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Apresentação

Foreword

Este número de Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material apresenta um substancial conjunto de 61 artigos, que abordam diversos estudos ligados à cultura material, aos museus, à conservação e restauração e à história.

A seção “Debates”, lançada em 1993 com a nova série dos Anais do Museu Paulista, e publicada pela última vez em 2007, volta com robustez reunindo ensaios que resultam das reflexões realizadas, ao longo de dois anos de atividades, no projeto temático “Coletar, identificar, processar, difundir. O ciclo curatorial e a produção de conhecimento”. Apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),3 3 Processo Fapesp nº 2.017/07366-1. é coordenado por Ana Gonçalves Magalhães, historiadora da arte e atual diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). O projeto temático reúne docentes e pesquisadores da USP e da Universidade Estadual de Campinas, com destaque para aqueles que integram os quadros dos quatro museus universitários da USP: Museu de Arte Contemporânea (MAC), Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), Museu Paulista (MP) e Museu de Zoologia (MZ).

A discussão sobre o ciclo curatorial está organizada por meio de quatro artigos base que problematizam o conceito de curadoria em museus, debatidos por nove convidados na perspectiva transdisciplinar que caracteriza o projeto. O artigo de Ana Magalhães e Helouise Costa (MAC) é discutido por María Isabel Baldassarre e Jesús Pedro Lorente e o de Camilo Vasconcellos (MAE) é comentado por Camila Wichers e Ilana Goldstein. Por sua vez, Maria Margaret Lopes, Manuelina Maria Duarte Cândido e Nelson Sanjad, em coautoria com Sue Anne Costa, tecem considerações sobre o artigo de Carlos Alberto Brandão, Kelli dos Santos Ramos, Mônica Antunes Ulysséa, Alvaro Doria dos Santos e Tamires de Oliveira Andrade (MZ). Por fim, o texto de Vânia Carneiro de Carvalho, Paulo César Garcez Marins e Solange Ferraz de Lima, docentes do MP, recebe a leitura crítica de Myrian Sepúlveda dos Santos e Cristina Meneguello.

Para Solange Ferraz de Lima, coordenadora do dossiê, o debate promovido “evidencia um cenário de desafios para a atividade curatorial hoje, no qual os museus universitários públicos cumprem um papel fundamental graças ao compromisso com a produção e com a difusão de conhecimento aliado à formação de novos profissionais”.4 4 Lima (2021, p. 3).

Na seção “Estudos de Cultura Material”, o periódico publica o dossiê “História da Urbanização no Brasil: novas propostas em arqueologia da paisagem”. Nove anos após a publicação do dossiê “Caminhos da história da urbanização no Brasil-Colônia”, no volume 20, número 1, de 2012,5 5 Disponível em: <https://bit.ly/3Czm6jg>. Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno volta a coordenar um conjunto de artigos de especialistas, resultado das pesquisas desenvolvidas no seio do grupo de pesquisa Vilas, Cidades e Territórios no século XVIII, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Segundo ela, também autora de um dos textos, os estudos difundem “as evidências empíricas que merecem debate por seu ineditismo e por convergirem para uma necessária releitura do Brasil em seu conjunto, inclusive nas suas interfaces com a América espanhola e com outros continentes”.6 6 Bueno (2021, p. 1).

Escritos por José Carlos Vilardaga, Clovis Ramiro Jucá Neto e José Ramiro Teles, Karen Freire, Renata Baesso Pereira e Rafael Augusto Silva Ferreira, Alice Pereira Barreto e Guilherme Silvério Dias, Damião Esdras Arraes, Nádia Mendes de Moura, Diogo Fonseca Borsoi, Carolina Gonçalves Nunes e Ivone Salgado, os artigos apresentam aos leitores, especializados ou não, uma gama de fontes, assuntos, metodologias e perspectivas historiográficas significativas para os estudos de história da urbanização no Brasil.

A cidade, a um só tempo considerada palco e artefato a mediar práticas sociais, também é temática privilegiada em artigos avulsos na seção “Estudos de Cultura Material”. As ações humanas flagradas em caminhos, ruas, equipamentos urbanos, serviços e memórias são analisadas por meio de múltiplas abordagens e temporalidades em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belém do Pará.

