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NOSSO SALVADOR NÃO SERÁ UMA MULHER: COMENTÁRIOS POLÍTICOS EM UM CANAL OFICIAL DE UM TALK SHOW NO YOUTUBE

RESUMO

Este artigo tem como objetivo estudar a representação de quatro candidatos (dois homens e duas mulheres) nas últimas eleições presidenciais brasileiras em um corpus de comentários publicados online. Os comentários foram postados como parte da recepção de uma série de entrevistas veiculadas e transmitidas pelo canal oficial do YouTube por um programa de entrevistas entre aqueles com a melhor classificação em uma televisão pública brasileira. O referencial teórico é a gramática sistêmico-funcional. O software de raspagem de dados on-line coletou dados anonimamente. Todos os comentários foram processados usando o software para gerenciamento de corpora, e os resultados quantitativos foram plotados utilizando aplicativos específicos. Os resultados mostram que todos candidatos tendem a ser julgados por suas opções políticas (direita ou esquerda) e origem (região). Todavia as mulheres também são julgadas por sua aparência física, sendo submetidas a comentários sexistas e sexualizados.

linguística sistêmico-funcional; mulheres; avaliação; transitividade; léxico

ABSTRACT

This article aims at studying the representation of four candidates (two male and two female) in the last Brazilian Presidential elections in a corpus of comments posted online. The comments were posted as part of the reception of a series of interviews aired and broadcasted through official YouTube Channel by a top-rated talk show in a Brazilian Public Television. The theoretical framework lays on Systemic-Functional Grammar. Online Data scraping software collected data anonymously. All comments were processed using software for corpora management, and quantitative results were plotted using Gephi. The results show that male candidates tend to be judged by their political options and social-political origin. They represent political saviours or possible political menaces. Likewise, women are judged for their political and ideological affiliations. However, their physical appearance is continuously evaluated as they are subjected to sexist and sexualised comments.

systemic-functional linguistics; women; appraisal; transitivity; lexis

Introdução

Este artigo analisa os comentários, feitos por usuários do YouTube, às entrevistas de quatro pré-candidatos à presidência do Brasil em 2018. As entrevistas foram promovidas e transmitidas pelo Roda Viva, um prestigiado programa brasileiro de entrevistas. A análise dos dados se concentrará na comparação dos comentários sobre os dois pré-candidatos homens mais comentados (Jair Bolsonaro e Ciro Gomes) com as falas relacionadas às duas únicas entrevistadas (Manuela D’Ávila e Marina Silva).1 1 Na época, havia outra candidata, Vera Lúcia, que não foi entrevistada. A TV Cultura justificou a ausência afirmando que Vera Lúcia não se enquadrava nos critérios de seleção de candidatos para as entrevistas. Vera Lúcia salientou que, embora tenha tentado por várias vezes entrar em contato com a produção do Roda Viva, não obteve resposta e não foi convidada para o programa. Posteriormente, Manuela D’Ávila renunciou à própria pré-candidatura e, na campanha, juntou-se à chapa de Fernando Haddad como candidata a vice-presidente. O objetivo principal é analisar se uma cultura de gênero influenciará as representações dos candidatos ( THOMPSON; THETELA, 1995THOMPSON, G.; THETELA, P. The sound of one hand clapping: the management of interaction in written discourse. Text , Berlim, v.15, n.1, p.103–127, 1995. ; DELU, 1991DELU, Z. Role relationships and their realisation in mood and modality. Text , Berlim, v.11, n.2, p.289–318, 1991. ). A Linguística Sistêmico-Funcional, doravante LSF, ( HALLIDAY, 1978HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London: University Park Press, 1978. ; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ) é a principal base teórica; a Linguística de Corpus ( BAKER, 2009BAKER, P. (ed.). Contemporary corpus Linguistics . London: Continuum, 2009. ; BAKER; MCENERY, 2015BAKER, P.; MCENERY, T. (ed.) Corpora and discourse studies: integrating discourse and corpora. Houndmills; New York: Palgrave Macmillan, 2015. ) e a Ciência das redes ( BARABÁSI, 2002BARABÁSI, A.-L. Linked: the new science of networks. Cambridge: Perseus, 2002. ; SCOTT, 2013SCOTT, J. What is social network analysis? London; New York: Bloomsbury Academic, 2013. ) são as principais abordagens metodológicas.

O Roda Viva é um tradicional programa brasileiro de entrevistas, transmitido pela TV Cultura — uma TV pública do Estado de São Paulo — desde meados da década de 1980. O programa Roda Viva tem um mediador, atuando como anfitrião, e alguns jornalistas advindos de diferentes meios de comunicação brasileiros de massa e também independentes. O convidado senta-se ao centro de um círculo e é rodeado pelos jornalistas, que permanecem em uma bancada em posição mais elevada, de modo que o convidado precisa virar sua cadeira para responder às perguntas. No geral, o modelo difere de uma entrevista convencional, sendo mais próximo de uma conversa cotidiana, pois as interrupções são frequentes. O anfitrião organiza as diversas intervenções e garante que o tempo seja distribuído igualmente.

O programa é bem conceituado entre o público e os jornalistas brasileiros, devido ao perfil elevado de seus convidados e à qualidade das entrevistas. O Roda Viva tem entrevistado regularmente os candidatos a cargos executivos antes das prévias e das eleições desde a redemocratização do Brasil. Em 2018, o Roda Viva manteve a tradição e convidou alguns dos presidenciáveis a participar do programa durante o primeiro e o segundo turnos das eleições brasileiras. O programa entrevistou dez pré-candidatos no primeiro turno (oito homens e duas mulheres) e um (homem) no segundo turno. Após transmissão ao vivo, a TV Cultura disponibiliza cada entrevista no canal do Roda Viva no YouTube. Como ocorre com qualquer vídeo do YouTube, os usuários podem comentar e discutir o resultado dessas entrevistas.

O número reduzido de mulheres nas entrevistas do Roda Viva pode ser consequência da baixa participação feminina na política brasileira. Coelho e Batista (2009)COELHO, L. M.; BAPTISTA, M. A história da inserção política da mulher no Brasil: uma trajetória do espaço privado ao público. Revista Psicologia Política , São Paulo, v.9, n.17, p.85–99, 2009. observam que essa questão parece refletir o papel que a mulher deve desempenhar em uma sociedade centrada no homem. Elas apontam que, desde a primeira Constituição Brasileira, datada de 1891, a mulher é considerada “naturalmente inferior” e incapaz de exercer cargos públicos sem comprometer sua principal função: cuidar da família. Para as autoras, a luta por mais participação política reflete uma tentativa de abandonar a intimidade de um lar familiar e, consequentemente, os papéis de mãe e dona de casa.

O Brasil ocupa hoje a 161ª posição no quesito presença feminina em cargos públicos ( ROSSI, 2018ROSSI, M. Brasil, a lanterna no ranking de participação de mulheres na política. El País , São Paulo, 31 mar. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/27/politica/1522181037_867961.html. Acesso em: 22 jan. 2019.
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). Embora as mulheres possam votar no Brasil desde 1932, e a primeira mulher eleita para a Câmara dos Deputados tenha sido Carlota de Queirós, em 1937, a participação feminina parece não ter mudado muito desde os anos 1940. A primeira mulher eleita governadora foi Roseana Sarney, em 1994, e a primeira mulher a chegar à presidência foi Dilma Rousseff ( GUERRA, 2016GUERRA, R. Na política brasileira, 15 pioneiras desde o início do século XX até a Presidência. O Globo , [ s. l. ], 3 mar. 2016. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/na-politica-brasileira-15-pioneiras-desde-inicio-do-seculo-xx-ate-presidencia-18824935. Acesso em: 23 jan. 2019.
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), que perdeu seu mandato em 2016 após sofrer um golpe de Estado. Menos de 4% dos cargos ministeriais e secretarias são comandados por mulheres ( ROSSI, 2018ROSSI, M. Brasil, a lanterna no ranking de participação de mulheres na política. El País , São Paulo, 31 mar. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/27/politica/1522181037_867961.html. Acesso em: 22 jan. 2019.
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), a presença delas nas câmaras municipais é inferior a 15%, com uma média de 7 vereadores homens para cada mulher ( SANTOS, 2017SANTOS, B. C. dos. Política em números: 5 dados sobre participação das mulheres na política brasileira. Politize !, [ s. l .], 17 mar. 2017. Disponível em: https://www.politize.com.br/participacao-das-mulheres-na-politica-brasileira/. Acesso em: 22 jan. 2019
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); 61% dos prefeitos brasileiros são homens brancos. A participação média das mulheres em cargos públicos é inferior a 20% em todos os estados brasileiros; tanto em 2014 quanto em 2018, apenas uma mulher foi eleita governadora ( FLORENTINO, 2018FLORENTINO, K. Mulheres na política: a importância de sua representatividade. Politize , [ s. l .], 18 out. 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/mulheres-na-politica/. Acesso em: 22 jan. 2019
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).

Algumas regulamentações oficiais tentam garantir uma participação igualitária entre homens e mulheres na política brasileira. Inicialmente, uma lei sancionada em 1996 impôs uma porcentagem de 20% de mulheres em todas as chapas de candidatos. Um projeto de lei de 1997 aumentou esse percentual para 30% a partir do ano 2000, estabelecendo um mínimo de 25% já para as eleições de 1998. No entanto, os partidos não dão a mesma ênfase e importância às candidatas, pois a maior parte delas compõe a chapa partidária apenas para que a cota legal seja cumprida ( PINTO, 2001PINTO, C. R. J. Paradoxos da participação política da mulher no Brasil. Revista USP , São Paulo, v.49, p.98–112, 2001. ). Tal cenário político parece contribuir para a relevância deste estudo. Nesse contexto, seria essencial entender como o público comum do YouTube representa a participação política das mulheres no Brasil. Interessa-nos observar se as mulheres que concorrem ao cargo político mais importante do país são tratadas de maneira diferente que seus oponentes do sexo masculino.

Como apontaram outros estudos ( LIMA-LOPES; PIMENTA, 2017LIMA-LOPES, R. E. de; PIMENTA, I. #Mulheresnofutebol: transitividade e avaliatividade na identificação de padrões sexistas. Humanidades & Inovação , Palmas, v.4, n.6, p.116–132, 2017. ; GABARDO; LIMA-LOPES, 2018GABARDO, M.; LIMA-LOPES, R. E. de. Ni una menos: ciência das redes e análise de um coletivo feminista. Humanidades & Inovação , Palmas, v.5, n.3, p.44–58, 2018. ; LIMA-LOPES; GABARDO, 2019LIMA-LOPES, R. E. de; GABARDO, M. Ni una menos: A luta pelos direitos das mulheres na Argentina e suas representações no Facebook. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.19, n.4, p.801–824, 2019. ), uma opinião conservadora sobre o papel da mulher na sociedade pode ser expressa por meio de comunidades on-line, especialmente nas mídias sociais. É possível observar que o anonimato é um componente crítico na expressão do sexismo on-line ( FOX; CRUZ; LEE, 2015FOX, J.; CRUZ, C.; LEE, J. Y. Perpetuating online sexism offline: anonymity, interactivity, and the effects of sexist hashtags on social media. Computers in Human Behavior , Oxford, v.52, p.436–442, nov. 2015. ), fato que pode incluir o YouTube como local para expressar comentários rudes ( HALPERN; GIBBS, 2013HALPERN, D.; GIBBS, J. Social media as a catalyst for online deliberation? exploring the affordances of Facebook and YouTube for political expression. Computers in Human Behavior , Oxford, v.29, n.3, p.1159–1168, 1 maio 2013. ; MOOR; HEUVELMAN; VERLEUR, 2010MOOR, P. J.; HEUVELMAN, A.; VERLEUR, R. Flaming on YouTube. Computers in Human Behavior, Online Interactivity: Role of Technology in Behavior Change, Oxford, v.26, n.6, p.1536–1546, 1 nov. 2010. ). O objetivo deste artigo é contribuir para o crescimento das pesquisas sobre o YouTube ( ANDROUTSOPOULOS; TEREICK, 2015ANDROUTSOPOULOS, J.; TEREICK, J. YouTube. In: GEORGAKOPOULOU, A.; SPILIOTI, T. (ed.) The Routledge handbook of language and digital communication . Oxon: Routledge, 2015. p.354–370. ), pois discute opiniões discursivas e políticas acerca dos comentários dos usuários.

