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Comentário I: Curadoria artística dentro e fora do museu

Comment I: Art curatorship in and out of museums

Para os historiadores de arte que se dedicam a pesquisar a recepção das artes através de museus, galerias, críticos de arte ou outros intermediários, é urgente refletir sobre o futuro da curadoria artística, pois há uma bibliografia muito grande sobre a história das coleções de arte, mas não tanto sobre a dos responsáveis por sua manutenção, estudo e apresentação. Uma das diferenças fundamentais entre um acervo visitável e um museu é precisamente a existência de profissionais encarregados dessas funções, critério definidor utilizado atualmente pelas autoridades para reconhecer ou não uma instituição como museu, assim como o é pelos pesquisadores da evolução da museologia como disciplina. Por isso, me parece muito pertinente que Ana Gonçalves Magalhães e Helouise Costa evoquem a figura de David Teniers, o Jovem, como precursor histórico dos curadores, por ter sido ele o responsável pela grande coleção de pinturas do arquiduque Leopold William da Áustria nos Países Baixos no século XVII, enquanto no século XVI outro famoso predecessor surgira em Florença, quando os Médici nomearam Bertoldo di Giovanni como conservador de suas coleções de esculturas e camafeus.2 2 Lorente (2012, p. 19). Posteriormente, na crônica paralela do desenvolvimento das coleções, museus, academias e outras instâncias do sistema de arte na Europa e no Brasil, as professoras Gonçalves Magalhães e Costa consideram que o conservador-curador de museus de arte foi se desvinculando da crítica e curadoria de arte contemporânea, uma afirmação que talvez seria conveniente matizar.

É hora de reivindicar alguns ilustres pioneiros do século XIX e do início do XX que muitas vezes foram eclipsados pela mitificação de uma genealogia germânica de professores que ocuparam as primeiras cadeiras de história da arte em Göttingen, Berlim, Viena, Bonn, Estrasburgo, Leipzig etc. É óbvio que, embora ninguém possa escolher seus pais biológicos, grupos humanos - sejam eles nacionais, profissionais ou formados a partir de outros vínculos sociais - canonizam retroativamente certos personagens de acordo com os valores ou as suposições dominantes em cada época e sociedade subsequentes. Além dos professores de universidades da Europa Central, os professores das academias ou escolas de Belas Artes, os críticos de arte e os curadores de museus de toda a Europa, que edificaram enormes pontes entre a arte histórica e a contemporânea, também devem ser lembrados.

Por exemplo, a redescoberta da pintura “realista” do século XVII deve muito aos connaisseurs não universitários que apoiaram o realismo na arte contemporânea, como o pintor, crítico e historiador Eugène Fromentin, o crítico de arte e ativista político Théophile Thoré e seu bom amigo Champfleury. Muitos deles trabalharam em museus, nos quais foram responsáveis tanto pela arte histórica como pela arte de sua própria época; Champfleury encerrou sua carreira como diretor do Museu da Cerâmica de Sèvres, onde pintores como Auguste Renoir e Marie Laurencin iniciaram suas trajetórias. Alguns dos pais da famosa “Escola de Viena”, antes de lecionarem na universidade, também trabalharam em museus. Julius von Schlosser havia sido diretor das coleções de escultura e artes decorativas no Kunsthistorisches Museum em Viena, antes de ser professor na Universidade de Viena. Instituição essa que teve Rudolf Eitelberger como primeiro professor de História da Arte e que também foi um dos fundadores do Museu de Artes Aplicadas de Viena, do qual Alois Riegl havia sido kurator desde 1886, apenas oito anos antes de também passar a lecionar na mesma Universidade de Viena. Mas talvez o melhor exemplo de alguém que atuou tanto como curador quanto como professor seja o do inglês Roger Fry, estudioso e propagador da arte renascentista italiana, que trabalhou como professor, conferencista, articulista e assessor de colecionadores e foi diretor do Metropolitan Museum de Nova York antes de se tornar um famoso promotor dos seguidores de Cézanne e Picasso como crítico de arte e curador de exposições “pós-impressionistas”.

