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O LUGAR DA FONÉTICA/FONOLOGIA DO PORTUGUÊS EM DOCUMENTOS OFICIAIS PORTUGUESES DO ENSINO BÁSICO

RESUMO

A Nomenclatura Gramatical em vigor em Portugal até 2003 datava de 1967. Em 2007, instituiu-se uma nova terminologia linguística, por meio da publicação do Dicionário Terminológico (DT). Tal dicionário resultou da revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, analisada neste estudo. Em 2015, outro importante documento entrou em vigor: o Programa e Metas Curriculares de Português para o Ensino Básico e Secundário (PMCPEB). Considerando a importância da Fonética e da Fonologia para a reflexão sobre a língua e para a ampliação dos saberes linguísticos dos alunos, e levando em conta o fato de, tradicionalmente, essas áreas fazerem-se pouco presentes no currículo escolar português (VELOSO, 2006), os objetivos desta pesquisa foram: analisar o espaço ocupado pela Fonética e pela Fonologia no PMCPEB, no 3º ciclo do Ensino Básico1 e analisar se os verbetes da revisão da TLEBS contemplam os conteúdos desses campos previstos pelo PMCPEB. O estudo fundamentou-se em Cagliari (2009), Veloso (2006), Veloso e Rodrigues (2002) e evidenciou que essas disciplinas têm escasso lugar no PMCPEB; que os verbetes constantes da revisão da TLEBS não abrangem todos os conteúdos previstos pelo PMCPEB para essas áreas e que há erros terminológicos e imprecisão teórica na composição dos verbetes investigados.

Fonética; Fonologia; Ensino de Língua Portuguesa; Currículo; Ensino Básico

ABSTRACT

VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127. 2 2 In Brazil, the 3rd cycle of Portuguese school education is equivalent to grades 7, 8, and 9 of middle school. Cagliari (2009)CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. 11.ed. São Paulo: Scipione, 2009. Veloso (2006)VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127. Veloso and Rodrigues (2002)VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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Phonetics; Phonology; Portuguese Language Teaching; Curriculum; School Education

Introdução

Até o ano de 2003, a terminologia linguística em vigor para o ensino da língua portuguesa nos Ensinos Básico e Secundário de Portugal datava de 1967. Naquele ano, uma equipe de linguistas a redefiniu, atendendo à solicitação do Ministério da Educação e com caráter de experiência pedagógica, por meio de um documento intitulado Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário (TLEBS), o qual foi homologado pela Portaria nº 1488/2004 (LISBOA, 2004LISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 1488/2004. Diário da República, Lisboa, n.º 300/2004, Série I de 2004-12-24, p. 7307/7315, 2004.). Tal iniciativa foi justificada

[...] pela necessidade, largamente partilhada pelos especialistas e pelos próprios professores, de corrigir os erros terminológicos e de superar a desactualização da nomenclatura gramatical portuguesa, aprovada pela Portaria n.o 22 664, de 28 de Abril de 1967. (LISBOA, 2007aLISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 476/2007. Diário da República, Lisboa, n.º 76/2007, Série I de 2007-04-18, p. 2467/2468, 2007a., p. 2476).

Segundo a Portaria de 2004 acima referida, a testagem da TLEBS dar-se-ia no decorrer de três anos letivos e se iniciou no de 2004/2005. Ao término de tal experiência, a previsão era que a TLEBS entrasse definitivamente em vigor no país, ainda que a mesma Portaria tenha previsto o acréscimo de possíveis alterações decorrentes dos resultados da referida testagem. Entretanto, por ocasião do seu lançamento, o documento foi alvo de inúmeras críticas de educadores, linguistas e intelectuais, que apontaram fragilidades e lacunas de diversas ordens em sua formulação. Em janeiro de 2007, uma petição contra o documento, que contou com 8.132 assinaturas, foi endereçada às instâncias públicas competentes (Presidência da República e da Assembleia da República, bem como Ministério da Educação). A seguir, reforçando tal movimento, um grupo de 51 professores universitários enviou uma carta ao Ministério da Educação, onde solicitava a suspensão da referida terminologia linguística.

No entanto, o que ensejou a publicação da Portaria 476/2007 (LISBOA, 2007aLISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 476/2007. Diário da República, Lisboa, n.º 76/2007, Série I de 2007-04-18, p. 2467/2468, 2007a.), que determinou que a TLEBS fosse objeto de revisão científica e de adaptação pedagógica, foram, segundo o afirma o próprio documento, inadequações terminológicas e generalizações científicas verificadas no decorrer da experiência piloto vivenciada no ano letivo de 2005-2006 em 14 agrupamentos e 8 escolas do Ensino Básico. Assim, o referido documento passou pela supramencionada revisão, sob a coordenação da Direção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação, com a colaboração de especialistas.

A Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (doravante RTLEBS) (LISBOA, 2008LISBOA. Ministério da Educação. Revisão da terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. Lisboa: Ministério da Educação, 2008. Disponível em: http://principo.org/reviso-da-terminologia-lingustica-para-os-ensinos-bsico-e-secu.html. Acesso em: 23 mar. 2019.
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) foi finalizada em 2007 e consubstancia a relação de verbetes que compõem o Dicionário Terminológico (DT) (LISBOA, [200-]LISBOA. Ministério da Educação e Ciência. Dicionário Terminológico para consulta em linha. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, [200-]. Disponível em: http://dt.dge.mec.pt/. Acesso em: 19 mar. 2019.
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, ao qual deu origem. O DT é ferramenta on-line destinada aos professores do Ensino Básico e Secundário, que determina os termos a serem empregados no ensino da língua portuguesa. Considerando que o referido dicionário reproduz os princípios teóricos, a hierarquia de termos e os verbetes constantes na RTLEBS, optamos por analisar, nesta pesquisa, este último documento2 2 O DT on-line, dada a sua natureza hipertextual, não se organiza linearmente, de maneira que ao leitor cabe definir as estratégias de busca e de pesquisa que lhe são convenientes. , pois a sua natureza linear facilitou a coleta dos dados.

A RTLEBS apresentou uma lista mais reduzida de termos (correspondendo a apenas 40% do número constante da primeira lista), na qual se encontram aqueles considerados pelos autores mais prováveis de serem mobilizados no contexto do ensino de Língua Portuguesa nas escolas.

A despeito das críticas à versão primeira da TLEBS, Veloso (2006)VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127. avaliou aquele documento positivamente, ao analisar o lugar nele reservado à Fonética e à Fonologia. O autor enfatizou a sua satisfação ao perceber, em termos quantitativos, a presença de destaque dessas áreas na TLEBS (LISBOA, 2004LISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 1488/2004. Diário da República, Lisboa, n.º 300/2004, Série I de 2004-12-24, p. 7307/7315, 2004.) então em vigor, em comparação com a Nomenclatura Gramatical de 1967, em uso até o ano de 2003. De cerca de 70 entradas, constantes deste documento, passou-se a 113, naquele, num contexto em que, tradicionalmente, a Morfologia e a Sintaxe sempre gozaram de mais espaço, o que faz, segundo o autor, com que os estudantes do Ensino Básico dominem noções básicas dessas áreas, mas pouco saibam acerca da Fonética e da Fonologia.

Desde a homologação da RTLEBS, em 2007, os Ensinos Básico e Secundário português passaram por 2 reformas. Interessam a esta pesquisa, além do referido dicionário terminológico, as orientações curriculares que entraram em vigor no país a partir de 2015, com a publicação do Programa e Metas Curriculares de Português para o Ensino Básico (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015.), doravante PMCPEB3 3 Esse documento foi produzido com base nas Metas Curriculares de Português do Ensino Básico, que foram homologadas a 3 de agosto de 2012, por meio do Despacho nº 5305/2012, no contexto da Revisão da Estrutura Curricular, que se deu no mesmo ano. . Nesse documento, são apresentadas as metas curriculares, que estabelecem os objetivos a serem atingidos ao longo dos três ciclos do Ensino Básico4 4 Em Portugal, os nove anos de escolaridade do Ensino Básico (que, no Brasil, correspondem ao Ensino Fundamental) são distribuídos em três ciclos da seguinte forma: 1º Ciclo – 1º, 2º, 3º e 4º anos; 2º Ciclo – 5º e 6º anos; 3º Ciclo – 7º, 8º e 9º anos. , e os conteúdos que devem ser trabalhados. São ainda propostos descritores de desempenho, que asseguram a sua operacionalização. De acordo com o documento, tal organização “[…] permite expandir um núcleo curricular, configurar um percurso coerente, delinear o perfil de um falante e de um escrevente autónomo na utilização multifuncional e cultural da língua, capaz de progredir para outros graus de ensino.” (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015., p. 3).

Nos três ciclos do Ensino Básico, o programa e suas respectivas metas são estruturados em torno de quatro domínios (os eixos de ensino): Oralidade, Leitura e Escrita, Educação Literária e Gramática. No 3º Ciclo, Leitura e Escrita se separam, passando a constituir domínios distintos.

O documento organiza-se da forma que passamos a descrever. Logo após o texto introdutório, são elencados vinte e um objetivos gerais do ensino de Língua Portuguesa, estruturados em torno dos supracitados domínios. A seguir, cada um dos três ciclos do Ensino Básico é caracterizado. A tal caracterização, seguem-se quadros, onde são apresentados os conteúdos para cada domínio e é estabelecida a correspondência com metas curriculares (as quais são representadas por números nos quadros e depois detalhadas na parte final do documento). Depois, há um texto curto, que versa sobre a metodologia e a avaliação. Por fim, nos anexos, listam-se as obras e os textos que deverão ser trabalhados nos referidos Ciclos.

