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O silêncio dos inocentes: o papel dos animais em narrativas expositivas 1 1 1. Este trabalho apresenta parte dos resultados da dissertação de mestrado intitulada “Musealização da Zoologia: narrativas evolutivas construídas com animais”, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo e defendida em setembro de 2015.

RESUMO

Os animais são entidades polissêmicas que se tornaram objetos de museus tão cedo as coleções surgiram. Neste trabalho, o animal é entendido como interface entre duas áreas: enquanto objeto de estudo da zoologia e também como musealia. Discutem-se, então, as funções comunicativas exercidas por animais em exposições contemporâneas de museus de história natural. Para tanto, foram descritas e analisadas exposições de três museus sul-americanos de história natural: “Las aves” - Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernadino Rivadavia; “Tiempo y materia: laberintos de la evolución” - Museo de La Plata; e “Conchas, corais e borboletas” - Museu Nacional do Rio de Janeiro. Nossa análise sugere que a construção teórica das narrativas está restrita aos textos e que os animais emprestam suas estruturas para ilustração, servindo como evidências da realidade e fornecendo materialidade da teoria, restritos ao seu apelo estético, tridimensionalidade e capacidade de atração de público.

PALAVRAS-CHAVE:
Animais em exposição; Musealia; Museus de História Natural; Musealização

ABSTRACT

Animals are polysemic entities that became objects of museums as early collections have emerged. For this study, the animal is understood as interface between two areas: as cientific object of zoology stydies and as musealia. We discuss then the communication functions performed by animals in contemporaneous exhibitions of natural history museums. Therefore, it was described and analyzed in three exhibitions of South American natural history museums: Las aves - Museo de Ciencias Naturales Bernadino Rivadavia; “Tiempo y materia: laberintos de la evolución” - Museo de La Plata; e “Conchas, corais e borboletas” - Museu Nacional do Rio de Janeiro. Our analysis suggests that theoretical construction of the narratives is restricted to texts and animals lend their structures for illustration, serving as evidence of reality and providing materiality for the theory, restricted to its aesthetic appeal, three-dimensionality and capacity of public attraction.

KEYWORDS:
Animals on exhibits; Musealia; Natural History Museum; Musealization

1 Introdução

A promoção do encontro com o objeto diferencia os museus de outras instituições sociais, científicas e culturais.4 4 Hooper-Greenhill (1995). Independentemente de sua natureza, como um objeto de culto, utilitário ou de deleite, animal ou vegetal, ou mesmo algo que não seja claramente concebido como objeto, uma vez dentro do museu, este assume o papel de evidência material ou imaterial de uma comunidade e do seu meio. Representa uma fonte de estudo e de exibição, adquirindo uma realidade cultural específica. Neste contexto, o museólogo checo Zbynek Zbyslav Stránský, em 1970, propôs o termo musealia para designar os elementos que, a passar pelo processo de musealização, adquiriram o status de objetos de museus. Entendidos então como musealia, tais objetos nos museus possuem múltiplas significações e funções.5 5 Desvallées; Mairesse (2013).

Neste trabalho, parte-se de um tipo específico de objeto de história natural: o animal, a partir do qual se discutem algumas das funções comunicativas exercidas por estes em exposições de museus de história natural. Assim, busca-se contribuir com reflexões sobre os processos de musealização desse tipo de objeto e sobre os múltiplos significados dos objetos na construção de narrativas expositivas (e como suas potencialidades podem ser silenciadas).

1.1 Animais como entidades polissêmicas

Antes de se constituírem como acervo de museus e objetos de estudo, os animais estiveram profundamente relacionados com as práticas culturais humanas, representados em uma ampla variedade de produtos culturais, tanto visuais, como textuais e narrativos.6 6 Alberti (2011). Existem relações históricas entre diferentes civilizações e animais, para além das necessidades de sobrevivência humana, como alimentação, transporte e vestuário. Evidências arqueológicas demostram a utilização de partes do corpo de animais em decoração, vitrines ou rituais.7 7 Kalof (2007).