A principal abordagem teórica é a Linguística Sistêmico-Funcional (doravante LSF) ( HALLIDAY, 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ). Esta perspectiva possibilita revelar a relação entre as escolhas léxico-gramaticais e o significado, pois traz para este estudo um quadro que relaciona estratos semânticos e estruturais em um eixo paradigmático ( THOMPSON, 2004THOMPSON, G. Introducing functional grammar . London: Arnold: Oxford University Press, 2004. ). A Ciência das redes ( BARABÁSI, 2002BARABÁSI, A.-L. Linked: the new science of networks. Cambridge: Perseus, 2002. ; SCOTT, 2013SCOTT, J. What is social network analysis? London; New York: Bloomsbury Academic, 2013. ) e a Linguística de corpus ( STUBBS, 1996STUBBS, M. British traditions in text analysis: firth, halliday and sinclair. STUBBS, M. In: Text and corpus analysis . London: Blackwell, 1996. p.23–50. ) têm um papel essencial, pois permitiram o processamento e a representação visual de grandes quantidades de dados linguísticos.

A investigação de sentimentos e emoções se tornou um tema em ascensão em diversos estudos de corpus ( TABOADA, 2016TABOADA, M. Sentiment analysis: an overview from linguistics. Annual Review of Linguistics, Palo Alto, v.2, n.1, p.325-347, 2016. ). Entretanto, a aplicação destas metodologias na avaliação demonstrou a necessidade de desenvolvimento de modelos específicos ( TABOADA; GRIEVE, 2004TABOADA, M.; GRIEVE, J. Analysing appraisal automatically. In: AAAI SPRING SYMPOSIUM ON EXPLORING ATTITUDE AND AFFECT IN TEXT: THEORIES AND APPLICATIONS, 2004, Califórnia. Proceedings [...]. Califórnia: Association for the Advancement of Artificial Intelligence, 2004. p.158-161. ). Isso ocorre porque o modelo de avaliação mescla escolhas binárias, como atitude ou engajamento, afeto ou julgamento, e escolhas contínuas, como força e foco. Por outro lado, o modelo LSF depende em partes do contexto, o que gera a necessidade de identificação de unidades maiores, como substantivos inteiros ou frases verbais ( TABOADA; GRIEVE, 2004TABOADA, M.; GRIEVE, J. Analysing appraisal automatically. In: AAAI SPRING SYMPOSIUM ON EXPLORING ATTITUDE AND AFFECT IN TEXT: THEORIES AND APPLICATIONS, 2004, Califórnia. Proceedings [...]. Califórnia: Association for the Advancement of Artificial Intelligence, 2004. p.158-161. ). Lima-Lopes (2020)LIMA-LOPES, R. E. de. Immigration and the context of Brexit: collocate network and multidimensional frameworks applied to appraisal in SFL . Muitas Vozes , Ponta Grossa, v.9, n.1, p.410-441, 2020. desenvolveu uma abordagem quali-quantitativa para analisar como a mídia conservadora britânica caracterizava os imigrantes nos dias que antecederam o Brexit. Ele concorda com Taboada e Grieve (2004)TABOADA, M.; GRIEVE, J. Analysing appraisal automatically. In: AAAI SPRING SYMPOSIUM ON EXPLORING ATTITUDE AND AFFECT IN TEXT: THEORIES AND APPLICATIONS, 2004, Califórnia. Proceedings [...]. Califórnia: Association for the Advancement of Artificial Intelligence, 2004. p.158-161. , sendo que seus resultados mostram que diferentes jornais tendem a ter seu próprio perfil de avaliação, cada jornal apresenta estratégias de avaliação diversas, associando-as de forma única.

No entanto, esses estudos têm a língua inglesa como principal tema de investigação. Um modelo para a análise automática de avaliação em português brasileiro ainda está em fase de desenvolvimento. Sendo assim, este artigo se propõe a trazer uma abordagem qualitativa-quantitativa inicial visando mapear recursos sobre avaliações com provável viés de gênero, a fim de fornecer possíveis parâmetros de classificação lexical para estudos futuros.

A próxima seção discute o embasamento teórico desta pesquisa e, na sequência, são apresentados os procedimentos metodológicos de coleta e análise de dados. A seção 4 é dedicada aos resultados e à discussão.

Fundamentação teórica

A Linguística Sistêmico-Funcional ( HALLIDAY, 1978HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London: University Park Press, 1978. ; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ) é uma abordagem conhecida por conceber a linguagem como um sistema semiótico ( MARTIN, 2016MARTIN, J. R. Meaning matters: a short history of systemic functional linguistics. Word , Philadelphia, v.62, n.1, p.35–58, 2016. ), no qual a relação entre conteúdo, forma e expressão é representada como uma hierarquia. Nela, a gramática é vista como um conjunto de escolhas possíveis profundamente influenciadas pelo contexto, já que o significado tem motivação funcional ( THOMPSON, 2004THOMPSON, G. Introducing functional grammar . London: Arnold: Oxford University Press, 2004. ).

A LSF é uma abordagem que entende a gramática não apenas como um conjunto de estruturas possíveis, mas como um meio de organizar as escolhas linguísticas apropriadas em qualquer interação. De acordo com Halliday (1978)HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London: University Park Press, 1978. , essas escolhas repercutem em nossas experiências individuais, bem como em nossas relações sociais. Quando um falante usa um fraseado, ele/ela está realizando um ato social, influenciado tanto pelo Contexto de Cultura quanto pelo Contexto de Situação. Consequentemente, qualquer escolha de linguagem representa nossa relação com os outros, nossa representação do mundo, bem como a forma como estruturamos e organizamos nossas mensagens ( THOMPSON, 1996THOMPSON, G. Introducing functional grammar . London: Arnold, 1996. ). A Sociossemiótica hallidayana combina significado e estrutura ao explicar como fazemos escolhas socialmente significativas. A gramática é um sistema paradigmático que permite ao falante criar combinatórias de signos com um sentido específico em uma determinada situação comunicacional, sendo que a organização dos constituintes estruturais é resultado de uma demanda pelo contexto e pelas funções que desempenham ( HALLIDAY; HASAN, 1991HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1991. ; KRESS, 2010KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010. ). Em outras palavras, à medida que optamos por dizer algo de uma maneira específica, também “não estamos escolhendo” outros fraseados possíveis, que nos trariam um conjunto diferente de significados ( THOMPSON, 1996THOMPSON, G. Introducing functional grammar . London: Arnold, 1996. ).

Sendo assim, os textos podem variar quanto ao seu contexto de produção e seu objetivo social. O gênero (ou Contexto de Cultura) seria o responsável pelas escolhas referentes aos processos sociais mais gerais ( VIAN JUNIOR; LIMA-LOPES, 2005VIAN JUNIOR, O.; LIMA-LOPES, R. E. de. A perspectiva teleológica de Martin para a análise dos gêneros textuais. In: MEURER, J.; MOTTA-ROTH, D.; BONINI, A. (ed.) Gêneros: teorias, métodos, debates. Campinas: Parábola, 2005. p.29-45. ). Por outro lado, o Registro funcionaria como meio de representação dos diversos gêneros, materializando nossas instituições culturais globais nas especificidades de um determinado contexto de comunicação ( EGGINS; MARTIN, 1997EGGINS, S.; MARTIN, J. R. Genres and registers of discourse. In: VAN DIJK, T. A. (ed.). Discourse as structure and process: discourse studies: a multidisciplinary introduction. London: SAGE Publications, 1997. p.230–256. ; MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. New York: Palgrave Macmillan, 2005. ). Em outras palavras, o Registro seria responsável por nossas escolhas linguísticas representadas pelo léxico-gramatical durante o momento real de comunicação. Em decorrência disso, o Registro imprime as características particulares de cada situação em nossas convenções linguísticas. No caso deste estudo, espera-se que alguns padrões possam surgir do corpus, representando os candidatos de acordo com a visão social e política dos usuários do YouTube que postaram comentários em cada entrevista.

Halliday (1978HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London: University Park Press, 1978. , 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ) apresenta um modelo de análise tridimensional ( IEDEMA, 2003IEDEMA, R. Multimodality, resemiotization: extending the analysis of discourse as multi-semiotic practice. Visual communication , London, v.2, n.1, p.29–57, 2003. ). Assim, quando essas escolhas se concretizam em textos, são representadas em três metafunções de linguagem. Elas não são as únicas que realizamos em nossa comunicação diária, mas são essenciais para as nossas demandas sociais, organizacionais e representacionais ( HALLIDAY, 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ). Nossas escolhas também são condicionadas por essas metafunções, pois dão origem à natureza semântico-funcional social e ideológica do contexto.

Neste artigo, concentramo-nos na representação de padrões de linguagem no Sistema de Transitividade ( HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Construing experience through meaning: a language-based approach to cognition. London; New York: Continuum, 2004. , 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ) e sua relação com o sistema de Avaliação ( HUNSTON; THOMPSON, 2000HUNSTON, S.; THOMPSON, G. Evaluation: an introduction. In: THOMPSON, G.; HUNSTON, S. (ed.). Evaluation in text: authorial stance and the construction of discourse. Oxford: Oxford University Press, 2000. p.1–25. ; MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. New York: Palgrave Macmillan, 2005. ).

Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ressalta que nossa representação mais forte da experiência está no reconhecimento dos eventos de nossa vida, como ser, vir a ser, acontecer, sentir e muitos outros. O sistema dentro da gramática que nos possibilitaria realizá-la é a transitividade, que seria responsável por auxiliar o falante/escritor a atribuir significado às suas experiências e a criar um mundo representacional.

Neste sistema, responsável por traduzir nossa representação em escolhas linguísticas, uma proposição teria três componentes essenciais: 1) o processo, 2) seus participantes e 3) os elementos circunstanciais. O componente verbal sempre representa o processo; os participantes são geralmente retratados por substantivos, que realizam ou são afetados pelo processo; e os elementos circunstanciais são responsáveis por codificar o pano de fundo diante do qual ocorre um processo. A transitividade é, portanto, responsável por transpor nossas experiências internas e externas para um conjunto real de tipos de processos, participantes e circunstâncias ( HALLIDAY, 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. , 2004HALLIDAY, M. A. K An introduction to functional grammar . London: Arnold, 2004. ; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ).

Os processos seriam mais bem retratados como um continuum , uma matriz de cores não nítidas na qual os significados se misturam. A característica semântico-funcional da linguagem torna quase impossível não encontrar exemplos “intermediários” e ignorar qualquer definição categórica ( HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ). É importante lembrar que o modelo de Halliday foi desenvolvido com base no inglês e que as fronteiras semânticas são ainda mais borradas no português brasileiro (PB). Como salienta Lima-Lopes (2017a)LIMA-LOPES, R. E. de. Reflexões sobre as possíveis contribuições da linguística do corpus para a gramática sistêmico funcional: transitividade e classificação de processos. Caletroscópio , Ouro Preto, v.5, n.9, p.9–25, 2017a. , é impossível discutir a classificação dos processos em português sem traçar o uso de colocações, pois elas influenciam profundamente no significado e na função em muitos casos ambíguos. Como os resultados mostrarão, os processos comportamentais tendem a ter uma configuração bastante diferente no PB.