À luz da cartografia e da iconografia, Jorge Pimentel Cintra realiza uma reconstituição histórica dos caminhos percorridos por D. Pedro no dia 7 de setembro de 1822 e do sítio do Ipiranga por onde o regente teria passado. Aline Canuto da Silva aborda o processo de desmonte e formação da Catedral e da Praça da Sé, na antiga área central de São Paulo, entre 1903 e 1913, envolvendo disputas e interesses privados e públicos. Por sua vez, a trajetória social das duas principais vias que concentram lojas de moda popular na capital paulista, as ruas 25 de Março e José Paulino, é elaborada por Stephanie Guerra de Andrade desde as últimas décadas do Oitocentos.

O comércio também é a linha mestra de que se valeu Juliana Schmitt para discutir o contexto de desenvolvimento das grandes lojas de departamento e do processo de modernização do Rio Janeiro, sobretudo a partir do mercado de tecidos e artigos para o luto entre a segunda metade do século XIX e os anos iniciais do XX. Rafael Dias Scarelli se debruça sobre esse mesmo contexto carioca, analisando a estatuária pública produzida no Brasil e o papel da imprensa na mobilização da opinião pública.

Belém é alvo de dois artigos de autoria de Mateus Carvalho Nunes. No primeiro, escrito em parceria com Pietra Paes Barreto, são examinadas as correspondências do arquiteto José Sidrim como plataformas de observação sobre as transformações arquitetônicas da cidade em inícios do Novecentos. No segundo, em coautoria com Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes e Jorge Eiró, os elementos iconográficos e formais da apólice da empresa Port of Pará são tomados como vetores para refletir sobre a construção da memória urbana assente em traços de modernidade naquela mesma conjuntura.

Por fim, as cidades brasileiras visitadas por Robert Chester Smith foram o fio condutor do artigo de Sabrina Fernandes Melo, que discute a atuação do historiador da arte nos espaços urbanos que ele percorreu, buscando perceber como o projeto de catalogar e inventariar a arte e a arquitetura colonial brasileira dialogava com o projeto para estabelecer a ideia de um patrimônio nacional nas décadas de 1930 e 1940.

Se as abordagens foram embasadas em fontes variadas e originais, há uma gama de autores que elegeu tipologias documentais específicas - textuais, iconográficas e tridimensionais - como objeto de estudo para discutir questões atinentes tanto às práticas sociais intermediadas pela materialidade como aos processos de catalogação de acervos em instituições de guarda. Pedro Libanio Ribeiro de Carvalho examina os Livros de Tombo do Museu Nacional referentes às coletas da Comissão Rondon e à cultura material dos indígenas, a fim de compreender a transformação da escrita etnográfica na Primeira República. Também assentados em fonte textual, no caso o necrológio em homenagem a Primitivo Moacyr escrito por Afonso Taunay e publicado em 1942, Rosana Areal de Carvalho e Raphael Ribeiro Machado discutem as redes de sociabilidades intelectuais na época, articulando história, escrita e memória. As redes de sociabilidade, também políticas, e as práticas alimentares nas décadas iniciais na República brasileira são evidenciadas por Eliane Morelli Abrahão. Partindo de 57 cardápios e de fotografias da Coleção Washington Luís Pereira de Sousa, pertencente ao acervo do Museu Republicano Convenção de Itu - USP, a autora mostra como papéis efêmeros como os menus de banquetes podem ser tomados como documentos históricos.

A mobilização da fotografia como fonte iconográfica em vários suportes e seus agentes foram temas privilegiados em artigos escritos por estudiosos de várias áreas do conhecimento. Érico Monteiro Elias discorre sobre o perfil e a trajetória de Valério Vieira (1862-1941) na cena fotográfica do Brasil, examinando sua obra à luz das demais formas de expressão cultural e artística das primeiras décadas do século XX. Ancorando-se em ampla variedade de títulos da imprensa ilustrada publicados nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, Annateresa Fabris dedica-se a analisar o uso de processos de montagem fotográfica na imprensa brasileira, entre 1900 e 1940. Por sua vez, Claudia Costa Cabral reflete sobre o papel da fotografia na construção da historiografia da arquitetura moderna, além de se interrogar sobre a condição narrativa própria do catálogo decorrente da exposição “Latin American Architecture since 1945”, organizada por Henry-Russell Hitchcock para o Museum of Modern Art (MoMA) em 1955. Por fim, a partir de um editorial de moda da revista Claudia, em parceria com a Rhodia Têxtil, Gabriel Soares Cabral analisa a representação imagética da “mulher moderna” na década de 1960.

