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A DECISÃO DO STF SOBRE ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS: UMA ANÁLISE FEMINISTA DE DISCURSO

RESUMO

Este artigo traz uma análise do acórdão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), que buscou solucionar a polêmica acerca da possibilidade de interrupção voluntária da gestação em caso de fetos com anencefalia. Por uma abordagem feminista de análise de discurso, o trabalho foca a forma paradoxal pela qual a Corte atendeu uma demanda feminista e de movimentos de luta pelos direitos das mulheres: 1) escamoteando os vínculos com ativistas desses grupos e com os discursos que elas defendem sobre a autonomia das mulheres em relação a seus corpos; 2) mantendo o padrão tradicionalista e androcêntrico próprio do Direito. Assim, a análise descreve três artifícios de linguagem que se sobressaem na articulação desse paradoxo: explicação, nomeação e representação. O trabalho aponta a persistência no campo do Direito de paradigmas tradicionais e androcêntricos que a Justiça valoriza e com os quais opera. Este estudo visa contribuir para o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil, bem como discutir a relação entre linguagem / gênero / direito.

Discurso; Gênero; Feminismo; Direito; Aborto; Anencéfalo

ABSTRACT

This article presents an analysis of the Federal Supreme Court appellate decision in the Action for Breach of a Fundamental Precept number 54 (ADPF 54), which sought to resolve the controversy about the possibility of voluntary interruption of pregnancy in the case of fetuses with anencephaly. Through discourse analysis with a feminist approach, the paper focuses on the paradoxical way in which the Court met a feminist demand and women’s rights movements: (1) concealing the bonds with activists of these groups and with the discourses they defend about the autonomy of women in relation to their bodies; 2) maintaining the traditionalist and androcentric standard of law. Thus, the analysis describes three language devices that stand out in the articulation of this paradox: explanation, naming and representation. The paper points the persistence of the traditional and androcentric paradigms in the Law field that Justice values and with which it operates. This study aims to contribute to the debate on the decriminalization of abortion in Brazil, as well as to discuss the relationship between language / gender / law.

Discourse; Gender; Feminism Law; Abortion; Anencephaly

Introdução

Neste texto, proponho discutir a relação linguagem, gênero e direito a partir de uma análise discursiva de uma decisão da mais alta corte da Justiça brasileira sobre aborto, um tema recorrente de reivindicação de grupos feministas e movimentos sociais que lutam pela efetivação e ampliação de direitos das mulheres. Trata-se da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), que buscou solucionar a polêmica acerca da possibilidade de interrupção voluntária da gestação em caso de fetos com anencefalia1 1 “A anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural diagnosticável nas primeiras semanas de gestação. Por diversas razões, o tubo neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto. O líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo o desenvolvimento dos hemisférios cerebrais (DINIZ; VELEZ, 2008, p.648). .

Em seu desfecho, em 2012, a decisão foi aclamada como um significativo progresso em matéria de concretização de direitos reprodutivos das mulheres no cenário da jurisdição constitucional brasileira. Não obstante, em trabalho anterior, ao analisar o voto do relator da ADPF 54, o ministro Marco Aurélio de Mello, apontei que o STF aprovou a legalização da interrupção voluntária em caso de anencefalia, atendendo a uma reivindicação de correntes feministas, excluindo do debate os discursos desse campo e até mesmo escamoteando o empenho de suas representantes.

Isso porque a perspectiva de descriminalização do aborto, uma célebre reivindicação feminista, e que é tangenciada ao longo de todo o texto decisório, não é enfrentada na ADPF 54. Ao contrário, houve um esforço textual muito empenhado em evidenciar que a decisão restringia seu alcance, exclusivamente, aos casos de gravidez de anencéfalos e que estava excluída do pleito qualquer consideração sobre o direito das mulheres de, por livre escolha, interromper gestações.

Recentemente, diante do aumento considerável de casos de microcefalia em bebês cujas mães foram acometidas pela epidemia do Zika vírus, o debate sobre o tema foi reacendido. A antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília, ativista feminista e pesquisadora da ANIS2 2 A Anis - Instituto de Bioética e Direitos Humanos - é uma organização feminista, não-governamental e sem fins lucrativos, de utilidade pública federal, fundada em 1999, em Brasília (Informação disposta na página oficial da Anis: <http://anis.org.br/sobre>. , entidade que foi coautora da petição da ADPF 54 e que lutou, ao longo de todo o processo, pela concessão do direito das grávidas de anencéfalos de poder decidir sobre a antecipação do parto, afirmou, em entrevista à BBC Brasil, que prepara uma ação para pedir ao Supremo que autorize o aborto de fetos com microcefalia associada ao Zika vírus.

A análise discursiva que proponho neste artigo tem por objetivo contribuir para o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil, bem como discutir a relação linguagem/gênero/direito, tema ao qual tenho me dedicado em pesquisas desde 2010. Para isso, adoto um recorte teórico-metodológico ao qual nomeio como Análise Feminista de Discurso, seguindo preceitos próprios de epistemologias feministas (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, v.5, p.07-41, 1995.; PAREDES, 2010PAREDES, J. Hilando fino. Desde el feminismo comunitario. La Paz: Creative Commons, 2010.) e modos de análise de discurso de linguistas feministas, como Michele Lazar (2005LAZAR, M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political perspective and praxis. In: LAZAR, M. (Ed.). Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. New York: Palgrave Macmillan. 2005. p.1-28., 2007LAZAR, M. Feminist Critical Discourse Analysis: Articulating a Feminist Discourse Praxis. Critical Discourse Studies, v.4:2, p.141-164, 2007.), Viviane Heberle, Ana Cristina Ostermann e Débora Figueiredo (HEBERLE; OSTERMANN; FIGUEIREDO, 2006HEBERLE, V.; OSTERMANN, A. C.; FIGUEIREDO, D. (Org.). Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: UFSC, 2006.). Ao longo do texto, esclareço essa parceria com mais detalhes.

A ADPF 54, o aborto de anencéfalos e os campos em disputa

O documento que trago para análise é um gênero textual do direito denominado Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e é utilizado para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, que no âmbito jurídico está ligado diretamente aos valores supremos do Estado e da Sociedade. É um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no Supremo Tribunal Federal, que pode ser proposta pelos seguintes agentes: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do DF; V - o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) foi ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com assessoria da ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) para questionar a constitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, que tratam do crime de aborto, frente à possibilidade de mulheres grávidas de feto anencéfalo voluntariamente interromper a gestação.

O Brasil é o quarto país do mundo em número de partos de fetos com anencefalia (DINIZ; VELEZ, 2008DINIZ, D.; VELEZ, A. C. G. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.2, ago. 2008.). Não há tratamento ou cura e, em mais da metade dos casos, os fetos não resistem à gestação e os poucos que alcançam o momento do parto têm curto período de sobrevida. Anteriormente ao julgamento da arguição, as gestantes de anencéfalos que desejavam reagir ao transtorno de uma gravidez dessa natureza tinham que recorrer individualmente ao poder judiciário3 3 É importante ressaltar que o Brasil possui uma das legislações mais restritivas em termos de aborto. Até o julgamento da ADPF 54, nosso Código Penal (CP) só permitia a prática do aborto: I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante e; II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. . Não havia uma uniformização da jurisprudência e, na maioria dos casos, a decisão somente ocorria após o nascimento.

Até o julgamento final da ADPF 54, em 2012, a indefinição quanto ao caráter do procedimento vinha se arrastando há mais de uma década. Ainda em 2004, à época do ajuizamento, o ministro Marco Aurélio de Mello concedeu uma liminar que autorizava antecipação do parto de fetos anencefálicos. Essa liminar, contudo, foi cassada em sessão plenária da Suprema Corte, quatro meses após entrar em vigor, retomando a obrigatoriedade das mulheres de se manterem grávidas a despeito do diagnóstico da inviabilidade fetal.

