le Château, disait-on), on frappa à la porte plutôt timidement. Je sais que le jeune homme vint ouvrir à des hôtes qui sans doute demandaient secours”.
  • 9
    No original: “Le nom ‘leChâteau’, le fait qu’ils’agit d’une demeure bourgeoise en quelque sorte anoblie et à ce titre respectée de l’Europe entière, même de l’Europe post-révolutionnaire, voilà qui va jouer um role déterminant dans cette histoire”.
  • 10
    No original: “Cette fois, hurlement: ‘Tous dehors’”.
  • 11
    No original: “Un lieutenant nazi, dans un français honteusement normal, fit sortir d’abord les personnes les plus âgées, puis deux jeunes femmes”.
  • 12
    No original: “‘Dehors, dehors.’ Cette fois, il hurlait. Le jeune homme ne cherchait pourtant pas à fuir, mais avançait lentement, d’une manière presque sacerdotale. Le lieutenant le secoua, lui montra des douilles, des balles, il y avait eu manifestement combat, le sol était un sol guerrier”.
  • 13
    Tomo de empréstimo a quarta definição de paixão que me é dada por Derrida em Demeure: “‘Paixão’ conota ainda a passibilidade, ou seja, também a imputabilidade, a culpabilidade, a responsabilidade, um certo Schuldigsein, uma dívida originária do ser-diante-da-lei” (DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Demeure: Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 27). No original: “‘Passion’ connote encore la passibilité, c’est-à-dire aussil’imputabilité, la culpabilité, la responsabilité, un certain Schuldigsein, une dette originaire de l’être-devant-la-loi”.
  • 14
    No original: “Le lieutenant s’étrangla dans un langage bizarre, et mettant sous le nez de l’homme déjà moins jeune (on vieillit vite) les douilles, les balles, une grenade, cria distinctement: ‘Voilà à quoi vous êtes parvenu’”.
  • 15
    No original: “Changement d’âge. Et cequiva se passer aura ouvert un autre temps. Anachronie absolue d’un temps disjoint”.
  • 16
    No original: “Le nazi mit en rang ses hommes pour atteindre, selon les règles, la cible humaine. Le jeune homme dit: ‘Faites au moins rentrer ma famille.’ Soit: la tante (94 ans), sa mère plus jeune, sa sœur et sa belle- sœur, un long et lent cortège, silencieux, comme si tout était déjà accompli”.
  • 17
    No original: “Je sais - le sais-je - que celui que visaient déjà les Allemands, n’attendant plus que l’ordre final, éprouva alors un sentiment de légèreté extraordinaire, une sorte de béatitude (rien d’heureux cependant), - allégresse souveraine? La rencontre de la mort et de la mort?”.
  • 18
    No original: “Je souligne le ‘peut-être’, la modalité de tous ses discours; et un peu plus haut quand il écrit: ‘Je sais - lesais-je -”, sans point d’interrogation, ‘lesais-je’ veutdire ‘peut-être’ - et libère un tremblement dans l’assertion, dans la certitude, tremblement qui donne sa marque et sa modalité essentielle à tout ce discours du possible peut-être. [...] rien n’est constatable: tout seulement peutêtre”.
  • 19
    No original: “Il s’est peut-être agi de la rencontre de la mort qui n’est jamais qu’une imminence, jamais qu’une instance, jamais qu’un surcis, une anticipation, la rencontre de la mort comme anticipation avec la mort même, avec cette mort quielle, au contraire, est déjà arrivée selon l’inéluctable: rencontre entre ce qui va arriver et ce qui est arrivé”.
  • 20
    No original: “À cet instant, brusque retour au monde, éclata le bruit considérable d’une proche bataille. Les camarades du maquis voulaient porter secours à celui qu’ils savaient en danger. Le lieutenant s’éloigna pour se rendre compte. Les Allemands restaient en ordre, prêts à demeurer ainsi dans une immobilité qui arrêtait le temps”.
  • 21
    No original: “Nous pour rions en appeler ici à tous les textes de Blanchot surleneutre - le ni-ni au-delà de la dialectique, bien entendu, mais aussi au-delà de lagrammairenégative que le mot neutre, ‘ne uter’, semblerait indiquer. Le neutre, c’estl’expérience ou lapassion d’une penséequi ne peuts’arrêter à aucun des opposés sans pour autant surmonter l’opposition - ni ceci ni cela - ni bonheur ni malheur”.
  • 22
    No original: “On ne ressuscite pas de cette expérience de la mort inéluctable, même si on y survit. On ne peutqu’ysurvivresans y survivre.”
  • 23
    No original: “Personne ne partni ne se sauve, surtout pas le jeune homme, le dernier homme, mais chacuns’éloigne”.
  • 24
    No original : “Et le mot ‘demeure, demeurer’ revient souvent dans le text qui demeure alors intraduisible [...] là où la forme signifiante ‘demeure’ joue avec ce qui meurt, avec l’‘expérience inéprouvée’ de qui meurt”.
  • 25
    No original: “‘Bois des bruyères’ [...] après combien de temps [...] il retrouvale sens du réel. Partout, des incendies, une suite de feu continu, toutes les fermes brûlaient. Un peu plus tard, il apprit que trois jeunes gens, fils de fermiers, bien étrangers à tout combat, et qui n’avaient pour tort que leur jeunesse, avaient été abattus. [...] chevaux gonflés [...] attestaient une guerre qui avait duré. En réalité, combien de temps s’était-il écoulé?”
  • 26
    No original: “Il n’y a pas unseultemps, et commeil n’y a pas unseultemps, comme un instant n’a aucune commune mesure avec un autre à cause de la mort, pour cause de mort interposée, dans l’interruption pour cause de décès, si on peut dire, selon la cause de la mort, eh bien, il n’y a pas de chronologie ou de chronométrie. On ne peut pas, même quand on a repris lesensduréel, mesurer le temps”.
  • 27
    No original: “Demeurait cependant, au moment où la fusillade n’était plus qu’en attente, le sentiment de légèreté que je ne saurais traduire: libéré de la vie? l’infini qui s’ouvre? Ni bonheur, ni malheur. Ni l’absence de crainte et peut-être déjà le pas au-delà. Je sais, j’imagine que ce sentiment inanalysable changea ce qui lui restait d’existence. Comme si la mort hors de lui ne pouvait désormais que se heurter à la mort en lui. ‘Je suis vivant. Non, tu es mort’”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2018
  • Aceito
    30 Jul 2018
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