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RECONHECIMENTO ANTECIPADO DE PROBLEMAS ORTOGRÁFICOS EM ESCREVENTES NOVATOS: QUANDO E COMO ACONTECEM

RESUMO

A aprendizagem da ortográfica constitui um processo complexo, envolvendo questões lexicais e gramaticais. Muitos estudos sobre essa aprendizagem tratam os problemas ortográficos de modo independente e separado da produção textual. Neste estudo defendemos a importância de se analisar a aprendizagem da ortografia a partir da perspectiva proposta pela Genética Textual, colocando em destaque a gênese do processo de escritura e criação textual. Apresentamos o Sistema Ramos, metodologia de investigação que registra o processo de escritura em tempo e espaço real da sala de aula. Esse Sistema oferece informações multimodais (fala, escrita, gestualidade) sobre o que alunos, em duplas, reconhecem como problemas ortográficos (PO) e os comentários espontâneos feitos quando estão escrevendo o texto. Este estudo analisa justamente o momento em que aconteceram esses reconhecimentos e os comentários de duas alunas no 2º ano de escolaridade, durante a produção de seis histórias inventadas. Mais do que uma análise quantitativa dos tipos de PO identificados no produto, apresentamos uma análise enunciativa e microgenética de reconhecimentos de PO e seus comentários, particularmente aqueles PO antecipados pelas escreventes. Os resultados indicam: i. Reconhecimentos ensejam comentários nem sempre relacionados ao PO identificado; ii. Reconhecimentos e comentários estão relacionados aos conteúdos ortográficos ensinados em sala de aula; iii. Alguns PO reconhecidos envolvem a articulação de diferentes níveis linguísticos. Esses aspectos podem contribuir para a compreensão da aprendizagem da ortografia em situações didáticas propiciadas pela escrita colaborativa a dois.

Sala de aula; Produção textual; Ortografia; Rasura; Metalinguístico; Aprendizagem; Escrita colaborativa

ABSTRACT

The acquisition of spelling competence is a complex process, involving lexical and grammatical questions. Research, however, almost always places the spelling from an autonomous point of view and disconnected from the other components of writing. In this text, we present the relevance of the Ramos System that captures students in an ecological situation of text production in pairs, allowing access to the processes for solving orthographic problems. Collaborative writing also grants access to comments made by students during the process of textual linearization. Our study focuses on the recognition of spelling problems (SP) and the comments made regarding such problems by two 2nd grade students during the production of six invented stories. More than a quantitative analysis of the types of SP identified in the product, we were interested in making a qualitative and fine analysis of oral recognitions of SP, particularly those SP anticipated by the writers. Our results indicate that: i. Recognition motivates comments that are not always related to the identified SP; ii. Recognition and comments are related to the orthographic contents taught in the classroom; iii. Some of the recognized SP involve the articulation between different linguistic levels. These aspects can contribute for the comprehension of orthographic learning in didactic situations provided by collaborative writing.

Classroom; Text production; Spelling; Erasure; Metalinguistic; Learning; Collaborative writing

Introdução

O caminho percorrido pelo escrevente desde seus primeiros textos até sua autonomia enquanto produtor de texto é longo e complexo, dependente, sobretudo, de um ensino sistemático e de uma atividade reflexiva sobre sua própria escrita (KELLOGG, 2008KELLOGG, R. T. Training writing skills: A cognitive developmental perspective. Journal of writing research, New York, v.1, n.1, p.1-26, 2008.; PEREIRA, 2008PEREIRA, L. Á. Escrever com as crianças. Como fazer bons leitores e escritores. Porto: Porto Editora, 2008.; PEREIRA; BARBEIRO, 2010PEREIRA, L. Á.; BARBEIRO, L. F. A revisão textual acompanhada como estratégia de ensino da produção escrita. In: LUNA, M. J. D.; SPINILLO, A. G.; RODRIGUES, S. G. (Eds.). Leitura e Produção de Texto. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010. p.51-80.). No início desse processo, o escrevente precisa lidar, por um lado, com o sistema notacional envolvendo as representações grafo-fônicas, suas distinções gráficas e ortográficas (TOLCHINSKY, 2003TOLCHINSKY, L. The cradle of culture and what children know about writing and numbers before being taught. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum, 2003.; MOREIRA; PONTECORVO, 1996MOREIRA, N. R.; PONTECORVO, C. Chapeuzinho/Cappuccetto: as variações gráficas e a norma ortográfica. In: MOREIRA, N. R. (Org.). Chapeuzinho Vermelho aprende a escrever: estudos psicolinguísticos comparativos em três línguas. São Paulo: Ática, 1996. p.78-122.) e enfrentar as relações entre regras, normas e irregularidades (NUNES; BRYANT, 2014NUNES, T.; BRYANT, P. Leitura e Ortografia: além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014.; ZORZI, 1998ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.; PINTO, 1998PINTO, M. da G. L. C. A ortografia e a escrita em crianças portuguesas nos primeiros anos de escolaridade. In: PINTO, M. da G. L. C. Saber viver a linguagem. Um desafio aos problemas de literacia. Porto: Porto Editora, 1998. p.139-193.). Por outro lado, esse subsistema da escrita depende do próprio processo de geração do texto e transcrição (BEREITER; SCARDAMALIA, 1987BEREITER, C.; SCARDAMALIA, M. The psychology of written composition. Hilsdale. NJ. Lawrence Erlbaum Associates, 1987.; BERNINGER et al., 1994BERNINGER, V.; CARTWRIGHT, A. C.; YATES, C. M.; SWANSON, H. L.; ABBOTT, R. D. Developmental skills related to writing and reading acquisition in the intermediate grades: Shared and unique variance. Reading and Writing, Dordrecht, v.6, p.161-196, 1994.), o que exige conhecimentos relativos aos aspectos ortográficos, semânticos, sintáticos, morfológicos, de pontuação e acentuação, todos eles vinculados à articulação e concatenação entre palavras e frases articuladas no texto escrito.

Muitos estudos sobre aquisição da ortografia adotam metodologias quantitativas analisando o conhecimento ortográfico da criança a partir da análise de pseudopalavras ou palavras inventadas (CASSAR; TREIMAN, 1997CASSAR, M.; TREIMAN, R. The beginnings of orthographic knowledge: children’s knowledge of double letters in words. Journal of Educational Psychology, v.89, n.4, p.631-644, 1997.; REGO; BUARQUE, 1999REGO, L. L. B.; BUARQUE, L. L. Algumas fontes de dificuldade na aprendizagem de regras ortográficas. In: MORAIS, A. G. (Ed.). O aprendizado da ortografia. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.21-41.), palavras ortográficas, frases curtas (ROSA; NUNES, 2010ROSA, J.; NUNES, T. Pode-se melhorar a escrita das vogais indistintas pelas crianças? Educar em Revista, v.38, p.113-127, 2010.), pequenos textos (NOBILE; BARRERA, 2009NOBILE, G. G.; BARRERA, S. D. Análise de erros ortográficos em alunos do ensino público fundamental que apresentam dificuldades na escrita. Psicologia em Revista, v.15, n.2, p.36-55, 2009.), reescritas de textos conhecidos (MOREIRA, 1996MOREIRA, N. R. (Org.). Chapeuzinho Vermelho aprende a escrever: estudos psicolinguísticos comparativos em três línguas. São Paulo: Ática, 1996.) ou testes avaliativos (NUNES; BRYANT; BINDMAN, 2006). De modo geral, esses e outros estudos adotam diferentes instrumento de coleta, como por exemplo, ditados (CASSAR; TREIMAN, 1997CASSAR, M.; TREIMAN, R. The beginnings of orthographic knowledge: children’s knowledge of double letters in words. Journal of Educational Psychology, v.89, n.4, p.631-644, 1997.; ZORZI, 1998ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.), entrevistas (DE GAULMYN; LUIS, 1997DE GAULMYN, M.-M.; LUIS, M.-H. Genèse des représentations métalinguistiques de la langue écrite. Linx, Paris, v.27, n.2, p.107-113, 1997.; MORIN, 2005MORIN, M-Fr. Declared Knowledge of beginning writers. L1 – Educational Studies in Language and Literature, Amsterdam, n.5, p.385-401, 2005.) ou, simplesmente, recolhem textos escritos em sala de aula (CARRAHER, 1985CARRAHER, T. N. Explorações sobre o desenvolvimento da ortografia em português. Psicologia: teoria e pesquisa, v.1, n.3, p.269-285, set./dez. 1985.; CAGLIARI, 1989CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1989.).

Contudo, como argumentam Chiss e David (2011b), se a escritura é uma atividade cognitiva caracterizada por séries de operações em paralelo (HAYES, 1996HAYES, J. R. A new framework for understanding cognition and affect in writing. In: LEVY, C. M.; RANSDELL, S. (Eds.). The science of writing: theories, methods, individual differences and applications. Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1996. p.1-27.), a aprendizagem da ortografia também deveria ser mais amplamente investigada durante processos de produção textual. O aprendiz-escrevente, enquanto produtor de texto, recorre simultaneamente a informações múltiplas relacionadas ao conteúdo, a forma e a função daquilo que está sendo escrito, buscando resolver problemas diversos e heterogêneos. Sua ação como escrevente está delimitada por seus conhecimentos linguísticos e por suas capacidades cognitivas, como por exemplo, a memória de longo prazo e a memória de trabalho (KELLOGG, 2001KELLOGG, R. T. Competition for working memory among writing processes. The American Journal of Psychology, New York, n.114, p.175-191, 2001.; MCCUTCHEN, 2000MCCUTCHEN, D. Knowledge, processing, and working memory: Implications for a theory of writing. Educational Psychologist, New York, n.35, p.13-23, 2000.; FAYOL; MIRET, 2005FAYOL, M.; MIRET, A. Écrire, orthographier et rédiger des texte. Writing, spelling, and composing. Psychologie française, Paris, n.50, p.391-402, 2005.), ativadas durante o processo escritural.

Os problemas ortográficos (PO), sobretudo em escreventes novatos, concorrem com outros componentes do processo de escritura, com questões linguísticas e textuais, não sendo possível escrever um texto apenas refletindo sobre problemas ortográficos. Também não é possível antecipar em que ponto do texto em curso o aluno terá alguma dúvida sobre o modo como se escreve uma determinada palavra, nem de que modo um problema ortográfico se relacionaria como outros subsistemas ou níveis linguísticos (por exemplo, a ortografia e o uso de letra maiúscula, a divisão de uma palavra no final da linha (translineação), o conhecimento gramatical ou semântico-lexical para escrever palavras homofônicas, etc.). Desse modo, para que possamos melhor compreender o desenvolvimento da produção textual em escreventes novatos e suas relações com os componentes que lhe são inerentes, é legítimo valorizar situações reais de escritura e oferecer mecanismos para identificar e analisar as ocorrências desses componentes durante o texto em curso.

Neste trabalho, iremos abordar justamente essa problemática, discutindo os reconhecimentos de problemas ortográficos de uma dupla de alunas portuguesas recém-alfabetizadas, durante processos de escritura de narrativas ficcionais.

Aquisição da ortografia e reflexões metalinguísticas

A partir dos anos 90, estudos em aquisição da ortografia começam a analisar explicações, justificativas e comentários de escreventes novatos, usando como instrumento metodológico a aplicação de entrevistas ou a execução de tarefas de produção textual. Os trabalhos da equipe de investigadores do grupo de pesquisa Linguística da escrita e aquisição (LÉA) são representativos destes estudos e influenciaram diversas outras investigações1 1 Conferir, por exemplo, os trabalhos de Bousquet et al. (1999), Jaffré (1995), Chiss, David (2011a), Morin e Nootens (2013), Fijalkow, J. e Fijalkow, F. (1991) e De Gaulmyn e Luis (1997). .