No entanto, produziu-se uma divisão universalmente aceita para separar os profissionais da academia e os da curadoria: os primeiros estariam voltados para a formulação de discursos gerais para publicações ou cursos universitários, utilizando imagens das obras mais representativas como ilustração; os segundos se especializariam no trabalho com peças originais em museus, salas de marchands ou coleções.3 3 Essa dicotomia deu origem a muitos comentários, que quase sempre caracterizaram tal dissociação com todos os tipos de considerações. Cf. Bernier (2002); Haxthausen (2002); Belda e Marín Torres (2006). A partir desse quadro, museus universitários teriam o potencial de conectar essas duas polaridades. Ana Gonçalves Magalhães e Helouise Costa fazem bem em lembrar especialmente a figura de Paul J. Sach, porque - assim como elas - ele combinou em seu trabalho o ensino universitário e a curadoria museológica na Universidade Harvard, onde foi diretor do Fogg Museum e onde ministrou, de 1922 a 1953, o curso “Museum Work and Museum Problems”. Um dos alunos mais proeminentes desse curso foi Alfred Barr, que também foi professor universitário de história da arte antes de ser nomeado o primeiro diretor do Museum of Modern Art (MoMA). Como ignorar o múltiplo perfil profissional desses ou de muitos outros colegas seus contemporâneos? Foram inúmeros os professores de história da arte que também exerceram a crítica de arte; a lista é especialmente densa e brilhante entre os italianos, com Lionello Venturi ou Roberto Longhi à frente, mas também cabe citar o norte-americano Meyer Schapiro ou o britânico Adrian Stokes. E não foram poucos os que combinaram escrita e curadoria, como o crítico e historiador inglês Herbert Read, fundador do Institute of Contemporary Art, ou seu compatriota Kenneth Clark, diretor da Tate Gallery londrina. No Brasil, essa transdisciplinaridade costuma ser personificada pelos modernistas Oswald e Mário de Andrade, mas também destacaria como exemplos as trajetórias de Sérgio Milliet, diretor do Museu de Arte Moderna (MAM) e da Bienal de São Paulo, e de Lourival Gomes Machado, também diretor do MAM e pioneiro no ensino de história da arte na Universidade de São Paulo (USP).

Historiadores da arte com perfil de ensino universitário e de atividade curatorial e que alternam entre a erudição histórico-artística e a crítica de arte moderna estão hoje associados em organizações e redes internacionais, como o Comitê Internacional de História da Arte (CIHA), o Conselho Internacional de Museus (ICOM) ou a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) - cuja atual presidenta é Lisbeth Rebollo Gonçalves, professora de história da arte na USP e duas vezes diretora de seu Museu de Arte Contemporânea (MAC USP). Tais fóruns internacionais sempre funcionaram como plataformas de contato entre especialistas de diferentes áreas, muito embora tenha havido a marcante tendência à especialização em congressos e periódicos científicos a partir da segunda metade do século XX. Possivelmente foi a Itália do pós-guerra o cenário no qual o protótipo do prestigiado professor universitário que estudava arte histórica e se desdobrava como crítico de arte contemporânea continuou a ser mais frutífero, produzindo nomes como Giulio Carlo Argan, Carlo Ludovico Ragghianti, Cesare Brandi, Gillo Dorfles, Ernesto Nathan Rogers e Bruno Zevi, que seguiam os passos dos predecessores já citados Lionel Venturi e Roberto Longhi. Entretanto, esse duplo perfil profissional era também o predominante em várias partes do mundo, assim demonstrado no meu livro sobre o surgimento e o desenvolvimento de grandes críticos de arte, no qual se faz referência a outros exemplos eminentes, como o português José Augusto França, professor de História da Arte na Universidade de Lisboa e grande divulgador dos pintores abstratos portugueses - particularmente Maria Elena Vieira da Silva; o professor de História da Arte da Universidade de Estocolmo Sten Karling, presidente-fundador da seção sueca da AICA; seu compatriota Sven Sandström, professor de História da Arte na Universidade de Lund; o professor e crítico de arte Will Grohmann, um dos fundadores da seção alemã da AICA em 1951; e, por fim, seu conterrâneo Werner Haftmann, professor de História da Arte em Hamburgo na década de 1950 e depois primeiro diretor da Neue Nationalgalerie em Berlim.4 4 Lorente (2020, p. 113-114 e 137-138).