Há seis tipos de processo de acordo com a LSF. Os processos materiais são responsáveis por representar nossa experiência no mundo exterior e físico e por exemplificar ações/acontecimentos concretos e reais. Os processos mentais representam significados e experiências que vão justamente na direção oposta, são vivências em nosso mundo interior, instanciadas em nossa consciência, como ações de sentir, se emocionar e pensar, e são representadas como escolhas linguísticas. Os processos relacionais são conhecidos por representar significados relacionados à identificação, atribuição e propriedade. Os processos comportamentais estão no limiar entre os processos materiais e os mentais e realizam ações que têm tanto um componente interno quanto um resultado real. Os processos verbais estão entre os mentais e os relacionais e podem ser descritos como responsáveis pelas relações simbólicas que ocorrem em nossa consciência, mas se representam por meio da linguagem verbal. Por fim, os processos existenciais estão entre os materiais e os relacionais. Referem-se a qualquer fenômeno reconhecido como existente, manifestação material de um elemento simbólico.

Segundo Halliday (2004)HALLIDAY, M. A. K An introduction to functional grammar . London: Arnold, 2004. , cada proposição deve ter ao menos um participante. Os participantes estão próximos aos processos; eles são responsáveis pela ocorrência ou são afetados por ela de alguma forma. A natureza semântica dos processos faz com que cada participante desempenhe funções específicas. Portanto, os participantes devem variar de acordo com o tipo de processo escolhido em cada proposição.

A tabela 1 sintetiza os participantes de acordo com suas funções, a partir da teoria de base da LSF ( HALLIDAY, 2004HALLIDAY, M. A. K An introduction to functional grammar . London: Arnold, 2004. ) e de uma taxonomia introduzida por Lima-Lopes (2008LIMA-LOPES, R. E. de. Processos relacionais em cartas publicitárias. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.8, n.1, p.35–69, 2008. , 2014LIMA-LOPES, R. E. de. Transitivity in Brazilian Greenpeace’s electronic bulletins. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.14, n.2, p.413–439, 2014. ) ao estudar cartas de vendas diretas e boletins do Greenpeace em PB. Os participantes na função ativa são os que identificaríamos como responsáveis pelo processo em termos interpessoais ( HALLIDAY, 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ), seriam a primeira resposta à pergunta: Quem é responsável por (…) ? Os participantes modificados, por outro lado, são aqueles a quem/a que o quantum de mudança representado por um processo se dirige; eles seriam a primeira resposta a uma pergunta como Quem foi afetado por (...)? Os beneficiários são aqueles participantes que se favorecem direta ou indiretamente da ação representada por um processo. De acordo com Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. , não se deve supor que todos os beneficiários devem carregar uma prosódia semântica positiva, apesar do nome da categoria. No PB, o beneficiário estaria produzindo o “objeto indireto”, em termos da gramática normativa tradicional do PB ( ROCHA LIMA, 2010ROCHA LIMA, C. H. DA. Gramática normativa da língua portuguesa. Edição revista segundo o novo acordo ortográfico ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. ). Por fim, o escopo são os participantes que representam o intuito de um verbo; às vezes, sendo responsáveis por nossa própria projeção de significado.

Tabela 1
– Participantes e processos

Lima-Lopes (2008LIMA-LOPES, R. E. de. Processos relacionais em cartas publicitárias. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.8, n.1, p.35–69, 2008. , 2014LIMA-LOPES, R. E. de. Transitivity in Brazilian Greenpeace’s electronic bulletins. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.14, n.2, p.413–439, 2014. ) salienta que os processos relacionais têm uma característica transitiva importante no PB, principalmente porque outros processos podem representá-los além de “ser” e “estar”; alguns exemplos são: “ficar”, “tratar” e “oferecer”. O primeiro poderia representar tanto o material (“Fique aqui”) quanto o atributivo relacional (“Fiquei calmo”). O segundo representaria o verbal (“Tratamos do problema”), o material (“Tratamos de você”) ou o relacional (“Trata-se de um suplemento”). Este último pode representar o verbal (“Nós oferecemos um café”) ou o possessivo relacional (“As garantias que nosso seguro oferece”). Quando tais processos representam significados relacionais e mantêm sua estrutura gramatical, associando atributos, valores e posse aos participantes. A ideia de que um processo pode ter seu significado determinado apenas no contexto é particularmente verdadeira no PB, língua na qual os padrões semânticos e colocacionais são, às vezes, uma ferramenta útil para entender o significado de um processo ( LIMA-LOPES, 2017aLIMA-LOPES, R. E. de. Reflexões sobre as possíveis contribuições da linguística do corpus para a gramática sistêmico funcional: transitividade e classificação de processos. Caletroscópio , Ouro Preto, v.5, n.9, p.9–25, 2017a. ).

A Tabela 2 resume os elementos circunstanciais. Os elementos circunstanciais tendem a ocorrer livremente com qualquer tipo de processo e, portanto, seriam mapeados de maneira agregada. No entanto, eles não têm o potencial de representar os sujeitos nem de serem identificados como responsáveis por uma oração ( HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ). Isso porque sua função primária seria estabelecer o pano de fundo no qual a interação ocorre.

Tabela 2
– Tipos de elementos circunstanciais

Isso é particularmente verdadeiro se tomarmos as circunstâncias de lugar e tempo como exemplo. Entretanto, torna-se problemático quando lançamos um olhar mais atento a circunstâncias de benefício ou acompanhamento. Em alguns casos, as circunstâncias podem ser uma forma de driblar a estrutura de uma linguagem para possibilitar que novos participantes ou processos sejam introduzidos na oração. Um fenômeno que Halliday denomina “participantes indiretos” ( HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. ).

O segundo sistema da LSF que contribui para esta pesquisa é a avaliatividade, um sistema que visa descrever a nossa postura perante outras pessoas, ideias e representações. Nessa perspectiva, a linguagem seria responsável por espelhar nossos sistemas de valores, por meio de recursos linguísticos socialmente motivados e relacionados ao seu contexto de uso ( THOMPSON; ALBA-JUEZ, 2014THOMPSON, G.; ALBA-JUEZ, L. (ed.) Evaluation in context . Amsterdam: John Benjamins, 2014. ).

Há três subsistemas responsáveis por expressar os significados da avaliação. O sistema de atitude representa nossos sentimentos tal como eles são construídos no texto. Há aqui três subsistemas: (1) Afeto, responsável pelos registros de emoções positivas e negativas; (2) Julgamento, voltado para as atitudes em relação aos comportamentos que podemos admirar, elogiar, criticar ou condenar; e (3) Apreciação, relacionado às nossas posições estéticas.

O engajamento é um conjunto de recursos utilizado para estabelecer o posicionamento frente aos valores presentes no texto, bem como às pessoas a quem se dirige. Nesse sentido, um texto seria o resultado da interação com vários outros textos e vozes, sendo que o engajamento fornece uma estrutura para explicar sistematicamente a forma como nossas posições são representadas linguisticamente ( MARTIN; WHITE, 2005MARTIN, J. R.; WHITE, P. R. R. The language of evaluation: appraisal in English. New York: Palgrave Macmillan, 2005. ). Sendo, portanto, um recurso à disposição do escritor/locutor que o permite colocar-se interativamente no texto em relação aos seus objetivos retóricos. Desse modo, um texto seria o resultado da interação com diversos textos e vozes, uma tentativa de descrever a postura do autor (sua posição em relação a algo) quando o texto é produzido.

Por fim, a graduação pode ser um meio de intensificação ou mitigação dos significados representados em outros sistemas. Este sistema tem dois mecanismos: força (quantidade ou intensidade da avaliação) e foco (prototipagem e precisão). Conforme observam Lima-Lopes e Vian Jr. (2007), o foco pode ser definido em termos de categorias mais específicas, taxonomias operacionais que especificam a participação; a força, por outro lado, deve abranger significados que podem ser quantificados ou intensificados.

Neste artigo, o foco é o sistema de atitude. Essa escolha decorre da natureza dos comentários, que parecem julgar ativamente os candidatos, não poupando críticas às suas vidas política e pessoal, ou elogiando-os por seu plano de governo ou coragem para enfrentar os diversos problemas do Brasil. Há alguns estudos em português brasileiro que discutem como os comentários dos usuários em diferentes mídias sociais podem ser um recurso essencial para a representação social. Lima-Lopes e Pimenta (2017)LIMA-LOPES, R. E. de; PIMENTA, I. #Mulheresnofutebol: transitividade e avaliatividade na identificação de padrões sexistas. Humanidades & Inovação , Palmas, v.4, n.6, p.116–132, 2017. abordam o sexismo no futebol brasileiro e observam que as mulheres, se comparadas aos homens, sempre têm seus conhecimentos sobre esportes postos à prova. As mulheres são constantemente questionadas e têm que comprovar que podem entender as regras e conhecer os jogos e os resultados históricos. Os homens, por sua vez, parecem ter em seu gênero um reconhecimento natural de sua expertise futebolística. Lima-Lopes (2017b)LIMA-LOPES, R. E. de. Análise de registro e ciência das redes estudando um grupo de whatsapp dedicado à produção de cerveja artesanal. Hipertextus: Revista Digital, Recife, v.16, p.134–161, 2017b. recorre à análise de registro e à Ciência das Redes para entender os papéis sociais e informativos em um grupo do WhatsApp dedicado à produção de cerveja artesanal. Os resultados obtidos mostram que a posição que cada pessoa ocupa na rede reflete o papel assumido na comunidade. Em outras palavras, há uma relação entre o grau de centralidade de um participante e o tipo de informação que ele (somente homens eram ativos no grupo) fornece e exige.

Gabardo e Lima-Lopes (2018)GABARDO, M.; LIMA-LOPES, R. E. de. Ni una menos: ciência das redes e análise de um coletivo feminista. Humanidades & Inovação , Palmas, v.5, n.3, p.44–58, 2018. discorrem sobre como um coletivo argentino pró-direitos das mulheres conseguiu mobilizar pessoas em quatro países diferentes na América Latina (incluindo o Brasil) e em um na Europa (Espanha) em alguns comícios políticos. O coletivo conseguiu não atrelar uma pauta sobre os direitos das mulheres a movimentos feministas e gerou uma pressão política para a aprovação de leis contra o feminicídio e pró-aborto. Por fim, Lima-Lopes (2018)LIMA-LOPES, R. E. de. O conservadorismo como ideologia: contribuições da ciência das redes para a linguística sistêmico funcional. Letras , Santa Maria, v.28, n.56, p.43–69, 2018. refletiu sobre a replicação da linguagem conservadora de ódio e de notícias não verificadas no Facebook . O autor aplica alguns conceitos de rede ao estudo de colocações, discutindo como a linguagem de ódio se organiza em termos de Campo e Relações.

Neste artigo, trago uma abordagem semelhante, observando quais verbos, adjetivos e substantivos aparecem relacionados a cada candidato com maior frequência; pretendendo, assim, entender como os usuários, valendo-se dos comentários, retratam cada candidato.

Metodologia

Os dados desta pesquisa consistem em comentários sobre as entrevistas de quatro candidatos à presidência do Brasil: dois homens e duas mulheres. Para garantir que os comentários não tivessem sido feitos em vídeos desinformativos/falsos, todos os dados foram coletados do canal oficial do Roda Viva no YouTube .

Os comentários foram coletados sete dias após a realização da entrevista e estão em português brasileiro (PB). A ferramenta utilizada para a coleta de dados foi o YouTube Data Tools 2 2 Disponível em: https://tools.digitalmethods.net/netvizz/youtube/ , que possibilitou a obtenção de todos os comentários dos vídeos. Os vídeos permanecem disponíveis no canal do Roda Viva no YouTube 3 3 Disponível em: https://www.youtube.com/user/rodaviva , e a coleta de dados ainda é possível, porém, a natureza dinâmica das mídias sociais pode ter causado algumas mudanças em termos de conteúdo.