Dentre essas investigações, podemos destacar estudos baseados na técnica de “entrevista metagráfica”2 2 As entrevistas metagráficas realizadas pelos próprios pesquisadores e inspiradas nas entrevistas clínicas de Piaget estão centradas sobre a ortografia. Nessas entrevistas, segundo Brissaud e Cogis (2011, p.45), “demanda-se ao aluno que comente, no texto que acabou de escrever, alguns grafemas que ele produziu. O aluno, retornando sobre suas escolhas, é levado a explicitar os materiais linguísticos que selecionou e as razões pelas quais o fez. Como nas palavras metalinguística, metacognição, o termo metagráfico explica esse retorno reflexivo, em efeito nos grafemas.”. . Essa técnica foi adaptada e usada por David (2001DAVID, J. Typologie des procédures métagraphiques produites en dyades entre 5 et 8 ans. L’exemple de la morphologie du nombre. In: DE GAULMYN, M. M.; BOUCHARD, R.; RABATEL, A. (Eds.). Le processus rédactionnel. Écrire à Plusieurs voix. Paris: l’Harmanttan, 2001. p.281-292., 2003DAVID, J. Les procédures orthographiques dans les productions écrites de jeunes enfants. Revue des sciences de l’éducation, Paris, v.XXIX, n.1, p.137-158, 2003.), Morin (2005)MORIN, M-Fr. Declared Knowledge of beginning writers. L1 – Educational Studies in Language and Literature, Amsterdam, n.5, p.385-401, 2005. e Barbeiro (2007)BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., assim como tem sido proposta como instrumento didático para o ensino de ortografia (BRISSAUD; COGIS, 2011BRISSAUD, C.; COGIS, D. Comment enseigner l´orthographe aujourd´hui? Paris: Hatier, 2011.). Esses estudos adotaram procedimentos metodológicos diferenciados, mas que permitiram análises de verbalizações de questões ortográficas de jovens escreventes. David (2001)DAVID, J. Typologie des procédures métagraphiques produites en dyades entre 5 et 8 ans. L’exemple de la morphologie du nombre. In: DE GAULMYN, M. M.; BOUCHARD, R.; RABATEL, A. (Eds.). Le processus rédactionnel. Écrire à Plusieurs voix. Paris: l’Harmanttan, 2001. p.281-292., por exemplo, mostrou algumas tipologias do que chamou de “diálogos metagráficos” estabelecidas a partir de sequências interativas em que participam duas ou três crianças, quando uma delas faz a revisão do texto de outra, destacando problemas ortográficos, diante da presença e, por vezes, participação, do investigador. O autor descreve tipos de componentes que caracterizariam, genericamente, os comentários feitos durante a situação interacional: justificação x revisão, acordo x desacordo, fatos x comentários, participação explícita x participação implícita, decisão x não decisão.

Em outro tipo de situação experimental, baseada na técnica da entrevista individual, Morin (2005)MORIN, M-Fr. Declared Knowledge of beginning writers. L1 – Educational Studies in Language and Literature, Amsterdam, n.5, p.385-401, 2005. apresentou uma lista de palavras em francês que apresentavam dificuldades ortográficas específicas e pediu para que alunos de 7 anos as escrevessem, interrogando-os, em seguida, sobre as produções feitas. Seus achados confirmaram estudos anteriores, mostrando uma variedade de comentários metagráficos relacionados aos aspectos fonológicos, morfológicos e à memória visual. Também indicaram a importância e interferência da instrução formal no modo de pensar destes escreventes novatos.

Resultados semelhantes ainda foram encontrados por Barbeiro (2007)BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., ao propor uma tarefa de escrita colaborativa, em grupos de 3, com 4 níveis diferentes de escolaridade (2º, 4º, 6º e 8º anos), em que cada aluno do grupo deveria escrever seu próprio texto (um relato ficcional), a partir de uma construção oral conjunta. Este é um dos poucos estudos em que se analisou o reconhecimento de problemas ortográficos ocorridos durante situações de produção textual em tempo real, em condições mais próximas às práticas didáticas de sala de aula. Por essa razão, na tipologia de problemas ortográficos identificados, o autor considerou o uso de letra maiúscula e minúscula, problemas de translineação e de acentuação. Além disso, Barbeiro propôs 4 categorias para a análise dos tipos de episódios: manifestações de autocorreção, heterocorreção, indicação de forma ortográfica por antecipação, solicitação da ajuda dos colegas para resolver uma dificuldade ortográfica (BARBEIRO, 2007, p.117).

Essa tipologia parece-nos mais interessante do que a proposta por David (2001)DAVID, J. Typologie des procédures métagraphiques produites en dyades entre 5 et 8 ans. L’exemple de la morphologie du nombre. In: DE GAULMYN, M. M.; BOUCHARD, R.; RABATEL, A. (Eds.). Le processus rédactionnel. Écrire à Plusieurs voix. Paris: l’Harmanttan, 2001. p.281-292. e Morin (2005)MORIN, M-Fr. Declared Knowledge of beginning writers. L1 – Educational Studies in Language and Literature, Amsterdam, n.5, p.385-401, 2005., principalmente pelo fato de considerar as formas ortográficas “por antecipação de eventuais dificuldades por parte dos companheiros” (BARBEIRO, 2007BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., p.118). Em seus resultados, esse tipo de episódio não era o objetivo da análise, centrada nos aspectos quantitativos dos tipos de incorreções (falhas de transcrição, transcrição de oralidade, inobservância de regras fonológicas e morfológicas, problemas lexicais, acentuação, maiúscula/minúscula, unidade gráfica, translineação) e nos tipos de comportamento dos alunos (se o aluno fez uma autocorreção, se ele corrigiu o outro aluno, se ele antecipou uma dificuldade que outro aluno poderia ter, se ele solicitou ajuda de um colega para resolver uma dificuldade). Outro resultado obtido nesse estudo diz respeito ao que Barbeiro chamou de “fundamentação”, isto é, “trocas verbais entre os elementos do grupo, com vista à adoção de uma solução. [...] argumentação relativa a dificuldades ortográficas, para fundamentar indicações, respostas a solicitações, auto ou heterocorreções” (BARBEIRO, 2007, p.120). Foram identificadas apenas 25 ocorrências de “fundamentação”, relacionadas aos diferentes problemas ortográficos. O modo de registro em áudio para a coleta de dados não permitiu sabermos exatamente o que estava sendo escrito quando os alunos falavam. Como poderemos observar abaixo, o autor também não explorou os argumentos usados pelos diferentes escreventes e de que forma as “fundamentações” se diferenciavam.

S25: à noite / vá / ‘à’ / agora é ‘á com agá’ / não é? / ‘à’ noite3 3 A transcrição oferecida por Barbeiro não é de imediata compreensão pelo leitor. Aqui, o aluno demonstra dúvida sobre como grafar ‘à’, no sintagma ‘à noite’. Ele faz uma pergunta afirmativa dizendo que esse ‘á’ é com ‘h’. O enunciado dito pelo outro aluno traz a informação referente ao valor semântico de ‘há’. Contudo, não está claro se o aluno escreveu o ‘a’ com acento agudo ou com acento grave.

S27: ‘existe’ noite?

(BARBEIRO, 2007BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., p.121)

Segundo Barbeiro (2007)BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., este é um dos 6 episódios registrados em que os alunos buscaram diferenciar os usos de “à” e “há”. Apesar de indicar a importância da ação compartilhada entre os alunos para a reflexão metalinguística (“fundamentações”), não houve preocupação do pesquisador em diferenciar os tipos de argumentos em relação ao nível de escolaridade dos alunos, nem sua metodologia permitiu correlacionar a identificação oral do PO com o momento de sua inscrição (isto é, se o comentário foi feito antes, durante ou depois da escrita de determinada palavra).

Apesar da importância dos comentários4 4 Entendemos que o termo “fundamentação”, pela carga semântica que lhe é própria, não caracteriza o que o escrevente fala espontaneamente para seu parceiro. Propomos o termo “comentário” (CALIL, 2016) dado seu amplo escopo semântico, que pode ser explicativo, justificativo ou uma breve dúvida ou observação sobre o elemento linguístico ou textual que está sendo escrito. feitos pelos alunos para a nossa compreensão sobre o modo como observam, pensam e solucionam (ou não) determinados problemas ortográficos, ainda não dispomos de estudos dedicados a analisar os argumentos usados, suas relações com o texto em curso e com as práticas didáticas às quais os alunos estão submetidos.

A partir de uma perspectiva microgenética, no campo de estudos da Genética Textual (FABRE, 1990FABRE, C. Les brouillons d’écoliers ou l’entrée dans l’écriture. Grenoble: Ceditel/ L’Atelier du Texte, 1990.; BORÉ, 2010BORÉ, C. Modalités de la fiction dans l’écriture scolaire. Paris: Éditions l’Harmattan, 2010.; DOQUET, 2011DOQUET, C. L’écriture débutant: pratiques scriptuales à l’école élémentaire. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011.), dentro de uma abordagem enunciativa (CALIL, 2012a, 2013), propomo-nos a analisar os comentários feitos por jovens escreventes durante o manuscrito em curso. Nossa unidade de análise é o texto dialogal (TD) estabelecido co-enunciativamente durante processo de escritura a dois. O TD é por nós identificado em episódios dialogais em que há o reconhecimento e retorno dos escreventes sobre determinado elemento textual, isto é, tudo aquilo que potencialmente pode fazer parte da composição material de um texto, seja a escolha de um nome de personagem, de uma letra maiúscula, de um sinal de acentuação ou apenas um traço para separar ou dividir uma palavra. No texto em curso, esse reconhecimento e retorno não se operam a todo instante, mas quando ocorre sobre um determinado elemento textual, alça-o ao estatuto de “objeto” ou, como temos nomeado (CALIL, 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.), transforma o elemento textual em “objeto textual”. O que os escreventes falam sobre um objeto textual (OT) reconhecido é tratado como “comentário” referente a este objeto. O comentário enunciado pode contribuir para a manutenção, modificação ou apagamento do OT referido, alterando o texto em curso e, ao mesmo tempo, traçando sua gênese textual. É por essa razão que a relação entre o reconhecimento de objetos textuais e os comentários a eles relacionados é tratada como “rasura oral comentada” (CALIL, 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.). As rasuras orais comentadas (ROC) representam pontos de tensão no fluxo da escritura, relativos à inscrição e linearização5 5 Conforme definimos em Calil (2016), em função da perspectiva genética na qual este estudo se insere, esses dois termos estão diretamente relacionados ao momento em que o texto está sendo registrado na folha de papel. Durante este momento, a “inscrição” refere-se a todo e qualquer traço gráfico inscrito na folha de papel (letras, traços, riscos, desenhos, etc.). A ˜linearização” diz respeito à materialidade gráfica daquilo que foi discutido oralmente pelos alunos para ser escrito, isto é, ao momento em que um elemento textual (gráfico, ortográfico, lexical, semântico, sintático, textual) é concatenado e articulado a outro elemento textual na cadeia sintagmática do texto em curso. Desse modo, assumimos que a linearização resulta do diálogo, envolvendo necessariamente a articulação e concatenação entre os elementos textuais inscritos na folha de papel, enquanto que a inscrição de uma marca gráfica pode ocorrer sem que haja relação com a linearidade do texto em curso. de um termo ou outro, envolvendo diferentes níveis linguísticos e textuais (pragmáticos, gráficos, lexicais, semânticos, ortográficos, sintáticos, de pontuação). Os comentários relacionados aos OT reconhecidos expõem argumentos de diferentes valores, como já indicado em outros estudos (CALIL, 2013CALIL, E. Dialogisme, hasard et rature orale. Analyse génétique de la création d un texte par des élèves de 6 ans. In: CALIL, E.; BORÉ, C. (Éds.). L’école, l’écriture et la création: études franco-brésiliennes. Louvain-la-neuve: L’Harmattan-Academia, 2013. p.157-188., 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.).

Neste estudo, identificaremos as ROC de objetos textuais ortográficos (problemas ortográficos) e analisaremos os comentários a eles referentes. Em nossa proposta teórico-metodológica, consideramos, portanto, a fala espontânea do aluno nesta condição co-enunciativa e ecológica6 6 Para o leitor pouco familiarizado com a especificidade de nosso campo de estudo, é importante precisar que este termo se refere à preservação das características cotidianas e interacionais da sala de aula. Isso é garantido pelo modo como os dados são registrados através do Sistema Ramos, conforme será descrito adiante. da sala de aula e o processo de inscrição e linearização do texto em curso.