No campo das representações, Berger ressalta que o primeiro tema de pintura humana foi um animal, provavelmente feita com sangue também animal, o que sugere uma relação metafórica entre tais seres vivos.8 8 Berger (1980). Animais representam oito dos doze signos do zodíaco e os doze signos do horóscopo chinês. Entre os gregos, o símbolo de cada uma das doze horas do dia era um animal (a primeira hora um gato e a última um crocodilo). Nas previsões dos hindus, a Terra era carregada nas costas de um elefante e este sobre o casco de uma tartaruga. Como metáfora de comportamentos e características humanas, pode-se citar que, no período medieval, grupos sociais como camponeses, judeus e mulheres eram descritos utilizando-se de tais metáforas: a aparência física dos camponeses era caracterizada a partir dos animais (“dentes como de um javali”, “nariz de um gato” e “focinho de um lobo”); seu comportamento, descrito como estúpido e agressivo, era associado a excrementos animais; e o trabalho do camponês foi considerado semelhante ao de animais domésticos. Evidencia-se que as representações são particularmente interessantes, pois funcionam como marcadores culturais, refletindo historicamente valores e normas sociais, uma vez que essas impressões e modos de apresentação dos animais servem para reforçar ou questionar normas culturais estabelecidas.9 9 Kalof(2007).

A exemplo dos referidos marcadores, John Berger, no texto “Why look at animals?”,10 10 Berger (1980). apresenta a Revolução Industrial como um marco na marginalização dos animais nas sociedades modernas. Os animais, utilizados também como máquinas, foram gradativamente afastados dos centros urbanos que emergiam no período, tendo sua força de trabalho substituída por máquinas a vapor e sua presença diminuída pela perda de áreas naturais. Posteriormente, na chamadas sociedades pós-industriais, eles foram tratados como matéria bruta. A exploração da natureza pela humanidade não era uma novidade, mas, no século XIX, tornou-se legítima a exploração do mundo natural em escala industrial. Dentro do novo modo de produção econômica, os animais como fonte de alimento foram processados como commodities e manufaturados.11 11 Berger (1980), Silva (2013).

Há, entretanto, também um processo cultural de marginalização dos animais, ainda mais complexo do que o afastamento físico dos centros urbanos. Mesmo distantes, os animais não desapareceram do nosso imaginário, uma vez que alguns foram cooptados para dentro das famílias ou para o espetáculo. Os pets são populares desde o século XVI, como um costume de da corte, como reflexos de exibição, prestígio e suportes emocionais para uma realeza solitária e privilegiada, ou ainda anteriormente, no campo do espetáculo, com as lutas entre animais e animais e prisioneiros como espetáculo, que datam da Antiguidade. Na contemporaneidade, tem-se o emblemático exemplo dos animais presentes nas produções da The Walt Disney Company: mesmo em tempos tão díspares, nas ações do espetáculo, a mesquinhez das práticas sociais foi universalizada ao ser projetada sobre o reino animal, em que todas as características dos animais são silenciadas e eles apenas atuam como representantes de características humanas.12 12 Berger (1980), Kalof (2007), Silva (2013).

1.2 Animais musealizados

As relações históricas das civilizações com os animais evidenciam o caráter polissêmico desses seres. Em museus, eles permitem múltiplas interpretações, desde ícones até dados.13 13 Alberti (2005). Neste trabalho, os animais são entendidos como interface entre duas áreas científicas: a museologia e a zoologia. Enquanto a museologia tem o animal como objeto a ser preservado, ressignificado e institucionalizado em coleções e exposições, a zoologia tem nesse tipo de organismo seu foco de estudo, em diferentes campos de pesquisa (da história natural à sistemática filogenética).

Historicamente institucionalizados, os animais tornaram-se objetos de museus, tão cedo as coleções surgiram. De forma que a trajetória dos museus de história natural está intimamente relacionada com a pesquisa em zoologia. A zoologia teve seu apogeu dentro dos museus, a partir da comparação de espécimes preservados e, mesmo considerando-se que os estudos sobre a diversidade datam da Antiguidade, apenas a partir das coleções foi possível o estudo comparativo mais aprofundado e o florescimento dessa área do conhecimento.14 14 Asma (2001), Farber (1977), Mayr (1982), Whitehead (1971).