Considerado que a Fonética e a Fonologia do Português são áreas que, tradicionalmente, ocupam parco espaço no currículo escolar em Portugal (VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127.) e a importância desses campos à reflexão sobre a língua, bem como à ampliação dos saberes linguísticos dos alunos, as duas perguntas a que a pesquisa buscou responder foram: qual o lugar reservado à Fonética e à Fonologia no PMCPEB? A RTLEBS oferece os subsídios teóricos de apoio ao cumprimento das metas determinadas pelo PMCPEB que envolvem as áreas em pauta? Os objetivos foram: analisar o espaço ocupado pela Fonética e pela Fonologia no PMCPEB nos três Ciclos do Ensino Básico5 5 Os três ciclos do Ensino Básico português equivalem, no Brasil, ao Ensino Fundamental Anos Iniciais e Finais. e analisar se os verbetes constantes da RTLEBS contemplam os conteúdos dessas áreas previstos pelo PMCPEB. Para tanto, efetuamos um levantamento desses conteúdos previstos para os três Ciclos em análise; observamos se os conteúdos determinados para os dois primeiros ciclos dão subsídios para a abordagem daqueles que são determinados para o terceiro ciclo e consultamos a RTLEBS, a fim de verificar se dela constam as definições dos conceitos necessários ao trabalho com os conteúdos em pauta.

A Fonética e a Fonologia no Ensino Básico em Portugal

A Fonética e a Fonologia são áreas que tradicionalmente ocupam pouco espaço nos currículos escolares, fenômeno que acontece tanto no Brasil6 6 Cagliari (2009) faz importantes reflexões acerca do status quo do ensino da Fonética e da Fonologia nas escolas brasileiras. (a esse respeito, leia-se CAGLIARI, 2009CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. 11.ed. São Paulo: Scipione, 2009.) como em Portugal (VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127.). Por essa razão, Veloso e Rodrigues (2002)VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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defendem o “alargamento e a reorganização” de conteúdos dessas áreas no 3º Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário de Portugal. Para fundamentar a proposta, os autores listam argumentos de ordens teórica e metodológica, os quais explicitaremos a seguir.

O primeiro deles, estruturante da sua defesa, é que a fonologia é um componente fundamental da gramática de todas as línguas naturais e, nesse sentido, a restrição do ensino da gramática à morfossintaxe é redutora. O segundo e terceiro argumentos dizem respeito à necessidade de desenvolver a “sensibilidade auditiva” dos alunos, para que eles percebam o nível dos sons e o da sua representação escrita como dois planos da língua, o que surtirá efeito na superação de determinados erros de grafia. O quarto, por seu turno, relaciona-se à problemática da evolução fonética do Português ao longo da história, a qual é prevista nos programas em vigor em Portugal e se faz presente nas gramáticas utilizadas nas escolas. O quinto argumento se fundamenta na existência de conteúdos previstos nos programas que mobilizam saberes do campo da fonética, como, no campo da literatura, os “[...] recursos estilísticos baseados em critérios rítmicos ou fónicos.” (VELOSO; RODRIGUES, 2002VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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, p. 237). No sexto, esses autores lembram o frequente trabalho com os conteúdos da fonética nas salas de aula de língua estrangeira, como a articulação dos segmentos e a percepção daqueles que são contrastivos no inventário fonético da língua materna dos alunos e dos que não o são. Por fim, no sétimo e no oitavo argumentos, recordam a importância de os alunos conhecerem os símbolos fonéticos, para que possam usar dicionários com eficácia, e as possibilidades de trabalho interdisciplinar inerentes à fonética e à fonologia. Tendo elencado tais argumentos, os autores (VELOSO; RODRIGUES, 2002VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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) fazem uma análise que guarda direta relação com os objetivos da presente pesquisa e, nesse sentido, interessa-nos particularmente, que é a abordagem dada por quatro gramáticas escolares e por programas7 7 No ano em que Veloso e Rodrigues realizaram tal pesquisa, havia uma reforma curricular em curso e, por isso, os autores optaram por trabalhar com os programas do 3º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário anteriores a tal reforma. curriculares portugueses à fonética e à fonologia.

Na análise das gramáticas escolares Da Comunicação à Expressão, de Azeredo et al. (1985); Compêndio de Gramática Portuguesa: Ensino Secundário, de Ferreira e Figueiredo (1990); Da Palavra ao Texto: Gramática da Língua Portuguesa, de Figueiredo e Bizarro (1997) e Gramática de Português, de Pinto (1998)8 8 Esclarecemos que essas obras não foram por nós consultadas no desenvolvimento da presente pesquisa. Nesse sentido, elas não compõem as referências deste artigo. , foram observados os tratamentos diretos e indiretos dos conteúdos da fonética e da fonologia.

Para analisar os tratamentos diretos, os autores verificaram:

- Se cada uma destas gramáticas reserva um capítulo à parte para a exposição das noções de fonética e fonologia;

- Se explicitamente se considera a fonética e a fonologia como um capítulo de pleno direito dentro do estudo da linguagem ou se, em alternativa, esses dois domínios são expressamente secundarizados;

- Se se estabelece uma distinção sistemática entre o plano fónico e o plano gráfico;

- Se são corretamente utilizados os símbolos do AFI;

- Se há lugar para qualquer tipo de descrição do aparelho fonador;

- Se é apresentada alguma versão da classificação articulatória tradicional das consoantes e das vogais do português;

- Quais as noções estritamente fonéticas ou fonológicas que são objecto de definições explícitas. (VELOSO; RODRIGUES, 2002VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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, p. 241).

Os resultados indicaram que todas as gramáticas reservavam um capítulo específico para abordar fonética e fonologia (ainda que uma delas tratasse dessa questão com um subcapítulo da morfologia). Ainda assim, os autores consideraram que o tratamento dispensado a essas áreas por metade das gramáticas analisadas (nomeadamente Da Comunicação à Expressão, de Azeredo et al.; Compêndio de Gramática Portuguesa. Ensino Secundário, de Ferreira e Figueiredo) era, nas palavras deles, “claramente secundário”, sendo a morfossintaxe o campo que gozava de maior prestígio. Nas outras duas (Da Palavra ao Texto: Gramática da Língua Portuguesa, de Figueiredo e Bizarro e Gramática de Português, de Pinto ), fonética, fonologia, morfologia e sintaxe tinham espaço equivalente. A distinção entre os planos fônico e gráfico era devidamente feita nas gramáticas de Azeredo e outros (esta, destacam os autores, era a única que abordava os símbolos do alfabeto fonético internacional) e Pinto, ao passo que tal questão, nas outras duas, podia dar margens para dúvidas. Por seu turno, a explanação acerca do aparelho fonador só não se fazia presente obra de Figueiredo e Bizarro. Como ponto positivo, Veloso e Rodrigues apontam o fato de todas as obras apresentarem a classificação articulatória dos sons da língua portuguesa, bem como a explicação sobre ditongos, vogais, consoantes, sílabas e fonemas, noções basilares da fonética e da fonologia.

Quanto à presença dessas áreas nos programas portugueses9 9 Os documentos analisados pelos autores foram: para o 3º Ciclo do Ensino Básico, os Programas de Língua Portuguesa aprovados pelo Despacho nº 124/ME/91, de 31 de julho de 1991; para o Ensino Secundário, os Programas de Português constantes do documento Português A e B Programas, 10º, 11º e 12º anos. (DES, 1997). em vigor à época da realização da pesquisa, os autores verificaram, que, em consonância com os resultados das análises das gramáticas escolares, a morfossintaxe também ocupava posição de destaque, em detrimento da fonética e a fonologia. A abordagem direta dessas áreas aparecia apenas de maneira muito tímida no programa do Ensino Secundário e, nas palavras dos autores, de “forma algo desorganizada”, por meio dos seguintes conteúdos: diferenças entre vogais, semivogais e consoantes; divisão entre sons surdos e sonoros, orais e nasais; acentuação, pausa e ritmo. A abordagem indireta, por sua vez, encontrava-se presente no tratamento dos seguintes assuntos: ortografia, variedades regionais, análise literária e evoluções fonéticas.

Diante dos resultados das análises, Veloso e Rodrigues (2002VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314. Acesso em: 20 ago. 2017.
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, p. 243) fazem uma proposta que, segundo eles, está em sintonia com os objetivos dos programas então em vigor em Portugal. Em suas palavras, há a “[…] grande necessidade de se tornar mais viável e de se sistematizar de forma mais evidente e mais deliberada essa presença da fonética e da fonologia nos níveis de ensino aqui considerados.” A seguir, eles propõem uma relação de noções básicas das áreas em pauta que deveriam, a seu ver, ter lugar não apenas nos programas, mas também nas gramáticas e nas aulas de Língua Portuguesa.

Em publicação posterior à supramencionada, Veloso (2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127., p. 115) destaca a insuficiência dos conhecimentos construídos por alunos do Ensino Básico e Secundário português, em comparação com o saberes construídos nos outros níveis de análise da língua:

[…] existe, de facto, um défice de conhecimento explícito das noções de fonética e fonologia na generalidade do EBS10 10 Ensino Básico e Ensino Secundário. . Com efeito, parece-me realista admitir que, de uma forma geral, qualquer aluno do final do 12º ano11 11 Essa série, no Brasil, corresponde ao 3º ano do Ensino Médio. de escolaridade saberá minimamente identificar e classificar categorias morfossintactas e sintactas ou ainda identificar processos flexionais da língua; porém dificilmente um aluno desse nível de escolaridade usará termos como “consoante fricativa”, “vogal semifechada”, “sílaba aberta”, entre outros, no seu discurso explícito sobre as propriedades da sua língua.