Escopo dos problemas ortográficos a partir do uso do Sistema Ramos

Obter informações sobre o modo de pensar de escreventes novatos, durante situações reais de produção textual no contexto de sala de aula, não é um desafio simples. É sabido por aqueles que atuam ou já atuaram profissionalmente como professor o quanto uma sala de aula é um espaço dinâmico, interativo, dialogal, sobretudo quando se trata de alunos com apenas 7 anos de idade, cuja experiência enquanto produtor de texto ainda é bastante incipiente e as dúvidas sobre múltiplos aspectos da escrita (grafia das letras, limites de linhas e margens, ortografia, separação de palavras, translineação, acentuação, pontuação, dentro vários outros) estão à flor da pele. Soma-se a essas dificuldades, não só a necessidade de termos acesso ao que o aluno pensa, ao modo como pensa o que pensa, mas também ao que está pensando enquanto está escrevendo.

Considerando a importância da escrita colaborativa para a atividade metalinguística do aluno (DAIUTE; DALTON, 1993DAIUTE, C.; DALTON, B. Collaboration between children learning to write: can novices be masters? Cognition and Instruction, New York, n.10, p.281-333, 1993.; SWAIN; LAPKIN, 1998SWAIN, M.; LAPKIN, S. Interaction and Second Language Learning: two adolescent french immersion students working together. The Modern Language Journal, Montreal, v.82, n.3, p.320-337, 1998., STORCH, 2013STORCH, N. Collaborative Writing in L2 Classrooms. Bristol (UK): Multilingual Masters, 2013.), elegemos as propostas de produção textual a dois como objeto de estudo privilegiado para o acesso ao modo de pensar espontâneo do aluno. Acompanhamos o desenvolvimento de um projeto didático, realizado por uma professora portuguesa, de um 2º ano do Ensino Fundamental, envolvendo a produção textual de histórias inventadas. Aplicamos o mesmo desenho metodológico de caráter etnográfico e ecológico, já adotado em estudos anteriores (CALIL, 2008CALIL, E. Escutar o invisível: escritura & poesia na sala de aula. São Paulo: Editora da Unesp, 2008., 2009CALIL, E. Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas. Londrina: Eduel, 2009.), solicitando a alunos brasileiros, agrupados em duplas, a produção textual de um único texto. Foram registradas, através do Sistema Ramos7 7 O Sistema Ramos, desenvolvido pelo Laboratório do Manuscrito Escolar (CALIL, 2016), permite a captura multimodal do processo de escritura em tempo e espaço real da sala de aula. Através da sincronização entre o registro fílmico da interação entre os alunos, o traçado da caneta sobre a folha de papel e o registro em áudio do diálogo entre os participantes, durante o momento do manuscrito em curso, o Sistema Ramos fornece uma grande quantidade de informações que permite acesso em tempo real, ao que os alunos dizem enquanto combinam, inscrevem e linearizam o material gráfico da história inventada. , 6 propostas de produção de histórias inventadas de uma mesma dupla (B e L, 7 anos). Em cada proposta, alternadamente, uma aluna ditava (ditante), enquanto a outra escrevia (escrevente). Deste modo, cada uma das alunas escreveu 3 histórias e ditou outras 3 histórias8 8 Apesar dessa instrução, não era interditada a troca de caneta. O professor apenas ficava atento para dirigir a atenção compartilhada entre os alunos e para a divisão da tarefa em dupla, evitando que um único aluno ficasse sozinho responsável pela criação e escrita da história inventada. Vale dizer ainda que, para preservar as características ecológicas da dinâmica internacional entre professor e alunos, todos os pesquisadores e auxiliares retiravam-se da sala de aula, durante a realização da tarefa. Isso favorecia a preservação da interação entre professor e alunos. .

Além disso, coletamos um conjunto de materiais complementares (proposta curricular da escola, entrevista com o professor, materiais didáticos adotados e usados, cadernos dos alunos, questionários aos pais, fotos da escola e sala de aula, etc.) para que pudéssemos ter a caracterização, contextualização e descrição do cotidiano escolar e dos conteúdos de ensino valorizados nas práticas didáticas.

O material coletado oferece, por um lado, informações diretamente relacionadas ao processo de escritura: processo de escritura em tempo real9 9 O Sistema Ramos gera um filme-sincronizado de cada processo de escritura da dupla participante. e o produto desse processo (manuscrito escolar). E, por outro lado, informações sobre o contexto e a prática didática desta sala de aula. Desse modo, podemos observar, ao menos, dois aspectos: 1. O que foi escrito e dito pelos alunos durante o texto em curso; 2. O que foi ensinado pelo professor durante as semanas que antecederam a realização destas propostas de produção de texto. Neste trabalho, tomaremos o primeiro aspecto como objeto de análise privilegiado, considerando:

• No manuscrito escolar (produto textual), o que ficou inscrito e linearizado:

a. Palavras escritas ortograficamente.

b. Palavras escritas com problemas ortográficos, mas sem marcas de rasura10 10 Como mostram os trabalhos inaugurais de Fabre (1990) e de muitos outros pesquisadores que a sucederam, a rasura nos manuscritos escolares marcam a recursividade própria da escrita e indiciam reflexões metalinguísticas efetivadas pelo escrevente. Desse ponto de visto, isto é, do ponto de vista do produto textual, somente é possível identificar reconhecimentos de problemas ortográficos pelo escrevente, se ele fez alguma marca de rasura em seu texto. .

c. Palavras ou letras rasuradas, indiciando o reconhecimento pelos alunos de problemas ortográficos.

• No manuscrito em curso (processo textual), o que se passou durante a inscrição e linearização:

d.Pontos de tensão11 11 A identificação desses “pontos de tensão” (CALIL, 2012a) considera a relação entre o registro escrito, no tempo e no espaço da inscrição na folha de papel, e registro interacional e dialogal face a face, envolvendo sobreposições de turnos de fala, reformulações orais, movimentos corporais, expressões faciais, direção do olhar, intervenções do professor e interações com outros colegas. relacionados aos problemas ortográficos reconhecidos pelos alunos, independentemente desses problemas terem sido rasurados ou não, ou terem ocorridos somente oralmente, mas com a inscrição correta da palavra.

Se tivéssemos apenas o produto textual como objeto de estudo, o reconhecimento do PO pelo aluno poderia ser indicado por uma rasura, mas não saberíamos o que ele pensou quando rasurou. Se fosse registrado somente em áudio o que os alunos falaram durante o momento em que estavam escrevendo, como o fez Barbeiro (2007)BARBEIRO, L. F. Episódios ortográficos na escrita colaborativa. Anais do XXII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, p.111-125, 2007., não saberíamos exatamente o que ele estava escrevendo enquanto estavam falando. Do ponto de vista empírico, também não nos parecem equivalentes os comentários feitos pelos alunos, durante uma entrevista metagráfica dirigida pelo pesquisador e os comentários espontâneos, enunciados imprevisivelmente, entre os alunos, durante a produção de um texto. Com o filme-sincronizado temos não somente a dimensão da simultaneidade entre o que foi falado espontaneamente e o que foi inscrito, mas também podemos saber, em tempo real, para onde os alunos olhavam ou apontavam, o que o professor fazia, com quem interagia no momento em que os alunos da díade escreviam, o que falava para seus alunos, etc.

Diante disso, as possibilidades de interpretação são inúmeras. Em relação à nossa questão, podemos ter PO rasurado, mas sem explicitação do que o aluno pensou ao reconhecer e rasurar o PO indicado no manuscrito. Podemos ter PO inscrito sem rasura, mas que gerou reflexões entre os alunos no momento da linearização de uma palavra. Podemos ainda ter PO reconhecidos em função do que disse a professora ou algum colega. E, finalmente, podemos ter PO rasurado ou não, acompanhado de comentários, identificando, justificando ou explicando o PO ou o porquê da rasura feita.

Diferentemente de estudos em aquisição da ortografia, alguns deles citados em nossa introdução, que elegem como objeto de estudo ditados de palavras, pseudo-palavras, testes de avaliação, sentenças ou textos, identificando e descrevendo os erros, incorreções ou desvios ortográficos dos alunos, nosso duplo objeto (produto e processo) exige uma outra forma de abordagem interpretativa dos problemas ortográficos.

Uma primeira observação refere-se ao que trataremos como “problema” ortográfico. Para nós, os “problemas” não são necessariamente “erros”, “desvios”, “transgressões”, “incorreções” ou “dificuldades”. Em relação ao produto, entendemos como “problema” toda e qualquer inscrição que difira da norma ortográfica; ocorrência geralmente analisada pela maioria dos estudos sobre aquisição da ortografia, que tomam como objeto de estudo o que o aluno efetivamente escreveu. Entretanto, em relação ao processo, os “problemas” são identificados a partir dos reconhecimentos feitos pelos alunos de objetos textuais ortográficos e dos comentários que topicalizam aspectos relativos ao modo como se ortografa uma palavra ou se representa ortograficamente um determinado som, mesmo que sua inscrição na folha de papel não tenha se efetivado ou tenha sido correta e sem dificuldades; dimensão raramente considerada pelos estudos em aquisição da ortografia. Dado o caráter espontâneo das falas dos alunos em interação face a face, por vezes, estes comentários apresentam argumentos caracterizados por repetições, hesitações ou entonações irônicas, podem ser entrecortados por pausas ou interrupções e acompanhados por gestos, tomadas de caneta e da folha de papel, movimentos corporais e expressões faciais complementares ao sentido do que está sendo dito. Em nossa análise, esta dupla dimensão constituída pelo processo e pelo produto na interpretação do “problema ortográfico” será tratada de modo articulado e complementar, sendo os PO interceptados desse ponto de vista multimodal.

Uma grande quantidade de estudos apresenta um amplo conjunto de problemas ortográficos enfrentados por alunos logo após compreenderem o princípio alfabético (CAGLIARI, 1989CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1989.; ZORZI, 1998ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998., CARRAHER, 1985CARRAHER, T. N. Explorações sobre o desenvolvimento da ortografia em português. Psicologia: teoria e pesquisa, v.1, n.3, p.269-285, set./dez. 1985., dentre muitos outros)12 12 Esses e outros estudos nas áreas de Linguística e Psicologia propõem classificações diversas e, por vezes, discordantes, para os problemas ortográficos em língua portuguesa. Aqui, elencamos alguns deles, de modo genérico, para que o leitor possa ter uma ideia da complexidade destes problemas, com os quais se deparam os escreventes recém-alfabetizados ao produzirem seus textos. . De modo geral, podemos agrupá-los basicamente em 2 grupos, compostos por diferentes sub-agrupamentos:

• PO lexicais: aqueles relativos ao modo como a palavra se apresenta no dicionário.

○ Apoio na oralidade

○ Representações homofônicas

○ M antes de B/P

○ Troca surda/sonora

○ Nasalização

○ Acentuação

○ Segmentação

○ Translineação

• PO gramaticais: aqueles vinculados às variações de uma palavra em relação ao seu contexto de ocorrência:

○ Marcas de gênero masculino e feminino

○ Concordância nominal

○ Concordância verbal

○ Classe gramatical

○ Derivações morfológicas

○ Variações verbais (conjugação, tempo e pessoa verbal)

○ Uso de letra maiúscula associado ao subsistema de pontuação.