Nos museus de história natural, a entrada do animal está condicionada, inicialmente, à mudança de status de “vivo” para “morto”. É por meio da morte ou perda de suas especificidades essenciais e posterior conservação que o espécime torna-se apto a integrar os dispositivos destinados à narrativa museológica.15 15 Loureiro (2007). Posteriormente, diferentes técnicas são mobilizadas para reconfigurar e preservar os restos animais, de modo a torná-los estáveis e legíveis.16 16 Alberti (2011). Há uma seleção do que se irá preservar: pele, esqueleto, carapaça, concha, couro etc.; e um mesmo animal pode se tornar “diferentes objetos”: uma onça, por exemplo, pode ter o esqueleto preservado separadamente da pele e das vísceras (até mesmo em coleções diferentes); insetos podem ser preservados juntos a outras centenas em lotes em via úmida, ou transpassados por alfinetes e preservados em via seca, individualmente em gavetas entomológicas. Pode-se também realizar a extração de parte desses animais para análises de material genético, que tem alimentado coleções dos museus contemporâneos.

A multifacetada natureza do significado e valor simbólico, que pode ser definido no estudo de um objeto de museu, constantemente desafia o campo das definições museológicas.17 17 Maroevic (1995). O animal, ao tornar-se musealia, sofre uma série de procedimentos relacionados a práticas humanas, e sua categorização no campo da museologia promove debates: Van Mensch (1984)VAN MENSCH, Peter. Society - Object - Museology. ISS ICOFOM Studies Series, Leiden, n. 6, p. 17- 23, Oct. 1984. entende a taxidermia como um tipo de “artesanato” e o animal taxidermizado como um artefato; já Alberti considera que toda taxidermia é uma forma de arte;18 18 Alberti (2011). Silva,19 19 Silva (2013). em consonância com Pearce,20 20 Pearce (1994). afirma que um animal taxidermizado numa vitrine de um museu de história natural não representa um animal morto, mas sim a natureza musealizada, configurando-se como um elemento de cultura material.

Com tal pluralidade de significados, ao serem introduzidos nos acervos dos gabinetes de curiosidades e museus, os animais tornam-se representantes de uma realidade e do seu significado dentro de uma cultura. A musealização imprimiu novos usos, significados e referências aos objetos, por meio das operações relativas a técnicas de sistematização da informação, preservação e exposição; o objeto torna-se musealia. Ocorre a retirada de sua função primordial, a descontextualização espaço-temporal e a alteração de seu código denotativo. Submetidos ao conjunto de eventos da cadeia operatória da museologia, os objetos (independentemente de sua natureza) passam a integrar conjuntos narrativos destinados à reconstituição espaço-temporal de seus contextos originários ou novos discursos criados por seus curadores. Nesse processo, codificado pela área de conhecimento à qual o objeto encontra-se vinculado, exemplaridade e autenticidade desempenham papel fundamental na determinação institucional e na técnica da “verdade” materializada.21 21 Desvallées; Mairesse (2013), Loureiro (2007), Maroevic (1995).

No que diz respeito às exposições dos museus, inicialmente, os animais serviram como representantes do bizarro ou do exótico, foram objetos fetiche e troféus dos viajantes para terras longínquas. Contudo, ao tornarem-se objeto de estudo, também se transfiguraram em representações da ciência em exposição. No século XVIII e início do XIX, animais eram dispostos em séries enfileiradas, com etiquetas com o nome científico, representando a primazia da pesquisa taxonômica e do papel dos humanos frente à ordenação e à dominação do ambiente natural. As novas disciplinas do conhecimento no século XIX trouxeram a contextualização das exposições dos museus. Assim como o animal não era mais visto como apenas um tipo, sua apresentação nas exposições passou a remeter a hábitos em vida na natureza (dioramas) ou ao grupo zoológico em que se insere, em uma ótica comparativa ou temporal.

No presente, encontramos nos museus de história natural animais representados de diferentes modos. É possível ainda observar séries tipológicas que remetem à taxonomia - prática científica fundamental na atualidade, especialmente diante da perda sem precedentes da biodiversidade e do impedimento taxonômico22 22 “Impossibilidade de cumprir a tarefa de descrever a biodiversidade devido ao baixo número de sistematas” e taxonomistas. Marques; Lamas (2006). -, bem como taxidermias de animais que contam a biografia daquele indivíduo em vida, com o urso-polar Knut no Museum für Naturkunde (Berlim/Alemanha) ou a ovelha Dolly no National Museum of Scotland (Edimburgo/Escócia), que remetem a relações afetivas e simbólicas que esses indivíduos estabeleceram com o público e sua presença na mídia, ainda em vida.23 23 Alberti (2011); Van Mensch (2011).