O YouTube Data Tools acessa a API (interface de programação de aplicativos) do YouTube e copia os comentários e metadados do vídeo. Para fazer o download dos comentários, é necessário indicar na ferramenta o ID do vídeo, geralmente representado pelos últimos dígitos do endereço do vídeo. A ferramenta gera arquivos em tabelas UFT-8 separadas em *.tab, todas abertas facilmente em planilhas de dados. Como cada comentário aparece em uma linha diferente, é possível analisá-los em separado (independentemente da extensão). É possível saber se o comentário é original ou uma resposta, a data e o horário em que foi postado, quantas vezes o vídeo ou um comentário em específico foi “(des)curtido” ou “classificado como favorito” e quem foi o autor de cada comentário.

Os dados foram processados em uma ferramenta on-line de gerenciamento de corpus chamada Sketch Engine 4 4 Disponível em https://www.sketchengine.eu/ . A Sketch Engine disponibiliza um conjunto de ferramentas para análise de corpus, como colocações, comparação entre colocações lexicais, concordância, marcação automática das classes gramaticais, extração de listas de palavras e palavras-chave, geração de gráficos de ocorrência, dentre outras. Para este estudo, foram utilizadas as funções de colocação e concordância.

As colocações mais relevantes foram calculadas segundo a pontuação de informação mútua ( BREZINA, 2018BREZINA, V. Statistics in corpus linguistics: a practical guide. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2018. ), desconsiderando preposições, artigos e conectivos. O Sketch Engine identifica o corpus com informações de classe gramatical e função sintática do nó em relação a uma colocação, possibilitando observar qual relação de transitividade os candidatos tinham ao fazer colocações sobre um processo. O número de colocações analisadas para cada candidato é o resultado de pontuações de significância de informação mútua (p ≥ 0,05) para cada conjunto de comentários: 51 para Ciro, 33 para Manuela, 46 para Bolsonaro e 42 para Marina.

Houve poucas intervenções no corpus, sendo a maioria para identificar os candidatos em comentários nos quais foram representados por ele/ela ou por um apelido (Bolsonaro, por exemplo, é comumente chamado de “capitão”). A menção foi escrita entre colchetes, e a referência original não foi alterada. A lista final de colocações foi classificada de acordo com os quadros de avaliação e transitividade.

Posteriormente, as colocações foram processadas usando o Gephi ( BASTIAN; HEYMANN; JACOMY, 2009BASTIAN, M.; HEYMANN, S.; JACOMY, M. Gephi: an open source software for exploring and manipulating networks. In: INTERNATIONAL AAAI CONFERENCE ON WEBLOGS AND SOCIAL MEDIA, 3., 2009, Califórnia. Proceedings [...]. California: Association for the Advancement of Artificial Intelligence, 2009. p.361–362. ), um software de análise de redes capaz de plotar todo tipo de rede. O Gephi também faz diversos cálculos estatísticos, como centralidade e grau de entrada/saída ( SCOTT, 2013SCOTT, J. What is social network analysis? London; New York: Bloomsbury Academic, 2013. ). Neste estudo, o tamanho de cada nó representa a relevância da conexão do candidato a um determinado item lexical. Os arquivos do Gephi precisam seguir uma sintaxe específica. Devem ser gravados dois arquivos: o primeiro deles detalha as relações de rede e o segundo aponta o nome e o rótulo de cada nó. Os arquivos podem ser copiados para uma planilha comum e salvos como *.csv. Há exemplos dessas sintaxes nas tabelas 3 e 4 .

Tabela 3
– Arquivos gerados no Gephi (Bordas)

Tabela 4
– Arquivos gerados no Gephi (Nós)

Foram estudadas as concordâncias das palavras apresentadas em cada gráfico, e essas concordâncias forneceram subsídios para análises qualitativas. Outros pesquisadores basearam suas investigações nesta metodologia, como Lima-Lopes e Gabardo (2019)LIMA-LOPES, R. E. de; GABARDO, M. Ni una menos: A luta pelos direitos das mulheres na Argentina e suas representações no Facebook. Revista Brasileira de Linguística Aplicada , Belo Horizonte, v.19, n.4, p.801–824, 2019. , que examinaram como as mulheres eram representadas em discursos pró/antiaborto, Lima-Lopes (2018)LIMA-LOPES, R. E. de. O conservadorismo como ideologia: contribuições da ciência das redes para a linguística sistêmico funcional. Letras , Santa Maria, v.28, n.56, p.43–69, 2018. , que estudou as reações conservadoras, expressas no Facebook, a uma exposição de arte, e Lima-Lopes (2020)LIMA-LOPES, R. E. de. Immigration and the context of Brexit: collocate network and multidimensional frameworks applied to appraisal in SFL . Muitas Vozes , Ponta Grossa, v.9, n.1, p.410-441, 2020. , que observou como as escolhas lexicais foram feitas num corpus diacrônico considerando notícias sobre futebol.

Neste artigo, os exemplos estão em sua versão original em PB, sem correção de erros gramaticais ou de digitação.

A tabela 5 mostra o tamanho do corpus estudado. É importante observar que os usuários do YouTube geram o número de palavras espontaneamente; não há controle ou seleção quanto ao tamanho do comentário. O corpus tem mais de dois milhões de palavras, contando apenas os comentários originais, traz todos os comentários presentes em cada vídeo no momento da coleta dos dados e representa o conjunto completo de dados disponíveis.

Tabela 5
– Tamanho do corpus

Os números na tabela 5 mostram uma soma muito próxima de tipos e formas. Esse cômputo parece ser o resultado da natureza dos textos que esta investigação analisou. Outros estudos ( LIMA-LOPES, 2018LIMA-LOPES, R. E. de. O conservadorismo como ideologia: contribuições da ciência das redes para a linguística sistêmico funcional. Letras , Santa Maria, v.28, n.56, p.43–69, 2018. ) mostram que há uma forte tendência de repetição de grandes partes de textos em uma interação nas mídias sociais, resultado de três práticas comuns na linguagem de ódio na internet. Primeiramente, a repetição pode ser uma expressão de pertencimento a um determinado grupo ideológico/social, pois os usuários reconhecem pessoas que compartilham visões ideológicas na internet por meio de escolhas lexicais comuns ao discutir um tópico específico. Sendo assim, os usuários tendem a copiar/colar partes de textos e apenas acrescentar algumas palavras para expressar um ponto de vista particular. Em segundo lugar, embora o YouTube não limite o número de caracteres que alguém pode digitar, como fazem algumas plataformas como o Twitter , esses comentários tendem a ter apenas algumas palavras, provavelmente considerando a atenção necessária para lê-los. Por fim, os robôs da internet (ou bots) são responsáveis por uma grande quantidade de repetição na internet aberta, pois tendem a reproduzir as mesmas palavras constantemente.

Apesar dessa tendência, não há estudos discutindo a extensão média dos comentários no YouTube e em outras mídias (como o Facebook ). A despeito de sua importância, esse tipo de estudo extrapolaria a finalidade deste artigo.

A tabela 5 também mostra que o número de tipos e formas no vídeo de Marina Silva é muito inferior ao dos demais candidatos. Essa diferença pode ser decorrente da situação de Marina Silva durante o período em que as entrevistas foram realizadas, pois ela era a candidata com menos intenção de votos nas pesquisas e concorria pelo menor partido (Rede). Nas eleições, Marina foi uma das candidatas com menor número de votos.

Algoritmo final de coleta e análise de dados

Por fim, este estudo seguiu o algoritmo de coleta e análise de dados descrito a seguir.

  • 1.Escolher os vídeos do canal oficial do Roda Viva no YouTube ;

  • 2.Coletar dados usando o YouTube Data Tools ;

  • 3.Fazer o upload dos dados para a Sketch Engine ;

  • 4.Calcular as colocações;

  • 5.Fazer o download das listas;

  • 6.Processar gráficos do Gephi;

  • 7.Trabalhar com a concordância;

  • ● Sketch Engine ;

  • 8.Interpretar os resultados.

  • 9.Criar tabelas de acordo com as polaridades de colocação

Resultados: Jair Bolsonaro

Como vemos na figura 1 , Jair Bolsonaro coloca mais frequentemente questões relacionadas aos processos nos quais o candidato representa a entidade modificada. Nos Processos materiais, ele é sempre a Meta nas proposições em que é retratado como estando sob ataque de jornalistas de esquerda (ex. 1, 2 e 3). Em todos os casos, foi-lhe atribuído o papel de vítima diante de profissionais preconceituosos e hipócritas (ex. 1 e 2), que têm a clara intenção de impedi-lo de vencer as eleições. Em todos os casos, esses jornalistas desempenham o papel de ator, enquanto Bolsonaro é a vítima.

Figura 1
– Pontuação das colocações de Jair Bolsonaro (p ≥ 0,05, n = 46)

Ex.: 1 Esses jornalistas de esquerda, completamente tendenciosos, tentaram encurralar Bolsonaro (…)

Ex.: 2 (…) Os bobocas queriam derrubar [Bolsonaro] e ajudaram e muito (…)

Ex.: 3 (…) Vergonha nacional esses hipócritas atacando o Bolsonaro (…)

Ex.: 4 (…) perguntas estas mais voltadas para tentar denegrir do que saber.

Vitimizar Bolsonaro é uma estratégia comum nesses comentários, associando qualquer pergunta que seja um pouco mais difícil a uma ameaça a ele como pessoa e ao seu projeto político. Como resultado, os jornalistas são considerados agressores, sendo desafiados quanto às suas habilidades profissionais (ex. 1 e 7) e pessoalmente ofendidos (ex. 2 e 3). Nos processos verbais, esse padrão é aplicado ao representar os jornalistas como os dizentes em proposições nas quais Bolsonaro seria o alvo (ex. 4 e 5). Quando presente, a verborragia é o elemento que desqualifica Bolsonaro (ex. 4 e 5) ou uma sugestão de perguntas que deveriam ter sido feitas (ex. 7). O exemplo 8 traz outro tipo de crítica, agora dirigida à plataforma YouTube , que é acusada de suprimir comentários a favor de Bolsonaro. Esse tipo de teoria da conspiração parece tentar unir as pessoas por um sentimento de perseguição.

O exemplo 7 é particularmente importante, pois traz uma definição do que deveria ser uma entrevista política, segundo a opinião desses comentaristas: a oportunidade de Bolsonaro apresentar seus planos para o país. Esse tipo de monólogo deveria acontecer sem qualquer questionamento ou contestação sobre o plano de governo ou o posicionamento ideológico do candidato. É fundamental observar que a lei eleitoral brasileira exige que cada candidato disponibilize o seu plano de governo por escrito para o público em geral. Como os comentários parecem indicar, as pessoas não tiveram contato com este documento antes da entrevista e confiaram inteiramente nela para saber mais sobre os planos de Bolsonaro.

Ex.: 5 #Folhadedesaopaulo lixo tentando acusar o cara [Bolsonaro] de coisas que ele não tem culpa e fazendo perguntas idiotas (…)

Ex.: 6 Que gente cretina...em vez de perguntarem [ao Bolsonaro] o que ele vai fazer de fato por nosso país!!!

Ex.: 7 Achei que os jornalistas do programa Rodada viva fossem mais preparados .…só tentaram desqualificar Bolsonaro (…)

Ex.: 8 Estão falando que estão apagando os comentários a favor neh?

Quando Bolsonaro tem papel ativo nos processos, é possível observar a projeção de algumas atribuições fundamentais em orações que representam avaliações positivas de si e sua campanha. No exemplo 9, ele é o presidente responsável por conduzir o Brasil ao futuro, algo possível não só por ser o ator em um processo material, mas também por haver uma circunstância em seu favor. Esta circunstância representa uma expressão brasileira comum em relação à positividade futura, algo que pertence ao século XXI é avançado e moderno.