Não pretendemos fazer uma análise quantitativa destes tipos de PO, nem eleger previamente um tipo específico de PO a ser analisado, como aqueles discutidos em David (2008)DAVID, J. Les explications métagraphiques appliquées aux premières écritures enfantines, Pratiques [en ligne], p.139-140, 2008, mis en ligne le 15 décembre 2008, consulté le 30 septembre 2016. Disponível em: <http://pratiques.revues.org/1230. Acesso em: 30 jul. 2017.
http://pratiques.revues.org/1230...
ou por Morin (2005)MORIN, M-Fr. Declared Knowledge of beginning writers. L1 – Educational Studies in Language and Literature, Amsterdam, n.5, p.385-401, 2005. ao selecionar os problemas a partir de critérios específicos (frequência, letra muda, dígrafo, dentre outros). Aqui, essa listagem serve para situar o leitor em relação a alguns dos possíveis PO que a literatura reconhece. A literatura também indica quais os problemas ortográficos mais prováveis que os alunos enfrentaram em seus primeiros textos. Não obstante o fato de sabermos que consoantes dobradas como o ‘ss’ ou o ‘rr’ ou os dígrafos ‘nh’ e ‘lh’ serão problematizados pelos alunos pouco após a compreensão do princípio alfabético (NUNES; BRYANT, 2014NUNES, T.; BRYANT, P. Leitura e Ortografia: além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014.), o fato dos alunos estarem escrevendo, em tempo real, uma história inventada não nos permite prever os tipos de problemas ortográficos que ocorrerão e serão reconhecidos pelo aluno. Também não é possível saber quais aspectos ortográficos serão reconhecidos pelos alunos e quais não serão. Entretanto, o filme-sincronizado permite-nos identificar se a inscrição de um PO foi precedida por alguma forma de comentário dos alunos ou se o comentário ocorreu após ter sido efetivada a inscrição de determinada forma gráfica ou ortográfica. Isto é, estabelecemos como ponto de referência para a identificação de problemas ortográficos reconhecidos antecipadamente (PO-RA) pelos alunos os comentários proferidos nos momentos imediatamente anteriores aos seus registros gráficos na folha de papel. Inversamente, também identificamos os problemas ortográficos reconhecidos posteriormente (PO-RP): aqueles que foram identificados pelos alunos e comentados somente após seu registro gráfico ter sido realizado.

Em função da dinâmica própria do manuscrito em curso produzido dialogalmente, sujeito ao imprevisível da fala espontânea e co-enunciativa, das relações associativas estabelecidas durante o diálogo (CALIL, 2012b, 2016) e da materialidade dos elementos linguísticos concatenados e inscritos linearmente na folha de papel, nosso estudo de caso terá um enfoque qualitativo, baseado em uma análise microgenética das ROC ortográficas, visando a descrição das antecipações de PO e ao modo como esses PO são solucionados (ou não) pelos alunos.

Resultados e discussão

Nos 6 manuscritos escolares escritos por B e L foram escritas 634 palavras e identificamos 157 PO. Em média, 1 PO a cada 4 palavras escritas. O gráfico abaixo mostra essa relação por processo.

Gráfico 1
– Relação entre palavras x PO por processo textual.

A diferença entre a quantidade de palavras e os PO identificados em cada processo e seu respectivo manuscrito parece ter relação com o aluno que estava responsável por escrever. Nos processos em que L escreveu13 13 A informação referente a quem escreveu está indicada pelo asterisco, ao lado da letra inicial do nome da aluna. e B ditou, temos uma quantidade menor de PO: M1 = 11%, M3 = 14% e M5 = 18%. Nos manuscritos grafados por B, os PO foram em maior número: M2 = 38%, M4 = 23% e M6 = 40%. Essa diferença sugere que L teria maior conhecimento ortográfico que B, produzindo, portanto, um menor número de palavras grafadas com PO. Desenvolveremos essa questão em outro estudo, uma vez que a análise irá centrar-se apenas nos reconhecimentos antecipados e sua relação com o PO identificado.

Para que possamos explicitar e aprofundar essa problemática, apresentamos o M2_B*-L, escrito por B. Nesse manuscrito escolar tivemos a maior quantidade de palavras escritas e a maior ocorrência de PO. Para a identificação dos PO, estabelecemos a seguinte codificação14 14 Nesta codificação não separamos os PO lexicais dos PO gramaticais. Por exemplo, o PO48, na linha 15, indica um PO gramatical: “do dinosauros”. O PO49 indica um PO lexical: “dinosauros”. :

• Numerais dentro das formas geométricas: indicam todos os PO identificados tanto no produto (manuscrito escolar), quanto no processo (filmagem do texto em curso); isso significa que foram considerados os PO grafados e os PO não grafados, isto é, quando a palavra foi escrita corretamente, mas reconhecidos oralmente, através dos comentários feitos pelas alunas.

• Retângulo: marcação dos PO identificados no produto.

○ Retângulo vermelho: PO com rasura visível no produto.

○ Retângulo verde: PO não-rasurado ou com rasura não-visível15 15 De acordo com a Genética Textual, a rasura “escrita” pode ser definida como qualquer modificação ou alteração relacionada a elementos textuais já linearizados. Nosso desenho metodológico, ao sincronizar o texto produzido e o texto em curso, permite recuperar as rasuras visíveis (aquelas marcadas graficamente no papel, como por exemplo, borrões, sobrescritas, riscos, barras, etc.) e as rasuras não-visíveis (aquelas não marcadas graficamente, resultado de um acréscimo de letra ou sinal de pontuação, por exemplo). Para observar a relação entre o PO e a rasura, indicamos com retângulos vermelhos os PO que receberam rasuras visíveis. E em retângulos verdes os PO não rasurados ou que receberam rasuras de acréscimo, muitas vezes não visíveis no produto. no produto.

• Círculo: marcação dos PO identificados no processo.

• Seta à direita (↷) PO reconhecido antecipadamente.

• Seta à esquerda (↶): PO reconhecido posteriormente.

• Seta de cor laranja: PO comentado por B.

• Seta de cor azul: PO comentado por L.

• Numerais em L e B: indicam a quantidade de PO reconhecidos pelas alunas.

Neste manuscrito de 16 linhas e 136 palavras, identificamos e numeramos a ocorrência de todos os 52 PO, classificados da seguinte forma:

• PO rasurados (retângulos vermelhos): 21

○ PO1, PO2, PO4, PO5, PO6, PO11, PO14, PO15, PO16, PO21, PO26, PO29, PO30, PO32, PO36, PO38, PO41, PO42, PO43, PO44, PO47.

• PO não-rasurados ou não-visíveis (retângulos verdes): 23

○ PO3, PO9, PO13, PO17. PO18, PO19, PO22, PO23, PO24, PO25, PO27, PO28, PO31, PO33, PO34, PO35, PO37, PO39, PO40, PO46, PO48, PO49, PO50.

• PO comentados, mas não rasurados (círculos azuis): 8

○ PO7, PO8, PO10, PO12, PO20, PO45, PO51, PO52.

• PO reconhecidos por B: 17

○ PO-RA (seta laranja à direita): 6

▪ B1, B3, B4, B7, B8, B17.

○ PO-RP (seta laranja à esquerda): 11

▪ B2, B5, B6, B9, B10, B11, B12, B13, B14, B15, B16.

• PO reconhecidos por L: 19

○ PO-RA (seta azul à direta): 2

▪ L16, L18.

○ PO-RP (seta azul à esquerda): 17

▪ L1, L2, L3, L4, L5, L6, L7, L8, L9, L10, L11, L12, L13, L14, L15, L17, L19.

Estes resultados oferecem interessantes informações sobre os PO produzidos e a capacidade de reconhecimento das alunas. Houve uma distribuição equilibrada entre aqueles PO rasurados e, portanto, de alguma forma, reconhecidos (21) e aqueles que não foram rasurados ou não apresentaram rasuras visíveis (23). Através do processo de produção deste manuscrito, identificamos ainda PO comentados (8) que não receberam qualquer forma de rasura.

Observamos também que há forte relação entre PO rasurado e PO comentado. Dos 21 PO rasurados, apenas o PO16 não foi acompanhado por comentário. Esse dado sugere que a rasura, na produção de texto a dois, favorece fortemente a enunciação oral de alguma forma de reflexão metalinguística. Inversamente, destacamos que apenas 3 dos 23 PO não-rasurados ou não-visíveis receberam comentários: PO34, PO39, PO50.

Outro aspecto relevante a destacar diz respeito aos PO-RA e PO-RP. Ambas as alunas reconheceram quantidades aproximadas de PO. A aluna B reconheceu 17 PO, enquanto que a aluna L fez 19 reconhecimentos. Contudo, a aluna B, responsável por grafar a história, antecipou 6 PO dos 8 PO reconhecidos antecipadamente, enquanto que a aluna L, responsável por ditar a história, fez 17 reconhecimentos posteriores. Uma de nossas hipóteses de trabalho é a que essa diferença entre as alunas estaria relacionada ao nível de conhecimento e informação que cada aluna detém, assim como ao papel de ditante e escrevente, assumidos na tarefa proposta pela professora. Essa seria outra problemática a ser explorada em estudos futuros.

Para entendermos melhor os reconhecimentos antecipados e posteriores de problemas ortográficos e os comentários a eles relacionados, apresentaremos uma análise microgenética e enunciativa16 16 Este tipo de análise envolve o caráter dialogal e genético do manuscrito em curso, ocorrendo sobre os pontos de tensão identificados no fluxo textual. de 3 palavras inscritas no manuscrito em curso, cuja linearização sofreu a incidência de rasuras e/ou foram acompanhadas por comentários ortográficos enunciados pelas alunas. Escolhemos o PO relacionado à palavra ‘branca’, linha 1 (PO1, PO2), à palavra “dinossauro”, linha 1 (PO6) e linha 5 (PO13) e à palavra ‘há’, linha 15 (PO50). Escolhemos esses PO em razão das diferentes formas de correlação entre as rasuras e os comentários.

Durante a inscrição de ‘branca’ ocorreu uma rasura visível e quatro comentários (PO-RA_B1, PO-RP_B2, PO-RP_L1, PO-RP_L2). A palavra ‘dinossauro’ foi inscrita 5 vezes ao longo do manuscrito escolar. Na primeira ocorrência (PO6) houve uma rasura, acompanhada por dois comentários (PO-RA-B3, PO-RP_L5). Na segunda (PO13), não aconteceu nenhuma forma de rasura, mas incidiu um comentário antecipado (PO-RA_B8). Mas outras três ocorrências desta mesma palavra não ocorreram nem rasura, nem comentário. Na palavra ‘há’ (PO50) não há marca de rasura no produto, apesar de ter sido identificado no processo um comentário antecipado (PO-RA_B17).

PO com RA na representação da sílaba ‘bran’ do nome próprio ‘Branca de Neve’

Os dois primeiros PO reconhecidos neste processo foram também os primeiros PO rasurados no manuscrito.

Figura 2
– Rasura sobre a letra ‘B’ da palavra ‘Branca’ (linha 1, PO 1, PO2).

De fato, a identificação da rasura sobre a letra ‘B’ não explica porque a aluna fez essa rasura. Qualquer asserção sobre o porquê desta rasura ou sobre o motivo que levou a aluna a rasurar é mera especulação. O manuscrito não traz evidências sobre isso. Através desta identificação não é possível saber se o escrevente enfrentou um problema ortográfico ou se foi uma dificuldade gráfica, relativa ao traçado incompleto da letra ‘b’ maiúscula. Ainda que se suponha ser um PO relativo ao uso de letra maiúscula, nada permite dizer sobre como a aluna o interpretou. De modo semelhante, um pesquisador que se baseie apenas no modo como a palavra ‘branca’ foi grafada pode supor, de modo incauto, que houve uma rasura sobre a letra ‘n’. Não houve. A aluna, quando a grafou, fez a primeira ‘perna’ da letra ‘n’, retirou a caneta da folha de papel e quando voltou para continuar a escrever, começou a inscrever novamente a letra ‘n’, passando a caneta por sobre o traçado inicial da letra. Esse modo de grafar a letra ‘n’, capturado pelo Sistema Ramos, não caracteriza sequer uma rasura gráfica, que poderia indicar hesitação sobre a forma de letra. Também não houve qualquer forma de comentário (objeto de nosso estudo) no momento em que essa letra foi inscrita. Por essa razão, não marcamos este ponto do texto em curso como associado à representação da nasalização ou a qualquer outro tipo de PO. Esse é um bom exemplo de como um pesquisador poderia fazer inferências equivocadas ao ter acesso apenas ao produto textual.