Entre os artigos centrados em documentos tridimensionais, destaca-se o de Patrícia Dalcanale Meneses, que discute a relação entre artefatos zoológicos e a popularização do discurso científico a partir do caso da empresa M.&E. Natté, produtora de ventarolas decoradas com beija-flores taxidermizados, no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Irina Aragão dos Santos traça a trajetória de um colar de ferro, partindo de seu destino final, o Museu Histórico Nacional, até o seu possível ponto de origem, a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema. Os momentos de inovação pelos quais passou tal estabelecimento, entre 1810 e 1926, são analisados no estudo de Fernando José Gomes Landgraf, Adler Homero Fonseca de Castro, Paulo Eduardo Martins Araujo, Luciano Bonatti Regalado, por meio de três canhões de ferro nela produzidos. O artefato canhão também é o cerne das preocupações de Jaqueline de Jesus Hoiça e Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes. As autoras discutem a disputa em torno do canhão El Cristiano, que faz parte da cultura material da Guerra do Paraguai, inserindo-o no debate internacional relacionado à repatriação de patrimônio cultural.

As questões patrimoniais igualmente ganharam proeminência em três artigos. Flávia Olegário Palácios, Yasmim Silva de Almeida, Marcela Cristiane Sousa Raiol e Yasmin Caldas Moraes apresentam o processo de documentação dos dutos verticais metálicos nas fachadas do Centro Histórico de Belém com vistas a subsidiar a salvaguarda e preservação desses objetos de ferro. Luciana da Silva Florenzano e Rosina Martins Trevisan Ribeiro identificam as intervenções cromáticas em bens edificados no Brasil a fim de contribuírem com a discussão teórica acerca do problema das cores de superfícies arquitetônicas do patrimônio cultural. Por sua vez, o patrimônio imaterial é abordado no campo das negociações políticas no artigo de Caion Meneguello Natal, redigido em francês. Analisando o I Congresso Internacional de Artes Populares, de 1928, o autor evidencia o papel das “artes populares” e dos saberes artesanais como instrumentos diplomáticos na conjuntura geopolítica europeia de cunho nacionalista do período.

No campo das práticas sociais e representações na época moderna, três artigos se dedicam a refletir sobre questões sociais, religiosas, jurídicas e morais. Abordando a cultura material a partir de fontes literárias, Luciana da Silva se debruça sobre a literatura de cordel produzida por frei Lucas de Santa Catarina, investigando a valorização das aparências na sociedade lusitana da primeira metade do Setecentos. Fernanda Deminicis de Albuquerque e Marcello José Gomes Loureiro problematizam os usos políticos da representação pictórica do episódio bíblico conhecido por “Susana e os velhos”, do livro do profeta Daniel, usos feitos pelas monarquias europeias do Antigo Regime para legitimar o exercício da justiça e do direito régio. Maria Emilia Monteiro Porto, por sua vez, analisa a tela “A morte do padre Filipe Bourel”, pertencente ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, procurando desvendar os elementos internos da pintura e os diálogos estabelecidos com a tradição artística, além de refletir sobre a historicidade da pintura devota do século XVIII.

Dois artigos voltados à cultura material e à cultura escrita completam o conjunto da seção “Estudos de Cultura Material”. Leandro Penna Ranieri e Anita Fattori buscam compreender a relação entre a materialidade da escrita e a escrita cuneiforme na antiga Mesopotâmia a partir de dois estudos de caso: os tabletes de argila em um contexto preciso de relações administrativas e os relevos parietais palacianos. Por sua vez, André de Melo Araújo analisa os artefatos produzidos em oficinas de impressão europeias entre os séculos XVI e XVIII, atualmente pertencentes à coleção de obras raras da Biblioteca Central da Universidade de Brasília. Por meio do estudo da materialidade dos documentos, dos processos de produção gráfica e editorial, das formas de organização textual e visual dos impressos, além da comparação com obras coetâneas, o autor salienta como fatores de ordem técnica, econômica e cultural condicionavam a confecção de impressos no período moderno.