Na mesma direção, Sônia Valente Rodrigues (2005RODRIGUES, S. V. Fonética e fonologia no ensino da Língua Materna: modos de operacionalização. In: ENCONTRO SOBRE TERMINOLOGIA LINGUÍSTICA: DAS TEORIAS ÀS PRÁTICAS, 2005, Porto. Anais [...]. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 1-33. Disponível em: http://web.letras.up.pt/srodrigues/pdfs/term_ling_actas.pdf. Acesso em: 20 maio 2014.
http://web.letras.up.pt/srodrigues/pdfs/...
, p. 1), que é docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, defende

[…] a introdução de conceitos de fonética e de fonologia no ensino básico e no ensino secundário […] como fundamental para o ensino-aprendizagem da língua materna, em domínios tão concretos como o da ortografia, da evolução fonética da língua, das relações lexicais, dos recursos estilísticos, da versificação.

Com o objetivo de apresentar as contribuições de tais áreas para o ensino da língua em diferentes frentes, a autora apresenta, em seu texto, sequências didáticas que mobilizam saberes da fonética e da fonologia para a compreensão de fenômenos como, por exemplo, a homofonia, a aliteração, o desenvolvimento da competência oral, demonstrando as possibilidades de aplicação no contexto do Ensino Básico.

É considerando tal contexto que passamos, nas seções seguintes, ao exame do espaço ocupado pelas áreas em pauta nos documentos oficiais portugueses em vigor atualmente, especificamente na RTLEBS (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b.) e no PMCPEB (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015.).

A Revisão da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário (RTLEBS)

Conforme anunciado anteriormente, a RTLEBS (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b.) é um dos documentos oficiais portugueses que integra o corpus desta pesquisa. Antes, porém, de iniciarmos a nossa análise, achamos por bem efetuar uma busca, na rede, de investigações de fonólogos e/ou foneticistas portugueses que tivessem como objeto de estudo a versão inicial do texto, a TLEBS (LISBOA, 2004LISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 1488/2004. Diário da República, Lisboa, n.º 300/2004, Série I de 2004-12-24, p. 7307/7315, 2004.), a fim de confrontarmos tais investigações com a nossa e averiguarmos se as mudanças operadas no texto, por ocasião de sua revisão, foram, de fato, positivas às áreas em estudo neste trabalho.

De igual forma, antes de iniciarmos a nossa análise da RTLEBS, fizemos uma busca semelhante na rede, a fim de nos inteirarmos acerca da posição de investigadores portugueses (seja do campo da linguística ou da didática da língua portuguesa) acerca do referido documento, mas não encontramos nenhuma publicação a esse respeito, o que nos causou certa surpresa, considerando a sua importância para o ensino do português na Educação Básica e Secundária.

Em se tratando do documento inicial – a TLEBS 2004 – a única publicação encontrada é o artigo anteriormente mencionado de Veloso (2006)VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127., que tem como título “A fonética e a fonologia na nova Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário”. Abrimos um parêntese aqui para apresentarmos as conclusões a que o estudioso chegou em sua análise.

Na análise quantitativa que faz das noções de fonética e de fonologia contempladas no referido documento, Veloso apresenta um levantamento do número de termos, que totaliza 113 entradas (como já afirmado), os agrupa em 10 categorias e informa os valores percentuais que cada categoria ocupa no dicionário terminológico em tela: 1) Tipos/Categorias Articulatórias (28, 3%); 2) Prosódia (17,7%); 3) Fonética Articulatória/Aparelho Fonador (10, 6%); 4) Fonética Combinatória (9,8%); 5) Fonética Acústica (8%); 6) Outras Noções (8%); 7) Estruturas Silábicas (7,1%); (8) Fonologia (4,4%); (9) Definição das Próprias Disciplinas (4,4%); (10) Fonética Perceptiva (1,7%).

Tendo apresentado tais dados, o fonólogo lembra que cabe àqueles que lidam com o Ensino Básico definir a maneira de didatizar tais conteúdos e que há, nesse inventário de termos, diferentes níveis de importância, surgindo a consequente necessidade de hierarquizá-los numa progressão adequada aos diferentes níveis escolares.

A seguir, ao abordar os “[...] princípios estruturadores subjacentes ao conjunto de termos de fonética e de fonologia.” (VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127., p. 121) constantes da TLEBS, o autor avalia que tal conjunto de termos organiza-se de forma equilibrada e apropriada ao público a que se destina e considera positivo o respeito à nomenclatura determinada pela “tradição pedagógica”. Nos casos de termos que passaram a ser objeto de discussão das correntes linguísticas mais recentes (como, por exemplo, as noções de ditongo, tritongo e vogal nasal), a opção do documento é, segundo o estudioso, “[…] continuar a prescrever […] termos já firmados e estabelecidos por décadas de uma tradição pedagógica de alguma forma já cristalizada, em detrimento de termos mais recentes e que são objectos de discussão na comunidade dos linguistas.” (VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127., p. 122).

Para o autor, igualmente importante a tal manutenção dos termos já firmados pela tradição, é a introdução de noções que revelam avanços significativos do desenvolvimento dos estudos linguísticos no campo da fonética e da fonologia. Veloso reserva a seção final do seu texto para abordar dois aspectos dessa questão: a distinção entre o nível fonético e o fonológico e o relevo dado aos níveis prosódicos do plano fonológico. O parágrafo que introduz a conclusão do seu artigo sintetiza muito claramente sua avaliação da primeira versão da TLEBS:

Como já foi dito em diversas partes deste texto, considero que a lista de entradas de fonética e fonologia da TLEBS representa um avanço significativo relativamente à NG1967, quer em termos quantitativos, que em termos da sua adequação aos desenvolvimentos mais recentes da linguística enquanto ramo do saber (mantendo porém, como também foi referido, continuidades importantes relativamente às ‘zonas significativas de consenso’ que, segundo os objetivos fixados para a TLEBS […] devem ser mantidos. (VELOSO, 2006VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127., p. 125).

Passemos, agora, à nossa análise do documento que sucedeu a TLEBS de 2004 e antecedeu a publicação do DT on-line, conforme referido anteriormente. A Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (RTLEBS) foi publicada em setembro de 2007. Logo nas páginas iniciais, o leitor é advertido acerca do que o documento é (e também daquilo que ele não é): é um texto normativo que determina os termos a serem empregados no ensino da língua (ou seja, é um dicionário terminológico); não é gramática, nem programa, nem lista de conteúdos. Nele afirma-se que:

Como é sabido, a TLEBS constitui uma ferramenta de auxílio ao ensino da gramática e ao estudo dos textos, sendo um documento normativo, que pretende fixar os termos a utilizar na descrição e análise de diferentes aspectos do funcionamento da língua. Enquanto documento normativo, não se confunde com um programa, com uma gramática escolar ou com uma lista de conteúdos, devendo ser entendido como dicionário terminológico que é. (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 5).

Além disso, adverte-se que, desde a sua primeira configuração, ficou determinado que aquilo que se propunha não era uma relação de termos que deveriam ser ensinados nos diferentes níveis do Ensino Básico e Secundário, de maneira que caberia ao docente, na seleção do que seria ensinado, confrontar a proposta com as orientações curriculares em vigor. Para minimizar as dificuldades advindas dessa orientação, a RTLEBS apresentou uma lista mais reduzida de termos, correspondendo a apenas 40% do número constante da primeira lista, na qual se encontram aqueles considerados pelos autores como mais prováveis de serem mobilizados no contexto do ensino da disciplina Língua Portuguesa nas escolas.

O documento estrutura-se da seguinte maneira: após um preâmbulo que apresenta o contexto de sua produção, há uma seção onde são explicitados a metodologia e os critérios da revisão da TLEBS. A seguir, são elencados os pressupostos que motivaram a revisão, as alterações principais efetuadas em relação ao primeiro documento, os critérios relativos à revisão e à hierarquia em que os termos se apresentam e aqueles relativos à revisão da base de dados, as perspectivas teóricas que fundamentaram a revisão (nas áreas da análise do discurso, da retórica, da pragmática e da linguística textual) e, por fim, a metodologia adotada para o desenvolvimento do trabalho.

A RTLEBS chama a atenção do leitor para a importância da seção “Hierarquização dos Termos” à compreensão da maneira como os termos propostos se relacionam entre si e nos diferentes domínios da linguística e adverte o leitor acerca da opção feita quando da abordagem de termos que se fazem presentes em diferentes disciplinas dessa ciência: “Havendo várias áreas de cruzamento entre disciplinas da Linguística, deve entender-se que a opção por inserir um termo num determinado domínio não significa excluir o seu tratamento por outra disciplina da Linguística.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 7).

A referida hierarquização organiza-se na seguinte sequência de itens e seus respectivos subitens12 12 Considerando os nossos objetivos nesta pesquisa, optamos por detalhar apenas a maneira como o documento apresenta os subitens relativos aos campos da fonética e da fonologia. : a) Língua, Comunidade Linguística, Variação e Mudança; b) Linguística Descritiva; c) Análise do Discurso, Retórica, Pragmática e Linguística Textual; d) Lexicografia e e) Representação Gráfica.