O filme sincronizado gerado pelo Sistema Ramos dá outra dimensão para a rasura escrita produzida em ‘branca’. A partir de nosso aporte teórico-metodológico podemos dizer que, neste ponto de tensão do processo escritural, além da rasura visível, temos a ocorrência de comentários a ela relacionados, caracterizando o que temos definido como rasura oral comentada (CALIL, 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.). Conforme iremos mostrar, a rasura oral traz a evidência de que o OT surgiu em razão de um problema ortográfico antecipado e reconhecido oralmente pela aluna B, antes de ser inscrito. Sua ocorrência deu-se logo após a inscrição do artigo ‘A’, segundos antes do início da inscrição do nome ‘Branca’, que iria compor o título da história. Poderemos observar no turno dialogal abaixo que os comentários gerados remetem ao reconhecimento de 3 problemas diretamente relacionados à ortografia.

• Problema com representação ortográfica do grupo consonantal ‘br’ no início de ‘branca’.

• Problema com a nasalização representada ortograficamente por ‘an’.

• Problema com o uso da letra maiúscula para o nome próprio.

Há ainda um problema de ordem gráfica perpassando a interpretação feita por uma das alunas, como também veremos a seguir.

TD1: ‘Branca’ (00:28:24:06 – 00:29:16:0017 17 Nos textos dialogais (TD), destacamos em vermelho o objeto textual (OT). No caso deste TD, o OT é a sílaba inicial da palavra ‘branca’ do nome da personagem que está sendo escrito: ‘Branca de Neve’. Em azul, destacamos os comentários referentes ao OT reconhecido como um problema por B. Numeramos os comentários, considerando seu valor argumentativo. Por essa razão, a numeração de alguns comentários é acompanhada por letras, indicando a continuidade do valor argumentativo do comentário. )

213. L: (Pedindo para B continuar escrevendo) Anda! (B terminando de escrever a letra ‘a’ [A] no título e L lendo.) ...aaaa... (Em seguida, ditando.) ...Bran-ca.

214. B*: (Parando de escrever e repetindo ‘branca’ em tom de dúvida) Branca... (Balbuciando e murmurando) ...bran... bran...B1

215. L: (Repetindo, com ênfase em ‘bran’) ...Braaan-ca :: (L, usando seu crachá onde está escrito seu nome e sobrenome, aponta para a letra ‘B’, letra inicial de seu sobrenome). Queres olhar para ouvir... L1a

216. B*: (Sussurrando.) ...bran... ca... (B virando-se para L e olhando para onde L estava apontando, em seu crachá. B olhando para a letra ‘B’, que estava sendo apontada por L. B voltando-se para a folha de papel e continuando a escrever, iniciando a letra ‘B’ maiúscula [B]. No meio do traçado dessa letra ‘B’ maiúscula, B o interrompe, dizendo em tom de reprovação) Ei... (Rasurando a letra ‘B’ maiúscula incompleta que havia começado a grafar [P].) Escrevi com maiúscula. (Fazendo os parênteses, conforme a professora orientou, para indicar que a letra ‘B’ foi rasurada [(P)])B2a

217. L: Tudo bem. (Fazendo com o dedo indicador o traçado da letra sobre a mesa.) L1b

218. B*: (Olhando para L) É com minúsculo.B2b

219. L: É, pois. (Percebendo o erro) Não. Não. É com maiúscula, também. (Rindo.) Também é com... com maiúscula. Se escreve com maiúscula. L2 (B terminando de fazer os parênteses e traçando novamente a letra ‘B’ maiúscula [B]. L acompanha atentamente o traçado feito por B.) A... bran.... ca...

220. B*: (Escrevendo o restante da palavra ‘branca’, retirando a caneta no início da letra ‘n’ e novamente colocando-a sobre a folha de papel para continuar o traçado da palavra.) Bran... [ran] ...ca [ca]...

221. L: ...ca...

Neste TD1, que durou menos de 60 segundos, a hesitação de B no turno 214, marcada pelo tom de dúvida ao repetir o termo ‘branca’, antecipa o PO referente ao modo como se deve representar graficamente o som [brã] da primeira sílaba desta palavra. O modo como B balbucia, murmura e repete a sílaba ‘bran’, acompanhado por sua expressão facial, indica que ela reconhece problemas relativos à representação ortográfica dessa sílaba. Ao mesmo tempo em que sua enunciação (B1) antecipa e reconhece o OT a ser inscrito, ela também expressa dúvida sobre o modo como grafar ‘bran’, provavelmente em decorrência do grupo consonantal ‘br’ e da nasalização.

No turno 215 temos a ocorrência de L1. Essa enunciação de L indica como que a aluna interpretou a enunciação anterior de B e sua ação. Ela entendeu a hesitação de B não como sendo uma dúvida em relação ao encontro consonantal ou à representação da nasalização, mas sim como um problema relacionado à grafia da letra ‘B’ maiúscula. A evidência da interpretação L está no quase enigmático enunciado L1a (‘queres olhar para ouvir...’), acompanhado do gesto feito em direção ao seu próprio crachá (figura 3), apontando para a primeira letra de seu sobrenome, uma letra ‘B’ maiúscula.

Figura 3
– L apontando para a letra B de seu nome; B olhando para onde L aponta.

No vídeo, não há nenhuma indicação oral ou gestual de que B perguntava sobre o modo de grafar ‘B’. Além disso, é bem pouco provável que B não soubesse como grafar a primeira letra de seu próprio nome. A rubrica que acompanha o turno 216 descreve o gesto e movimento de B, mostrando que a aluna começou a grafar a letra ‘B’ maiúscula sem maior hesitação e sem qualquer comentário.

Contudo, antes de concluir o traçado dessa letra, B interrompe seu gesto, fazendo, em dois turnos de fala, dois comentários simples e inter-relacionados (B2a e B2b), com o mesmo valor argumentativo. Ainda no turno 216, ela reconhece como um ‘erro’ ter iniciado a grafia desta letra em sua forma maiúscula, rasurando a parte superior da letra que havia começado a grafar. Enquanto faz isso, comenta em tom de reprovação: ‘Escrevi com maiúscula’ (B2a). L reage insistindo na questão gráfica da letra ‘B’ maiúscula, traçando-a sobre a mesa (turno 217, L1b). B novamente nega, no turno 218, que a escrita de ‘Branca’ deva ser com maiúscula, afirmando firmemente ‘É com minúsculo’ (B2b). O equívoco de B ao pensar que ‘B’ de ‘Branca de Neve’ é com letra minúscula, produzindo a rasura a partir desta interpretação, é corrigido por L (L2), no turno 219: ‘Não. Não. É com maiúscula, também. (Rindo.) Também é com... com maiúscula. Se escreve com maiúscula’.

Temos neste TD1 um ponto de tensão em torno da escrita da sílaba ‘Bran’, considerado por nós como OT antecipado e reconhecido por B. Sobre esse OT concorrem, pelo menos, três problemas ortográficos e um problema gráfico. A rigor, em B1 (turno 214) temos uma antecipação relacionada ao problema da representação ortográfica do som [brã], embora não seja possível saber se B se interroga sobre a representação ortográfica do grupo consonantal ‘br’ ou sobre a representação ortográfica do fonema /ã/. A réplica contida em L1a e L1b sobre o traçado da letra ‘B’ não estava diretamente relacionada ao PO-RA feito por B. Do mesmo modo, o PO relativo ao uso de letra maiúscula (B2a e B2b) também não estava relacionado a esse PO-RA. O reconhecimento daquele PO (letra maiúscula) deu-se após o início da inscrição da letra ‘B’, gerando sua rasura e sendo solucionado pelo comentário marcado em L2.

Os argumentos apresentados através destes 4 comentários (B1, B2, L1, L2) são decorrentes do OT a ser inscrito e linearizado (o nome próprio da personagem). No entanto, a diferença de valor entre esses argumentos (tematização do grupo consonantal ou nasalização, forma gráfica da letra ‘B’, uso de letra maiúscula) evidencia o funcionamento em paralelo de diferentes problemas enfrentados durante o processo de escritura, impondo simultaneamente e de modo concatenado várias questões para o escrevente recém-alfabetizado resolver.

Em relação à problemática do uso da letra maiúscula em nomes próprios, vale observar o conhecimento ortográfico lacunar das alunas. Esse conhecimento está baseado no aspecto gráfico-visual da palavra “Branca”, e não no conhecimento sobre a classe gramatical que determina sua forma correta. Em todas as seis ocorrências do nome próprio “Branca de Neve”, a palavra ‘branca’ foi inscrita com letra maiúscula, enquanto que a palavra ‘neve’ com letra minúscula.

PO com RA na representação do fonema /s/ em ‘dinossauro’

Outros dois PO reconhecidos antecipadamente por B referem-se à representação do fonema /s/ na palavra ‘dinossauro’. Nas seis inscrições presentes no manuscrito, o dígrafo ‘ss’ para o fonema /s/ em ‘dinossauro’ foi representado apenas por ‘s’. Em sua primeira ocorrência identificamos o PO6, que foi antecipado por um comentário (B3), seguida pela inscrição da uma rasura de substituição e por um comentário subsequente (L5).

Na primeira inscrição da palavra ‘dinossauro’ (figura 4) ocorreu o PO6. Nesse PO é facilmente identificado uma rasura de sobreposição, indicando a concorrência entre o grafema ‘c’ e o grafema ‘s’ para a representação ortográfica do dígrafo ‘ss’. Se essa rasura fosse analisada apenas através do produto não se poderia ter evidência clara sobre qual grafema foi inscrito primeiro. Apesar de podermos supor que houve a inscrição inicial do grafema ‘c’, dado que a distinção entre os fonemas /k/ e /s/ nas sílabas ‘ca’ e ‘sa’ possa ser mais facilmente observada pela criança, não se sabe exatamente o que foi pensado pela aluna quando o grafou, qual relação ela estabeleceu entre o ‘c’ e o ‘s’ e o que a levou a observar a diferença, evitando representar o fonema /s/ pelo grafema ‘c’ nesta posição.

Figura 4
– Rasura sobre o grafema ‘c’ e substituição pelo ‘s’ na palavra ‘dinossauros’ (linha 1, PO6).

No PO13, linha 5, temos a inscrição da mesma palavra ‘dinossauro’, porém não produziu uma rasura, embora tenha sido acompanhada por outro comentário indicando o reconhecimento ortográfico antecipado (B8) deste mesmo tipo de PO.

No segundo registro da palavra ‘dinossauro’ (figura 5), assim como nas outras quatro inscrições deste termo (PO19, PO27, PO39, PO49), a representação do dígrafo ‘ss’ apenas com o grafema ‘s’ se mantém, não havendo nenhuma marca de rasura que possa sugerir dúvida ou hesitação ortográfica. O estudo de Monteiro (1999)MONTEIRO, A. M. L. “Sebra – ssono – pessado – asado”. O uso do “S” sob a ótica daquele que aprende. In: MORAIS, A. G. de (Org.). O aprendizado da ortografia. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.43-60. apontou que as regras contextuais envolvendo os casos de representação do grafema ‘ss’ para o fonema /s/ são inicialmente representadas pela criança por uma única letra. Cabe observar, entretanto, que problemas de representação da relação do fonema /s/ vão muito além dessas regras contextuais, uma vez que seu caráter homofônico envolve múltiplas representações. A complexidade para o domínio das representações ortográficas deste fonema é evidente no próprio manuscrito das alunas. Ora há uso correto, como por exemplo, em ‘três’ (linha 1), ‘vez’ (linha 2), ‘dezaparcido’ (linha 6), ‘disse’ (linha 10)18 ‘posso’ (linha 13)19, ‘felizes’ (linha 16). Ora a representação ortográfica do fonema /s/ está incorreta: ‘dezaparcido’ (linha 6), ‘esplico’ (linha 11), ‘persebi’ (linha 11).

Figura 5
– Escrita de ‘dinosauro’ para o termo ‘dinossauro’ (linha 5, PO13).