A seção “Museus” é composta por sete artigos que percorrem instituições na França, Estados Unidos, México, Argentina e Brasil, lançando luz sobre acervos, artistas, métodos de catalogação, exposições e público. Escrito em francês, o artigo de Leandro Benedini Brusadin convida a refletir sobre os conceitos e as representações de hospitalidade e de hostilidade na exposição temporária “Persona Grata”, inaugurada em outubro de 2018, no Musée National de l’Histoire de l’Immigration, em Paris, e na exposição de longa duração da instituição. Fundamentando-se em extensa pesquisa conduzida nos Archives Nationales de France e nas teorias sobre a consagração artística, Ana Paula Cavalcanti Simioni discute as possibilidades de reconhecimento dos artistas latino-americanos na Paris modernista (1910-1947). Escrito originalmente em português, o texto ganhou versão inglesa, sendo publicado nas duas línguas. Também em inglês está disponível o artigo de Sophia Luu e Ellen Mckinney, que examinam e interpretam os significados simbólicos, materiais, cores e técnicas de fabricação de um quimono yukata obi, com vistas a qualificar a coleção de têxteis japoneses do acervo da Iowa State University Museums.

Dois artigos se valem da perspectiva decolonial para refletir sobre as coleções formadas em museus sul-americanos desde o século XIX. A partir do levantamento de objetos dos povos Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena, presentes em artigos da Revista do Museu Paulista e de inventários antigos, Marília Xavier Cury propõe, em conjunto com a curadoria dos indígenas, atribuir novas interpretações aos artefatos, contrastando a autorrepresentação indígena com a representação etnográfica, própria das catalogações tradicionais. Leila Salem e Rodrigo Cabrera, por sua vez, discutem a formação das disciplinas acadêmicas de assiriologia e egiptologia no contexto orientalista do século XIX e o papel dos museus na consolidação dos discursos imperialistas por meio da aquisição de coleções na Europa e nos Estados Unidos. Partindo da análise de casos de museus argentinos, os autores ressaltam como a prática colecionista foi emulada pelas próprias elites daquele país, reforçando a metáfora colonial.

Por fim, a questão da comunicação museal foi abordada por Jessica Norberto Rocha, Luisa Massarani, Lara Mucci Poenaru, Alanna Dahan Martins e Alba Patricia Macías-Nestor, que apresentam dados empíricos e analíticos sobre a experiência de estudantes no Museu de Ciências da Universidad Nacional Autónoma de México, atentando para suas interações com os textos expositivos. Além disso, André Fabrício Silva se volta para outra forma de relação, a cibernética, entre o público e os museus, abordando a experiência virtual como ferramenta de ação das instituições em contextos pandêmicos.

A seção “Conservação e Restauração” conta com dois estudos que focalizam técnicas inovadoras no tratamento e adaptação de ambientes voltados à guarda de acervos e na recuperação de fontes documentais. Anna Laura Canuto Rocha de Andrade e Andrea Cavicchioli analisam a dinâmica microclimática dos espaços internos do MP-USP e do Museu Casa da Xilogravura, em Campos do Jordão, São Paulo, demonstrando a viabilidade de caminhos alternativos para a conservação de acervos, por vezes de simples implementação, sob a ótica da sustentabilidade. Ana Cristina Torres Campos escrutina, por sua vez, o processo de tomada de decisões no restauro de um manuscrito iluminado setecentista, no âmbito do projeto “A materialidade dos documentos pintados: entre a história e a preservação”, coordenado por Márcia Almada, demonstrando como as ações, calcadas em práticas consolidadas na área, guardam as marcas de quem age sobre o objeto.

A seção “Documentos” finaliza o volume apresentando o artigo em que José Lira, Jonas Delecave, Victor Próspero e João Bittar Fiammenghi discutem o papel, a agência e as potencialidades dos acervos de arquitetura e urbanismo nas atividades de ensino e pesquisa na área, a partir da experiência didática na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Desejamos que a leitura deste volume de Anais do Museu Paulista enseje novas reflexões e prossiga em sua missão de fomentar os debates nos campos disciplinares a que sua missão se volta.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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