Ao reconstruir o histórico da ADPF 54, Camargo (2011)CAMARGO, M. M. L. As audiências públicas no supremo tribunal federal brasileiro: o exemplo da ADPF 54. Publica Direito [on-line], 2011. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=01d8bae291b1e472>. Acesso em: 2 nov. 2016.
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esclarece que, logo após a cassação da liminar, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB fez um pedido à Corte para participar como amicus curiae4. Porém, na época o pedido foi negado com a justificativa de que a Lei 9882, que regulamenta a ADPF, não previa tal hipótese. Contudo, outras solicitações se sucederam, a maioria de entidades de caráter religioso e contrárias à proposta da ADPF 54. Em 2005, a pressão decorrente dessa mobilização leva a uma polarização de forças contrárias e a favor do pleito, momento em que o então Ministro Nelson Jobim sugeriu a realização de uma audiência pública. Não obstante a importância do tema, foi somente em julho de 2008 que se determinou, em definitivo, a realização de audiências5 5 Os participantes dessas audiências compreenderam vinte e duas instituições, representadas por vinte e nove pessoas. Carvalho (2011) registra que, das vinte e duas instituições, quatorze se manifestaram a favor (63,6%); sete, contra (31,8%); e uma (4,5%) apresentou argumentos nos dois sentidos, no caso, o Poder Legislativo. Dos vinte e nove representantes, quinze eram homens (51,7%) e quatorze eram mulheres (48,3). Nesses momentos, houve uma polarização bastante emocional de pontos de vista a favor e contra a descriminalização do aborto. (CARVALHO, 2011CARVALHO, F. M. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal: uma alternativa democrática? 2011. 118f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2011.).

Nessa disputa, três seguimentos principais se destacaram, representando posicionamentos, em determinados pontos, bastante antagônicos: o médico, o religioso e o feminista6 6 O primeiro pode ser considerado o próprio arguente, englobado na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e por ela representado. Várias entidades desse segmento e até personalidades nomeadas estão listadas no relatório do acórdão, como amicus curiae, são elas: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia; Sociedade Brasileira de Genética Clínica; Sociedade Brasileira de Medicina Fetal; Conselho Federal de Medicina; Deputado Federal José Aristodemo Pinotti ex-Reitor da Unicamp, fundador do Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas – CEMICAMP e especialista em pediatria, ginecologia, cirurgia e obstetrícia. No grupo das entidades religiosas estão: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; Associação Nacional Pró-vida e Pró-família; Associação de Desenvolvimento da Família e Igreja Universal, embora esta última tenha se posicionado a favor do pleito. No bloco feminista ou a ele alinhado estão: a ANIS, Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero que, na petição inicial, é considerada coautora da ação; a Rede Nacional Feminista de Saúde; Direitos Sociais e Direitos Representativos; a Escola de Gente (direitos humanos). Também alinhada com esse segmento, estão as Católicas pelo Direito de Decidir, entidade composta por grupos de teólogas no interior da Igreja Católica, contrárias a posição da instituição no caso da ADPF 54. . O posicionamento das Igrejas em geral, e da Católica especificamente, é de que o aborto é um pecado perante Deus, e fere o direito à vida, que é considerada a partir da fecundação (ALDANA, 2008ALDANA, M. Vozes católicas no Congresso Nacional: aborto, defesa da vida. Rev. Estudos Feministas, v.16, n.2, p.639-646, ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000200018&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 set. 2014.
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). Em contraposição, o aborto é visto pelos movimentos feministas como uma questão de direito individual à livre escolha da mulher sobre seu corpo, incluindo aí a maternidade (SCAVONE, 2008SCAVONE, L. Políticas feministas do aborto. Revista Estudos Feministas, v.16: 2, p.675-680, ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000200023&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 set. 2014.
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). Já entre os profissionais da medicina, a questão do aborto é polêmica, no entanto, houve um consenso na CNTS quanto ao aborto de anencéfalos, pelo interesse de resguardar os profissionais que intervêm nesses casos das consequências penais em que podem incorrer quando praticam o procedimento.

Esse intricado cenário exigiu um esforço argumentativo muito complexo por parte das ministras e ministros do STF, que tiveram que endereçar discursivamente segmentos sociais completamente opostos ideologicamente e equacionar situações díspares, como: por um lado, dar direito das mulheres grávidas de anencéfalos a proceder legalmente ao abortamento dos fetos, sem alterar significativamente a legislação sobre aborto vigente no país; por outro lado, garantir a posição de laicidade do Estado brasileiro, sem desconsiderar a importância dos seguimentos religiosos e suas crenças sobre a vida e a morte.

Conforme esclarecem Miranda Netto e Camargo (2010)MIRANDA NETTO, F. G. de; CAMARGO, M. M. L. Representação argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação do Supremo Tribunal Federal? Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, Fortaleza – CE, 09-12 de junho de 2010. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3589.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018.
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, as juízas e juízes do Tribunal Constitucional têm que justificar cada ato decisório seu na constante busca por adesão popular, a fim de garantir sua função de representante frente aos seus representados (o povo), por isso, investem muito empenho argumentativo em seus votos. No caso da ADPF 54, esse empenho se expressa tanto na extensão do texto decisório, que ocupa 433 páginas, quanto no tempo demandado para o julgamento, quase uma década.

Minha análise recai exatamente sobre o esforço discursivo, nesse caso emblemático de direito das mulheres, em face desse intrincado campo de disputas. Tenho como direcionamento as perguntas de Castilho (2008)CASTILHO, E. W. V. A criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero? Cadernos Pagu [on-line], n.31, p.101-123, 2008. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332008000200006>. Acesso em: 4 jan. 2017.
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e Pimentel (2009)PIMENTEL, S. A superação da cegueira de gênero: mais do que um desafio – um imperativo. Revista Direitos Humanos, n.2, p.27-30, jun. 2009.: ao decidirem, as juízas e juízes reconhecem a perspectiva de gênero e contemplam os discursos que buscam evidenciar a subsistência do patriarcado, as relações de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres? Com esse norte, desenvolvo uma análise discursiva articulada pelas questões de gênero/sexualidade (HEBERLE; OSTERMANN; FIGUEIREDO, 2006HEBERLE, V.; OSTERMANN, A. C.; FIGUEIREDO, D. (Org.). Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: UFSC, 2006.) e Teoria Feminista (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, v.5, p.07-41, 1995.; PAREDES, 2010PAREDES, J. Hilando fino. Desde el feminismo comunitario. La Paz: Creative Commons, 2010.), que chamo aqui de Análise Feminista de Discurso (LAZAR, 2005LAZAR, M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political perspective and praxis. In: LAZAR, M. (Ed.). Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. New York: Palgrave Macmillan. 2005. p.1-28., 2007LAZAR, M. Feminist Critical Discourse Analysis: Articulating a Feminist Discourse Praxis. Critical Discourse Studies, v.4:2, p.141-164, 2007.; BAXTER, 2003BAXTER, J. A. Positioning gender in discourse: a feminist methodology. New York: Palgrave Macmillan, 2003., 2008BAXTER, J. Feminist post-structuralist discourse analysis: a new theoretical and methodological approach? In: HARRINGTON, K.; LITOSSELITI, L.; SAUNTSON, H.; SUNDERLAND, J. (Eds.). Gender and Language Research Methodologies. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2008. p.243-255.), sobre a qual dedico o próximo tópico.

Análise Feminista de Discurso

A análise feminista de discurso que me proponho a desenvolver sobre o texto da ADPF 54 é uma investida que se fundamenta em um crescente campo de estudos discursivos com foco na temática de gênero e sexualidade que assumem uma perspectiva feminista declarada e que reivindicam a inclusão do termo “Feminista” a trabalhos de Análise de Discurso.

Embora na Linguística Aplicada exista, desde as últimas três décadas, uma ampla bibliografia de estudos ancorados sob o eixo gênero/sexualidade e discurso (HOLMES; MEYERHOFF, 2003HOLMES, J.; MEYERHOFF, M. The handbook of language and gender. Oxford: Blackwell Publishing, 2003.; EHRLICH; MEYERHOFF; HOLMES, 2014EHRLICH, S.; MEYERHOFF, M.; HOLMES, J. The Handbook of Language, Gender, and Sexuality. New York: Wiley-Blackwell, 2014.) e muitas das autoras desses trabalhos filiem-se a correntes feministas, o termo Feminista propriamente só começa a aparecer em parceria com o binômio Análise de Discurso a partir dos anos 2000. Um dos primeiros exemplos dessa junção é o artigo de Ann Weatherall e Anna Priestley, publicado em 2001, na revista Feminism & Psychology, cujo título era: “Uma análise feminista de discurso sobre trabalho sexual”7 7 Tradução livre de título original: A Feminist Discourse Analysis of Sex ‘Work’. (WEATHERALL; PRIESTLEY, 2001)WEATHERALL, A.; PRIESTLEY, A. A Feminist Discourse Analysis of Sex ‘Work’. Feminism & Psychology, v. 11:3, p.323-340, 2001..