Em relação às duas primeiras ocorrências do termo ‘dinossauro’, os respectivos textos dialogais mostram a antecipação do problema ortográfico relacionado ao modo de representação do fonema /s/, durante a linearização da sílaba ‘ssau’.

Figura 6
– B grafando a letra ‘c’ para a sílaba ‘ssau’.

TD2: 00:30:06:08 – 00:30:23:21

254. B*: Dinossauros... (Escrevendo) ...di [di]...

255. L: ...nooo...

256: B*: ...no [no]... ...ssauu... o cê-só... (traçando a letra ‘c’ [c]) (L olhando o que B está escrevendo e falando junto com ela) ...ssaaauu... B3 (Interrompendo o traçado da letra ‘c’, indicando a dúvida sobre como grafar a sílaba ‘ssau’)

257. L: (Vendo que B grafou a letra ‘c’) Não é com esse L5.

258. B*: (Sobrescrevendo a letra ‘s’ em cima da letra ‘c’ e fazendo o resto da sílaba ‘ssau’ ...dino... [c sau]) ...ssau...

259. L: ...ro...

260. B*: ...ro [ro]...

261. L: Os dinossauros.

[...]

TD3: 00:40:05:00 - 00:40:28:19

414. B*: (Terminando de escrever ‘a mãe’) ...dinossauro... (Escrevendo ‘dinossauro’.) di [di]... no [no]...

415. L: Di-no-ssau-ro.

416. B*: Di-no... ‘ce’-‘sapo’... ssau!B8 (Escrevendo) Sau [sau]... ro [ro]... a mãe dinossauro... (Virando-se para L) E a mãe dinossauro... tá escrito.

Os dois TD trazem comentários semelhantes sobre a antecipação do mesmo tipo de PO sobre a mesma palavra. No primeiro PO (PO6) temos o comentário B3: ‘o ce-sô... ...ssaaauu...’. No segundo PO (PO13_B8), temos: ‘ce-sapo... sau...’. Essas enunciações de B sugerem que ela está analisando e buscando solucionar a representação ortográfica desse fonema, cuja concorrência entre grafemas no sistema de língua portuguesa é intensa e complexa, envolvendo os grafemas ‘s’, ‘c’, ‘ç’, ‘x’ e os dígrafos ‘ss’, ‘sç’, ‘sc’, ‘xc’, ‘xs’.

O breve comentário de L em L5 (turno 257) elimina a hesitação de B, assegurando-lhe que a forma correta não é com a letra ‘c’. Seu comentário ‘não é com esse’ apesar de não verbalizar qual é o grafema correto, indica, por um lado, algum conhecimento metalinguístico sobre os diferentes grafemas para a representação do fonema /s/ e, por outro, mostra sua atuação como revisora do manuscrito em curso, contribuindo para gerar a rasura do ‘s’ sobre o ‘c’, aos 00:30:17:17. Observamos que o papel de revisora assumido por L está associado à atenção compartilhada e dirigida pelo acompanhamento visual (direção do olhar) do que está sendo escrito. Este aspecto parece ter um importante papel na escrita compartilhada por alunos desta faixa etária.

Embora a inscrição da palavra ‘dinosauro’, com apenas um ‘s’, tenha se mantido em todas as ocorrências dessa palavra, e que os PO em que concorrem aqueles grafemas e dígrafos para a representação do fonema /s/ sejam amplamente conhecidos pelos estudos sobre aquisição da ortografia (NUNES; BRYANT, 2014NUNES, T.; BRYANT, P. Leitura e Ortografia: além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014.; ROSA, 2004ROSA, J. Morphological awareness and the Spelling of Homophone Forms in European Portuguese, Lidil, n.30, p.133-146, 2004. Disponível em: <http://lidil.revues.org/873. Acesso em: 30 jul. 2017.
http://lidil.revues.org/873...
; MONTEIRO, 1999MONTEIRO, A. M. L. “Sebra – ssono – pessado – asado”. O uso do “S” sob a ótica daquele que aprende. In: MORAIS, A. G. de (Org.). O aprendizado da ortografia. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.43-60.), os dois breves comentários feitos por B são reveladores do seu modo de pensar e de resolver este ponto de tensão. Primeiramente, como já o havia feito diante do PO em ‘bran’, B antecipa em voz alta o PO, como se falasse e reconhecesse para si mesma uma dificuldade. Ao mesmo tempo, essa antecipação é acompanhada de uma tentativa de solução, revelada através de suas falas espontâneas: turno 256, ‘...no [no]... ...ssauu... o cê-só...’ e turno 416 ‘Di-no... ‘ce’-‘sapo’... ssau.’.

Ao destacar a sílaba, decompô-la e associar a primeira letra à palavra ‘sapo’ (B8), B recupera de sua memória de longo prazo parte da complexidade envolvendo a representação do fonema /s/, explicitando, por sua vez, conteúdos ensinados em sala de aula. Nos meses que antecederam a realização dessa proposta de produção textual (outubro, novembro e dezembro), a professora enfatizou no trabalho didático com o conteúdo de ensino relativo às famílias silábicas simples. Dentre elas, as sílabas da família do ‘ca’ e do ‘sa’ são intensamente destacadas, como atestam muitas das tarefas registradas nos cadernos dos alunos, foram intensamente trabalhadas.

Figura 7
– Tarefas escolares com as famílias silábicas do ‘sa’ e do ‘ca’-.

A relação homofônica entre os grafemas ‘c’, ‘ç’, ‘s’, o dígrafo ‘ss’ e o fonema /s/ está explicitamente posta em relação nestas tarefas escolares, apresentando as respectivas famílias silábicas destacadas, por vezes em vermelho, nas palavras ‘sabonete’, ‘sino’, ‘sete’, ‘saia’, ‘sanita’, ‘sapato’, ‘sapo’, ‘taça’, ‘lenço’, ‘açúcar’, ‘cenoura’, ‘bicicleta’. Apesar de ser comum este tipo de troca feita por alunos neste momento do desenvolvimento infantil, parece ser difícil negar a interferência do conteúdo de ensino valorizado pela prática docente e pelo material didático sobre o modo de pensar da aluna B. Ao destacar as ocorrências de ‘s’, ‘c’ e ‘ç’ em diferentes ‘famílias silábicas’, ora através da identificação da letra inicial, ora através de suas ocorrências no meio de palavras, coloca-se em evidência suas relações homofônicas. B antecipou o PO quando estava escrevendo ‘dinossauro’, usando como recurso para a resolução do problema o destaque da letra inicial da palavra ‘sapo’, palavra reiteradamente enfatizada em suas tarefas escolares e, provavelmente, nas falas de sua professora. Para nós, mais importante do que descrever o ‘erro’ previsível do aluno, é responder quando as alunas identificam PO ao longo do texto em curso e de modo elas tratam as informações linguísticas recebidas para solucionar os problemas ortográficos identificados. B, ao antecipar esse tipo de PO, expressa sua dúvida na representação do fonema /s/ nesta posição, indicando um reconhecimento metafonológico ainda incipiente, uma vez que esse grafema ‘c’ antes do fonema /a/ nunca recebe o valor fônico /s/. A dúvida metalinguística de B, por sua vez, faz com que L verbalize uma reflexão metafonológica e metagráfica, diferenciando os grafemas ‘c’ e ‘s’ na representam do fonema /s/.

PO com RA na representação do fonema /a/ em ‘há’.

Como sabemos, os problemas ortográficos de alunos nesta fase do processo de alfabetização são muitos e diversos. E, muito provavelmente, aqueles problemas relacionados às relações homofônicas são os mais frequentes, como indicado por Zorzi (1998)ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998., Nunes e Bryant (2014)NUNES, T.; BRYANT, P. Leitura e Ortografia: além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014. e outros pesquisadores. A apropriação destas relações pelo jovem escrevente parece depender de diferentes aspectos inter-relacionados:

  • Informações recebidas através da interação social (professor, pais, colegas, material didático).

  • Frequência de ocorrências em materiais de leitura dos alunos.

  • Capacidade cognitiva relacionada à memória de longo prazo e à memória de trabalho dos alunos para compreender e recuperar as informações linguísticas recebidas (KELLOGG, 2001KELLOGG, R. T. Competition for working memory among writing processes. The American Journal of Psychology, New York, n.114, p.175-191, 2001.; MCCUTCHEN, 2000MCCUTCHEN, D. Knowledge, processing, and working memory: Implications for a theory of writing. Educational Psychologist, New York, n.35, p.13-23, 2000.).

Esses aspectos parecem ocorrer no próximo reconhecimento antecipado que iremos discutir.

Conforme foi indicado na figura 1, esse manuscrito escolar foi produzido no dia 06 de fevereiro de 2015. No dia 26 de janeiro, a professora trabalhou com os alunos a diferença entre ‘ah’, ‘há’ e ‘à’, como mostra a figura abaixo.

Figura 1
– Manuscrito “A Branca de Neve e os três dinossauros” (06 02 2015), com identificação dos PO.

Figura 8
– Tarefa escolar sobre a diferenciação entre ‘ah’, ‘há’ e ‘à’.

Essa tarefa de ortografia20 tematizou 3 formas de manifestação do fonema /a/, presente em 3 categorias gramaticais: ‘ah’ (interjeição exclamativa), ‘há’ (3a pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ‘haver’), ‘à’ (crase).

Na história “A Branca de Neve e os três dinossauros”, produzida 10 dias depois desta tarefa ter sido feita em sala de aula, a forma ortográfica ‘à’ foi inscrita em seis pontos do manuscrito:

  1. Linha 3, PO10: ‘Um dia ela foi àB6 floresta.’

  2. Linha 6, PO20: ‘A mãe dinossauro foi àL7 floresta...’

  3. Linha 7-8: ‘...e bateu à / porta da Branca de Neve.’

  4. Linha 11, PO30: ‘Pàr aL10, eu explico tudo.’

  5. Linha 14-15, PO46: ‘Mas não à comida no / tempo dos dinossauros!’

  6. Linha 15, PO50: ‘É claro que à B17.’

Não há marcas de rasuras escritas visíveis em nenhuma destas seis inscrições do grafema acentuado ‘à’. O que também levaria a supor que as alunas não reconheceram qualquer problema ortográfico ao inscrevê-las. Nas três primeiras inscrições, localizadas nas linhas 3, 6 e 7, o uso do ‘a’ com o acento de crase está grafado ortograficamente, fato que surpreende, posto que o uso correto da crase não parece ser comum em textos de alunos brasileiros desta idade. Em português brasileiro a construção mais provável para esses enunciados seria ‘ela foi na floresta’, ‘ela foi para a floresta’ ou ‘ela bateu na porta’. No 4º ponto surpreende a ocorrência de ‘à’ no primeiro ‘a’ de ‘para’. Todos os comentários identificados nos PO10_B6, PO20_L7 e PO30_L10, respectivamente, 1º, 2º e 4º pontos, foram posteriores e por isso não analisaremos nesse estudo.

No 5º ponto, apesar de haver um PO (PO46), não houve nem rasura, nem comentário, indicando que as alunas não o reconheceram com um PO. Na última inscrição de ‘à’ (6º ponto, linha 15, PO50) houve o reconhecimento antecipado B17, a ser discutido a seguir.

Figura 9
– Escrita de ‘à’ (PO50) para a forma verbal ‘há’ (haver) na frase ‘É claro que há’. (linha 15).

Figura 10
– Momento do gesto de B sobre a mesa, traçando o grafema ‘a’ com o acento grave.

TD4: 01:00:41:12 – 01:01:38:06

728. L: (B terminando de escrever ‘É claro’, na linha 15. L ditando a continuidade ‘que há’.) ...que...

729. B*: ...que [q]...

730. L: ...hááá.

731. B*: ...háá? (Parando de escrever, virando-se para L com expressão de dúvida e fazendo o gesto com o indicador, traçando sobre a mesa a letra ‘a’ e o acento grave; falando baixo.) ...de ‘à à à’...? B17a

732. L: (L não vendo o gesto feito por B na mesa de trabalho, nem parecendo ter ouvido sua pergunta; L ditando e repetindo o que disse antes.) É claro que há. Que há! (B novamente faz o gesto, desenhando com o indicador a letra ‘à’ na mesa. L não está olhando para o gesto feito por B, repetindo ainda mais uma vez o que é para ser escrito.) É claro que há.