Esse perfil que combina variadas ocupações merece particular destaque quando se trata de professores e críticos que também foram curadores de museus, um triângulo profissional que floresceu notadamente na Espanha e na América Latina. Um caso exemplar foi o de José Camón Aznar, que compatibilizou sua carreira universitária com a de diretor do Museu Lázaro Galdiano de Madri e com seu intenso trabalho como crítico e fundador da seção espanhola da AICA. Tanto ou mais se poderia dizer de Alexandre Cirici Pellicer, professor da Universidade de Barcelona, onde foi um dos fundadores do primeiro museu de arte contemporânea, uma de suas muitas iniciativas como ativista político-cultural de grande projeção internacional e que culminaram na sua eleição como presidente da AICA. E não menos politicamente engagé foi Vicente Aguilera Cerni, professor da Universidade de Valência, presidente da seção espanhola da AICA e fundador do Museu de Arte Contemporânea de Villafamés. O debate entre a arte abstrata informal e a neofiguração anunciada pelo pop abriu uma torneira cultural de internacionalização no rescaldo do franquismo, o que deu um novo ar aos museus e a seus profissionais, incluido o Museu Nacional de Arte Contemporânea, com figuras como José Luis Fernández del Amo, José María Moreno Galván ou Juan Antonio Aguirre. Neste contexto político e cultural espanhol, o Instituto de Cultura Hispânica chegou a conceder bolsas a estudantes latino-americanos para que pudessem combinar “estudos de Museologia e crítica de arte” em Madri.5 5 Em 1960, o brasileiro Lívio Xavier Júnior chegou a Madri com uma bolsa de estudos da ICH e logo depois Florisvaldo dos Santos Trigueiros, então presidente do ICOM-Brasil. Em janeiro de 1961, Lívio escreveu ao reitor da Universidade Federal do Ceará decepcionado ao ver que a formação para a qual havia se inscrito para sua bolsa não era oferecida, mas tudo foi resolvido para sua completa satisfação, porque ele pôde acompanhar os cursos de Pilar Fernández Vega no Museu Nacional de Artes Decorativas e fez estágios em diversos museus. Cf. Ruoso (2016, p. 185-194).

Aos poucos, esse mesmo amálgama disciplinar também pôde ser observado no Brasil, onde o crítico e curador de exposições Mário Pedrosa exerceu suas atribuições com olhar culto, formado a partir de ampla atuação tanto como professor universitário quanto como museólogo, ao ter sido diretor do MAM de São Paulo entre 1961 e 1963. O mesmo aconteceu na Argentina, em que o estudioso Jorge Romero Brest passou por diversos cargos de docência e curadoria, sendo diretor do histórico Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires de 1955 até sua renúncia em 1963, quando passou a dirigir o controverso Centro de Artes Visuais do Instituto Di Tella até seu fechamento em 1969. Sua discípula Marta Traba começou com ele sua carreira de historiadora e crítica de arte, mas nessa profissão floresceu triunfante na Colômbia, onde trabalhou como professora de História da Arte, primeiro na Universidade de los Andes e depois na Universidade Nacional, sendo também a fundadora e primeira diretora do Museu de Arte Moderna de Bogotá. Outros importantes críticos/professores/museólogos latino-americanos dignos de serem citados aqui são Rafael Squirru, fundador do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires em 1956 e posteriormente diretor de cultura da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, DC, de cuja coleção de artes visuais foi curador o cubano José Gómez-Sicre, professor em Nova York, onde também foi conselheiro no MoMA.

Essa legião de historiadores da arte ligados aos museus e à crítica através de suas publicações ou da curadoria de exposições lançou as bases para uma especialização em arte moderna e contemporânea que seria o perfil comum nas gerações seguintes, com raras exceções. A figura do(a) professor(a)-curador(a)-crítico(a) seguiu prolífica, muito embora no último terço do século XX já fosse raro encontrar estudiosos eruditos da arte barroca, renascentista ou medieval entre os especialistas mais influentes nas tendências artísticas mais recentes. Nem sempre tiveram sua formação universitária em história da arte, já que seria cada vez mais comum encontrar diplomados em filosofia, antropologia, semiótica, artes plásticas, estudos visuais ou outras humanidades entre os estudiosos da arte contemporânea que, em conjunto com o curador de museu especialista em catalogação e em estudo especializado do patrimônio histórico, constituem o paradigma atual do “curador independente” descrito por David Levi Strauss com diferentes designações, dentre as quais Ana Gonçalves Magalhães e Helouise Costa destacam o termo francês bricoleur. Elas não o fazem com a conotação negativa que muitas vezes implica essa palavra, já que é evidente seu fervor por Harald Szeemann, a quem nomeiam repetidamente em seu texto como protótipo do curador não vinculado a cargos docentes ou museológicos.