A fonética e a fonologia, assim como os demais níveis de análise linguística, situam-se no item Linguística Descritiva e têm os seguintes conteúdos contemplados: fonética e fonologia (sons e fonemas: fonema, vogal, semivogal, consoante; caracterização dos sons: modo e ponto de articulação; sequências de sons: ditongo, grupo sonântico, hiato); prosódia/nível prosódico (características acústicas: altura, duração, intensidade; sílaba: formatos de sílaba – abertas e fechadas –, propriedades acentuais das sílabas – tônicas e átonas –, classificação das palavras quanto ao número de sílabas – monossílabo, dissílabo, trissílabo, polissílabo); acento (classificação das palavras quanto à posição da sílaba tônica – palavras agudas, graves e esdrúxulas –, propriedades acentuais das sílabas – sílabas átonas e tônicas – entoação: pausa – silenciosas e preenchidas); processos fonológicos (inserção, supressão e alteração de segmentos – assimilação, dissimilação, nasalização, ditongação, redução, crase); metástase.

A leitura do documento mostra a boa representatividade da fonética e da fonologia na RTLEBS, em comparação com o espaço reservado aos demais níveis de análise linguística. Contemplam-se desde questões relativas à articulação dos sons e às especificidades das consoantes, vogais e semivogais, até à problemática dos processos fonológicos. A abordagem do aspecto articulatório é de fundamental importância para que os alunos reflitam acerca das características dos sons que compõem o inventário fonético e fonológico de sua língua materna. Por sua vez, o trabalho com os processos fonológicos propiciará a reflexão acerca das mudanças fonéticas que ocorrem nas palavras de todas as línguas naturais, tanto do ponto de vista sincrônico como diacrônico, a partir de motivações internas (linguísticas) e externas (extralinguísticas).

Outra questão que se pode perceber – a partir da leitura dos termos que são contemplados pelo documento – é a possibilidade de articulação entre assuntos de domínios distintos. Observando estritamente a hierarquização entre os termos da fonética e da fonologia – especificamente aqueles que dizem respeito aos processos fonológicos (que, conforme já referido, situam-se no domínio da Linguística Descritiva) – e os termos que são do domínio da Língua, Comunidade Linguística, Variação e Mudança, percebe-se a coerência teórica no tratamento dessas questões. Veja-se que, na relação de entradas da RTLEBS, a Mudança Linguística é definida como

Fenómeno que resulta da projecção da língua de uma comunidade na história dessa comunidade e das suas comunidades descendentes. […] A mudança linguística observa-se a todos os níveis gramaticais e resulta da combinação de diferentes factores de mudança: os factores internos, que são constituídos pela própria estrutura da língua, e os fatores externos, de natureza sobretudo geográfica e social. (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 32).

A perspectiva de mudança linguística constante da entrada acima transcrita (como algo linguístico e extralinguístico) está em total sintonia teórica com a concepção de língua subjacente ao estudo dos processos fonológicos acima referidos.

Conforme mencionado antes, a função do documento em pauta é ser “[…] uma ferramenta de auxílio ao ensino da gramática e ao estudo dos textos, sendo um documento normativo, que pretende fixar os termos a utilizar na descrição e análise de diferentes aspectos do funcionamento da língua.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 5). Foi considerando tal objetivo que optamos por analisar se tal ferramenta, depois da revisão publicada no ano de 2007, de fato, continua a oferecer os subsídios necessários para que os professores trabalhem os conteúdos, as metas curriculares e os descritores de desempenho previstos pelo atual Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015.), o que fazemos na seção seguinte, quando abordamos detidamente os conteúdos previstos pelo referido programa para o 9º ano e, mais superficialmente, aqueles previstos para o 8º ano.

A escolha desses dois anos deveu-se ao fato de havermos observado que, em se tratando do 3º Ciclo, é especificamente no 8º e no 9º ano que os conteúdos da fonética e da fonologia são abordados. Importante observar que, diferentemente do que se verificou no 9º ano (em que a fonética e a fonologia são abordadas em três domínios, como se pode ver no quadro 2, na seção seguinte), no 8º ano, os conteúdos dessas áreas estão articulados a apenas um domínio (o da oralidade) e contemplam apenas a variação fonológica em textos orais e a distinção de contextos geográficos em que ocorrem as variedades (veja-se o quadro 1, na seção seguinte). Levando em conta tal estratégia metodológica, o nosso olhar para a RTLEBS volta-se para a análise dos verbetes que mais diretamente servem de subsídio ao professor na consecução das metas curriculares e dos descritores de desempenho previstos para o 9º ano e na abordagem dos conteúdos a eles associados. Isso porque, como afirmado anteriormente, é nesse ano que se observa um leque mais amplo de saberes das áreas em pauta. Além do mais, os conteúdos determinados para o 9º ano englobam aqueles previstos para o 8º.

Quadro 2
– Conteúdos do eixo fonética/fonologia a serem trabalhados no 9º Ano
Quadro 1
– Conteúdos do eixo fonética/fonologia a serem trabalhados no 8º Ano

A Fonética e a Fonologia no Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico e na Revisão da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário

A análise dos conteúdos, metas e descritores de desempenho definidos para os dois últimos anos do 3º ciclo só pôde ser feita mediante o levantamento dos conteúdos da fonética e da fonologia necessários à consecução de tais metas, abordados no decorrer do 1º e do 2º ciclos. Assim, ainda que fuja aos objetivos da presente investigação analisar em profundidade os programas do 1º e do 2º Ciclo do Ensino Básico, apresentamo-los abaixo, antes de dar início à apresentação e discussão da parte do documento que constitui objeto de estudo da presente investigação.

Os conteúdos da fonética e da fonologia relativos ao 1º Ciclo estão dispostos em uma progressão de nível de complexidade, que possibilita o desenvolvimento de competências necessárias ao processo de aquisição e de consolidação da leitura e da escrita.

Parte-se, no 1º Ano, do trabalho com a percepção, a consciência e a sensibilização, o qual leva o aluno dessa faixa etária à expansão dos conhecimentos relativos à modalidade oral de sua língua materna já consolidados antes mesmo de sua chegada à escola. Assim, desenvolve-se, por exemplo: a sua percepção de que a permuta de sons no interior de uma palavra ocasionará mudança de sentido, por meio do trabalho com os pares mínimos; a compreensão de que as palavras são formadas por diferentes números de sílabas e que, em função disso, há palavras maiores do que outras (monossílabas, dissílabas, trissílabas e polissílabas); a consciência intrassilábica, ou seja, a percepção de que as sílabas são formadas por unidades mínimas.

No 2º Ano, dá-se prosseguimento ao desenvolvimento da consciência silábica e intrassilábica: trabalha-se a maneira como, nas sílabas, combinam-se as vogais, as semivogais e as consoantes, inclusive na formação de dígrafos e de ditongos; ensina-se a relação grafofonêmica. Além disso, o aluno deve conhecer todas as letras do alfabeto (nas suas representações minúscula e maiúscula), bem como a relação entre os grafemas e os fonemas.

No 3º ano, consolida-se a consciência fonológica – especificamente a silábica e a intrassilábica – e trabalha-se a acentuação, de maneira que o aluno consiga classificar as palavras de acordo com a posição da sílaba tônica.

A despeito dessa progressão tão positiva à aquisição e consolidação da escrita, verificamos que o PMCPEB (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015.) não prevê, para o 4º, 5º, 6º e 7º anos (ou seja, durante todo o 2º Ciclo e no primeiro ano do 3º Ciclo), conteúdos da fonética e da fonologia. Consideramos tal dado bastante relevante à nossa pesquisa, uma vez que ele descortina o espaço destinado a essas áreas no currículo do Ensino Básico português como um todo.

A leitura do documento mostrou ainda que outros níveis de análise linguística – como a morfologia, a lexicologia e a sintaxe – são trabalhados ininterruptamente durante quase todo o Ensino Básico, ocupando, desta forma, uma extensão muito mais ampla desse currículo. Os conteúdos da primeira são previstos desde o 1º até o 8º ano; os da segunda, do 1º ao 9º ano; por fim, os da terceira, do 3º ao 9º ano.

No documento em pauta, estão delineados dois objetivos gerais para o 3º Ciclo do Ensino Básico, os quais reiteramos aqui: consolidar consistentemente as competências do âmbito da escrita e da leitura que foram desenvolvidas no ciclo anterior e “[…] desenvolver e consubstanciar a sua utilização, para a aprendizagem de outros saberes e para o desenvolvimento de capacidades progressivamente mais complexas, adaptadas, naturalmente, à faixa etária em consideração.” (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015., p. 27). Consideramos que a ruptura da abordagem dos conteúdos da fonética e da fonologia durante quatro anos consecutivos inviabiliza a consecução dos dois supramencionados objetivos, uma vez que não se pode, no 3º Ciclo, consolidar competências que não foram desenvolvidas no 2º.Ciclo. De igual forma, “o desenvolvimento de capacidades progressivamente mais complexas” é bruscamente interrompido com essa cessação.

Como já foi informado anteriormente, a nossa atenção nesta pesquisa voltou-se especificamente à análise das seções do documento que abordam o trabalho com a fonética e a fonologia no 8º e no 9º Anos de Escolaridade, que é o que passamos a fazer de agora em diante.

Na seção do documento intitulada “Caracterização”, depois de terem sido apresentados os objetivos específicos a serem atingidos no trabalho com a Leitura, a Escrita e a Educação Literária, são explicitados aqueles relativos à abordagem da Gramática, domínio que possibilita, segundo o texto, a interação com os demais. Assim, é prevista, no decorrer do ciclo em pauta, a sedimentação progressiva (e anual) dos conhecimentos da morfologia e da sintaxe.