Ex.: 9 Bolsonaro está se candiando para governar no século XXI

Ex.: 10 Parabéns Bolsonaro estamos juntos PRESIDENTE 2018

Ex.: 11 Bolsonaro está tranquilo e respondendo com firmeza, sem ser grosseiro.

Ex.: 12 A candidatura de Bolsonaro está crescendo

O exemplo 10 mostra um usuário parabenizando Bolsonaro e usando um processo relacional de atribuição para projetar a ideia que o acompanha em sua jornada até a presidência. Neste tipo de oração, Bolsonaro sempre assume o papel de portador seguido por uma circunstância de acompanhamento. Seu desempenho também é avaliado (ex. 11) positivamente. Ele tem o papel de portador de um atributo positivo (principalmente um adjetivo) ou de um dizente (“respondendo”, ex. 11) em um processo verbal modificado por uma circunstância que traz consigo uma avaliação otimista. No caso de processos verbais, uma circunstância de modo (“com firmeza” e “sem ser grosseiro”, ex. 11) qualifica as ações dele como positivas. Há também um reconhecimento do crescimento de sua candidatura por meio de processos materiais em que assume o papel do ator (ex. 12).

Nestes exemplos, o modo progressivo é comum, expressando a simultaneidade entre dois eventos. Em alguns casos, esses tempos expressam a coocorrência entre a escrita do comentário, a transmissão do Roda Viva e a interpretação do usuário sobre o desempenho do candidato (ex. 11). A candidatura de Bolsonaro é apontada como um caminho para o desenvolvimento do Brasil, principalmente pela relação entre o comportamento e a circunstância da direção (ex. 9). O crescimento de sua candidatura (ex. 12) também é caracterizado como simultâneo ao momento em que os comentários são postados.

Embora o número de processos seja maior que os substantivos e adjetivos, é pertinente notar que estes representam conexões mais centrais e relevantes com Bolsonaro (ver figura 1 ). Essa relevância é resultado do tamanho do nó e sua proximidade com o nó central, que representa o candidato. Duas dessas relações parecem chamar a atenção do leitor: “despreparado” e “futuro” (ver figura 1 ). Essas palavras destacam duas avaliações diferentes de Bolsonaro como pessoa e como político. “Despreparado” é usado tanto como um atributo nos processos relacionais quanto como um epíteto. No primeiro caso (ex. 13 e 14), o candidato simboliza o portador, como atributo, ou é intensificado por um advérbio (“visivelmente” no ex. 13) ou ainda faz parte de uma lista de insultos (ex. 14), que intensificam seu significado pelo acúmulo de prosódia negativa. Os epítetos são marcados com o candidato em orações não relacionais (ex. 15). Normalmente, eles fazem parte de uma avaliação do desempenho do candidato e da falta de boas qualidades para chegar ao cargo.

Ex.: 13 O Bolsonaro é visivelmente despreparado para o cargo.

Ex.: 14 Bolsonaro é um populista desmiolado, limítrofe e despreparado .

Ex.: 15 Que candidato despreparado , não responde uma pergunta, é este que quer ser presidente do Brasil?

A maioria dos adjetivos desqualifica Bolsonaro. Esses comentários tendem a projetar uma avaliação negativa de sua vida pessoal e política. A estratégia é associá-lo a diversos tipos de preconceitos, muitos deles apontados em entrevistas ou discursos públicos anteriores. Eles estão presentes em proposições que comparam Bolsonaro a Donald Trump (ex. 16) e associam características negativas a ambos ou enumeram alguns adjetivos negativos (ex. 17 e 18). No primeiro caso, a intenção é desmerecer sua associação com o então presidente dos Estados Unidos, atribuindo a eles atitudes semelhantes em relação às minorias políticas. Uma estratégia comum é colocar adjetivos em sequência, um após o outro, gerando uma “pilha” de características que parecem intensificar o julgamento adverso de Bolsonaro. Pode ser descrito em português brasileiro como a criação de uma intensificação cumulativa de críticas.

O único adjetivo com colocação exclusivamente em avaliações com orientação positiva é “bom” (ex. 19). Ele ocorre na expressão em português: “É bom”. Há um tom de ironia nessa locução devido à prosódia semelhante à de Jair (primeiro nome de Bolsonaro) e “já ir”, projetando sua vitória e a necessidade de adaptação da oposição.

Ex.: 16 Bolsonaro é o Trump Brasileiro Homofóbico e Racista .

Ex.: 17 Despreparado, ineficiente, hipócrita e mentiroso. Machista , misógino, homofóbico e racista.

Ex.: 18 Que idiota gente! Racista e homofóbico !

Ex.: 19 É bom Jair se acostumando.

Por sua vez, os substantivos (ver figura 1 ) não satisfazem a maioria das avaliações mistas sobre o candidato. “Futuro”, por exemplo, surge em contextos que projetam Bolsonaro como o próximo presidente do Brasil ou criticam os participantes do programa por não fazerem perguntas que projetem o porvir no país (neste caso, com ele como presidente). No exemplo 20, ele é modificado por um processo de identificação relacional, no qual é o signo, e o valor é a projeção de sua eleição. No exemplo 21, a mesma projeção ocorre, mas agora o programa é acusado de tentar mudar o voto das pessoas. O usuário está reagindo à postura dos jornalistas, pois foram firmes com o candidato. Nesse contexto, qualquer pergunta que não favoreça o candidato é considerada uma agressão. A ambiguidade natural da palavra “futuro” em português, que pode significar tanto “vindouro” quanto “próximo”, leva-nos a vê-la (ex. 22) como uma possível referência ao candidato representativo de uma nova era.

A palavra “família” também é representativa de um pensamento comum durante a campanha de Bolsonaro. A maior parte do discurso deste candidato apresenta a ideia de que a igualdade de direitos para as minorias políticas e sociais, principalmente mulheres, homossexuais e pessoas trans, destruirá as famílias heterossexuais tradicionais, que seguem a retidão do Senhor. Orações como no exemplo 23 são o resultado dessa forma de pensar: Bolsonaro representa a “batalha” em defesa das virtudes; todos os que têm a igualdade e os direitos humanos como valores fundamentais são esquerdistas e devem ser combatidos. Esta abordagem atribui a Bolsonaro uma missão messiânica, como podemos ler no exemplo 24.

Ex.: 20 Esse é nosso futuro Presidente!

Ex.: 21 Roda Viva, mas vocês falharam. Bolsonaro será o nosso futuro presidente (…)

Ex.: 22 São perguntas desnecessárias, precisamos saber do futuro e não do passado.

Ex.: 23 Bolsonaro presidente para o bem da família tradicional o terror dos esquerdistas (…)

Ex.: 24 Ninguém supera meu herói Bolsonaro, que nada o abale meu salvador (…)

Neste contexto messiânico, Bolsonaro desempenha o papel de valor nos processos de identificação relacional. Os valores são substantivos que o caracterizam como o salvador do Brasil (ex. 24). Este tipo de avaliação também ocorre em orações que colocam outros substantivos na função de característica, como “solução” (ex. 25), “opção” (ex. 26) e “fenômeno” (ex. 27).

Os substantivos também costumam aparecer em exemplos que criticam Bolsonaro, bem como associam o candidato ao papel portador/valor em Processos relacionais, conforme se lê em exemplos como 28 e 29. A maioria tenta dissociar a ideia de que ele é a melhor opção, ou mesmo que saiba o que vai fazer. Essa concepção está relacionada à imagem que o candidato parece projetar dentro e fora do Brasil. Os elementos circunstanciais são essenciais neste contexto, pois criam a relação entre o local e o global (ex. 28), além de projetar possíveis interferências ideológicas externas (ex. 29).

Ex.: 25 O Brasil está a deriva Bolsonaro é a solução para o nosso país.

Ex.: 26 (…) a melhor opção que vejo no momento é Jair Bolsonaro.

Ex.: 27 Essa é mais uma estratégia pra camuflar o fenômeno que está sendo o bolsonaro!

Ex.: 28 Bolsonaro é a vergonha do Brasil no Brasil e no mundo.

Ex.: 29 BOLSONARO É UM BONECO DA NOVA ORDEM MUNDIAL.

A tabela 6 traz um resumo da frequência dos tipos e valores representados na figura 1 . Embora tenha sido possível identificar algumas críticas pesadas a Jair Bolsonaro, o tom geral dos comentários é positivo. A estratégia mais comum, como já colocado anteriormente, é avaliar os jornalistas e demais candidatos de forma negativa, para projetar uma imagem positiva de Bolsonaro. Nesse contexto, a avaliação positiva é principalmente indireta, gerando uma prosódia favorável. É por isso que a classificação do léxico ( tabela 6 ) representa o que chamaremos de estratégia reversa: a avaliação negativa dos adversários de Bolsonaro é uma forma de aumentar sua popularidade em termos discursivos. Toda vez que lemos um item lexical criticando um jornalista ou um político, é esboçada uma imagem positiva de Bolsonaro. Consequentemente, há uma polaridade reversa na qual a avaliação negativa de um passa a ser uma avaliação positiva do outro. Resultados semelhantes foram observados por Lima-Lopes, Mercuri e Gabardo (2020)LIMA-LOPES, R. E. de; MERCURI, K. T.; GABARDO, M. Avaliatividade em comentários sobre postagens dedicadas à verificação de notícias falsas nas eleições presidenciais de 2018. Cadernos de Linguística e Teoria da Literatura , Belo Horizonte, v.1, n.4, p.1–25, 2020. , que estudam como os comentaristas reagem a postagens de agências de checagem de fatos no Facebook .

Tabela 6
– Colocações de Bolsonaro de acordo com a polaridade

Ciro Gomes

Como se lê na figura 2 , os processos verbais estão em orações que retratam duas avaliações polarizadas a respeito de Ciro Gomes. “Chamar” é responsável por defender o candidato de vários tipos de críticas. O exemplo 30 mostra Ciro como alvo em um processo verbal, no qual a crítica é expressa por meio da verbiagem. Aqui, a estratégia é mostrar que Ciro é honesto porque se recusou a obter algumas vantagens financeiras concedidas pelo sistema político brasileiro em um processo verbal, introduzido em uma oração projetada. A função desta oração é desqualificar essas críticas, representando-o como um dizente em um processo verbal (“recusou”).

Figura 2
– Colocações de Ciro Gomes (p ≥ 0,05, n = 51)

O exemplo 31 faz uma comparação entre Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, que não está presente na proposição, mas pode ser inferido pelo adjetivo “nazista”. Ciro é alvo de proposições em que a verbiagem visa insultá-lo. Ele é associado à palavra “coronel”, um insulto comum no contexto político brasileiro. Todavia, tanto Ciro quanto Bolsonaro são portadores em proposições nas quais os usuários consideram a qualidade de “coronel” como melhor que “nazista”, característica comumente associada a Bolsonaro. Ciro é alvo e portador quando os atributos tendem a questionar seu caráter na vida pessoal (ex. 32).

Ex.: 30 Quem chama o Ciro de mentiroso quer aparecer às custas do único político que se recusou a receber 3 aposentadorias (…)

Ex.: 31 Podem chamar o Ciro de Coronel, melhor ser chamado de coronel do que ser chamado de nazista (…)

Ex.: 32 Em carta, prefeito cearense chama Ciro Gomes de vagabundo e usuário de drogas (…)

Ex.: 33 As pessoas criticam o Ciro, mas não vejo ninguém apresentar argumentos (…)

“Criticar” (ex. 33) traz significados positivos, principalmente ao identificar as críticas como infundadas por falta de argumentos. Ciro é alvo, enquanto a proposição de apoio demonstra uma relação de parataxe. “Apoiar” (processo verbal em português devido às suas características declarativas) surge em proposições que também representam uma oração condicional. Esses condicionais tendem a ser um meio de criticar tanto os apoiadores quanto os não apoiadores de Ciro, que é alvo nesses processos. No exemplo 34, os não apoiadores são os dizentes em proposições que projetam uma oração ofensiva. O insulto é representado em uma circunstância de lugar. No exemplo 35, os apoiadores são portadores em processos relacionais que os representam como doentes mentais.