733. B*: (Virando-se para a folha e sussurrando se tem acento.) Depois acento? B17b

734. L: (Não ouvindo e ditando novamente.) ‘É claro que há.’ (Impaciente.) Anda! Escreve!

735. B*: (Voltando a escrever.) É que [u]... É claro...

736. L: (Falando com ênfase.) Que há!

737. B*: Que há. (B escrevendo [e].) Que há [a]...

738. L: (Relendo) É claro que há. (B inscrevendo o acento grave sobre o [à].)

739. B*: (Relendo.) Que há.

740. L: (Indicando o local para colocar o ponto.) Agora, pões...

741. B*: Exclamação?

742. L: Não Pois. Ponto final. (Indicando na folha onde inscrever o ponto)

Como apontamos acima, as alunas, em especial a escrevente B, ao se deparar com PO reconhecidos por ela durante o manuscrito em curso, está respondendo ao que tem sido ensinado em sala de aula. Aqui, ela visa a diferenciar as diferentes formas gramaticais cuja representação corresponde ao fonema /a/. Os gestos feitos sobre a mesa durante os turnos 731 e 732, mais do que propriamente as enunciações que acompanharam estes gestos (B17a e B17b), evidenciam claramente isso. Apesar da diferenciação entre as formas de representação do fonema /a/ envolver o conhecimento lexical e gramatical, assumimos que, no desenvolvimento inicial da escrita, a busca de diferenciação se dá pela via visual, recuperando informação gráfico-visual armazenada na memória de longo prazo e oferecida pelo contexto social letrado. No caso dessas alunas, este contexto está fortemente representado nas práticas didáticas e tarefas escolares realizadas. A escola cumpre seu papel ao oferecer a informação e colocar em destaque os problemas ortográficos decorrentes das múltiplas representações (no caso, a homofonia) de fonemas. O mais relevante para nós não é se a aluna compreendeu ou não as diferenças entre suas diferentes formas de representação. O que é relevante é o modo como ela, ao antecipar o PO e reconhecer esse OT, recupera tanto a necessidade do acento grave, ao se lembrar dele, conforme indica seu gesto feito sobre a mesa, quanto o fato de colocar em relação suas representações homofônicas. Essa sensibilidade ao PO irá levá-la certamente ao aprendizado das categorias linguísticas associadas a esse fonema /a/ em suas múltiplas e distintas ocorrências ortográficas, nos diferentes níveis linguísticos (vogal, verbo, artigo, pronome, interjeição, crase).

O mesmo ‘há’ em PO46 não foi reconhecido como um problema ortográfico pela aluna.

Vale observar que o fato do PO46 – também grafado como ‘à’ apenas alguns minutos antes, mas não ter sido reconhecido como um PO – e o fato do PO50 tratar do mesmo PO, mas ter sido reconhecido como um PO, ilustra bem a complexidade linguística envolvida no processo de aprendizagem da ortografia. A rigor, na representação do fonema /a/ em cada um deles, temos a ocorrência simultânea de dois PO, relacionados ao fenômeno da homofonia21, que lhe circunscreve. De um lado, o PO envolvendo a representação da letra muda ‘h’, que exige, além do conhecimento de seus morfemas na composição de formas verbais, o conhecimento do radical “hav” do verbo “haver”, ambos, radical e morfema, apresentando grande irregularidade. De outro, o PO relacionado à acentuação ortográfica da forma verbal “há”, monossílabo tônico, em que o acento agudo não marca qualquer diferença fônica, sendo, portanto, também “mudo”. Em nenhuma das duas inscrições as alunas observam ou tentam inscrever o grafema ‘h’ que, como indica Nunes; Bryant (2014)NUNES, T.; BRYANT, P. Leitura e Ortografia: além dos primeiros passos. Porto Alegre: Penso, 2014., é uma aquisição tardia. Entretanto, o acento grave, presente em língua portuguesa somente na marcação da crase, é supergeneralizado, ou seja, o grafema ‘à’ tanto serviu como para representar os dois PO relacionados ao verbo ‘haver’, em sua forma verbal ‘há’, quanto foi usado, imprevisivelmente, para o registro de ‘pàra’ (4º ponto, linha 11, PO 30). A recorrência por seis vezes seguidas desta mesma forma gráfica pode estar relacionada à memória de trabalho ativada durante o texto em curso. A aluna B, ao antecipar o PO50 relacionado ao fonema /a/, recorreria à forma gráfica ‘à’ inscrita anteriormente. Apesar do uso incorreto, há uma reflexão metalinguística inicial da aluna, ainda que baseada apenas no aspecto gráfico da acentuação da crase, e não em sua função em relação à linearização da frase ‘É claro que há!’.

De alguma forma, a tarefa escolar diferenciando ‘à’, ‘há’ e ‘ah’ parece ter exercido alguma interferência na atividade metalinguística da aluna. Talvez se possa questionar se o ensino desse problema ortográfico seria adequado para este nível escolar (2º ano do Ensino Primário de Portugal). Mas talvez essa questão não seja pertinente, uma vez que durante o texto em curso não se pode controlar as palavras a serem enunciados e linearizadas pelos escreventes. O que nos parece pertinente do ponto de vista da aprendizagem é a aluna ter reconhecido nesse ponto de texto em curso um problema ortográfico. Ainda que esse reconhecimento seja intermitente e limitada à marca de acentuação, ele indica a capacidade cognitiva da aluna em recuperar informações recebidas e sua habilidade metalinguística ao pôr em relação as diferentes representações ortográficas para um mesmo fonema.

Conclusão

O estudo de caso apresentado mostra claramente que as alunas, recentemente alfabetizadas, mobilizam diferentes estratégias e informações relativas à ortografia. Elas respondem aos PO reconhecidos durante o texto em curso em função dos conhecimentos linguísticos e dos recursos cognitivos que possuem. Isso indica que, apesar desse ser dos primeiros textos escritos por essas alunas, já têm uma autonomia relativa para a resolução desses problemas. A atividade metalinguística sobre os problemas ortográficos reconhecidos justifica a necessidade de se valorizar tais situações didáticas, envolvendo a escrita colaborativa a dois. De um lado, a explicitação didática de conteúdos ortográficos específicos tem grande importância para o aprendizado da ortografia. De outro, a prática didática de produção, particularmente em dupla, parece contribuir para que os conteúdos de ensino possam ser reconhecidos e articulados no texto em construção.

Como é característico de alunos neste momento escolar, os problemas ortográficos são em grande número e as dificuldades identificadas estão relacionadas com o que a literatura já tem descrito. Nos seis manuscritos produzidos, encontramos, em média, um PO para cada quatro palavras escritas, envolvendo uma significativa diversidade de problemas. No caso da história inventada ‘A Branca de Neve e os três dinossauros’ houve a escrita de 136 palavras, tendo ocorrido 52 PO. Considerando aqueles 21 PO rasurados, mais aqueles 8 PO não-rasurados, mas comentados, podemos afirmar que as alunas reconheceram pouco mais da metade dos PO. A presença desses PO no manuscrito indica o nível de conhecimento que possuem e o modo como recorrem às informações recebidas para resolução dos PO identificados.

O desenho metodológico adotado, baseado na perspectiva teórica oferecida pela Genética Textual, articulou o processo (texto em curso) ao produto (texto escrito), respeitando as condições ecológicas da sala de aula. O filme-sincronizado gerado pelo Sistema Ramos favoreceu uma análise etnográfica, qualitativa e microgenética, cuja característica principal está na associação entre os PO identificados, as rasuras inscritas na folha de papel relacionadas a esses PO e os comentários enunciados pelas alunas. Destaca-se deste procedimento a escrita a dois de um único texto, favorecendo o diálogo e potencializando a atividade metalinguística, seja na forma de comentários que antecipam PO, seja na forma de comentários que buscam de soluções para os PO reconhecidos depois de terem sido inscritos, visando a garantir a continuidade da escrita do texto.

Em relação a esse aspecto, encontramos características comportamentais interessantes na dupla de alunas estudada, que precisariam ser aprofundadas em estudos futuros envolvendo outras duplas, e até mesmo em outros processos de escritura desta mesma dupla, nas mesmas condições de sala de aula. Observamos que o PO foi antecipado majoritariamente pela escrevente, enquanto que o PO posterior surgiu das observações feitas pela ditante, assumindo o papel de revisora do que estava sendo inscrito e linearizado. Em relação a esse aspecto, o acompanhamento visual, isto é, acompanhar com os olhos o que foi escrito parece ter uma importância capital. Outra característica que pode ter importante consequência para a prática didática e a avaliação dos conhecimentos de alunos desta faixa etária refere-se ao fato de que, por um lado, os reconhecimentos antecipados expressaram dúvidas, como foi o caso da escrita de ‘bran’ na palavra ‘branca’, de ‘ssa’ na palavra ‘dinossauro’ e de ‘há’ para o verbo ‘haver’. Por outro lado, os PO posteriores feitos por L ofereceram respostas e informações para as dúvidas de B, como por exemplo, explicar que ‘bran’ começa tem o ‘b’, que o ‘b’ de ‘Branca de Neve’ é com letra maiúscula ou que o grafema ‘c’ não é equivale ao grafema ‘s’.

Também pudemos indicar outros dois aspectos que se diferenciam de grande parte dos estudos sobre aquisição de ortografia. O primeiro diz refere-se à presença de PO com comentário, mas que não recebe marca visível de rasura, como foi o caso de ‘dinosauro’ (PO13_B8) e de à/há (PO50_B17). O segundo, não explorado neste estudo, indica que mesmo palavras escritas corretamente (sem PO) e sem rasuras tiveram sua inscrição acompanhada por comentários ortográficos, como em ‘vez’ (PO7_B4), ‘chamada’ (PO8_B5), ‘à floresta’ (PO10_B6; PO20_L7), ‘chocaram’ (PO12_B7), ‘Mas’ (PO45_L16) e ‘E’ (PO51_L18) e ‘sempre’ (PO52_L19).

A análise permitiu ainda entrecruzar os comentários realizados pelas alunas e os instrumentos e atividades concebidos pela professora e registrados no Caderno Diário das alunas, evidenciando que os comentários produzidos por elas trazem reflexões metalinguísticas sobre os conteúdos ensinados.

Considerando esses aspectos, e talvez contribuindo para os trabalhos sobre o tema, podemos iniciar a elaboração de uma resposta ao que nosso título interroga.

  • Apesar de não sabermos quando a criança interromperá o fluxo textual diante de um PO, pois não é possível prever de antemão quais palavras irão surgir durante o texto em curso, a antecipação de um problema ortográfico parece coincidir com as dificuldades enfrentadas após a compreensão do princípio alfabético, isto é, podemos esperar que os alunos reconheçam antecipadamente PO quando estes PO se referem aos dígrafos vocálicos ou consonantais, à acentuação ou uso de letras mudas.

  • Nesta fase ainda inicial, o modo como surge o reconhecimento parece ser intermitente, isto é, no caso apresentado, não acontece em todo e qualquer dígrafo, letra acentuada ou letra muda. Contudo, sua ocorrência pode indicar os conteúdos de ensino a que os alunos estão expostos. Isto coloca em questão ideias pré-concebidas de que o ensino da gramática não tem efeito sobre a produção textual do aluno.

  • É difícil saber sobre o por quê de um reconhecimento antecipado de PO acontecer ao invés de outro, dada dimensão cognitiva e subjetiva de cada escrevente. Mas, ainda que não possamos responder a isso, podemos defender que eles surgem porque se dá a oportunidade ao aluno de produzir textos já nos anos escolares iniciais.