Muito poderia ser contestado sobre o quão “independente” Szeemann era, porque ele obviamente tinha seu círculo de artistas e colecionadores afins, cuja influência marcou fortemente seu trabalho curatorial; mas em vez de entrar em tais digressões, me interesso mais em destacar a importância das duas “contrafiguras” mencionadas pelas professoras para mostrar que, no Brasil, a renovação da curadoria de arte contemporânea teve seu epicentro precisamente em determinados museus, transformados por inovadores críticos que também eram professores por vocação.

Considero fascinante o caso de Frederico de Morais que, desde que se mudou em 1968 para o Rio de Janeiro para assumir a coordenação dos cursos-oficinas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), insistiu em quebrar a introspectiva “torre de marfim” típica dos museus modernistas ao levar as atividades museológicas para fora do edifício, buscando maior conexão não somente com os cidadãos, mas principalmente com os estudantes e artistas. Por exemplo, o projeto “Arte no Aterro: um mês de arte pública”, realizado nos fins de semana de julho de 1968 e que culminou em seu último domingo de programação com o evento Apocalipopótese, no qual Hélio Oiticica mostrou pela primeira vez seus Parangolés, ativados por bailarinos de uma escola de samba. A ele se seguiu o ciclo “Domingos da Criação”, ocorrido entre janeiro e agosto de 1971 na área externa do MAM Rio, que buscou expandir a performance artística para o restante da cidade, seu anseio mais pessoal como diretor do MAM Rio e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.6 6 Ferreira (2006, p. 195-200); Gogan (2017); e Leal (2019). Para essa empreitada, juntou-se a Walter Zanini, outra grande figura multidisciplinar que, como crítico de arte e professor da USP, promoveu importantes cursos e publicações, deixando sua marca especialmente no Museu de Arte Contemporânea (MAC USP). Quando foi seu diretor de 1963 a 1978, Zanini o orientou para a experimentalidade artística e para a democratização social, inclusive com exposições itinerantes que levaram parte do acervo do museu para outros pontos de São Paulo ou para outros estados, onde foram exibidos em centros acadêmicos e em sedes de associações, que depois dariam origem à Associação de Museus de Arte do Brasil.7 7 Freire (2013); e Obrist (2000, p. 163). Lamento não ter conseguido acessar a tese de doutorado de Cristiana Santiago Tejo, A gênese do campo da curadoria de arte no Brasil: Aracy Amaral, Frederico Morais e Walter Zanini, apresentada em 2017 na Universidade Federal de Pernambuco; mas, a julgar pelas referências feitas a ela por Ana Gonçalves Magalhães e Helouise Costa, seria urgente publicar a partir dela um livro em inglês para chamar a atenção de todos para esses antecessores brasileiros de Pontus Hultén; é o mesmo que se reivindica quanto ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), já que o museu de Lina Bo Bardi foi antecessor arquitetônico do Centro Pompidou parisiense, onde o sueco Hultén consagrou o triunfo da linhagem nórdica de curadores que remonta a Willem Sandberg, com quem Zanini tinha amizade.