No que tange às técnicas de preservação, a partir da primeira metade do século XIX até a contemporaneidade, a atenção dos taxidermistas voltou-se justamente para o avanço das técnicas de exibição de espécimes, graças, em parte, à demanda do público por mostras mais realistas e dinâmicas.24 24 Péquignot (2006), Silva (2013), Van-Präet (2004).

Assim, ao observarmos os animais, fica evidente que esses tipos de objetos demonstram a evolução das funções, práticas museológicas e mudanças nos significados de suas coleções.25 25 Alberti (2011). No entanto, ressalta-se uma característica bastante importante desse acervo: as etapas da cadeia operatória da museologia interferem diretamente no significado dos animais. Diferentemente de uma obra de arte ou um artefato arqueológico que, embora possam ser recontextualizados, não mudam suas características físicas ou propriedades, os procedimentos de preservação de animais em museus definem literalmente que partes desse tipo de objeto estarão disponíveis para pesquisa e exposição, determinando então quais informações (e em que nível) poderão ser acessadas.

2 Abordagem metodológica

Buscando entender como a polissemia dos animais tem sido expressa em exposições contemporâneas de museus de história natural, foram identificadas diferentes funções comunicativas destes na construção de narrativas expositivas. Para tanto, foram estudadas três exposições em tradicionais museus sul-americanos: Museu Nacional do Rio de Janeiro - MNRJ (Rio de Janeiro/Brasil); Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernadino Rivadavia - MACN (Buenos Aires/Argentina); e Museo de La Plata - MLP (La Plata/Argentina).

Os critérios que definiram a escolha desses museus foram: (i) compartilham o momento histórico de fundação (século XIX, inseridos na política da expansão dos museus fora do eixo Europa-Estados Unidos); (ii) apresentam relevância histórica e contemporânea na pesquisa em ciências naturais, especialmente zoologia; e (iii) estão abertos ao público e recebem expressivo número de visitantes (mais de 100 mil por ano).

Diante da magnitude desses museus e das diferentes exposições de longa duração disponíveis concomitantemente, foram escolhidas as exposições que abordavam a teoria evolutiva e que foram concebidas e inauguradas depois dos anos 2000, pois por um lado oferecem maior probabilidade de preservação dos documentos que nortearam e registraram o processo curatorial e, por outro, foram concebidas dentro de um mesmo arcabouço teórico-científico.

Dessa forma, foram eleitas as seguintes exposições: Conchas, corais e borboletas (MNRJ), “Las aves” (MACN) e “Tiempo y materia: laberintos de la evolución” (MLP). Tais exposições foram registradas nas visitas técnicas que ocorreram nos meses de fevereiro e julho de 2014. Nessas visitas, foi realizado registro fotográfico detalhado de todos os objetos, além de textos, legendas e aparatos interativos. Fotografias panorâmicas e de vistas gerais de vitrines e setores das exposições também foram feitas facilitando a descrição das mesmas.

Considerando que, além de animais, nas exposições estudadas existem outros tipos de acervos, bem como diferentes recursos expositivos (textos, imagens, vídeos, modelos, mobiliário etc.), foi necessário o desenvolvimento de uma metodologia objetiva e replicável para descrição das exposições. Essa metodologia foi descrita em Soler26 26 Soler (2015). e está ancorada em três elementos: (i) Fichas; (ii) Matrizes Conceituais; e (iii) Planta Baixa. As fichas descrevem o conceito da exposição, além de trazer aspectos mais gerais, como contexto de produção, ficha técnica e financiamento, e foram baseadas no livro L’Environnement entre au musée (1992), do autor Jean Davallon e colaboradores. As matrizes conceituais são quadros descritivos que identificam todos os recursos expositivos e acervos das exposições, relacionando-os com conteúdos e conceitos, posicionando-os no espaço. As plantas baixas localizam o acervo e demais recursos no espaço, permitindo estudos da área de circulação e acessos e o encadeamento dos conteúdos.