Ciro Gomes também é apresentado por proposições comportamentais, nas quais ele representa continuamente o escopo (escopo ou beneficiário) (ex. 38). Como escopo, Ciro está normalmente sujeito a ataques diretos dos usuários. Na maioria das vezes, esses ataques apresentam o discurso de fontes externas, como jornalistas (ex. 36) ou outros usuários (ex. 37). Fontes externas são geralmente consideradas responsáveis pelas informações.

Os usuários são acusados de promover o racismo quando atacam Ciro devido à sua origem (ex. 37). Essas proposições mostram duas perspectivas, tanto demonstram uma tensão entre alguns grupos políticos da região norte e sul do Brasil; como revelam um conhecimento parcial da real formação de Ciro. Embora tenha construído sua carreira política no Ceará, estado do nordeste, ele nasceu em Pindamonhangaba, em São Paulo, estado do sudeste.

Ex.: 34 Se não apoiarem o Ciro, vão pra lata do lixo completamente.

Ex.: 35 Se você é contra governo de esquerda e apoia o Ciro, você precisa ser estudado5 5 A expressão “você precisa ser estudado” compara alguém a uma aberração, uma criatura que precisa ser estudada por um psiquiatra dado seu estado mental incoerente. (…)

Ex.: 36 Assisti o vídeo do Jornalista_01; desmascara o Ciro com muito humor.

Ex.: 37 Não adianta atacar o Ciro por ele ser Nordestino (…)

Ex.: 38 Quem pesquisa Vota Ciro Gomes! (…)

Outros processos comportamentais críticos são “eleger” (ex. 39), “ouvir” (ex. 40) e “conhecer” (ex. 42). Em ambos os processos, Ciro é o escopo nas proposições que lhe atribuem o papel de salvador político. Em alguns casos, ele é o portador de um processo atributivo relacional referente a uma oração comportamental por parataxe (ex. 39). O exemplo 40 traz a mesma relação, mas com uma diferença significativa: o par portador/atributo é representado por duas sentenças diferentes. A primeira retrata Ciro e seus oponentes, enquanto a segunda reconhece o outro candidato como intelectualmente inferior.

Halliday (1978HALLIDAY, M. A. K. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. London: University Park Press, 1978. , 1994HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. ) usa o inglês como base para desenvolver a LSF. Embora o inglês e o português sejam línguas indo-europeias, algumas diferenças estruturais e semânticas entre elas podem levar a uma revisão de determinados elementos da teoria. Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. definiria os processos comportamentais como ações mentais que teriam algum resultado material. Esse seria o critério, por exemplo, para distinguir processos como ver/ouvir (atividades físicas involuntárias) e observar/escutar (ações físicas com propósito/intenção mental). Entretanto, Halliday e Matthiessen (2014)HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. Halliday’s introduction to functional grammar . 4.ed. Oxon: Routledge, 2014. apontam que esses processos são menos distintos porque não têm características claramente definidas; seriam parte material e parte mental.

No entanto, é preciso lembrar que a definição de Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. coloca os processos comportamentais entre os processos materiais e os mentais em termos semânticos e gramaticais. Isso ocorre porque os processos mentais em inglês raramente são expressos de forma progressiva, conforme acontece com os materiais. Como os comportamentais estão entre os dois, eles são representações do nosso mundo interior que assumem expressões materiais e, portanto, podem ou não tomar formas progressivas.

Contudo, essa diferença parece ser um pouco mais difusa no PB, principalmente porque os processos mentais e materiais podem assumir uma forma progressiva; a diferença é, portanto, inteiramente semântica ( LIMA-LOPES, 2001LIMA-LOPES, R. E. de. Estudos de transitividade em língua portuguesa: o perfil do gênero cartas de venda. 2001. Dissertação (Mestrado em Linguística e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001. ). Esse fato abre espaço para a interpretação de processos como “eleger” (ex. 39) e “ouvir” (ex. 40) como material, e “conhecer” (ex. 42) como mental ou material, dependendo do contexto. Se, por um lado, “eleger” no sentido expresso no exemplo 39 representaria uma ação coordenada de votação, o que poderia ser material se considerarmos o deslocamento corporal e os componentes de digitação envolvidos, já que no Brasil as eleições utilizam urnas eletrônicas, por outro, representaria também uma escolha consciente por Ciro, uma ação mental que resultaria da observação de seu plano de governo. Alguém poderia pensar que “ouvir” (ex. 40) e “conhecer” (ex. 42) se assemelhariam a “eleger”. “Ouvir” representa não apenas a ação de ouvir (ou escutar, já que ambos podem ser intercambiáveis em alguns contextos no PB), o que seria material, mas também comparar e avaliar o que Ciro e os demais candidatos disseram, o que representa um componente mental. “Conhecer” (ex. 42) também envolve tanto a ação mental de considerar o projeto político de Ciro, quanto a ação material de encontrá-lo na entrevista.

Devido à ambiguidade semântica desses processos, nossa escolha aqui é classificá-los como comportamentais. Ainda assim, não estamos assumindo que a ideia de Halliday (1994)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar . London: Arnold, 1994. de um significado intermediário funcionaria perfeitamente no PB. No PB, o componente mental dos processos materiais é algo bastante presente, o que tornaria a ideia de um elemento “menos definido” um tanto ambígua. Por conseguinte, os processos comportamentais podem ser definidos no PB como processos complexos, não intermediários, mas sim tanto mentais quanto materiais.

Os exemplos 41 e 42 trazem um tom mais confessional, pois ambas as orações identificam Ciro como o motivo de sua esperança para o Brasil e para as eleições; os processos comportamentais são representados em orações hipotáticas que o indicam como a causa do vislumbre de um futuro melhor. Um sistema gramatical muito intrincado exemplifica esse significado, pois Ciro é, ao mesmo tempo, escopo e portador em um único complexo oracional. Fato que faz com que a avaliação se espalhe por todo o complexo.

Ex.: 39 Temos que eleger o Ciro, ele é a solução que o Brasil precisa (…)

Ex.: 40 Quando você vê e ouve CIRO GOMES e os demais candidatos é observado um abismo intelectual!

Ex.: 41 Já tinha desistido de votar, mas voltei a me sentir esperançosa depois que passei a ouvir o Ciro falar (…)

Ex.: 42 (…) tinha desistido do Brasil até conhecer 6 6 Em português brasileiro, “conhecer” pode ter acepções como “saber” e “se encontrar”. A observação se justifica porque o usuário parece ter tido seu primeiro contato com Ciro Gomes o Ciro!

Os substantivos (25,45%) atribuem ao candidato avaliações negativas. O padrão mais comum é a associação com substantivos negativos, como “lixo” (ex. 43) e “farsa” (ex. 44) ou “vira-casaca” (ex. 45), o que representa uma crítica direta, geralmente sem uma justificativa clara. Conforme pontua Lima-Lopes (2018)LIMA-LOPES, R. E. de. O conservadorismo como ideologia: contribuições da ciência das redes para a linguística sistêmico funcional. Letras , Santa Maria, v.28, n.56, p.43–69, 2018. , esse tipo de agressão parece ser comum nas discussões ideológicas brasileiras. O autor observa que as pessoas tendem a levar as discussões políticas para o nível pessoal, na maioria das vezes repetindo discursos ofensivos sem observar as possíveis consequências.

Algumas proposições comparam Ciro aos antigos presidentes do Brasil, na maioria das vezes de forma negativa. Nessa estratégia, o usuário tenta mostrar que Lula, Dilma e Ciro são a mesma persona política com diferenças superficiais. A comparação entre Lula e Ciro tende a ser ofensiva. Elas recaem principalmente sobre a formação acadêmica de Lula (ex. 47), por ele não ter cursado o Ensino Superior, como Ciro, ou sobre aspectos físicos (ex. 46), Lula teve um dedo amputado durante a época em que trabalhou como metalúrgico.

A comparação com Dilma tende a estar relacionada a um único fato: ela ser mulher (ex. 48). O argumento lança mão de um antigo ditado popular machista brasileiro, segundo o qual duas pessoas são praticamente iguais, sendo o gênero a única diferença entre elas. Nesse cenário, as pessoas dizem que um “homem (x) é uma mulher (y) de calça” (quando um homem é comparado a uma mulher), enquanto a mulher (y) seria “um homem (x) de saia” (quando uma mulher é comparada a um homem).

Ex.: 43 Ciro é outro lixo como tem trouxa pra votar nesse cara?

Ex.: 44 Ciro é uma farsa !

Ex.: 45 Ciro é um socialista vira-casaca (…)

Ex.: 46 Ciro é um Lula com 10 dedos e sem moral (…)

Ex.: 47 Ciro é um Lula com diploma (…)

Ex.: 48 Ciro é uma Dilma de Calça (…)

Os adjetivos são as colocações menos frequentes direcionadas a Ciro (21,63%) e trazem avaliações mistas nas orações em que ele é o portador nos processos relacionais. O julgamento negativo é frequente e está relacionado às suas posições políticas e à proximidade com Lula, de quem foi ministro. Ele é caracterizado como “igual” (ex. 49) Lula, como “desprezível” (ex. 50) ou negativamente caracterizado como “socialista” (ex. 51) e “comunista” (ex. 52).

Ex.: 49 Ciro é igual a Lula!

Ex.: 50 Ciro é desprezível por suas posições ideológicas (favorável aos corruptos Lula e Maduro).

Ex.: 51 Mas o Ciro é socialista , de modo que perderíamos ainda mais liberdades (…)

Ex.: 52 Ciro é comunista declarado (…)

Ex.: 53 CangaCiro, você é um engodo , um embusteiro e mentiroso .

Os dois únicos adjetivos positivos são “claro” (ex. 54) e “inteligente” (ex. 55), e estão relacionados à capacidade do candidato de ser claro em suas respostas.

Ex.: 54 A frase de Ciro é clara e a fonte dos dados inquestionável (…)

Ex.: 55 Ciro é inteligente e complexo.

Outra ofensa comum é “CangaCiro” (ex. 53), um neologismo composto pela palavra “cangaceiro” e o nome de Ciro (Canga + Ciro). Resultado de certa semelhança fonética, o termo expõe o preconceito contra a origem política de Ciro, o Estado do Ceará. Como mostra o exemplo 53, seu uso está relacionado a algumas ofensas pessoais.

A tabela 7 traz um resumo da frequência dos tipos e signos representados na figura 2 . Ciro Gomes também tem uma avaliação mais positiva. Apesar disso, seus números são muito mais próximos aos de Bolsonaro, enquanto a avaliação positiva tende a repetir o léxico um pouco menos que a negativa. Enquanto o primeiro é mais frequente e apresenta um vocabulário mais rico, o último tende a reiterar constantemente a mesma ideia. O número mais alto do léxico neutro está relacionado a verbos deslexicalizados como “fazer” e “ter”, comumente aplicados em funções auxiliares. A crítica a Ciro Gomes tende a ser fruto do preconceito contra sua origem política.