No campo da fonologia, determina-se que seja feita a abordagem dos principais processos fonológicos, por meio do estudo de textos em que eles se façam perceber explicitamente. Isso significa que já aí há a indicação de que a proposta é de que, nesse nível de escolaridade, o trabalho dê-se em torno do plano fonológico, o qual não prescinde, como veremos a seguir, da contínua retomada de saberes relativos ao plano fonético.

Diante desse contexto, passamos, agora, ao levantamento dos conceitos da fonologia constantes dos quadros em que são listados os conteúdos do 8º e do 9º ano. Neles, os cinco domínios de estudo da língua (Oralidade, Leitura, Escrita, Educação Literária e Gramática) estão relacionados a conteúdos específicos que se distribuem em blocos.

Observe-se o quadro abaixo, que é uma adaptação feita por nós dos quadros de metas curriculares, descritores de desempenho e conteúdos a serem trabalhados no 8º ano, relativos ao eixo fonética/fonologia, constantes do PMCPEB:

Da leitura do quadro, depreende-se que, no 8º ano, conceitos da fonologia fazem-se presentes apenas no domínio da Oralidade, no bloco intitulado Variação da língua, que abrange os conteúdos Plano fonológico, lexical e sintático e Contextos geográficos. A meta curricular delineada para os conteúdos da fonologia previstos pelo documento para esse ano de escolaridade é acompanhada por dois descritores de desempenho: “Identificar, em textos orais, a variação nos planos fonológico, lexical e sintático” e “Distinguir contextos geográficos em que ocorrem diferentes variedades do português.” (BUESCU et al., 2015,BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015. p. 80).

Ainda que os campos da fonética e da fonologia sejam interdependentes, consideramos que a identificação, nesse nível de escolaridade, daquilo que é do domínio da fonologia (e, por consequência, daquilo que compete à fonética) é muito importante, para que os alunos sedimentem a noção de que, no domínio dos sons de sua língua materna, há múltiplas possibilidades de realização fonética de um mesmo som, mas nem todos os sons têm função comunicativa. Ao afirmamos que esse saber é importante a esse nível, levamos em conta a capacidade de abstração que deve ter sido sistematicamente desenvolvida no decurso dos ciclos anteriores do Ensino Básico. Da mesma forma, a distinção do que, na língua, remete ao plano geográfico (e, por consequência, do que remete a outros planos, como o social e o diacrônico) é imprescindível ao desenvolvimento da capacidade de diferenciação das variadas normas.

Para se compreender o alcance destas observações, imaginemos que um professor decida explorar as variações fonológicas do Português europeu e do Português do Brasil, especificamente no que diz respeito à realização fonêmica do grafema “l” em posição final de sílaba (por exemplo, na palavra sal). Para tanto, ele poderá mostrar aos alunos que, na grande maioria dos dialetos do Português do Brasil, ocorre a vocalização desse segmento [‘saw], enquanto que, em um grupo muito restrito (residente em algumas regiões dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, por exemplo) e entre os portugueses, o fone que se observa é uma lateral alveolar vozeada velarizada [‘saɫ]. Essa explanação somente será bem sucedida se os seguintes conteúdos da fonética articulatória já tiverem sido trabalhados em sala de aula: as características dos segmentos consonantais (ponto e modo de articulação, vozeamento e desvozeamento) e as propriedades dos segmentos vocálicos (posição da língua em termos de abertura, anterioridade e posterioridade, arredondamento dos lábios).

É importante esclarecermos que não estamos defendendo a ideia de que a escola deve formar especialistas em fonética e em fonologia (como se sabe, cabe ao professor fazer a adequada transposição didática desses conteúdos para o contexto escolar), mas militando (no sentido mais literal do termo) em favor da ampliação do espaço dessas áreas em todos os níveis do currículo escolar, para que, enfim, perceba-se que elas são tão caras à formação dos alunos como a morfologia, a lexicologia e a sintaxe, domínios linguísticos que, como ver-se-á adiante, ocupam largas extensões dos currículos de Língua Portuguesa em geral.

No quadro que segue, apresentamos uma adaptação feita por nós dos quadros de metas curriculares, descritores de desempenho e conteúdos a serem trabalhados no 9º ano, relativos ao eixo fonética/fonologia, constantes do PMCPEB:

O quadro 2 revela-nos que, no 9º ano (que é o último do 3º Ciclo do Ensino Básico), há uma considerável abrangência dos conceitos da fonologia, uma vez que eles encontram-se em três domínios diferentes: Oralidade, Leitura e Gramática. Por essa razão e porque a abordagem desses conceitos exige o domínio de vários conhecimentos que lhes servem de base, efetuamos uma análise mais detida e detalhada dessa parte do programa. Assim, verificamos que, no domínio da Oralidade, repete-se o conteúdo determinado para o 8º ano, que também é explicitado no domínio da Leitura, no bloco Variação da língua, mas, desta vez, prevê-se a identificação do que é do plano fonológico e a distinção do que é do plano geográfico.

Entretanto, os verbos “reconhecer”, “identificar” e “distinguir” que introduzem tais metas e descritores de desempenho chamaram a nossa atenção por sua natureza estritamente conteudista, pois sabemos que, se se quer formar jovens que sejam capazes de combater preconceitos linguísticos que se materializam por meio de juízos de valor socioideológicos e historicoculturais, os programas escolares precisam se pautar numa perspectiva reflexiva. Às ações desencadeadas pelos mencionados verbos devem ser associadas competências atitudinais caras ao combate ao referido preconceito, como o respeito e a valorização das variantes linguísticas de menor prestígio social, praticadas por comunidades rurais ou por grupos de baixa escolaridade, por exemplo. Em outros termos, as ações de reconhecer, identificar, distinguir e explicitar não prescindem das atitudes de respeitar e valorizar as diferentes normas linguísticas.

Além disso, consideramos que o descritor de desempenho “Identificar, em textos orais, a variação no plano fonológico” é muito amplo e não oferece ao professor dados suficientes à sua consecução, uma vez que a expressão “variação fonológica” abarca uma gama relativamente grande de fenômenos fonológicos, dentre os quais, exemplificamos: as diversas modalidades de redução de vogais e de consoantes; as variações na realização das vogais nas diferentes posições que ocupam na palavras (tônicas, pretônicas, postônicas orais e nasais, mediais etc); os alçamentos e as palatalizações. Tal amplitude é agravada pela omissão do propósito de tal abordagem nas aulas de Língua Portuguesa, o que definitivamente afeta a dimensão didática desses conteúdos. Em outros termos, o desenvolvimento de tal competência está associado a qual objetivo geral do ensino? Quer-se abordar a natureza e as características do sistema fonológico do português em contraponto com o sistema de escrita alfabética? Talvez a natureza de tal lacuna deva-se ao fato de os descritores de desempenho previstos para os diferentes domínios não dialogarem entre si, de maneira que aquilo que compete ao domínio da Oralidade não se relaciona, pelo menos na maneira como o texto foi construído, com o que é do domínio da Leitura.

Nesse ínterim, o texto apresenta uma imprecisão terminológica que agrava tal quadro, ao prever, no domínio da Leitura, a identificação, em textos escritos, da variação no plano fonológico. Como é sabido, a ortografia não permite variação. O que na verdade acontece é que o sistema fonológico pode intervir no sistema alfabético-ortográfico, em especial durante o processo de aquisição da escrita. Não há, em outros termos, uma variação fonológica na escrita, mas um sistema fonológico que pode interferir no sistema escrito. Assim, uma transgressão no sistema de escrita que seja motivada por um processo fonológico é resultado de uma projeção fonético-fonológica do aluno. Ele projeta para a escrita algo que é do campo da fala.

No domínio da Gramática, no bloco Fonologia, os conteúdos listados são os processos fonológicos de inserção, supressão e alteração de segmentos. A abordagem desses processos exige o domínio, por parte dos alunos, de conceitos-base, tanto do campo da fonética, como no da fonologia, que precisam ter sido abordados em anos anteriores, alguns dos quais explicitamos a seguir. Para isso, seguimos os seguintes passos:

- Apresentamos exemplos para cada processo fonológico, usando a seguinte estratégia: sempre que eles forem verificáveis no português europeu, pesquisamos, no site do Instituto Camões (2008)INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu. [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acess...
e na RTLEBS (LIBOA, 2007b) exemplos que os ilustrem; quando eles não se fizeram presentes em tais fontes de consulta, os exemplos apresentados refletem usos do Português Brasileiro; por vezes, considerando que a distinção de contextos geográficos é um descritor marcadamente presente no documento em análise, optamos por contrapor tais fenômenos em ambos os contextos (Português Europeu e Português Brasileiro);

- Indicamos os saberes que precisam ser mobilizados no trabalho com o assunto em pauta e observamos se o PMCPEB (BUESCU et al., 2015BUESCU, H. C. et al. Programa e metas curriculares de Português do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2015.) preveem a sua abordagem para os anos que antecedem o 8º e o 9º anos de escolaridade;

- Consultamos a RTLEBS (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b.), a fim de verificarmos se dela constam as definições dos conceitos necessários ao trabalho com os processos fonológicos em pauta; tal opção mostrou-nos a necessidade de ultrapassamos a abordagem meramente qualitativa dos termos e de analisarmos, também, o seu conteúdo.