Definir uma abordagem linguística que se possa rotular como “análise feminista de discurso” é uma tarefa complexa, conforme observou Mary Bucholtz (2003)BUCHOLTZ, M. Theories of discourse as theories of gender: discourse analysis in language and gender studies. In: HOLMES, J.; MEYERHOFF, M. (Eds.). The handbook of language and gender. Oxford: Blackwell Publishing, 2003. p.43-69.. Tanto porque os estudos discursivos articulados pelas categorias “gênero” e “sexualidade” não são necessariamente feministas, bem como não se pode aferir uma única forma de feminismo à qual esses estudos se afiliem.

O rótulo “feminista”, no singular, na realidade cobre uma pluralidade de correntes com especificidades próprias, como feminismo cultural, feminismo liberal, feminismo pós-moderno, feminismo radical, etc. (SOUSA, 2015SOUSA, R. M. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.). Não obstante, ainda que plural, o feminismo, nas suas diferentes vertentes, converge para o interesse comum de compreender e superar as desigualdades sociais relacionadas ao gênero e à sexualidade (BUCHOLTZ, 2014BUCHOLTZ, M. The feminist foundations of language, gender, and sexuality research. In: EHRLICH, S.; MEYERHOFF, M.; HOLMES, J. The Handbook of Language, Gender, and Sexuality. New York: Wiley-Blackwell, 2014. p.23-47.).

Assim como o feminismo em si não é unificado, o crescente campo de estudos discursivos com perspectiva feminista também não o é. São exemplos dessa investida propostas como a Análise da Conversa Feminista (KITZINGER, 2000KITZINGER, C. Doing feminist conversation analysis. Feminism & Psychology, n.10:2, p.163-193, 2000.), Estilística Feminista (MILLS, 1995MILLS, S. Feminist stylistics. London: Routledge, 1995.), Pragmática Feminista (CHRISTIE, 2000CHRISTIE, C. Gender and language: towards a feminist pragmatics. Edinburgh, UK: Edinburgh University Press, 2000.), Análise Crítica Feminista de Discurso (LAZAR, 2005LAZAR, M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political perspective and praxis. In: LAZAR, M. (Ed.). Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. New York: Palgrave Macmillan. 2005. p.1-28., 2007LAZAR, M. Feminist Critical Discourse Analysis: Articulating a Feminist Discourse Praxis. Critical Discourse Studies, v.4:2, p.141-164, 2007.) e Análise de Discurso Feminista Pós-Estruturalista (BAXTER, 2003BAXTER, J. A. Positioning gender in discourse: a feminist methodology. New York: Palgrave Macmillan, 2003., 2008BAXTER, J. Feminist post-structuralist discourse analysis: a new theoretical and methodological approach? In: HARRINGTON, K.; LITOSSELITI, L.; SAUNTSON, H.; SUNDERLAND, J. (Eds.). Gender and Language Research Methodologies. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2008. p.243-255.). Essas correntes encontram-se mais ou menos unificadas em seus objetivos políticos gerais, mas dividem-se nas formas teórico-metodológicas que seguem para alcançá-los.

Observa-se que tais propostas se desenvolvem a partir de correntes teóricas já consideradas canônicas dentro dos estudos de linguagem, como a Análise de Discurso Crítica (WOODAK; MEYER, 2001WOODAK, R.; MEYER, M. (Orgs.). Methods of Critical Discourse Analysis. Londres: Sage Publications, 2001.), a Análise da Conversa (SACKS, 1992SACKS, H. Lectures on Conversation. Oxford: Blackwell, 1992.), a Pragmática (MEY, 2001MEY, J. L. Pragmatics: an introduction. 2. ed. Mass., EUA e Oxford, Reino Unido: Blackwell Publishers, 2001.), a Estilística (BRADFORD, 1997BRADFORD, R. Stylistics. London and New York: Routledge, 1997.) etc. Recorrentemente estudos discursivos sobre gênero e sexualidade de viés feminista vinham sendo produzidos sob essas rubricas sem, contudo, serem visibilizados. Gradativamente, uma postura declarada foi sendo assumida na inclusão do termo “Feminista” a esses rótulos como uma estratégia política de firmar e fortalecer a representatividade feminista dentro do mainstream da Linguística Aplicada.

Basicamente, esses estudos empreendem uma reapropriação dos pontos de vista teórico-metodológicos e das ferramentas analíticas daquelas correntes canônicas, com fins especificamente feministas: a contestação das desigualdades sociais relacionadas ao gênero e à sexualidade, reconhecendo as intersecções com categorias como raça, classe, geração, etnia etc.; a desconstrução dos códigos que naturalizam e perpetuam essas desigualdades e o empenho na superação dos sistemas sexistas. Reapropriação e recriação são dinâmicas recorrentes e recomendáveis à prática feminista, como observa Audre Lorde (2007)LORDE, A. Sister outsider: essays and speeches. Berkeley: Crossing Press, 2007.. Em seu famoso ensaio sobre os riscos da apropriação das “ferramentas do mestre”, a autora alerta para o poder que exercem as dinâmicas do patriarcado, das quais a ciência está também investida, e propõe a reapropriação do conhecimento e o uso da força criativa, na investigação e no ativismo feminista.

A análise feminista de discurso que desenvolvo neste artigo é igualmente uma reapropriação de pressupostos de correntes já em vigor nos estudos de linguagem com viés feminista. Basicamente, busco apoio nos trabalhos de Michele Lazar, para quem o objetivo de uma análise crítica feminista de discurso é:

[...] mostrar as formas complexas, sutis, e às vezes não tão sutis, nas quais as premissas de gênero frequentemente assumidas e as relações de poder hegemônicas são produzidas discursivamente, sustentadas, negociadas e desafiadas em diferentes contextos e comunidades. (LAZAR, 2005LAZAR, M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political perspective and praxis. In: LAZAR, M. (Ed.). Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. New York: Palgrave Macmillan. 2005. p.1-28., p.145).

A aproximação com o trabalho dessa autora se deve à minha experiência com a Análise de Discurso Crítica, campo do qual ela empresta as ferramentas teórico-metodológicas para sua abordagem feminista e das quais tenho me servido em meus próprios trabalhos. Não adoto, contudo, a mesma nomeação da autora, porque avalio, em um primeiro momento, que o termo “crítica” seja redundante em estudos feministas, considerados de antemão como abordagens críticas (GUBA; LINCOLN, 1994GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Competing paradigms in qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Eds.). Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 1994. p.105-117.), assim, prefiro a forma mais sucinta: análise feminista de discurso.

Em um segundo momento, justifico essa escolha também pelo entendimento de que as pesquisas feministas operam, desde o início, dentro de um programa politicamente investido na luta por reconhecimento e, nessa medida, é imperativo reivindicar rótulos próprios que nos representem e destaquem nossa localização (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, v.5, p.07-41, 1995.) nas vias do conhecimento. Há tempos linguistas brasileiras como, Ana Cristina Ostermann, Débora Figueiredo, Viviane Herberle (HEBERLE; OSTERMANN; FIGUEIREDO, 2006HEBERLE, V.; OSTERMANN, A. C.; FIGUEIREDO, D. (Org.). Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis: UFSC, 2006.), Carmen Rosa Caldas-Coulthard (1996)CALDAS-COULTHARD, C. “Women who Pay for Sex. And Enjoy It”: Transgression versus Morality in Women’s Magazines. In: CALDAS-COULTHARD, C.; COULTHARD, M. (Org.). Texts and Practices. London: Routledge, 1996. p.248-268., Suzana Funck (2007)FUNCK, S. B. A (in)visibilidade da mulher na mídia impressa: uma análise discursiva. Comunicação & Inovação, v.8, p.15-22, 2007., apenas para citar algumas, têm publicado trabalhos sob os eixos linguagem/gênero/sexualidade com perspectivas feministas, sem, contudo, assumi-las nominalmente.

Neste artigo, portanto, sigo os passos de Audre Lorde rumo a uma reapropriação e recriação do conhecimento nos estudos feministas, e os de Julieta Paredes (2010)PAREDES, J. Hilando fino. Desde el feminismo comunitario. La Paz: Creative Commons, 2010., que prega a necessidade da autonomia das feministas latinas frente às epistemologias feministas ocidentais. Assim, adoto esse rótulo, tanto pela busca de uma autoidentificação, como pelo seu potencial de abrigar, sob uma mesma nomeação, diferentes formas de análises discursivas unidas no empenho feminista de desafiar sistemas de conhecimento sexistas.