Estes três pontos justificam a importância dos gestos profissionais do professor, neste percurso de alfabetização, na medida em que contribuem para que os alunos avancem na produção escrita de maneira refletida, criando situações para que eles comentem, raciocinem, expliquem a partir dos seus escritos ou dos colegas. Esta démarche didactique de constante interpelação dos fenômenos da língua levá-los-á a um duplo enfrentamento: a uma resolução progressiva de problemas com os quais eles se deparam no texto em curso, dentre eles, problemas ortográficos e a um domínio desse sistema, sem dúvida, muito complexo, cujo processo de aprendizagem levará anos para ser concluído.

Agradecimentos

Este estudo faz parte do projeto de cooperação internacional InterWriting, envolvendo pesquisadores do Laboratório do Manuscrito Escolar (LAME) da Universidade Federal de Alagoas (Brasil) e o Grupo de Pesquisa PROTEXTOS, da Universidade de Aveiro (Portugal), CIDTFF. Este estudo recebeu o importante apoio financeiro do Fundo Nacional da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., sob o projeto UID/CED/00194/2013, do CNPq (processo 304050/2015-6) e da FAPEAL (processo 60030 479/2016). Somos ainda profundamente gratos à direção da escola portuguesa, à professora, aos pais e aos alunos e alunas, cuja concordância e apoio foram essenciais para o estudo proposto.

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  • ZORZI, J. L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
  • 1
    Conferir, por exemplo, os trabalhos de Bousquet et al. (1999)BOUSQUET, S.; COGIS, D.; DUCARD, D.; MASSONNET, J.; JAFFRE, J.-P. Acquisition de l’orthographe et modes cognitifs. Revue française de pédagogie, Paris, v.126, p.23-37, 1999., Jaffré (1995)JAFFRÉ, J. P. Compétence orthographique et acquisition. In: DUCARD, D.; HONVAULT R.; JAFFRÉ, J. P. (Eds.). L’orthographe en trois dimensions. Paris: Nathan, 1995. p.94-158., Chiss, David (2011a), Morin e Nootens (2013)MORIN, M-F.; NOOTENS, P. Étude des procédures verbalisées en lecture et en écriture chez des forts et faibles orthographier au début du primaire. Repères, Paris, n.47, p.83-107, 2013., Fijalkow, J. e Fijalkow, F. (1991) e De Gaulmyn e Luis (1997)DE GAULMYN, M.-M.; LUIS, M.-H. Genèse des représentations métalinguistiques de la langue écrite. Linx, Paris, v.27, n.2, p.107-113, 1997..
  • 2
    As entrevistas metagráficas realizadas pelos próprios pesquisadores e inspiradas nas entrevistas clínicas de Piaget estão centradas sobre a ortografia. Nessas entrevistas, segundo Brissaud e Cogis (2011BRISSAUD, C.; COGIS, D. Comment enseigner l´orthographe aujourd´hui? Paris: Hatier, 2011., p.45), “demanda-se ao aluno que comente, no texto que acabou de escrever, alguns grafemas que ele produziu. O aluno, retornando sobre suas escolhas, é levado a explicitar os materiais linguísticos que selecionou e as razões pelas quais o fez. Como nas palavras metalinguística, metacognição, o termo metagráfico explica esse retorno reflexivo, em efeito nos grafemas.”.
  • 3
    A transcrição oferecida por Barbeiro não é de imediata compreensão pelo leitor. Aqui, o aluno demonstra dúvida sobre como grafar ‘à’, no sintagma ‘à noite’. Ele faz uma pergunta afirmativa dizendo que esse ‘á’ é com ‘h’. O enunciado dito pelo outro aluno traz a informação referente ao valor semântico de ‘há’. Contudo, não está claro se o aluno escreveu o ‘a’ com acento agudo ou com acento grave.
  • 4
    Entendemos que o termo “fundamentação”, pela carga semântica que lhe é própria, não caracteriza o que o escrevente fala espontaneamente para seu parceiro. Propomos o termo “comentário” (CALIL, 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.) dado seu amplo escopo semântico, que pode ser explicativo, justificativo ou uma breve dúvida ou observação sobre o elemento linguístico ou textual que está sendo escrito.
  • 5
    Conforme definimos em Calil (2016)CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016., em função da perspectiva genética na qual este estudo se insere, esses dois termos estão diretamente relacionados ao momento em que o texto está sendo registrado na folha de papel. Durante este momento, a “inscrição” refere-se a todo e qualquer traço gráfico inscrito na folha de papel (letras, traços, riscos, desenhos, etc.). A ˜linearização” diz respeito à materialidade gráfica daquilo que foi discutido oralmente pelos alunos para ser escrito, isto é, ao momento em que um elemento textual (gráfico, ortográfico, lexical, semântico, sintático, textual) é concatenado e articulado a outro elemento textual na cadeia sintagmática do texto em curso. Desse modo, assumimos que a linearização resulta do diálogo, envolvendo necessariamente a articulação e concatenação entre os elementos textuais inscritos na folha de papel, enquanto que a inscrição de uma marca gráfica pode ocorrer sem que haja relação com a linearidade do texto em curso.
  • 6
    Para o leitor pouco familiarizado com a especificidade de nosso campo de estudo, é importante precisar que este termo se refere à preservação das características cotidianas e interacionais da sala de aula. Isso é garantido pelo modo como os dados são registrados através do Sistema Ramos, conforme será descrito adiante.
  • 7
    O Sistema Ramos, desenvolvido pelo Laboratório do Manuscrito Escolar (CALIL, 2016CALIL, E. Writing, memory and association: newly literate students and their poetry creation processes. Recherches Textuelles, Lorraine, n.13, p.105-121, 2016.), permite a captura multimodal do processo de escritura em tempo e espaço real da sala de aula. Através da sincronização entre o registro fílmico da interação entre os alunos, o traçado da caneta sobre a folha de papel e o registro em áudio do diálogo entre os participantes, durante o momento do manuscrito em curso, o Sistema Ramos fornece uma grande quantidade de informações que permite acesso em tempo real, ao que os alunos dizem enquanto combinam, inscrevem e linearizam o material gráfico da história inventada.
  • 8
    Apesar dessa instrução, não era interditada a troca de caneta. O professor apenas ficava atento para dirigir a atenção compartilhada entre os alunos e para a divisão da tarefa em dupla, evitando que um único aluno ficasse sozinho responsável pela criação e escrita da história inventada. Vale dizer ainda que, para preservar as características ecológicas da dinâmica internacional entre professor e alunos, todos os pesquisadores e auxiliares retiravam-se da sala de aula, durante a realização da tarefa. Isso favorecia a preservação da interação entre professor e alunos.
  • 9
    O Sistema Ramos gera um filme-sincronizado de cada processo de escritura da dupla participante.
  • 10
    Como mostram os trabalhos inaugurais de Fabre (1990)FABRE, C. Les brouillons d’écoliers ou l’entrée dans l’écriture. Grenoble: Ceditel/ L’Atelier du Texte, 1990. e de muitos outros pesquisadores que a sucederam, a rasura nos manuscritos escolares marcam a recursividade própria da escrita e indiciam reflexões metalinguísticas efetivadas pelo escrevente. Desse ponto de visto, isto é, do ponto de vista do produto textual, somente é possível identificar reconhecimentos de problemas ortográficos pelo escrevente, se ele fez alguma marca de rasura em seu texto.
  • 11
    A identificação desses “pontos de tensão” (CALIL, 2012a) considera a relação entre o registro escrito, no tempo e no espaço da inscrição na folha de papel, e registro interacional e dialogal face a face, envolvendo sobreposições de turnos de fala, reformulações orais, movimentos corporais, expressões faciais, direção do olhar, intervenções do professor e interações com outros colegas.
  • 12
    Esses e outros estudos nas áreas de Linguística e Psicologia propõem classificações diversas e, por vezes, discordantes, para os problemas ortográficos em língua portuguesa. Aqui, elencamos alguns deles, de modo genérico, para que o leitor possa ter uma ideia da complexidade destes problemas, com os quais se deparam os escreventes recém-alfabetizados ao produzirem seus textos.
  • 13
    A informação referente a quem escreveu está indicada pelo asterisco, ao lado da letra inicial do nome da aluna.
  • 14
    Nesta codificação não separamos os PO lexicais dos PO gramaticais. Por exemplo, o PO48, na linha 15, indica um PO gramatical: “do dinosauros”. O PO49 indica um PO lexical: “dinosauros”.
  • 15
    De acordo com a Genética Textual, a rasura “escrita” pode ser definida como qualquer modificação ou alteração relacionada a elementos textuais já linearizados. Nosso desenho metodológico, ao sincronizar o texto produzido e o texto em curso, permite recuperar as rasuras visíveis (aquelas marcadas graficamente no papel, como por exemplo, borrões, sobrescritas, riscos, barras, etc.) e as rasuras não-visíveis (aquelas não marcadas graficamente, resultado de um acréscimo de letra ou sinal de pontuação, por exemplo). Para observar a relação entre o PO e a rasura, indicamos com retângulos vermelhos os PO que receberam rasuras visíveis. E em retângulos verdes os PO não rasurados ou que receberam rasuras de acréscimo, muitas vezes não visíveis no produto.
  • 16
    Este tipo de análise envolve o caráter dialogal e genético do manuscrito em curso, ocorrendo sobre os pontos de tensão identificados no fluxo textual.
  • 17
    Nos textos dialogais (TD), destacamos em vermelho o objeto textual (OT). No caso deste TD, o OT é a sílaba inicial da palavra ‘branca’ do nome da personagem que está sendo escrito: ‘Branca de Neve’. Em azul, destacamos os comentários referentes ao OT reconhecido como um problema por B. Numeramos os comentários, considerando seu valor argumentativo. Por essa razão, a numeração de alguns comentários é acompanhada por letras, indicando a continuidade do valor argumentativo do comentário.
  • 18
    Na palavra ‘disse’, registrada no final da linha 10, a rasura da primeira tentativa de inscrição não é decorrente de um PO relacionado ao dígrafo ‘ss’. Conforme se pode observar no manuscrito, há uma grafia mal definida das letras ‘s’. O primeiro traçado ‘s’ ficou ‘fechado’ e o segundo ‘s’ ficou semelhante a um ‘r’. Como mostra o filme-sincronizado gerado pelo Sistema Ramos, aos 50:46 a aluna B, logo após fazer o segundo ‘s’, coloca este segmento gráfico ‘diss’ entre parênteses, indicando a rasura, conforme havia orientado a professora. Em seguida, repete oralmente a palavra ‘disse’ e a grafa corretamente, sem verbalizar qualquer problema ou dúvida sobre a representação ortográfica do fonema /s/.
  • 19
    O PO36 incidindo sobre a palavra ‘posso’ refere-se ao uso do dígrafo. Primeiramente, B havia grafado apenas um ‘s’. L, ao observar como a amiga fez, comenta e corrige, dizendo que falta outro ‘s’.
  • 20
    Não é o objetivo desse estudo analisar ou discutir as tarefas escolares propostas às alunas. Do ponto de vista etnográfico e ecológico, a apresentação destes documentos tem por função descrever o contexto didático, de modo a enriquecer o acesso às informações recebidas, correlacionando-os ao que dizem e escrevem durante o texto em curso.
  • 21
    As análises da interferência da homofonia na geração de problemas ortográficos imprevisíveis são também feitas em Felipeto (2013)FELIPETO, C. ‘À Dieu petit crapaud’: quand l’homonymie produit des désordres et des ratures dans un processus d’ecriture en collaboration. In: BORÉ, C.; CALIL, E. (Org.). L’école, l’écriture et la création. Paris: Ed. Bruylant-Academia, 2013. p.189-202., Calil e Felipeto (2008)CALIL, E.; FELIPETO, C. A singularidade do erro ortográfico nas manifestações da d’Alíngua. Estilos da Clínica, v.Xlll, n.25, p.118-137, 2008. e Calil (2007)CALIL, E. D’efeitos d’a(língua): o fenômeno linguístico “homortográfico. In: CALIL, E. (Org.). Trilhas da escrita: autoria, leitura e ensino. São Paulo: Cortez, 2007. p.77-118..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2017
  • Aceito
    3 Dez 2017
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