De seguida, apresentamos uma reflexão sobre os processos fonológicos. Comecemos pelos processos fonológicos de inserção, que incluem a prótese, a epêntese e a paragoge:

- Prótese: corresponde ao acréscimo de um segmento no início da palavra. Esse fenômeno ocorre, segundo a RTLEBS (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b.), em alguns dialetos do português europeu, entre o artigo e o substantivo de sequências como “a água”/“a[i]água”. Também pode ser observado na fala de brasileiros e de portugueses menos escolarizados, em ocorrências como voar/avoar, lembrar/alembrar13 13 Ainda que essas quatro formas existam no português brasileiro, as ocorrências “voar” e “lembrar” são socialmente mais aceitas e, portanto, mais utilizadas pelos falantes que conhecem a norma padrão. . A abordagem de tal processo requer a retomada (e a desejável consolidação do conteúdo em tela) da meta delineada para o 8º ano, mencionada no quadro 4 (“Reconhecer a variação da língua”), e de seus respectivos descritores de desempenho (“Identificar, em textos orais, a variação nos planos fonológico, lexical e sintático” e “Distinguir contextos geográficos em que ocorrem diferentes variedades do português”). Nesse caso, uma possível estratégia pode ser a exploração das características fonéticas do Português Europeu e do Brasileiro.

- Epêntese: trata-se da inserção de um segmento no meio da palavra. Quando, por exemplo, por razões etimológicas, fazem-se presentes num vocábulo determinadas sequências de consoantes que fogem ao padrão silábico do Português (que tem uma única vogal como núcleo), os falantes brasileiros inserem uma vogal nesse contexto. As palavras “obstáculo”, “corrupto” e “óbvio” (do Latim obstaculum/corruptio/obvius) são pronunciadas com uma vogal epentética: “obistáculo”, “corrupito”, “óbivio”. À explanação de tal processo fonológico, assim como de todos os outros que se encontram no PMCPEB, é imprescindível o trabalho com o conteúdo relativo à estrutura da sílaba do Português, o qual é introduzido nos três primeiros anos do ensino básico, mas é retomado/aprofundado depois desse período. Para atingir com sucesso as metas propostas pelo documento em análise, o professor precisaria inserir em sua planificação conteúdos não previstos para os anos anteriores, dentre os quais, destacamos os componentes da sílaba do Português Europeu (núcleo, rima, ataque e coda), o princípio de sonoridade e a escala de sonoridade.

- Paragoge: é o acréscimo de um segmento no final de uma palavra. Em certas circunstâncias, na modalidade falada do Português Europeu, tal fenômeno tende a ocorrer no final dos verbos no infinitivo, onde um elemento que sucede o “r” final é audível: cantar – cantare [kã’taɾe], pular – pulare [pu’laɾe]. Ocorrência diversa ocorre na fala do Português Brasileiro, em que a tendência é, em considerável parte dos dialetos, o apagamento desse elemento final: cantar-canta [kã’ta], pular – pula [pu’la]. No trabalho com tal questão, os alunos precisam compreender que a escrita e a fala são modalidades da língua que possuem as suas especificidades e que aquela não é a representação fiel desta. No PMCPEB, as metas curriculares, os descritores de desempenho e os conteúdos relativos ao domínio da Oralidade constam de todos os anos do Ensino Básico, o que é uma proposta inovadora, se consideramos que, historicamente, a escola voltou-se ao ensino da escrita e da leitura e eximiu-se da responsabilidade de ensinar os gêneros orais formais que os alunos normalmente não aprendem fora do espaço escolar. Entretanto, entre as metas curriculares, os descritores de desempenho e os conteúdos citados, não se prevê a abordagem da relação fala e escrita, como um contínuum de práticas discursivas, em que uma modalidade ora aproxima-se, ora distancia-se da outra, reflexão de essencial importância para que aquela não seja avaliada a partir da ótica desta, e imprescindível à superação da perspectiva dicotômica, segundo a qual a escrita é superior à fala. Foge, entretanto, aos objetivos desta investigação abordar essa questão e a observação ora efetuada carece de aprofundamento.

A nossa consulta à RTLEBS mostrou-nos que a apresentação dos processos supramencionados carece de aprofundamento e de detalhamento, uma vez que, após a definição sucinta do fenômeno em tela – “Inserção de segmentos: Processo fonológico em que um novo segmento passa a ser articulado em posição inicial (prótese), medial (epêntese) e final (paragoge).” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 38) – há apenas o exemplo de epêntese. Por sua vez, no verbete dos Processos fonológicos, há somente a seguinte definição geral da expressão: “Termo usado para referir as modificações sofridas pelos segmentos em diversas circunstâncias contextuais (no início e no final das palavras, junto de vogal acentuada, etc.)” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 40).

É importante observar que, logo no parágrafo introdutório do documento referido, consta o objetivo para o qual ele foi originalmente concebido:

[…] um documento de referência para as práticas pedagógicas dos professores de língua portuguesa com a finalidade de superar a desactualização da Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 e consequente deriva terminológica largamente documentada nos materiais didácticos destinados ao ensino da língua. (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 3).

A ausência, na RTLEBS, de definições precisas, detalhadas e exemplificadas dos processos fonológicos previstos no programa em vigor em Portugal é um indicativo de que tal recurso carece de revisões que acompanhem as reformas dos programas do Ensino Básico, sob pena de ele não servir, como poderia, ao propósito para o qual foi criado. O professor cuja conclusão de curso não seja recente (ou cuja conclusão é recente, mas que não teve uma formação adequada no campo da fonética e da fonologia) e que não venha participando de cursos de formação continuada nessa área, certamente terá dificuldades para abordar os conteúdos determinados pelo Programa em vigor atualmente. Pelo menos no que concerne ao campo de investigação desta pesquisa, a referida “[…] desactualização da Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 e consequente deriva terminológica largamente documentada nos materiais didáticos destinados ao ensino da língua.”, constante da citação supra, ainda não foi superada.

Seguimos para os processos fonológicos de supressão, que incluem: a aférese, a síncope e a apócope:

Aférese: é o apagamento de um segmento em contexto de início de palavra. Para Mattoso Câmara Junior (2009CÂMARA JUNIOR, J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. 44.ed. Petrópoles: Vozes, 2009., p. 49), “Na língua Portuguesa, há tendência à aférese da vogal inicial que constitui sílaba simples, por causa da força expiratória que se dá à consoante que começa a sílaba seguinte.” No Brasil, verifica-se na fala de pessoas com baixo grau de escolaridade – como em arrancar/rancar e aguentar/guentar – ou na fala informal de indivíduos pertencentes a todos os estratos sociais, como a supressão da primeira sílaba do verbo “estar” em “eu estou”/”eu tou”.

Na explanação desse processo em sala de aula, a reflexão acerca da fala e da escrita como um contínuum de práticas discursivas (de que falamos ao abordarmos a paragoge) seria uma estratégia adequada. Além disso, seria necessário abordar tal fenômeno sob a perspectiva da variação linguística, a partir da observação de que a aférese tanto remete ao nível de escolaridade do falante (como nos casos das formas “arrancar” e “aguentar”, acima mencionados), quanto ao grau de formalidade da situação de comunicação em que ele se insere (como no caso do verbo “estar”, também supracitado). O conteúdo relativo à variação linguística não se faz presente no PMCPEB em anos anteriores ao 8º e ao 9º ano. Nesses anos, como se pode ver nos Quadros 1 e 2 acima, eles constituem um assunto específico que é previsto, no 8º ano, no domínio da Oralidade e, no 9º ano, nos domínios da Oralidade e da Leitura.

- Síncope: consiste na supressão de um segmento medial. No site do Instituto Camões (2008INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu. [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
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, grifo do autor), há uma seção intitulada “Características Fonéticas do Português Europeu VS Português Brasileiro”. Dentre as observações relativas às diferenças entre o português europeu e o brasileiro, encontra-se a seguinte:

Uma característica do Português Europeu que constitui, talvez, a mais notória diferença em relação ao Português do Brasil diz respeito às vogais não-acentuadas que são muito mais audíveis no Português Brasileiro do que no Europeu, sendo, nesta variedade, muito reduzidas, o que leva, por vezes, à sua supressão. Esta característica do Português Europeu tem como consequência que os estrangeiros compreendem melhor a pronúncia de um brasileiro do que de um português, sentindo, neste último caso, que a língua parece ter só consoantes.

Para ilustrar tal fenômeno, há quatro transcrições fonéticas (duas do Português Brasileiro e duas Português Europeu) da frase “A menina faltou ao teste de psicologia”. Limitar-nos-emos a transcrever e a comentar abaixo as duas relativas ao Português europeu. A primeira ocorrência é de uma pronúncia pausada e silabada e a segunda, de uma pronúncia coloquial:

[ɐ mɪ´ninɐ faɫ´to aw ´tɛʃtɪ dɪ psikulu´ʒiɐ]

[ɐ m´ninɐ faɫ´to aw ´tɛʃt d psiklu´ʒiɐ]

Na primeira transcrição, o primeiro fone vocálico da palavra “menina”, que está em posição pretônica, é reduzido e só ocorre, segundo o site, no registro pausado e silabado. Por sua vez, na segunda transcrição (registro coloquial), o mesmo segmento é suprimido. Fenômeno semelhante ocorre com o segundo fone vocálico da palavra “psicologia”, que também encontra-se em posição pretônica: é reduzido no registro pausado e suprimido no registro coloquial.

À abordagem desse processo são imprescindíveis os conhecimentos relativos à estrutura da sílaba do Português, assunto que é previsto apenas para o 1º ciclo, o que significa que o docente, para a atingir com sucesso as metas previstas para o 9º ano, precisaria inserir, em sua planificação, conteúdos não previstos para essa fase.