3 Estudos de caso: animais em exposição

A escolha de uma teoria científica que estrutura as narrativas permitiu correlacionar a apresentação de conceitos e acervos expostos. Além do acervo prioritariamente zoológico e a concepção recente, as três exposições analisadas abordam a teoria da evolução. A teoria evolutiva foi selecionada por desempenhar um papel central e organizador do pensamento biológico e ser indispensável para a compreensão da grande maioria dos conceitos e teorias encontradas nas ciências biológicas.27 27 Farber (2003), Pereira; Bizzo; Marco (2013). Estudos que utilizam métodos diferentes, focam em diferentes ordens de magnitude, analisam a natureza em diferentes intervalos de tempo ou em diferentes categorias espaciais são unificados pela abordagem evolutiva: paleontologia, biogeografia, fisiologia, ecologia, sistemática, embriologia, genética e citologia são disciplinas distintas mas encerram suas pesquisas sob tal teoria.28 28 Farber (2003). Além disso, as ideias de Charles Darwin influenciam o mundo contemporâneo e em áreas do conhecimento consideradas até então distantes da própria biologia. Da filosofia à programação de computadores, pelo que é conhecido como programação darwiniana, e da psicologia à economia, as ideias de Darwin têm permeado a visão de mundo atual.29 29 Landim; Moreira (2009).

O MACN possui longa tradição no estudo de aves e difusão de seu conhecimento. A vasta coleção da Divisão de Ornitologia encerra mais de 70 mil espécimes tombados e constitui uma das mais importantes coleções da instituição e uma referência mundial no estudo de aves.

A exposição “Las aves” é a montagem contemporânea, inaugurada em 2012, para a qual foram selecionados mais de setecentos espécimes de acordo com valor histórico e educativo, singularidade e estado de conservação, além daquelas espécies que dispunham do registro do som, que também faz parte do acervo da coleção ornitológica do museu.

“Las aves” propõe em seu discurso uma trajetória evolutiva sobre a origem e diversificação das aves, com principal enfoque na diversidade da avifauna argentina. Estão presentes também detalhes sobre a história natural dos animais expostos e a discussão sobre sua conservação. As vitrines foram montadas de modo a ressaltar a beleza estética das aves, bem como há espaço de destaque para aspectos históricos e objetos emblemáticos do acervo. Há, por exemplo, um casal de gavilanes mixtos (Circus buffoni) com seus filhotes e ninho taxidermizados, coletados no final do século XIX, um quivi (Apteryx owenii, espécie endêmica da Nova Zelândia), um chorlo esquimal (Numenius borealis), coletado em 1863, e, atualmente, extinto da natureza, além de aves do paraíso, quetzales e mais de trezentas espécies de aves argentinas. Essa exposição apresenta-se também como um espaço educativo, em que crianças e adultos podem desfrutar de oportunidades diferenciadas para explorar e descobrir o mundo desses animais (Figura 1).

Figura 1
Setor "A revolução plumada" da exposição "Las aves" do Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia. Fotografia de Mariana Galer Soler.

Desde o início dos anos 2000, o MLP tem desenvolvido um programa de renovação de suas exposições de longa duração, atendendo à demanda do público, assim como a necessidade de atualizar os conteúdos e recursos expositivos apresentados, sem mudar a estrutura conceitual de salas dispostas em uma planta oval e conectadas entre si.30 30 Fundación (2003).

A exposição “Tiempo y materia: laberintos de la evolución” foi inaugurada em 2004 e é norteada pelo seguinte questionamento: “Qué tienen en común una roca, una planta, el Diplodocus y el hombre?”. A partir dessa questão foram desenvolvidos quatros setores, que não estão articulados dentro de um discurso em ordem cronológica ou linear, ao contrário, referem-se a constantes mudanças e transformações que conduzem a evolução do mundo natural, a saber: (i) Caos e Ordem; (ii) Natureza da matéria; (iii) Ciclos da matéria; e (iv) Evolução da matéria orgânica. Dessa forma, a exposição “brinda al visitante conceptos y herramientas didácticas que le permiten reflexionar acerca de como se produce la evolución, compreender los mecanismos que le dan lugar y elazar la historia evolutiva de la cual es parte su mundo cotidiano”31 31 Reca (2004). (Figura 2).

Figura 2
Vista geral da exposição "Tiempo y materia: laberintos de la evolución" - Museo de La Plata. Fotografia de Mariana Galera Soler.