A análise discursiva que desenvolvo sobre o texto da ADPF 54 se volta justamente sobre o sistema de conhecimento que embasa essa decisão fundamentada no âmbito do Direito. Sobre esse sistema, autoras filiadas às Teorias Feministas do Direito (BARTLETT, 1991BARTLETT, K. T. Feminist legal methods. In: BARLETT, K. T.; KENNEDY, R. Feminist legal theory. Colorado: Westview Press, 1991. p.370-403.) denunciam que ele incorpora noções ontológicas que embasam as instituições modernas, em que o homem é o referente universal e a mulher é o especial e o derivado. Como consequência dessa relação, os direitos das mulheres são subalternizados frente a esse sujeito, e sempre em referência aos mesmos lugares: o da sexualidade, o da conjugalidade e o da procriação. Tal dinâmica determina que as reformas legais acabem sendo meramente paliativas, iludem a realidade, mas não a transformem propriamente (SOUSA, 2015SOUSA, R. M. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.).

A ADPF 54, ao decidir sobre a possibilidade de aborto, um direito há décadas reivindicado por movimentos de mulheres e feministas, constitui, portanto, um objeto especial para uma análise que busca desvelar, na linguagem, as ideologias e modos de agir que estruturam as decisões da justiça, em um caso tão emblemático de direito das mulheres. É ao que me proponho a seguir, pela combinação entre Análise de Discurso e Teoria Feminista.

Uma análise feminista do discurso das ministras e ministros do STF na ADPF 54

O ponto de partida para a análise que desenvolvo sobre o acórdão da ADPF 54 (BRASIL, 2012) é a percepção paradoxal de que, embora a Corte tenha atendido a uma demanda feminista e de movimentos de luta pelos direitos das mulheres, o fez de forma a escamotear os vínculos com esses grupos e com os discursos que eles defendem sobre a autonomia das mulheres em relação a seus corpos e sem romper com o padrão tradicionalista e androcêntrico próprio do Direito. Ao contrário, o acórdão revela a resistência que existe nesse campo em enfrentar esses paradigmas que a Justiça valora e com os quais opera. Assim, minha análise se volta à descrição e discussão sobre os artifícios de linguagem que articularam esse paradoxo, dos quais destaco três especificamente: explicação, nomeação e representação, conforme desenvolvo a seguir.

Aprovar aborto de anencéfalo em um país cristão: justificativas e explicações

Um dos problemas de qualquer comunicação é o risco de comprometer a imagem social dos participantes, por isso a necessidade de estratégias que amenizem esse comprometimento, ou seja, um elaborado “trabalho de face”, conforme nomeou Goffman (1967)GOFFMAN, E. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Anchor Books, 1967. o esforço que fazemos para ser bem avaliados. Esse conceito tem sido mais amplamente explorado em estudos que definem seus objetos acadêmicos como interação face a face, excluindo, assim, a comunicação assíncrona e escrita.

Não obstante, os acórdãos são gêneros textuais de caráter altamente interativo, pois registram a trocas argumentativas que os membros dos Tribunais, em seus votos, endereçam recorrentemente entre si e a mais participantes. Portanto, embora seja uma peça escrita, o acórdão é construído a partir dessas interações que, inclusive, em dados momentos, são empreendidas face a face, como foi o caso da ADPF 54, em que audiências públicas fizeram parte do processo decisório e nas quais, conforme observa Camargo (2011CAMARGO, M. M. L. As audiências públicas no supremo tribunal federal brasileiro: o exemplo da ADPF 54. Publica Direito [on-line], 2011. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=01d8bae291b1e472>. Acesso em: 2 nov. 2016.
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, p.14), “prevalece a oralidade e a presença do público”.

Assim, ao longo de todo o texto, percebemos a preocupação das ministras e ministros com a avaliação de seus interlocutores que, em última instância, compreendem a própria “Nação” brasileira, conforme é textualmente assumido pelo Ministro Celso de Mello:

Relembrando o saudoso Ministro LUIZ GALLOTTI e considerando o alto significado da decisão a ser tomada por esta Suprema Corte, nesta ação de descumprimento de preceito fundamental, sobre o pretendido direito, em favor de gestantes, à antecipação terapêutica de parto, nas situações excepcionais de anencefalia fetal, tenho presente a grave advertência, por ele então lançada, de que, em casos emblemáticos como este, o Supremo Tribunal Federal, ao proferir o seu julgamento, poderá ser, ele próprio, “julgado pela Nação”. (Voto do Ministro Celso de Mello, p.317).

Tendo em mira esse julgamento, são acionados vários recursos discursivos por parte das ministras e ministros para se protegerem de possíveis avaliações negativas. Dentre esses recursos, destaco a “explicação” ou “prestação de contas” (PASSUELLO; OSTERMANN, 2007PASSUELLO, C. B.; OSTERMANN, A. C. Aplicação da análise da conversa etnometodológica em entrevista de seleção: considerações sobre o gerenciamento de impressões. Estud. Psicol., Natal, n.12:3, p.243-251, dec. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2007000300006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1 fev. 2017.
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; OSTERMANN; ANDRADE; FREZZA, 2016OSTERMANN, A. C.; ANDRADE, D. N. P.; FREZZA, M. A prosódia como componente de formação e de atribuição de sentido a ações na fala-em-interação: o caso de formulações no tribunal. DELTA, São Paulo, n.32:2, p.481-513, ago. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502016000200481&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 9 fev. 2017.
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). Esses termos são tentativas de tradução para o correlato em língua inglesa accountability, cunhado por Garfinkel (1967 apud OSTERMANN; ANDRADE; FREZZA, 2016OSTERMANN, A. C.; ANDRADE, D. N. P.; FREZZA, M. A prosódia como componente de formação e de atribuição de sentido a ações na fala-em-interação: o caso de formulações no tribunal. DELTA, São Paulo, n.32:2, p.481-513, ago. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502016000200481&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 9 fev. 2017.
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) para referir-se à noção de responsabilidade normativa que, uma vez quebrada, abre espaço para o provimento de desculpas, explicações e prestações de contas.

Na primeira página do acórdão, logo abaixo do cabeçalho, lê-se a seguinte sequência: ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.

Esse arranjo textual obedece às normas de indexação de conteúdo temático por palavras-chave que são próprias das convenções esquemáticas das ementas jurisprudenciais (GUIMARÃES, 2004GUIMARÃES, J. A. C. Elaboração de ementas jurisprudenciais. Elementos teórico-metodológicos. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2004.). A sequência de palavras enfatiza a relação Estado e Laicidade. Imediatamente em seguida, as duas frases que também obedecem às normas exigidas para as ementas, privilegiando a concisão e clareza (GUIMARÃES, 2004GUIMARÃES, J. A. C. Elaboração de ementas jurisprudenciais. Elementos teórico-metodológicos. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2004.), destacam a posição de neutralidade do Brasil, como uma república laica, em relação às religiões. Como a separação entre Estado e religião é uma condição essencial das democracias modernas, que exigem a laicidade como uma consequência lógica da aplicação de seus princípios, afirmar a laicidade do Estado seria uma redundância. Porém, a sequência performa uma explicação antecipada das autoridades que assinam a decisão, sobre o ato de atenderem a uma demanda que contraria princípios religiosos tão fundamentais como a vida e a morte. O realce à neutralidade religiosa da Corte de antemão, bem no início do texto, tem a funcionalidade de um account.

Nas palavras de Ostermann, Andrade e Frezza (2016)OSTERMANN, A. C.; ANDRADE, D. N. P.; FREZZA, M. A prosódia como componente de formação e de atribuição de sentido a ações na fala-em-interação: o caso de formulações no tribunal. DELTA, São Paulo, n.32:2, p.481-513, ago. 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502016000200481&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 9 fev. 2017.
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, accounts são tentativas de justificar-se, explicar-se ou empreender alguma outra ação que demonstre a orientação de participantes para um possível problema, seja de ordem moral, seja de ordem racional ou, mesmo, de ordem prática, frente ao que foi dito. Ainda segundo as autoras, essas explicações podem ser de natureza espontânea ou requerida. No primeiro caso, quem as fornece tenta antecipar-se às possíveis implicações morais que dado seguimento discursivo pode gerar.

Tal perspectiva fica latente em toda a decisão, cujo texto é composto de explicações recorrentes sobre como a posição de laicidade do Estado não se incompatibiliza com o respeito às crenças religiosas, como mostram os recortes a seguir:

No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões merecem igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião oficial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir dinâmica de uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral, em um contexto desafiador em que, se, de um lado, o Estado contemporâneo busca adentrar os domínios do Estado (ex: bancadas religiosas no Legislativo). Destacam-se, aqui, duas estratégias: a) reforçar o princípio da laicidade estatal, com ênfase à Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação com base em Intolerância Religiosa; e b) fortalecer leituras e interpretações progressistas no campo religioso, de modo a respeitar os direitos humanos”. (Voto do Ministro Joaquim Barbosa, p.229-230, citando Flávia Piovesan em: Direitos Humanos (Coord.). Curitiba: Juruá editora, 2007. p.24-25).