-Apócope: é o apagamento de um segmento no final de um vocábulo. Para ilustrar tal tipo de ocorrência, observe-se, na segunda transcrição fonêmica supra, as pronúncias das palavras faltou/[faɫ’to], teste/[‘tɛʃt] e de/[d]. Em todos os casos, verifica-se o apagamento dos fones vocálicos finais. Em grande parte dos dialetos do Português do Brasil, observa-se, na pronúncia de verbos no infinitivo, a tendência ao apagamento do segmento correspondente ao erre ortográfico (r) em posição final de palavra. Tal fenômeno é verificado em situações informais, na fala de pessoas de diferentes regiões e níveis de escolaridade.

O trabalho com tal conteúdo exige a abordagem dos saberes relativos à estrutura da sílaba do Português e às relações entre a fala e a escrita, já mencionados anteriormente.

Na RTLEBS, não há um verbete para a aférese (nem para a apócope e a síncope), que é mencionada apenas na entrada relativa à “supressão de segmentos”, segundo a qual trata-se de “Processo fonológico em que um segmento deixa de ser articulado em posição inicial (apócope), medial (síncope) e final (aférese) da palavra.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 42). Ao problema referido, acresce um outro mais grave, que diz respeito a um erro de terminologia, observado na troca das definições de apócope e aférese. O primeiro processo ocorre no final da palavra e o segundo acontece no início, e não o contrário, como consta do referido dicionário terminológico.

Na RTLEBS, encontram-se ainda os seguintes verbetes relativos à sílaba: sílaba, sílaba aberta, sílaba átona, sílaba fechada e sílaba tónica. Destaquemos a definição de sílaba lá disponível:

Unidade que agrupa os sons dentro da palavra. Pode incluir um ou mais sons, como nas sílabas da palavra a-pro-vei-tar. Dentro da sílaba, os sons podem ocorrer no ataque da sílaba (consoante (s) à esquerda da vogal), no núcleo da sílaba (vogal ou ditongo) ou na coda da sílaba (consoante à direita da vogal). O núcleo e a coda constituem a rima da sílaba. (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 41, grifo nosso).

Chamou a nossa atenção o fato de, apesar de fazerem-se presentes em tal definição palavras como “ataque”, “coda” e “núcleo”, não existirem, nesse documento, verbetes específicos para elas, onde constasse uma explanação mais precisa desses conceitos, que são tão caros à compreensão da estrutura da sílaba. Com base na percepção de tal problema, reiteramos a supramencionada necessidade de haver sintonia entre as metas curriculares, os descritores de desempenho e os conteúdos previstos pelo PMCPEB e os verbetes que constam da RTLEBS. Acrescente-se a essa questão o equívoco, grifado na citação acima, da ideia de composição de núcleo da sílaba, que poderia, segundo o verbete, ser formado por vogal ou ditongo, quando tal fenômeno não é previsto na estrutura da sílaba do Português, que só admite uma (e apenas uma) vogal como núcleo, ainda que mais de uma vogal possa fazer parte da mesma sílaba.

Segue-se a alteração de segmentos, que inclui: a redução vocálica, a assimilação e a dissimilação:

- Redução vocálica: corresponde ao natural enfraquecimento que sofrem as vogais quando ocupam posição átona nas palavras, seja essa posição inicial, medial ou final. Na transcrição fonética silabada e pausada [ɐ mɪ´ninɐ faɫ´to aw ´tɛʃtɪ dɪ psikulu´ʒiɐ], tal fenômeno ocorre, como já referido acima, com o primeiro fone vocálico da palavra “menina”, que ocupa posição pretônica, e com o fone vocálico final da palavra “teste”, que ocorre em posição postônica final. O quadro abaixo, retirado do site do Instituto Camões (2008)INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu. [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
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, traz exemplos de vocábulos em que tal redução ocorre em posição inicial (merecer/ [´mɾseɾ]); inicial e medial (despegar/[´dʃpgaɾ]); e, por fim, inicial e final (telefone/[´tlfɔn]). Antes de abordar tal processo, é necessário trabalhar:

1) Os parâmetros articulatórios dos segmentos vocálicos do português (posição da língua em termos de altura, posterioridade, anterioridade e arredondamento ou não dos lábios), para que os alunos compreendam que os dois primeiros segmentos vocálicos de [mɪ’ninə] não são articulados da mesma maneira, a despeito de remeterem ao mesmo grafema;

2) O inventário fonológico das vogais orais, a fim de que haja o entendimento de que há, em português europeu, dez fones vocálicos orais [i, u, e, o, ɛ, ɔ, a, w, ɐ, ɪ], conforme pode-se ver no quadro abaixo, extraído do site do Instituto Camões (2008)INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu. [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
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. Assim, será possível a compreensão de que os fones [i] e [ɪ] da palavra menina/[mɪ’ninə] são diferentes e fazem parte do inventário fonológico de sua língua materna.

Quadro 3
–Inventário Fonológico das Vogais Orais do Português

3) A propriedade secundária do desvozeamento das vogais, para que os discentes compreendam que, ainda que as vogais possuam a propriedade primária do vozeamento, elas podem ser desvozeadas quando ocorrem em certos contextos, como na posição pretônica e postônica, ambas ilustradas com a pronúncia dos fones vocálicos inicial e final da palavra [mɪ’ninə];

- Assimilação: é a mudança que sofrem os fones, que podem adquirir as propriedades de vozeamento ou de nasalização, por influência de segmentos vizinhos. Em Português Europeu, o vocábulo “vamos”, se pronunciado fora do contexto de uma frase, tem a seguinte realização [‘vamʊʃ], em que o fone final é fricativo, alveopalatal desvozeado [ʃ]. Quando, entretanto, inserido em um contexto de uma frase como esta, retirada do site do Instituto Camões (2008)INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu. [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html. Acesso em: 20 mar. 2019.
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, “vamos jantar”, a realização é: [´vɐmuʒ ʒã´taɾ], em pronúncia pausada. O que ocorre é que, por influência do primeiro fone da palavra “jantar”, que é fricativo alveopalatal vozeado [ʒ], o fone [ʃ] assimila a propriedade de vozeamento do segmento vizinho. No contexto de uma fala cotidiana, por sua vez, [ʃ] é fundido com [ʒ]: [´vɐmu ʒã´taɾ]. De maneira semelhante, o fone vocálico [u], que é alto, arredondado e anterior, adquire, por influência do fone nasal bilabial vozeado [m], a propriedade da nasalização na palavra “muito” [‘mũḽtʊ].

Os conteúdos necessários à explicação da assimilação não são previstos pelo PMCPEB em nenhum ano anterior ao 9º e, por essa razão, o professor precisaria introduzi-los. Dentre eles, destacamos os parâmetros necessários à descrição dos sons consonantais: o lugar de articulação (sons bilabiais, labiodentais, dentais, alveolares, alveopalatais, palatais, velares e glotais), a maneira ou o modo de articulação (sons oclusivos, nasais, fricativos, africados, tepe, vibrantes, retroflexo, e laterais) e o estado da glote durante a produção desses sons (vozeados ou desvozeados). Após tal trabalho, será possível ao professor explicar que, além dessas características primárias, os fones possuem também articulações secundárias, como, por exemplo, a assimilação de vozeamento sofrida por [ʃ] e a nasalização do fone [u] ilustrados no parágrafo anterior em [´vɐmuʒ ʒã´taɾ] e em ” [‘mũḽtʊ], respectivamente.

- Dissimilação: segundo a RTLEBS (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 37), trata-se de “Processo fonológico em que um segmento fonético perde um ou mais traços fonéticos que tinha em comum com um segmento vizinho, diferenciando-se dele.” Um exemplo desse fenômeno pode ser observado na palavra “lírio”, a qual deriva do latim “lilium” e sofreu mudança no segundo fone consonantal, que passou de [l] para [ɾ]. Numa perspectiva sincrônica, o referido documento cita, como exemplo de dissimilação, a realização, no dialeto de Lisboa, da primeira vogal da palavra “telha”. A abordagem de tal processo em sala requer o trabalho com a variação diacrônica, que não é previsto nos anos anteriores ao 9º ano.

- Metátase: corresponde à alteração de um segmento, que acontece devido à sua transposição para uma posição na sílaba diferente da original. Ocorre também quando uma sílaba passa para outra posição na palavra.

Diacronicamente falando, as modificações ocorridas na passagem das palavras semper/sempre e super/sobre do Latim para o Português ilustram isso. Numa perspectiva sincrônica, a RTLEBS cita os seguintes exemplos de metátase no português de Portugal: “A troca de sílabas em ‘estômago’ > ‘estôgamo’, ou a troca de segmentos em ‘prateleira’ > ‘parteleira’ em algumas variedades sociais.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 39). No Português do Brasil e de Portugal, ele se dá na fala de pessoas com baixo grau de escolaridade, em ocorrências como cardeneta (caderneta) e largato (lagarto). A tal abordagem é imprescindível a retomada e o aprofundamento dos conteúdos (variação da língua; plano fonológico, lexical e sintático; contextos geográficos), da meta curricular (reconhecer a variação da língua) e dos descritores de desempenho (identificar, em textos orais, a variação nos planos fonológico, lexical e sintático e distinguir contextos geográficos em que ocorrem diferentes variedades do português) previstos para o 8º ano pelo PMCPEB, como se pode ver no Quadro 1.