Tabela 7
– Colocações de Ciro de acordo com a polaridade

Manuela D’Ávila

As colocações de Manuela ( figura 3 ) seguem principalmente processos comportamentais, talvez como resultado de manifestações pessoais quanto ao contexto em que a entrevista ocorreu. De acordo com os comentários, Manuela foi interrompida com muito mais frequência do que seus colegas homens, e o reconhecimento de tais interrupções foi o tema mais recorrente na discussão (ex. 56 a 59). Nesses processos, ela é o escopo e, às vezes, tem papel ativo no processo verbal projetado (ex. 56). Porém, é primordial observar que ela não é vitimizada como Bolsonaro; a maior parte dos comentários reconhece tal situação e critica o programa por isso (ex. 58 e 59). Em alguns casos, a intensificação está presente em uma circunstância de frequência (ex. 57 e 58) ou em uma oração atributiva relacional (ex. 59). Os usuários tentam ser neutros, reconhecendo a questão das interrupções, mas não a apoiando politicamente (ex. 60) nas proposições em que Manuela desempenha o papel comportamental e de dizente em processos verbais projetados.

Figura 3
– Colocações de Manuela D’Ávila (p ≥ 0,05, n = 33)

Manuela é o alvo em processos verbais (ex. 61 e 62) e fenômeno nos mentais (ex. 63 e 64). As avaliações positivas sempre vêm em orações atributivas relacionais que destacam quem são os principais oponentes de Manuela em termos de sua profissão ou classe social (ex. 61). As críticas são dirigidas a seus apoiadores, identificados como “doentes” (ex. 62). O uso de “essa” (ex. 62) é muito significativo no PB, pois pode atrelar uma ideia de inferioridade e desprezo a Manuela.

Ex.: 56 Não deixaram Manuela falar (…)

Ex.: 57 (…) interromperam a Manuela mais de 60 vezes (…)

Ex.: 58 Acabam por atacar a Manuela. Lamentável (…)

Ex.: 59 Mas a forma como trataram a Manuela neste programa foi muito desrespeitoso.

Ex.: 60 Não estou defendendo Manuela. Estou defendendo o direito dela de falar.

Os processos mentais partilham avaliações mistas. As orações negativas criticam os apoiadores de Manuela associando a eles o conhecimento da linguagem dos “jumentos” (ex. 63). Manuela também é fenômeno nas avaliações positivas (ex. 64). As sentenças mentais estão em uma relação de parataxe com as orações atributivas relacionais nas quais há um epíteto expressando sentimentos otimistas.

Ex.: 61 Todos que criticam a Manuela D’Avila são banqueiros (…)

Ex.: 62 (…) como existe pessoas doentes que defendem essa Manuela (…)

Ex.: 63 Não sei a linguagem dos Jumentos. Por isso vc entendeu a Manuela e eu não.

Ex.: 64 Acabei de conhecer a Manuela e fiquei feliz!

Manuela é a dizente em processos Verbais, que refletem principalmente uma avaliação dos seus entrevistadores (ex. 66) bem como o desempenho dela (ex. 65). As interrupções frequentes são, mais uma vez, um tema recorrente. Entretanto, Manuela é representada positivamente: ela é responsável por responder a todas as perguntas, ser forte (ex. 65) e por discutir as reais necessidades do Brasil (ex. 66). Ela também é retratada como alguém incapaz de responder corretamente às perguntas, usando seu tempo no programa apenas para ganhar alguns votos (ex. 67).

Ex.: 65 (…) parabéns a Manuela essa mulher de garra respondeu todas as perguntas.

Ex.: 66 Não deixam ela nem falar. eu não entendo manuela não falou nada de ruim ela só falou coisa que o brasil precisa.

Ex.: 67 Relaxa que a manuela se deu bem nessa entrevista, ganhou exposição falando só abobrinha e ficou como vitima.

“Dar” e “ganhar” (ex. 67) são desafiadores em sua classificação. Silva, Souza e Souza (2019) discutem a classificação de “dar” com base em uma taxonomia semântica introduzida por Silva (2019)SILVA, J. J. D.Um estudo sistêmico-funcional de orações com o verbo dar no português brasileiro. 2019. 241f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2019. e Rassi e Vale (2013)RASSI, A. P.; VALE, O. A. Tipologia das construções verbais em português do Brasil: uma proposta de classificação do verbo dar. CALIGRAMA , Belo Horizonte, v.18, n.2, p.105-130, 2013. . Segundo os autores, dar poderia extrapolar seu sentido material, pois dependeria de sua interação com o escopo para estabelecer seu real significado. Nesse sentido, a relação entre “dar” e o sintagma nominal (escopo) definem não apenas uma parte da função semântica que ele representa, mas também algumas características gramaticais. Como Silva, Souza e Souza (2019)SILVA, J. J. D. da; SOUZA, M. M. de; SOUZA, A. A. de. Sistematização das orações com o verbo dar no português brasileiro. Intercâmbio: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, São Paulo, v.42, p.49–67, 17 dez. 2019. observam, alguns padrões possíveis que sustentam sua afirmação em PB: se considerássemos “dar” (ex. 67) e “bem” em separado, provavelmente classificaríamos esse processo como um processo material transacional. Porém, um falante de português interpretaria que Manuela se beneficiou, de alguma maneira, do “dar” de uma forma que não seria necessariamente material, em especial porque o processo poderia ser substituído por um processo relacional circunstancial (“Manuela foi bem nessa entrevista”). “Dar” traz um significado relacional principalmente por sua relação com o “bem” e a circunstância do lugar (“nessa entrevista”).

“Ganhar” parece ser semelhante a “dar”, principalmente porque a maior parte de seu significado depende da relação com a “exposição”, ex. 67. Ganhar e exposição refletem uma colocação forte que traz traços de beneficiária para Manuela, que desempenha gramaticalmente o papel de ator. Nesse contexto, “ganhar” também poderia ser substituído por um processo relacional, “Manuela tornou-se exposta”.

Os adjetivos avaliam o desempenho de Manuela D’Ávila como candidata (ex. 68), como entrevistada (ex. 69), além de suas posições ideológicas (ex. 70). Há também algumas ofensas pessoais dirigidas à candidata (ex. 71 e 72). As avaliações negativas (ex. 68) são muito mais comuns e não trazem qualquer discussão sobre o programa de governo de Manuela, parecem estar inteiramente relacionadas a questões ideológicas. A maioria dos comentários julga Manuela por ser feminista (ex. 70) ou membro do partido comunista (ex. 76), fatos que a tornariam menos adequada ao cargo. É essencial notar que isso também não vem acompanhado de nenhuma outra justificativa: ser feminista ou comunista é algo terrível por si só, palavras como “comunista” e “patética” (ex. 71 e 72) são idênticas em seu significado negativo. A maioria dos adjetivos negativos é associada a Manuela sem uma justificativa clara.

Manuela é a portadora ou possuidora de orações relacionais em que a avaliação surge como Atributo (ex. 68, 71 e 72) ou oração projetada (ex. 69 e 70). Essa projeção ocorre em forma de oração não verbal (ex. 69) ou atributiva relacional (ex. 70). Repetição de vogais tônicas (“muuuito”, ex. 68), caixa alta (“Patética”, ex. 71), letras maiúsculas (“CRETINA”, ex. 72) e aspas (ex. 77) são recursos comuns para demonstrar a intensificação.

Ex.: 68 Nossa, a Manuela é muuuito fraca (…)

Ex.: 69 Manuela muito inteligente e paciente com esse bando de estupidos mal educados!

Ex.: 70 A garota tem orgulho de ser feminista , como se isto fosse algo bom (…)

Ex.: 71 Manuela vc é Patética !

Ex.: 72 Manuela vc é CRETINA (…)

Manuela também é comumente retratada em orações que avaliam sua aparência física ou explicitam um conteúdo machista e sexual (ex. 73 e 74). Em todos estes exemplos, Manuela é portadora, identificada ou possuidora.

Adjetivos como “bonita” e “bonitinha” expressam julgamento sobre a aparência de Manuela. “Bonitinha”, além de uma apreciação estética do corpo dela, traz também o uso do sufixo *.inha(o), que expressa o diminutivo de substantivos no PB (ex. 74 e 76), agregando um tom irônico. Tal uso soaria como se ela quase não fosse bonita ou como se sua beleza não fosse suficiente. Algumas dessas frases tentam descrever Manuela de uma forma ofensiva, questionando seu comportamento sexual e representando-a como uma mulher lasciva (ex. 75).

Ex.: 73 Essa piranha, o que ela tem de bonita tem de inútil essa lata de lixo (…)

Ex.: 74 Bonitinha mas tão burrinha Gostosa!

Ex.: 75 Linda , gostosa , safada, mentirosa, perigosa e sem moral. Adoro esse tipo de mulher. É a mulher certa para uma noite de orgias.

Ex.: 76 Que comunistinha gostosa em gente.

Em algumas orações, há uma tentativa direta de ser rude e muito ofensivo, às vezes, ofendendo-a (ex. 73). É uma estratégia comum descrever Manuela como incapaz de ser, ao mesmo tempo, bela e inteligente (ex. 74). Em outros casos, os usuários tentam criar um acúmulo de características lascivas, a fim de desqualificá-la como uma escolha possível: ela é boa para o sexo e nada mais (ex. 75). Manuela também é frequentemente comparada a Dilma. O tom também é ofensivo: Dilma é burra (ex. 78) e feia, enquanto Manuela é ainda mais burra, mas mais bonita (ex. 79). Em casos mais raros, as orações são igualmente ofensivas para ambas, mas Manuela é sempre descrita como mais atraente e mais jovem (ex. 77 e 79).

Ex.: 77 Esta mulher parece a Dilma , só que “bonitinha”

Ex.: 78 E eu achando que a burrice da Dilma era insuperável!

Ex.: 79 Essa é uma capivara Dilma mais nova e gostosa (…)

A tabela 8 traz um resumo da frequência dos tipos e signos representados na figura 3 . Manuela D’Ávila tem um perfil avaliativo completamente diferente dos pré-candidatos anteriores. Ela é avaliada mais negativa do que positivamente, enquanto as avaliações neutras são muito raras. Os resultados mostraram que o fato de ela ser uma candidata mulher foi de grande relevância para esse resultado. Ela também é a primeira candidata a ter um item lexical que pode representar tanto avaliações positivas quanto negativas (“mulher”).

Tabela 8
– Colocações de Manuela de acordo com a polaridade

Marina Silva

Marina Silva ( figura 4 ) foi avaliada tanto no nível político (ex. 80) quanto no pessoal (ex. 81, 82 e 83). Quando avaliada positivamente, Marina é um escopo em processos comportamentais nos quais uma circunstância resulta de alguma identificação política (ex. 80) ou avaliação de caráter (ex. 81). Um conjunto de características fornecido por uma lista cumulativa (ex. 82) também é uma estratégia comum, que maximiza seus atributos positivos criando um efeito cumulativo no PB.

Figura 4
– Colocações de Marina Silva (p ≥ 0,05, n = 42)

As ofensas pessoais estão presentes nas orações em que Marina é portadora em processos atributivos, principalmente palavras grosseiras sem qualquer motivo possível (ex. 84). É comum que os usuários digam que não estão votando em Marina devido à sua aparência ou escolha de roupas (ex. 85), que são, então, avaliadas negativamente. Marina é retratada de forma completamente oposta a Manuela, sendo esta linda e atraente, enquanto aquela é o tempo todo questionada pela forma como se veste.

Ex.: 80 Eu considero a Marina de centro-esquerda (…)

Ex.: 81 Vejo a Marina como uma pessoa equilibrada (…)

Ex.: 82 Mulher forte e genial Marina Silva sempre observei Marina Silva (…)

Ex.: 83 Acho engraçado que as pessoas que ofendem a Marina aqui nos comentários não possui nenhum tipo de argumento.

Ex.: 84 De que raça é essa cachorra chamada Marina (…)

Ex.: 85 Ñ votaria e nem uma presidente de COOOOQUE.