Em seu voto, o então Ministro Joaquim Barbosa justifica sua posição favorável ao pleito da descriminalização do aborto de feto anencéfalo, enfatizando a necessidade de se garantir a laicidade do Estado e, para isso, tece uma longa explicação, em que se apropria das palavras da jurista citada, sobre como a laicidade não configura desrespeito ou desconsideração com as religiões. A mesma ênfase no respeito também é dada pelo Ministro Celso de Medo na explicação que ele tece sobre laicidade para justificar seu voto, alinhado com o de seu colega:

Com efeito, uma das características essenciais das sociedades contemporâneas é o pluralismo. Dentro de um mesmo Estado, existem pessoas que abraçam religiões diferentes - ou que não adotam nenhuma -; que professam ideologias distintas; que têm concepções morais filosóficas díspares ou até antagônicas. E, hoje, entende-se que o Estado deve respeitar estas escolhas e orientações de vida, não lhe sendo permitido usar do seu aparato repressivo, nem mesmo do seu poder simbólico, para coagir o cidadão a adequar sua conduta às concepções hegemônicas na sociedade, nem tampouco para estigmatizar os ‘outsiders’. (Voto do Ministro Celso de Mello, p.336, citando: Daniel Sarmento “Legalização do Aborto e Constituição”, “in” “Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos”, p.03/51, 26-27, 2007, Lumen Juris).

Explicações e justificativas como as que se vem nesses recortes são identificadas em estudos críticos de discurso na categoria dos implícitos, como afirma Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. New York: Routledge, 2003., p.42) “o que é dito em um texto o é sempre em relação ao não-dito8 8 Tradução livre. ”. Assim, a laicidade do Estado brasileiro é afirmada em relação à enorme força simbólica que as religiões, especialmente as de viés cristão, ainda detêm sobre nossa sociedade e suas instituições. Na realidade, conforme discute feministas como Vuola (2001)VUOLA, E. God and the government: women, religion, and reproduction in Nicaragua. Meeting of the Latin American Studies Association (LASA), Washington DC, setembro de 2001. Disponível em: <http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2001/VuolaElina.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2017.
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, o triunfo da secularização sobre a religião, uma promessa da modernidade, não se concretizou como um fenômeno global. Ao contrário, é uma evidência da Europa Ocidental que, no resto do mundo, e aí ela destaca a América Latina cristã, representa mais uma exceção a ser explicada do que uma regra pacificada.

O estado é laico, mas não é ateu: a pervasividade da cultura cristã

Ao longo de toda a decisão laicidade/religião formam um par antagônico indicativo da dualidade que atravessa a ADPF 54 ao decidir em favor de direito das mulheres ao aborto em um país fortemente dominado pelo poder simbólico da religião. Poder sobre o qual a teoria feminista denuncia o caráter eminentemente androcêntrico, hierárquico e de sustentação de uma estrutura patriarcal (ROSADO, 2001ROSADO, M. J. O impacto do feminismo sobre o estudo das religiões. Cadernos Pagu, Campinas, n.16, p.79-96, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332001000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28 fev. 2017.
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) que, por sua vez, também molda o campo do Direito (SOUSA, 2015SOUSA, R. M. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.).

Sem articular uma retórica para evidenciar essa subsistência, as ministras e ministros do STF acabam por acomodar a decisão a esses mesmos moldes sem confrontá-los. Ao contrário, no acórdão há muitos arranjos de linguagem que nos estudos de interação faca-a-face estariam associados a marcas de envolvimento que colaboram no gerenciamento de impressões positivas (GOFFMAN, 1967GOFFMAN, E. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Anchor Books, 1967.). Uma das táticas que identifiquei nesse gerenciamento, além das explicações sobre a compatibilidade entre Estado laico e religiosidade, foi uma aproximação com o próprio discurso religioso. O melhor exemplo está na abertura do voto do relator da ADPF54:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Padre Antônio Vieira disse-nos: “E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e todas as coisas desde o seu princípio nasceram juntas com o tempo, por isso nem ele, nem elas podem parar um momento, mas com perpétuo moto, e resolução insuperável passar, e ir passando sempre” – Sermão da Primeira Dominga do Advento. (Voto do Ministro Marco Aurélio, p.32).

Observa-se, neste recorte, que o Ministro Marco Aurélio de Mello, encaixa um trecho em citação ao Sermão da Primeira Dominga do Advento de Padre Antônio Vieira logo nas primeiras linhas de seu texto, buscando uma aproximação com o discurso religioso, orientado por um viés cristão e católico. O voto do relator tem um papel direcionador, na decisão, pois é a partir dele que os demais membros da Corte se posicionam contra ou a favor. Assim, o ministro, ao apoiar um pleito que contraria dogmas religiosos, em especial da Igreja Católica, que empreende uma verdadeira cruzada moral contra o aborto em qualquer situação, buscou proteção nas palavras de um religioso.

O juiz poderia ter acionado diretamente uma perspectiva da tradição liberal do Estado, na qual a propriedade de si mesmo é a base indispensável para o acesso à cidadania, e assumir que a liberdade de escolha sobre levar adiante ou interromper uma gestação indesejada é um reforço à autonomia de cerca de metade da população. Mas, ao invés disso, preferiu acomodar sua retórica em moldes menos diretos e revestidos de uma perspectiva que não se incompatibiliza com o viés cristão. Assim, fez dele as palavras do religioso, que enfatizam a necessidade de acolhimento a mudanças que são demandadas invariavelmente de acordo com cada tempo histórico, referindo-se, portanto, ao objeto da ADPF54, que, somente no estágio atual de avanço dos estudos médicos sobre anencefalia, ensejou uma mudança de perspectiva do judiciário sobre o aborto de anencéfalos.

No final de seu voto, após uma longa exposição sobre as premissas que sustentaram sua decisão, o ministro conclui, ressaltando a separação entre Estado e religião, mas fazendo uma ressalva:

Conclui-se que, a despeito do preâmbulo, destituído de força normativa – e não poderia ser diferente, especialmente no tocante à proteção divina, a qual jamais poderia ser judicialmente exigida –, o Brasil é um Estado secular tolerante, em razão dos artigos 19, inciso I, e 5º, inciso VI, da Constituição da República. Deuses e césares têm espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro. (Voto do Ministro Marco Aurélio, p.39).

A forma como o ministro encerra sua discussão, em que laicidade e religião são temas centrais, corrobora a crítica de feministas como Vuola (2011), que já comentei anteriormente e que é apoiada no trabalho de Montero (2011)MONTERO, P. O campo religioso, secularismo e a esfera pública no Brasil. Boletim CEDES, PUC-RJ, 2011.Disponível em: <http://www.cis.puc-rio.br/cis/cedes/PDF/out_2011/campo.pdf>. Acesso em: 02 out. de 2017.
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sobre as características distintivas do Estado nacional no Brasil, determinadas por uma conformação particular com o campo religioso. Ao afirmar que o Estado laico não é ateu, o ministro se protege dos estigmas que recaem sobre essa figura em nossa sociedade, o oposto inverso ao homem religioso, que é tido com desconfiança por sua falta de fé, percebido “como recusa em estabelecer relações de reciprocidade e aliança com a esfera sobrenatural e, em última instância, com os congêneres humanos” (MONTERO, 2011MONTERO, P. O campo religioso, secularismo e a esfera pública no Brasil. Boletim CEDES, PUC-RJ, 2011.Disponível em: <http://www.cis.puc-rio.br/cis/cedes/PDF/out_2011/campo.pdf>. Acesso em: 02 out. de 2017.
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, p.3).

Para a autora, compreender o que define as peculiaridades do Estado nacional no Brasil demanda considerar a hegemonia histórica da ainda pervasiva cultura cristã em nossa sociedade. Nessa medida, o acórdão da ADFP54 é ilustrativo, pois ao longo do texto esse viés é latente e em alguns momentos emerge textualmente, revelando engajamentos pessoais com esse campo, como se percebe no trecho seguinte:

Hoje de manhã, acordei e agradeci a Deus por poder contribuir com a humanidade por meio de uma decisão que pode conjurar tristezas, angústias, dores, aflições e, ao mesmo tempo, pedi a Deus que a razão e a paixão me acompanhassem no exercício desse mais alto apostolado que um ser humano pode se dedicar nesse mundo de Deus: a magistratura. (Voto do Ministro Luiz Fux, p.154-155).