Na minha opinião, esses impulsos de abrir os museus para a colaboração de artistas e do público ao apostar em estratégias de projeção territorial poderiam muito bem ser relacionados ao ímpeto da nouvelle muséologie, movimento que surgiu nos anos 1970 e 1980 e que melhor se desenvolveu na América Latina. Da mesma forma, a influência das teorias pós-estruturalistas, pós-modernas, pós-coloniais, feministas e queer seria o Zeitgeist que garantiu, na virada do século, o florescimento da chamada museologia “crítica” ou “reflexiva”. Uma figura de referência internacional dessa corrente interdisciplinar é a curadora, crítica e historiadora cultural Mieke Bal que, em um de seus livros mais importantes, reivindicou a interação entre teoria e prática ao analisar as exposições a partir de uma perspectiva histórico-artística e museológica.8 8 Bal (2002, p. 140). Tal afirmação teórico-prática sustentaria então os propósitos do livro coletivo Museología Crítica y Arte Contemporáneo, organizado por Lorente e Almazán Tomas (2003) e publicado pela Universidad de Zaragoza. Não é por acaso que ela também seja videoartista, pois os primeiros e os mais veementes críticos do campo museológico sempre foram os artistas. Não poucos se especializaram em um subgênero da “crítica institucional” que deu origem a um papel artístico específico, o artist-curator, ou seja, o artista que opera em funções curatoriais.9 9 Zuliani (2009, p. 59-83); Bawin (2014); Green (2018); e Fernández Lopez (2020).

Outro passo nesse sentido foi a intervenção do uruguaio Luis Camnitzer em 2007 para a VI Bienal do Mercosul em Porto Alegre, na qual o artista organizou espaços de descanso, leitura, reflexão e conversa animados por 300 mediadores instruídos a dialogar com artistas e curadores, no que foi definido a partir daí como “curadoria pedagógica”. Essa designação pode parecer um pleonasmo, já que todo trabalho curatorial é por definição educacional, mas com tal denominação Camnitzer buscou enfatizar que, nos processos interpretativos dos curadores, o foco não deve estar na arte exposta, mas sim nas reflexões desencadeadas na sociedade.10 10 Borba (2019, p. 218-239). Como os museus são instituições de ensino, não poderiam estar alheios à mudança crítica nas teorias de aprendizagem que priorizam a construção dialética do conhecimento e questionam os discursos institucionais.11 11 Rodrigo (2007). Não deveriam ser especialmente os museus universitários a vanguarda na aplicação prática desses conceitos?

Anthony Shelton, o mais proeminente teórico da “museologia crítica”, também é diretor do Museu de Antropologia da Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver. Faz parte do projeto curatorial desse museu que os textos interpretativos contenham muitas perguntas e indagações, alguns dos quais com identificação e até fotos de seus autores. Porém, embora abrigue exposições de arte contemporânea e até se divulgue como uma instituição dedicada às world arts, o trabalho realizado nesse museu escapa ao argumento deste artigo por ser um museu antropológico.

Como um primeiro exemplo de um museu universitário de arte norteado por esses princípios, citaria o Centro Sainsbury de Artes Visuais da Universidade de East Anglia, em Norwich, cuja museografia foi pioneira em apresentar uma montagem pós-moderna em ordem a-histórica e cujo mestrado em Estudos Museológicos e Patrimônio Cultural segue uma orientação pós-colonial, com olhar para as artes de outros continentes. Já questões críticas sobre raça ou gênero têm sido o foco por muitos anos na Galeria Whitworth da Universidade de Manchester e no mestrado em Estudos sobre Museus e Galerias de Arte. Seguindo o ímpeto desses ou de outros exemplos periféricos, a renovação chegou até mesmo à Universidade de Londres, onde o Courtauld Institute of Art, tradicional baluarte da história da arte formalista, agora dá eco às controvérsias pós-modernas tanto em seu mestrado em Curadoria em Museus de Arte como na apresentação de seu acervo museológico. Receio que não tenhamos nada semelhante na Espanha, onde o Museu da Universidade de Alicante encerrou o seu prestigioso curso de especialista universitário em Museologia de Arte Contemporânea há mais de dez anos, enquanto o Museu da Universidade de Navarra começou a implementar apenas em 2021 seu curso de Estudos Curatoriais.