Como podemos ver na figura 4 , Marina representa o participante ativo em menos processos. Na maioria dos casos, esses processos avaliam positivamente seu desempenho político (ex. 88) ou como entrevistada (ex. 86). Quando os usuários discutem sua carreira política, os comentários estão relacionados às opiniões de Marina sobre a ex-presidente Dilma Rousseff (ex. 88), em que Marina é dizente em processos verbais, ou a seus projetos para as eleições de 2018 (ex. 89), em que ela representou comportante em processos comportamentais.

Quando os usuários discutem sua atuação como entrevistada, Marina também aparece como alguém que se comporta e como dizente. No entanto, ela representa uma configuração gramatical diferente. O escopo está implícito e o alvo de seus processos verbais são as perguntas que ela deveria ter respondido (ex. 86 e 87).

Ex.: 86 (…) amei esse roda vivaa.. sério, não sou fã da marina mas ela conseguiu dar a volta por cima de todas as alfinetadas com respostas ao nível

Ex.: 87 Marina não falou coisa com coisa

Ex.: 88 Marina disse , na campanha de 2014, que Dilma mentia ao dizer que não sabia da corrupção na Petrobrás (…)

Ex.: 89 A única candidata com dignidade e idéias para governar o Brasil Marina (…)

Marina recebe avaliações mistas ao se colocar com adjetivos e substantivos. Ela desempenha o papel de portadora em processos relacionais atributivos, enquanto os elementos que a caracterizam cumprem o papel de atributos (ex. 90). As avaliações positivas tendem a ser apresentadas como uma lista (ex. 90 e 91), criando um efeito cumulativo no qual uma série de características positivas é apresentada sequencialmente. Vale ressaltar a ocorrência da palavra “diva” (ex. 90), usada no PB para designar uma mulher admirável por sua inteligência, sensualidade e poder de sedução. Embora receba uma avaliação positiva, Marina parece ser elogiada por ser mulher, não por sua capacidade política. Marina é portadora nos processos relacionais que geraram (ex. 92) avaliações negativas. A presença de orações de hipotaxe ou parataxe, que intensificam tais avaliações (ex. 93 a 95), é frequente. Nessas orações, Marina se faz presente por um elemento coesivo e representa um participante em uma oração concessiva que introduz uma falha de caráter atribuída a ela (ex. 94).

Marina é uma candidata ligada a bases cristãs conservadoras e tal relação leva alguns usuários a criticá-la. Os comentários a julgam negativamente por ser membro de um partido de centro-esquerda e por ter atitudes menos conservadoras em relação a questões polêmicas, como o aborto (ex. 95). Nesses casos, ela instancia o possuidor em processos relacionais possessivos e o dizente em um processo verbal paratático.

Ex.: 90 Marina é ética , eloquente, inteligente, consciente, pacifica e não passiva, mulher forte, guerreira, pulso firme sim, estudiosa, diva, tudo que precisamos.

Ex.: 91 Mulher é forte e genial Marina Silva

Ex.: 92 Marina é omissa .

Ex.: 93 Marina é tão fraca , que se ela der um peido ela dá 2 passos pra frente!!!

Ex.: 94 Não acho que a Marina seja corrupta, mas quem evita dizer o que pensa, não tem a minha confiança.

Ex.: 95 Não tem certeza das próprias convicções pois se diz cristã evangélica mas defende o aborto.

Assim como Manuela, Marina também é julgada por sua aparência física (ex. 93). Enquanto Manuela é atraente, bonita e lasciva, a aparência de Marina (ex. 93 e 98) é criticada por não seguir alguns padrões de beleza. Marina é verbalmente atacada por ser muito magra (ex. 98), uma característica que poderia ser um indício de fraqueza política. Essa estrutura é sempre representada em comparações pouco civilizadas visando humilhar a candidata, que retrata o portador em processos relacionais atributivos. Em alguns casos, essa avaliação negativa está presente em orações hipotáticas adverbiais, nas quais Marina pode simbolizar atores no material ou no comportamental em processos comportamentais (ex. 93 e 98).

Ao contrário dos demais candidatos, Marina foi a única a receber comentários questionando sua origem étnica (ex. 96 e 97), explorando a identificação de suas origens. Esta representação torna-se um julgamento social com um ar de ironia, pois é possível inferir certo desdém pela possível identificação de Marina como cidadã afro-brasileira (ex. 96). Nesses comentários, ser mestiço pode parecer mais valioso e nobre do que ser negro, uma vez que esses usuários veem sua caracterização de afro-brasileira como desrespeitosa (ex. 97). Essa negação está relacionada a uma cultura que valoriza a necessidade de identificar Marina como não negra.

Ex.: 96 A Marina é negra ? Nem tinha percebido.

Ex.: 97 Marina Silva não é negra , ela é mestiça! ela vem da Amazônia do norte, respeitem a mestiçagem brasileira!

Ex.: 98 Marina Silva vc não governa nem teu quintal. Nada sabe, um aspecto horrível , uma cara de SONGA MONGA.

Ex.: 99 Marina é tão safada quantos as abortistas

Ex.: 100 COMUNISTA VAGABUNDA . HERPES DA POLÍTICA: SÓ APARECE A CADA QUATRO ANOS, QUANDO A IMUNIDADE ABAIXA.

Ex.: 101 Marina é esquerdista ferrenha, ativista ambiental e, como tal, sua missão é tirar das pessoas o direito à propriedade.

Ex.: 102 marina saiu do PT mas tem propostas iguais as do PT

Ex.: 103 DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE DESLIKE

As ofensas pessoais são comuns no corpus e assumem várias formas. Marina é tratada como “safada” (ex. 99 e 100) ou como uma doença por ter uma postura menos conservadora em relação ao aborto ou ainda por ter participado das eleições presidenciais brasileiras (“herpes”, ex. 100). Outras críticas comuns refletem uma total incompreensão do plano de governo de Marina, já que ela nunca tomou uma posição contrária ao direito à propriedade privada durante a entrevista (ex. 101), ou sua relação com o PT, partido que integrou durante a maior parte de sua carreira (ex. 102). Por fim, o exemplo 103 traz outro efeito de lista comum: a palavra “ deslike ” (um erro de digitação da palavra inglesa “ dislike ”) é repetida 786 vezes em sequência em três comentários diferentes. A ideia geral é expressar discordância com as respostas de Marina durante a entrevista ao Roda Viva. No entanto, não há nenhuma explicação ou discussão; há apenas a agressão direta representada pela repetição grafada em letras maiúsculas.

A tabela 9 traz um resumo da frequência dos tipos e signos representados na figura 4 . Os resultados mostram que Marina é a pré-candidata com menor número de avaliações positivas. Isso tende a ser resultado da repetição constante de “ DESLIKE ”, um erro de digitação da palavra inglesa “ dislike ”, que parece ser postado insistentemente ao longo dos comentários (ex. 103). Embora este estudo não tenha como objetivo discutir se os comentadores são humanos ou robôs da internet (bots), a repetição de um único item lexical parece indicar que foi postado automaticamente. Em caso afirmativo, esse fato traz um novo tópico para discussão em estudos posteriores: como considerar o material postado automaticamente.

Tabela 9
– Colocações de Marina de acordo com a polaridade

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo discutir as representações de quatro pré-candidatos à presidência da República do Brasil por meio do levantamento de comentários relacionados às entrevistas de cada um deles disponibilizadas no canal oficial de um programa de entrevistas brasileiro de grande audiência, o Roda Viva. Buscou-se observar se os dois candidatos homens mais comentados, Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, teriam representações diferentes se comparados às duas únicas candidatas entrevistadas, Marina Silva e Manuela D’Ávila. A fundamentação teórica teve como base a LSF, mais especificamente a Transitividade e os Sistemas de avaliação. A LSF foi responsável por fornecer o quadro de análise textual necessário para compreender os princípios ideológicos subjacentes às escolhas léxico-gramaticais.

A metodologia incluiu a coleta dos dados da internet, além do seu processamento feito com o auxílio de um software de visualização de gráficos e concordâncias on-line. Apesar dos procedimentos quantitativos de coleta de dados, a análise também foi qualitativa e centrada no levantamento dos processos em conjunto com o léxico avaliativo.

Os resultados parecem mostrar que os candidatos do sexo masculino e feminino são representados de forma diferente. Jair Bolsonaro é representado como vítima ou salvador da nação. Ele parece caracterizar a família e os valores tradicionais. Os comentários mostraram que seu público esperava assistir a um monólogo no qual ele faria uma exposição sobre seus planos para o país. A maioria dos adjetivos desqualifica Bolsonaro e alguns comentários projetam uma avaliação negativa de sua vida política.

Ciro Gomes é representado como a melhor opção por seu conhecimento acadêmico e sua experiência política. Em muitas ocasiões, ele traz esperança e convence as pessoas que haviam desistido de votar a não deixarem de expressar seu voto. Ciro é criticado por estar associado a partidos de esquerda e por sua origem política, o nordeste brasileiro. Às vezes, a questão da origem é usada como uma ofensa pessoal com demonstrações de racismo.

Alguns comentários sobre Manuela D’Ávila estão relacionados à natureza das interrupções e ao andamento de sua entrevista. Não há debate sobre seus planos para o país, e sua origem política é motivo de ofensas pessoais. Embora alguns comentários elogiem seu desempenho na entrevista e sua inteligência, a maioria deles a compara a outros políticos de esquerda, como Dilma, muitas vezes usando afirmações sexistas. Nesses comentários, Manuela é jovem, atraente e lasciva, apesar de ser comunista e burra.

Alguns comentários destacam a idoneidade de Marina Silva para a presidência, embora a maioria a associe à esquerda de forma pejorativa. A postura dela na entrevista é continuamente questionada, com poucas avaliações positivas. Sua aparência física também é uma questão, porém abordada de maneira diferente. Marina é contestada por suas escolhas estéticas e por não seguir um padrão de beleza pré-estabelecido. Algumas críticas rudes e extremamente ofensivas são dirigidas a ela pessoalmente. Marina é a única candidata indagada sobre sua raça, às vezes, de maneira irônica. Sua possível identificação como afro-brasileira é, inclusive, vista como uma ofensa por alguns usuários.

Embora haja comentários elogiando Manuela D’Ávila e Marina Silva, elas não são messias ou salvadoras do Brasil. Esses resultados mostram que tanto os candidatos homens quanto as mulheres são constantemente criticados por suas origens e filiação política. Todos os candidatos também são avaliados de acordo com sua capacidade de governar o Brasil. Essas críticas são, às vezes, duras e diretas. No entanto, Jair Bolsonaro e Ciro Gomes nunca são questionados sobre sua aparência nem sua raça, pois não são alvo de nenhum tipo de comentário sexual agressivo. Marina Silva e Manuela D’Ávila, em contrapartida, são constantemente julgadas nestes termos.

Agradecimentos

Nossos agradecimentos à FAPESP (2016/11230-5) pelo apoio financeiro dado a esta pesquisa.

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    Na época, havia outra candidata, Vera Lúcia, que não foi entrevistada. A TV Cultura justificou a ausência afirmando que Vera Lúcia não se enquadrava nos critérios de seleção de candidatos para as entrevistas. Vera Lúcia salientou que, embora tenha tentado por várias vezes entrar em contato com a produção do Roda Viva, não obteve resposta e não foi convidada para o programa. Posteriormente, Manuela D’Ávila renunciou à própria pré-candidatura e, na campanha, juntou-se à chapa de Fernando Haddad como candidata a vice-presidente.
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    A expressão “você precisa ser estudado” compara alguém a uma aberração, uma criatura que precisa ser estudada por um psiquiatra dado seu estado mental incoerente.
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    Em português brasileiro, “conhecer” pode ter acepções como “saber” e “se encontrar”. A observação se justifica porque o usuário parece ter tido seu primeiro contato com Ciro Gomes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2020
  • Aceito
    22 Out 2020
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