Esse recorte parece dar amparo para o que destacou o Relator naquele excerto anterior, sobre o fato de o Estado ser laico não implicar contrariamente em seus representantes serem ateus. É o que se pode depreender do que foi enunciado neste trecho do discurso do Ministro Luiz Fux, que na esteira do juiz Marco Aurélio de Mello, logo no início de sua explanação que acompanha o voto do colega, assume uma explícita articulação religiosa.

Pelo que demonstro nessas análises, compreendo que o argumento da laicidade do Estado, tão recorrente na ADPF54, ao contrário de atestar uma incorporação genuína e pacificada desse valor pela Corte, revela mais as ambivalências de tal incorporação. O volume das explicações fornecidas para justificar tal premissa é proporcional ao perigo de quebrada de responsabilidade normativa que o argumento impõe ao STF ao decidir sobre um tema como o aborto, tão caro à tradição cristã de nossa sociedade.

Mas além da sociedade brasileira em si, ainda considero merecedor de nota outro âmbito de interlocução a que a decisão se dirige, ainda que não de forma assumida. Como comentam Diniz e Velez (2008DINIZ, D.; VELEZ, A. C. G. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.2, ago. 2008., p.649), apesar da laicidade do Estado Brasileiro, “causa pouca controvérsia política a existência de congressistas religiosos ou com base política confessional, cuja pauta legislativa é promover e defender os interesses acomodou específicos de suas comunidades morais de origem e não uma ideia de pluralismo moral razoável”. Ainda que o texto não permita maiores evidências sobre esse interlocutor, ele tem uma breve menção naquele recorte que dispus páginas atrás, do voto do Ministro Joaquim Barbosa, sobre as “bancadas religiosas no legislativo”.

De qualquer modo, o que mais destaco sobre os arranjos textuais que manipularam o par laicidade/religião, é que a Corte os acionou de forma a driblar as tensões que decidir sobre a descriminalização do aborto de anencéfalos impôs aos seus membros no contexto de uma certa ordem cultural vigente. Tensões que as ministras e ministros do STF acomodaram por uma estratégia discursiva que, ao contrário de desafiar abertamente o discurso hegemônico, a ele se alinhou.

Decidir sobre aborto sem falar nele: o manejo das nomeações

Essa estratégia de acomodação é o que sobressai no acórdão, e, aqui, para dar continuidade a minha análise, destaco outro artifício discursivo que a articulou, o manejo com nomeações para lidar com outras dualidades: vida/morte, feto/mulher. Trata-se do par: aborto e a antecipação terapêutica do parto. Demonstro que, paradoxalmente, para aprovar o aborto foi preciso antes não falar nele. Começo a demonstrar esse paradoxo com um recorte do voto do Ministro Celso de Mello, o único a esboçar uma argumentação que poderia ter aberto uma brecha interpretativa para a extensão do direito de interrupção de gravidez para além dos casos de anencefalia:

O Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente, no estágio em que já se acha este julgamento, está a reconhecer que a mulher, apoiadaem razões diretamente fundadas em seus direitos reprodutivose protegidapela eficácia incontrastável dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, tem o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de parto, nos casos de comprovada malformação fetal por anencefalia, ou, então, legitimadapor razões que decorrem de sua autonomia privada, o direito de manifestar a sua vontade individual pelo prosseguimento do processo fisiológico de gestação. (Voto do Ministro Celso de Mello, p.315, todos grifos do autor).

Observa-se que o ministro se fundamenta nos direitos constitucionais de dignidade da pessoa humana, autodeterminação e intimidade, seguindo uma tônica liberal, em que a propriedade de si mesmo é a base para a cidadania. Esses mesmos princípios são destacados por demais colegas do juiz. No entanto, ele é o único que chega a coordenar uma extensão do direito reivindicado pelas grávidas de anencéfalo a todas as mulheres. Não obstante, em seu argumento ele se limita à liberdade de “manifestação” de “vontade individual” das mulheres pelo prosseguimento de qualquer gravidez, mas não chega a desenvolver uma defesa mais articulada à liberdade ao aborto, termo que ele inclusive evitou.

Conforme introduzi mais a cima, não falar em aborto para aprová-lo foi uma das estratégias discursivas usadas no acórdão. Em substituição, a Corte adotou a estrutura nominal antecipação terapêutica do parto, criando um jogo de significados estabelecido ainda na petição inicial, proposta pelo atual ministro do STF, Luis Roberto Barroso, à época o advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS. Por um recurso retórico bastante instrumental, Luis Roberto Barroso, logo na nota prévia da petição, declara: “antecipação terapêutica de parto de feto anencéfalo não é aborto”.

Nos estudos de linguagem, nomear é considerar a relação ente nome e coisa de forma simbólica. Os sujeitos nomeiam a partir de sua posição em uma formação discursiva, assim, um nome funciona não como uma etiqueta simplesmente, mas produz sentido historicamente e ideologicamente (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. New York: Routledge, 2003.) e efeitos sociais. Dessa forma, nomeações têm funcionalidade discursiva e ideológica. O advogado cria uma distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto9 9 O termo foi proposto por Débora Dinis que, representado a ANIS. , sustentando que no plano da decisão da ADPF 54 o primeiro está descartado.

O termo antecipação terapêutica de parto é uma estrutura nominal composta com elementos lexicais próprios do campo da medicina. Após os estudos de Foucault (2005)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005., o discurso médico teve sua aparente neutralidade questionada, muito embora as regras formais de enunciação de exercício de poder e de saber desse campo continuem atuando em legitimação das mais variadas práticas sociais. É assim que, na ADPF 54 uma nomeação articulada a partir dessa ordem de discurso (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Aula inaugural do Collége de France, pronunciada, em 2 de dezembro de 1970. (Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.), foi apropriadamente funcional a um alinhamento nos moldes da argumentação jurídica, que busca o que Ferraz Júnior (2013)FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão, dominação. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2013. denomina de subsunção.

O autor explica que a subsunção diz respeito à submissão do caso às regras próprias do direito para a sua aplicação. Assim, ao se desqualificar a prática de interromper uma gravidez como um aborto, retira-se tal exercício do campo da ilegalidade e de todas as suas associações ao universo do hediondo, como o homicídio, realocando-a no campo higiênico da medicina, onde o procedimento adquire status terapêutico.

Nesse sentido, conforme comenta Pires (2013)PIRES, T. I. T. Uma abordagem interpretativa dos fundamentos jurídicos do julgamento da ADPF 54, dignidade humana, liberdade individual e direito à saúde. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, n.14:14, p.577-598, jul./dez. 2013., na ADPF 54, perdeu-se a oportunidade de equacionar a colisão entre os interesses do nascituro e a autonomia reprodutiva da mulher. A decisão, ao contrário, elimina qualquer discussão mais profunda sobre esse tema, excluindo veementemente o tópico aborto voluntário, como mostram os trechos a seguir:

Destaco a alusão feita pela própria arguente ao fato de não se postular a proclamação de inconstitucionalidade abstrata dos tipos penais, o que os retiraria do sistema jurídico. Busca-se tão somente que os referidos enunciados sejam interpretados conforme à Constituição. Dessa maneira, mostra-se inteiramente despropositado veicular que o Supremo examinará, neste caso, a descriminalização do aborto, especialmente porque, consoante se observará, existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto [...]. (Trecho do voto do Ministro Relator Marco Aurélio, p.33).

[...] (c) como não há o que possa ser feito pelo feto, sua retirada é a única indicação terapêutica para a gestante; (d) a retirada do feto por médico habilitado constitui antecipação terapêutica do parto, e não aborto ao feitio do Código Penal, crime cuja característica é a morte de feto viável para a vida extrauterina causada por procedimento abortivo [...]. (Trecho do voto da Ministra Rosa Veber. p.90)

Verifica-se, portanto, que, em última análise, a presente ADPF cuida da tutela da liberdade de opção da mulher em dispor de seu próprio corpo no caso específico em que traz em seu ventre um feto cuja vida independente extrauterina é absolutamente inviável. Portanto, é importante frisar, não se discute a ampla possibilidade de se interromper a gestação. A questão aqui se refere exclusivamente à interrupção de uma gravidez que está fadada ao fracasso, pois seu resultado, ainda que venham a ser envidados todos os esforços possíveis, será, invariavelmente, a morte do feto. (Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa, p.147)

Também faço questão de frisar que este Supremo Tribunal Federal, nesta tarde, não está decidindo nem permitindo o aborto. Essa é uma questão posta à sociedade. O que estamos tratando aqui é fundamentalmente de saber se a interpretação que é possível de ser dada aos dispositivos do Código Penal são compatíveis ou não com a interpretação que vem sendo dada no sentido de se considerar crime também a interrupção de gravidez de feto anencéfalo. (Trechos do voto da Ministra Carmen Lúcia, p.172).