Quanto à RTLEBS, fazem-se presentes as seguintes definições dos processos de alteração em pauta:

- “Redução: Processo Fonológico que consiste no enfraquecimento de uma vogal em posição átona; assim, a primeira vogal de “bolo” sofre uma redução em “bolinho” e o mesmo sucede nos pares “medo”/”medroso”, “mata”/”matagal”.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 41);

- Assimilação, que é um “Processo Fonológico em que um segmento fonético se identifica com um segmento vizinho, ou dele se aproxima, ao adquirir um ou dois traços fonéticos desse segmento vizinho.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 36). Entretanto, como fenômeno linguístico universal, esse processo faz-se presente não apenas no Português de Portugal, do Brasil ou da Guiné Bissau, mas em todas as línguas naturais. O documento em pauta, ao ilustrá-lo, aborda-o apenas do ponto de vista diacrônico, por meio da evolução sofrida pelo vocábulo “mão”, na sua passagem do latim para o português – “Assimilação: manum>mãnu>mão”. A nosso ver, perde-se uma valiosa oportunidade de se mostrar que os processos fonológicos acontecem tanto do ponto de vista diacrônico, como do sincrônico, e, especialmente, que eles estão presentes na fala de todas as pessoas.

- “Metátase: transposição de segmentos ou sílabas no interior de uma palavra.” (LISBOA, 2007bLISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário. Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b., p. 39):

Considerações finais

A análise feita mostrou que, a despeito dos aspectos positivos já mencionados na RTLEBS, foram verificadas fragilidades na organização e na composição dos verbetes selecionados nesta investigação, dentre os quais destacamos as seguintes:

- os processos fonológicos poderiam ter sido abordados tanto na perspectiva sincrônica, quanto na diacrônica, enquanto fenômenos inerentes a todas as línguas naturais; em vez disso, o documento não faz tal articulação e perde, em algumas ocasiões, caras oportunidades de fazer definições mais a esse respeito;

- falta de aprofundamento na definição dos três processos fonológicos de inserção e carência de exemplos;

- ausência de verbetes específicos relacionados à definição de sílaba apresentada pelo próprio documento, tais como ataque, núcleo e coda e equívoco na definição de núcleo, verificado no verbete de “sílaba”;

- ausência de entradas específicas para cada um dos três processos fonológicos de supressão;

- erro de terminologia, verificado no verbete “supressão de segmentos”, na definição do que é apócope e aférese.

A presente investigação objetivou, também, explicitar cada uma das questões referidas, durante a análise que foi efetuada das metas curriculares, dos descritores de desempenho e dos conteúdos relativos à fonética e à fonologia previstos pelo PMCPEB. Nessa ocasião, efetuamos um cruzamento entre os conteúdos previstos nesse documento para o 9º ano e os verbetes constantes da RTLEBS, a fim de verificarmos se havia, nesse documento, verbetes necessários à abordagem dos referidos conteúdos, metas e descritores.

A conclusão a que chegamos é que a redução do número de verbetes efetuada por ocasião da revisão da primeira TLEBS foi danosa às áreas de fonética e de fonologia, tanto do ponto de vista quantitativo (foram suprimidas definições essenciais à compreensão dos processos fonológicos previstos para o 9º ano pelo programa em vigor), quanto qualitativo (há definições que, de tão sucintas, tornam-se vagas e há equívocos terminológicos).

Além disso, o PMCPEB, apesar de inovar14 14 Em relação ao documento anterior: Metas curriculares para o Ensino Básico (BUESCU et al., 2012) ao prever metas curriculares, descritores de desempenho e conteúdos da fonética e da fonologia para os dois anos finais do 3º ciclo, não antevê, para os anos que antecedem o 8º e o 9º, saberes imprescindíveis a essa abordagem. Para que o professor dê conta com sucesso do que dispõe o documento, ele precisa, em um mesmo ano, preencher a lacuna dos 4 anos (4º, 5º, 6º e 7º) em que a fonética e a fonologia são postas de lado pelo programa, o que parece algo um tanto inexequível.

RODRIGUES, S.; SÁ, C. The place of portuguese phonetics/phonology as presented in official documents of portuguese elementary schools. Alfa, São Paulo, v. 63, n.1, p.181-206, 2019.

REFERÊNCIAS

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  • BUESCU, H. C. et al. Metas curriculares de Português – Ensino Básico, 1º, 2ºe 3º Ciclos. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2012.
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  • CÂMARA JUNIOR, J. M. Estrutura da Língua Portuguesa 44.ed. Petrópoles: Vozes, 2009.
  • INSTITUTO CAMÕES. A pronuncia do português europeu [Lisboa]: Instituto Camões, 2008. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp/acessibilidade/capitulo6_3.html Acesso em: 20 mar. 2019.
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  • LISBOA. Ministério da Educação. Revisão da terminologia linguística para os ensinos básico e secundário Lisboa: Ministério da Educação, 2008. Disponível em: http://principo.org/reviso-da-terminologia-lingustica-para-os-ensinos-bsico-e-secu.html Acesso em: 23 mar. 2019.
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  • LISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 476/2007. Diário da República, Lisboa, n.º 76/2007, Série I de 2007-04-18, p. 2467/2468, 2007a.
  • LISBOA. Ministério da Educação. Revisão da Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário Direcção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular: Lisboa, 2007b.
  • LISBOA. Ministério da Educação. Portaria nº 1488/2004. Diário da República, Lisboa, n.º 300/2004, Série I de 2004-12-24, p. 7307/7315, 2004.
  • LISBOA. Ministério da Educação e Ciência. Dicionário Terminológico para consulta em linha Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, [200-]. Disponível em: http://dt.dge.mec.pt/ Acesso em: 19 mar. 2019.
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  • RODRIGUES, S. V. Fonética e fonologia no ensino da Língua Materna: modos de operacionalização. In: ENCONTRO SOBRE TERMINOLOGIA LINGUÍSTICA: DAS TEORIAS ÀS PRÁTICAS, 2005, Porto. Anais [...]. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 1-33. Disponível em: http://web.letras.up.pt/srodrigues/pdfs/term_ling_actas.pdf Acesso em: 20 maio 2014.
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  • VELOSO, J. A fonética e a fonologia na nova terminologia linguística para os ensinos básico e secundário. In: DUARTE, I.; FIGUEIREDO, O. (org.). Terminologia linguística: das teorias às práticas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006. p. 115-127.
  • VELOSO, J.; RODRIGUES, A. S. A presença da fonética e da fonologia no ensino do português (ensino básico e secundário): algumas considerações preliminares. In: ENCONTRO COMEMORATIVO DOS 25 ANOS DO CENTRO DE LINGUÍSTICA DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2002, Porto. DUARTE, I. M. et al. Anais [...]. Porto: C.L.U.P., 2002. v.1, p. 231-246. Disponível em: https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314 Acesso em: 20 ago. 2017.
    » https://bibliotecadigital.ipb.pt/handle/10198/3314
  • 1
    O 3º ciclo do Ensino Básico português equivale, no Brasil, ao 7º, 8º e 9º ano do Ensino Fundamental Anos Finais.
  • 2
    O DT on-line, dada a sua natureza hipertextual, não se organiza linearmente, de maneira que ao leitor cabe definir as estratégias de busca e de pesquisa que lhe são convenientes.
  • 3
    Esse documento foi produzido com base nas Metas Curriculares de Português do Ensino Básico, que foram homologadas a 3 de agosto de 2012, por meio do Despacho nº 5305/2012, no contexto da Revisão da Estrutura Curricular, que se deu no mesmo ano.
  • 4
    Em Portugal, os nove anos de escolaridade do Ensino Básico (que, no Brasil, correspondem ao Ensino Fundamental) são distribuídos em três ciclos da seguinte forma: 1º Ciclo – 1º, 2º, 3º e 4º anos; 2º Ciclo – 5º e 6º anos; 3º Ciclo – 7º, 8º e 9º anos.
  • 5
    Os três ciclos do Ensino Básico português equivalem, no Brasil, ao Ensino Fundamental Anos Iniciais e Finais.
  • 6
    Cagliari (2009)CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. 11.ed. São Paulo: Scipione, 2009. faz importantes reflexões acerca do status quo do ensino da Fonética e da Fonologia nas escolas brasileiras.
  • 7
    No ano em que Veloso e Rodrigues realizaram tal pesquisa, havia uma reforma curricular em curso e, por isso, os autores optaram por trabalhar com os programas do 3º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário anteriores a tal reforma.
  • 8
    Esclarecemos que essas obras não foram por nós consultadas no desenvolvimento da presente pesquisa. Nesse sentido, elas não compõem as referências deste artigo.
  • 9
    Os documentos analisados pelos autores foram: para o 3º Ciclo do Ensino Básico, os Programas de Língua Portuguesa aprovados pelo Despacho nº 124/ME/91, de 31 de julho de 1991; para o Ensino Secundário, os Programas de Português constantes do documento Português A e B Programas, 10º, 11º e 12º anos. (DES, 1997).
  • 10
    Ensino Básico e Ensino Secundário.
  • 11
    Essa série, no Brasil, corresponde ao 3º ano do Ensino Médio.
  • 12
    Considerando os nossos objetivos nesta pesquisa, optamos por detalhar apenas a maneira como o documento apresenta os subitens relativos aos campos da fonética e da fonologia.
  • 13
    Ainda que essas quatro formas existam no português brasileiro, as ocorrências “voar” e “lembrar” são socialmente mais aceitas e, portanto, mais utilizadas pelos falantes que conhecem a norma padrão.
  • 14
    Em relação ao documento anterior: Metas curriculares para o Ensino Básico (BUESCU et al., 2012BUESCU, H. C. et al. Metas curriculares de Português – Ensino Básico, 1º, 2ºe 3º Ciclos. Lisboa: Ministério da Educação e Ciência, 2012.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2018
  • Aceito
    17 Jun 2018
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