Por isso, é importante destacar o desenvolvimento de museus universitários de arte contemporânea no Brasil;12 12 Ribeiro dos Santos e Noronha (2018, p. 69-87). em particular o do Museu de Arte Contemporânea da USP, que abriga cursos de especialização como o de Curadoria e Educação em Museus de Arte e onde já se coloca em prática a reivindicação da “museologia crítica” de substituir os discursos institucionais anônimos por painéis de sala com textos interpretativos com o nome de seus autores. Na América Latina, há outros exemplos mais modestos, como o Museu de Arte Contemporânea de Bogotá, no coração do campus universitário Minuto de Dios, onde são oferecidos seminários formativos, muitas vezes em colaboração com o mestrado em Museologia e Gestão de Patrimônio da Universidade Nacional da Colômbia, gerenciado pelo grupo de pesquisa em Museologia Crítica e Estudos do Patrimônio Cultural. Outro caso a ser citado é o do Museu Universitário de Arte Contemporânea da Universidade Autônoma do México, que abriga a Cátedra Extraordinária William Bullock de Museologia Crítica, responsável por colóquios internacionais desde 2015 e por oferecer um prêmio patrocinado pela Federação Mexicana de Associações de Amigos de Museus (FEMAM).13 13 Passaram por ali excelentes palestrantes, entre os quais quero destacar uma apresentação cujo conteúdo e abordagem vem muito a propósito: Hernández Velázquez (2019, p. 287-302).

Sinergias desse tipo são uma excelente solução para a suposta falta de pontes entre a universidade e os museus que, como tentei argumentar, talvez valesse a pena ser revista historicamente. O ponto crucial da questão hoje são as novas expectativas para o ensino superior. Em todo o mundo, o número de universidades, públicas ou privadas, tem se multiplicado enormemente, atendendo a uma população universitária que também cresce, mas não no mesmo ritmo. Neste momento, em que há tanta oferta de diplomas universitários, o número de alunos inscritos em cursos de pós-graduação especializados em museologia está diminuindo. Nossos alunos mais ambiciosos não aspiram mais ser o que na Espanha se chama de conservadores de museos, mas sim curadores de exposiciones, isto é, profissionais que atuam fora das instituições museológicas. Talvez seja esse o modelo de “estudos curatoriais” que a sociedade atual demanda. Tanto dentro quanto fora dos museus, outros cursos mais gerais sobre curadoria estão se expandindo, oferecendo treinamento em gestão de patrimônio de todos os tipos - desde a arte contemporânea até os sítios arqueológicos, passando pela cultura antropológica material e imaterial, filológica etc. “Crítica” continua sendo um termo em ascensão nesses estudos, para os quais o rótulo de Critical Heritage Studies, ou seu equivalente em outras línguas, está se ampliando. Gosto muito desse movimento porque nele me sinto incluído e porque também penso que ele reivindica todas essas figuras que admiro como precedentes na curadoria dentro e fora dos museus.