Nesses recortes, vê-se novamente uma série de explicações e justificativas pautadas na responsabilidade normativa da Corte em decidir sobre um tema tabu em nossa sociedade. Conforme propõe Warat (1985)WARAT, L. A. As falácias jurídicas. Revista Seqüência (UFSC), Florianópolis, v.06, n.10, p.123-128, 1985. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16702/15255>. Acesso em: 10 dez. 2017.
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, a decisão judicial é uma peça persuasiva que emprega toda classe de recursos argumentativos, que tendem a impor uma conclusão, não derivada logicamente, mas que logra sua aceitação por associação psicológica e emotiva. Nesse sentido, o caráter persuasivo do discurso jurídico determina, inevitavelmente, a presença das falácias10 10 O termo “falácia” está sendo empregado, aqui, em consonância com a perspectiva da pragma-dialética (EEMEREN; GROOTENDORST, 1992), que compreende, em linhas gerais, que a falácia é um ato de fala que constitui uma violação de uma ou mais regras da discussão crítica, que, quando usada como argumento, promete ser decisiva no problema em questão, enquanto na realidade não o é. em seu conteúdo, como foi o caso da estratégia articulada pela troca de nomeação e negação, que favoreceu uma abertura interpretativa ao acolhimento do pedido veiculado na ADPF 54.

O sucesso dessa tática demonstra, por outro lado, o grau de marginalização no meio jurídico e na própria sociedade brasileira do argumento feminista de que o aborto constitui um direito moral da mulher de autonomia sobre o próprio corpo e sobre a própria consciência. Por outro lado, a articulação discursiva da ADPF 54 espelha a própria articulação feminista brasileira em sua histórica luta para a legalização do aborto, de forte caráter negociador que, segundo Sorj (2002)SORJ, B. O feminismo e os dilemas da sociedade brasileira. In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC/Editora 34, 2002. p.98-107., está enraizada na própria “cultura política” brasileira de evitar conflitos e procurar saídas conciliatórias.

Sofrimento materno, saúde e autonomia feminina: o manejo das representações

O manejo com as nomeações amoldou uma causa feminista aos discursos hegemônicos legais. Porém, para garantir o viés tradicional e patriarcal próprio desse campo, foi necessário ainda manejar certas representações femininas, enfatizadas não na autonomia e liberdade das mulheres, mas sim no sofrimento materno e suas consequências dolosas à saúde das gestantes. O termo representação nos estudos linguísticos com foco em gênero diz respeito à construção discursiva das maneiras de ser mulher/homem (LAZAR, 2005LAZAR, M. Politicizing gender in discourse: feminist critical discourse analysis as political perspective and praxis. In: LAZAR, M. (Ed.). Feminist critical discourse analysis. Gender, power and ideology in discourse. New York: Palgrave Macmillan. 2005. p.1-28.). Esses estudos também destacam o fato de que representações são moldadas a partir de perspectivas particulares de determinadas comunidades de prática no interesse de manter certas relações de poder. Nessa linha, o perfil de representação feminina enfatizado pela Corte sustenta tais relações dentro dos moldes que o Direito valora.

Conforme relata Pires (2013PIRES, T. I. T. Uma abordagem interpretativa dos fundamentos jurídicos do julgamento da ADPF 54, dignidade humana, liberdade individual e direito à saúde. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, n.14:14, p.577-598, jul./dez. 2013., p.581), na ADPF 54, “a saúde mental da mulher adquiriu âmbito de proteção maior, com o argumento de que a ciência da anencefalia por parte da gestante gera estado de perturbação psíquica em grau elevado, com o que seus interesses devem prevalecer sobre o direito à vida do feto como valor constitucional”. Os recortes, a seguir, ilustram essa evidência:

[...] embora no contexto, existam outras pessoas envolvidas, o sofrimento de ninguém é maior do que o da gestante, porque o feto anencéfalo é um acontecimento no corpo dela. A gestante, neste caso, nem mesmo chegará a ser mãe, pois não haverá – nem ao menos há – um filho. Ao obrigar a mulher a conservar um feto que vai morrer, ou que tecnicamente já está morto, o Estado e a sociedade se intrometem no direito que ela tem à integridade corporal e a tomar decisões sobre seu próprio corpo. No caso de fetos sadios, pode-se ainda discutir se a mulher é obrigada a ter o filho, pois ele será uma pessoa e, portanto, presume-se que tenha direito a ser preservado. Mas o feto anencéfalo nunca será uma pessoa, não terá uma vida humana, não é nem mesmo um sujeito de direitos em potencial [...]. (Fala das médicas Telma Birchal e Lincoln Frias nas audiências públicas transcrita no Relatório da ADPF 54, p.65).

Qualquer pessoa (não precisa nem de ter lido literatura jurídica), quem tiver tido a oportunidade de ler “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa, haverá de saber que talvez o grande exemplo de dignidade humana que Deus tenha deixado tenha sido exatamente o da mãe - e olha que eu tenho um super pai! A dignidade da mãe vai além dela mesma, além do seu corpo. Quando Guimarães Rosa põe a mulher carregando nos braços um filho morto, que tinha no seu pezinho, machucado uns dias antes, um pedaço de pano amarrado, ela busca o banho no pequeno corpo do filho morto e quase que esbarra na bacia; ela, então, toma cuidado para que, mesmo morto, não tenha nenhum esbarrão porque seria sofrimento imposto àquele pequeno corpo. Quem tanto tiver lido haverá de saber que, quando se faz escolha pela interrupção do que poderia ser a vida de um momento ou a vida por mais um mês, não é escolha fácil, é escolha trágica sempre; é a escolha que se faz para continuar e para não parar; é a escolha do possível numa situação extremamente difícil. Por isso, acho que é preciso que se saiba que todas as opções como essa, mesmo essa interrupção, é de dor. A escolha é qual a menor dor; não é de não doer, porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também. Ela só faz a escolha possível nesse sentido. (Antecipação do voto da Ministra Carmen Lúcia, p.174).

Esses trechos sintetizam o principal argumento na ADPF 54 em favor do aborto/ interrupção da gravidez de anencéfalos: o enorme sofrimento das mulheres nessa situação. Nessa direção, engendra-se um discurso de solidariedade a essas mulheres. A representação do sofrimento materno, no acórdão, geralmente precede argumentos em favor da autonomia feminina e seus direitos reprodutivos, como pode ser visto no trecho da fala das médicas, em que elas recorrem a esse artifício e, na sequência, defendem a integridade corporal das mulheres e seus direitos de tomar decisões sobre o próprio corpo. O par mulher/feto é muito recorrente e está diretamente associado ao par vida/morte na ênfase que se dá à morte inevitável do feto, sua inviabilidade vital em relação direta ao sofrimento materno.

Embora o sofrimento das mulheres e o prejuízo da sua saúde sejam argumentos obviamente plausíveis, houve um esforço em carregar de peso emocional e dramaticidade à condição das grávidas de anencéfalo, engendrada por uma representação de feminilidade pautada na configuração histórica da mulher emocional, com certo apelo à patologização do corpo, à centralidade da maternidade, que pode inclusive abranger abnegação, sofrimento etc. Nos dois recortes, uma série de explicações e justificativas ainda ajuda a compor essa representação: “a gestante, neste caso, nem mesmo chegará a ser mãe, pois não haverá – nem ao menos há – um filho”, “a escolha é qual a menor dor; não é de não doer, porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também”.

Essa engendração, articulada para atender reivindicações de direitos reprodutivos das mulheres, o faz de modo a enquadrar o discurso nos padrões hegemônicos da estrutura patriarcal, em que o poder da medicina teve desde sempre um papel regulatório da autonomia das mulheres pelo controle do seu corpo. Controle que o discurso jurídico igualmente regula, e que as médicas Telma Birchal e Lincoln Frias não fazem questão de contestar quando ponderam: “no caso de fetos sadios, pode-se ainda discutir se a mulher é obrigada a ter o filho, pois ele será uma pessoa e, portanto, presume-se que tenha direito a ser preservado”. Essa é, a meu ver, a grande dualidade que se expressa na decisão: lidar com o direito das mulheres sem mexer nos modos regulatórios que sustentam a manutenção do status quo de nossa sociedade e suas assimetrias de gêneros.

Considerações finais

Ao desenvolver essa análise, tive sempre à vista a questão de que a ADPF 54 foi aclamada em alguns meios como uma grande conquista de direitos das mulheres, constituindo uma abertura para a descriminalização do aborto no Brasil. Porém, conforme me empenhei em demonstrar, tal conquista foi engendrada de uma forma paradoxal, em que para lidar com uma demanda de lutas feministas, e que contou com o empenho direto de representantes desses grupos, foi preciso silenciar sobre tal luta, e desconsiderar a própria produção científica tão profícua sobre o tema do meio acadêmico feminista.

Simone de Beauvoir foi citada na decisão pelo seu relator, o ministro Marco Aurélio de Mello, e pela ministra Carmen Lúcia, fato que, à primeira vista, dá a impressão de que houve um alinhamento discursivo com as ideias da autora. Não obstante, também como procurei explicitar, mais que se aproximar do discurso defendido por esse ícone do feminismo, a Corte acionou uma textualização amparada por configurações que a própria autora atacou.

Em sua obra referencial, o Segundo Sexo, a mesma de onde foram retiradas as menções na decisão, Simone de Beauvoir destaca o quanto o tema do aborto é tratado na sociedade burguesa de maneira hipócrita e como algo repugnante. E ela exemplifica: “Que um escritor descreva as alegrias e os sofrimentos de uma parturiente, é perfeito; que fale de uma abortante e logo o acusarão de chafurdar na imundície e de descrever a humanidade sob um aspecto abjeto” (BEAUVOIR, 1967BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução deSérgio Milliet. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1967., p.248). Paradoxalmente, as estratégias acionadas na decisão para (não) falar de aborto, deixam latente a ideia implícita de que ele é “um crime repugnante a que é indecente aludir” (Ibid.), como criticou a feminista.

Conforme observou Scavone (2008)SCAVONE, L. Políticas feministas do aborto. Revista Estudos Feministas, v.16: 2, p.675-680, ago. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000200023&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 set. 2014.
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, os debates e as ações políticas feministas em prol da liberalização do aborto em nosso país, foram marcados por inúmeras negociações políticas e, sobretudo, por avanços e recuos. Assim, compreendo que, as estratégias discursivas que definem a decisão refletem o caráter negociador e conciliador da própria investida feminista brasileira. Ao que parece, houve, como destacou Miguel (2012MIGUEL, L. F. Aborto e democracia. Estudos Feministas, Florianópolis, v.20:3, p.657-672, set-dez. 2012., p.671), “uma acomodação ‘realista’ às condições atuais do debate no campo político”.

Assim, compreendo que, por um lado, o movimento feminista pôde contabilizar a decisão do STF como um avanço, ainda que restrito, na luta pela ampliação dos direitos das mulheres. Mas, por outro lado, a estratégia de acomodar essa decisão às condições moldadas por uma estrutura que, como denunciam as teóricas feministas da área do Direito (BARTLETT, 1991BARTLETT, K. T. Feminist legal methods. In: BARLETT, K. T.; KENNEDY, R. Feminist legal theory. Colorado: Westview Press, 1991. p.370-403.; SOUSA, 2015SOUSA, R. M. Introdução às teorias feministas do direito. Porto: Edições Afrontamento, 2015.; CASTILHO, 2008CASTILHO, E. W. V. A criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero? Cadernos Pagu [on-line], n.31, p.101-123, 2008. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332008000200006>. Acesso em: 4 jan. 2017.
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; PIMENTEL, 2009PIMENTEL, S. A superação da cegueira de gênero: mais do que um desafio – um imperativo. Revista Direitos Humanos, n.2, p.27-30, jun. 2009.), tradicionalmente deu força normativa às desigualdades de gênero, acaba por não investir no desmantelamento de tal estrutura e, ao contrário, em certa medida, colabora com a sua permanência.

Cabe, portanto, agora ao final, refletir sobre o alerta feito por Lorde (2007)LORDE, A. Sister outsider: essays and speeches. Berkeley: Crossing Press, 2007., feminista já citada neste texto, sobre os perigos de se usar as ferramentas do “senhor” para desmantelar a sua “casa”. Ferramentas que, segundo ela, até podem nos permitir vencê-lo temporariamente no seu próprio jogo, mas nunca nos permitirão trazer à tona mudanças genuínas.

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  • 1
    “A anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural diagnosticável nas primeiras semanas de gestação. Por diversas razões, o tubo neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto. O líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo o desenvolvimento dos hemisférios cerebrais (DINIZ; VELEZ, 2008DINIZ, D.; VELEZ, A. C. G. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.16, n.2, ago. 2008., p.648).
  • 2
    A Anis - Instituto de Bioética e Direitos Humanos - é uma organização feminista, não-governamental e sem fins lucrativos, de utilidade pública federal, fundada em 1999, em Brasília (Informação disposta na página oficial da Anis: <http://anis.org.br/sobre>.
  • 3
    É importante ressaltar que o Brasil possui uma das legislações mais restritivas em termos de aborto. Até o julgamento da ADPF 54, nosso Código Penal (CP) só permitia a prática do aborto: I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante e; II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
  • 4
    A expressão latina amicus curiae significa “amigo da corte”, ou seja, os representantes de parcelas da sociedade, bem como as autoridades, os técnicos e os cientistas, chamados a se pronunciar em audiências públicas, em função de seu conhecimento e experiência, colaborando com a Corte no processo de tomada de decisão. Segundo Carvalho (2011, pCARVALHO, F. M. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal: uma alternativa democrática? 2011. 118f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2011., p.92), a lei prevê como atribuição do presidente do STF e do relator convocar audiência pública “para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante, debatidas no âmbito do Tribunal”.
  • 5
    Os participantes dessas audiências compreenderam vinte e duas instituições, representadas por vinte e nove pessoas. Carvalho (2011)CARVALHO, F. M. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal: uma alternativa democrática? 2011. 118f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito, Rio de Janeiro, 2011. registra que, das vinte e duas instituições, quatorze se manifestaram a favor (63,6%); sete, contra (31,8%); e uma (4,5%) apresentou argumentos nos dois sentidos, no caso, o Poder Legislativo. Dos vinte e nove representantes, quinze eram homens (51,7%) e quatorze eram mulheres (48,3). Nesses momentos, houve uma polarização bastante emocional de pontos de vista a favor e contra a descriminalização do aborto.
  • 6
    O primeiro pode ser considerado o próprio arguente, englobado na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e por ela representado. Várias entidades desse segmento e até personalidades nomeadas estão listadas no relatório do acórdão, como amicus curiae, são elas: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia; Sociedade Brasileira de Genética Clínica; Sociedade Brasileira de Medicina Fetal; Conselho Federal de Medicina; Deputado Federal José Aristodemo Pinotti ex-Reitor da Unicamp, fundador do Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas – CEMICAMP e especialista em pediatria, ginecologia, cirurgia e obstetrícia. No grupo das entidades religiosas estão: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; Associação Nacional Pró-vida e Pró-família; Associação de Desenvolvimento da Família e Igreja Universal, embora esta última tenha se posicionado a favor do pleito. No bloco feminista ou a ele alinhado estão: a ANIS, Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero que, na petição inicial, é considerada coautora da ação; a Rede Nacional Feminista de Saúde; Direitos Sociais e Direitos Representativos; a Escola de Gente (direitos humanos). Também alinhada com esse segmento, estão as Católicas pelo Direito de Decidir, entidade composta por grupos de teólogas no interior da Igreja Católica, contrárias a posição da instituição no caso da ADPF 54.
  • 7
    Tradução livre de título original: A Feminist Discourse Analysis of Sex ‘Work’.
  • 8
    Tradução livre.
  • 9
    O termo foi proposto por Débora Dinis que, representado a ANIS.
  • 10
    O termo “falácia” está sendo empregado, aqui, em consonância com a perspectiva da pragma-dialética (EEMEREN; GROOTENDORST, 1992)EEMEREN, F. H. V.; GROOTENDORST, R. Argumentation, communication and fallacies. A pragma-diatectical perspective. Hillsdale: Erlbaum, 1992., que compreende, em linhas gerais, que a falácia é um ato de fala que constitui uma violação de uma ou mais regras da discussão crítica, que, quando usada como argumento, promete ser decisiva no problema em questão, enquanto na realidade não o é.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2017
  • Aceito
    15 Set 2017
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