REFERÊNCIAS

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  • 2
    Lorente (2012LORENTE, Jesús Pedro. Manual de historia de la museología. Gijón: Trea, 2012., p. 19).
  • 3
    Essa dicotomia deu origem a muitos comentários, que quase sempre caracterizaram tal dissociação com todos os tipos de considerações. Cf. Bernier (2002BERNIER, Christine. L’art au musée: de l’oeuvre à l’institution. Paris: L’Harmattan, 2002.); Haxthausen (2002HAXTHAUSEN, Charles W. The two art histories: the museum and the university. New Haven: Yale University Press, 2002.); Belda e Marín Torres (2006BELDA, Cristóbal; MARÍN TORRES, María Teresa (eds.). La museología y la historia del arte. Murcia: Universidad de Murcia, 2006.).
  • 4
    Lorente (2020LORENTE, Jesús Pedro. Great art critics (1750-2000): emergence and development of a profession in permanent crisis. Milão: Mimesis International, 2020., p. 113-114 e 137-138).
  • 5
    Em 1960, o brasileiro Lívio Xavier Júnior chegou a Madri com uma bolsa de estudos da ICH e logo depois Florisvaldo dos Santos Trigueiros, então presidente do ICOM-Brasil. Em janeiro de 1961, Lívio escreveu ao reitor da Universidade Federal do Ceará decepcionado ao ver que a formação para a qual havia se inscrito para sua bolsa não era oferecida, mas tudo foi resolvido para sua completa satisfação, porque ele pôde acompanhar os cursos de Pilar Fernández Vega no Museu Nacional de Artes Decorativas e fez estágios em diversos museus. Cf. Ruoso (2016RUOSO, Carolina. Nid de felons: neuf temps pour neuf atlas. Histoire d’un musée d’art brésilien. Tese (Doutorado em História da Arte) - Université Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris, 2016., p. 185-194).
  • 6
    Ferreira (2006FERREIRA, Glória (ed.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006., p. 195-200); Gogan (2017GOGAN, Jessica (org.). Domingos da Criação: uma coleção poética do experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto MESA, 2017.); e Leal (2019LEAL, André. Da cidade lúdica aos Domingos da Criação: uma constelação de Frederico Morais. Poiésis, Niterói, v. 20, n. 33, p. 413-434, 2019. ).
  • 7
    Freire (2013FREIRE, Cristina. Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume, 2013.); e Obrist (2000OBRIST, Hans Ulirch. A brief history of curating. Zurique: Ringier-Les Presses du réel, 2000., p. 163).
  • 8
    Bal (2002BAL, Mieke. Travelling concepts in the humanities. Toronto: UTP, 2002., p. 140). Tal afirmação teórico-prática sustentaria então os propósitos do livro coletivo Museología Crítica y Arte Contemporáneo, organizado por Lorente e Almazán Tomas (2003LORENTE, Jesús Pedro; ALMAZÁN TOMÁS, Vicente David (coords.). Museología Crítica y Arte Contemporáneo. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2003.) e publicado pela Universidad de Zaragoza.
  • 9
    Zuliani (2009ZULIANI, Stefania. Effetto museo: arte, critica, educazione. Turim: Bruno Mondadori, 2009., p. 59-83); Bawin (2014BAWIN, Julie. L’artiste commissaire, entre posture critique, jeu créatif et valeur ajoutée. Paris: Éditions des archives contemporaines, 2014.); Green (2018GREEN, Alison. When artists curate: contemporary art and the exhibition as medium. London: Reaktion Books, 2018.); e Fernández Lopez (2020FERNÁNDEZ LOPEZ, Olga. Exposiciones y comisariado: relatos cruzados. Madrid: Cátedra, 2020.).
  • 10
    Borba (2019BORBA, Andresa Gerlach. Sobre o ofício do curador pedagógico: gênese do termo, virada educativa e desdobramentos. Ícone: revista brasileira de história da arte, Porto Alegre, v. 4, n. 4, p. 218-239, 2019., p. 218-239).
  • 11
    Rodrigo (2007RODRIGO, Javier. Pràctiques dialògiques: interseccions de la pedagogia critica i la museologia crítica = Prácticas dialógicas: intersecciones entre la pedagogía crítica y la museología crítica = Dialogical practices: intersections between critical pedagogy and critical museology. Palma de Mallorca: Es Baluard Museu d’Art Modern i contemporani de Palma, 2007.).
  • 12
    Ribeiro dos Santos e Noronha (2018RIBEIRO DOS SANTOS, Renata; NORONHA, Elisa. Museos universitarios de arte en Brasil: instituticiones esenciales en la construcción del saber y la experiencia artística y estética. Cuadernos de Arte de la Universidad de Granada, Granada, v. 49, p. 69-87, 2018., p. 69-87).
  • 13
    Passaram por ali excelentes palestrantes, entre os quais quero destacar uma apresentação cujo conteúdo e abordagem vem muito a propósito: Hernández Velázquez (2019HERNÁNDEZ VELÁZQUEZ, Yaiza. Who needs ‘Exhibition Studies’?. In: ÁLVAREZ ROMERO, Ekaterina (coord.). Museología crítica: temas selectos. Reflexiones desde la cátedra William Bullock = Critical museology: selected themes. Reflections from the William Bullock lecture series. Ciudad de México: Museo Universitario de Arte Contemporáneo de la UNAM, 2019. p. 287-302., p. 287-302).
  • 1
    Professor da Universidade de Zaragoza, onde lidera o Observatório Aragonês de Arte na Esfera Pública, financiado pelo Governo de Aragão com recursos do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), e o projeto “Distritos culturais de museus, galerias, estabelecimentos e paisagens urbanas patrimoniais”, financiado pela Agência Estatal de Investigação (código PGC2018-094351-B-C41). E-mail: <jpl@unizar.es>.
  • 14
    Tradução: José Renato Margarido Galvão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    30 Nov 2020
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