Cabe destacar que os conceptores de “Tiempo y materia” buscavam uma forma diferente de aproximação do conhecimento, apresentando uma exposição moderna ao incorporar recursos tecnológicos e interativos, mas também evocando a presença de objetos históricos do MLP. A exemplo disso, associado a um discurso articulado e contemporâneo, a exposição comporta um importante componente histórico: a réplica do Diplodocus. Trata-se de uma réplica de um dinossauro saurópode que viveu no período Jurássico da América do Norte, com mais de 20 metros de comprimento. Ainda que recontextualizado no discurso expositivo de “Tiempo y materia”, o Diplodocus faz parte do histórico do MLP, desde 1912, representando uma das maiores montagens de réplicas do início do século XX e, ainda hoje, a única réplica desse gênero de dinossauro na América Latina.

Por fim, a exposição “Conchas, corais e borboletas” é a mais recente estudada. Aberta ao público em 2013, representa um novo projeto para as exposições de longa duração do Departamento de Invertebrados e do Departamento de Entomologia do MNRJ.

O processo de concepção e elaboração da exposição foi longo (mais de cinco anos) e intenso, uma vez que congregou pesquisadores-curadores representantes dos diferentes laboratórios de pesquisa dos departamentos envolvidos. Foram realizadas reuniões com o grupo geral de conceptores e, mais sistematicamente, reuniões individuais entre o pesquisador-curador de cada setor e profissionais do setor de museologia, que coordenaram o projeto expositivo. A presença de curadores que são pesquisadores especialistas em grupos determinados grupos taxonômicos e sua autonomia na concepção são notavelmente marcadas na construção da narrativa expositiva de “Conchas, corais e borboletas”, uma vez que se observam setores que pouco dialogam conceitualmente entre si, mas que estão unificados por um projeto museográfico, principalmente pela comunicação visual e mobiliário comum.

Assim, os setores da exposição estão organizados taxonomicamente, de modo linear, e representam os grandes grupos de invertebrados (filos: Porifera, Cnidaria, Mollusca, Echinodermata, Arachnida, Crustacea e Insecta). Mesmo diante da especificidade de cada setor, é possível identificar algumas congruências nos respectivos discursos expositivos: (i) apresentação geral do grupo (filo) e diferenciação de suas classes; (ii) número de espécies no grupo e representatividade dentro da diversidade zoológica conhecida; (iii) relações entre humanos e o grupo, especialmente quanto a temas relacionados à conservação ambiental e saúde (prevenção de acidentes e bioprospecção de fármacos); e, principalmente, (iv) expressivo aporte de acervo (animais) para mostrar a diversidade dentro de cada grupo representado (Figura 3).

Figura 3
Vista geral da exposição "Conchas, corais e borboletas" - Museu Nacional do Rio de Janeiro. Fotografia de Mariana Galera Soler.

3.1 Animais e a comunicação de conceitos científicos

Embora com diversos pontos congruentes, as exposições analisadas representam três construções distintas de narrativas evolutivas. “Las aves” e “Conchas, corais e borboletas” são exposições pautadas essencialmente em grupos zoológicos - aves e invertebrados, respectivamente - que utilizam a teoria evolutiva como elemento estruturador e explicativo da narrativa e, consequentemente, dos conteúdos e recursos expositivos. Já em “Tiempo y materia” o conceito de evolução é estendido não apenas à evolução biológica, mas para os diversos processos de transformação da matéria no universo. A presença de diferentes tipologias de acervos, como geológico (minerais e rochas), paleontológico (fósseis e réplicas) e zoológico ilustram tais transformações e, raramente, representam seus contextos taxonômicos originais.

Buscando comparar direta e objetivamente as exposições, foram elencados os conceitos evolutivos compartilhados pelas narrativas expositivas estudadas. Assim, foram identificados 11 conceitos, a saber: (i) Adaptação; (ii) Ancestral Comum; (iii) Biodiversidade; (iv) Cladograma; (v) Colonização; (vi) Evolução; (vii) Extinção; (viii) Filogenia; (ix) Fósseis; (x) Origem do Grupo; e (xi) Tempo Geológico.

A presença de conceitos evolutivos compartilhados corroborou a escolha das exposições por abordarem uma concepção contemporânea de evolução e seu posicionamento dentro de museus de história natural. Exemplos disso são os termos como “filogenia” e “cladogramas”, que se referem a métodos de representação de relações de parentesco que surgem na segunda metade do século XX, cujo cerne da proposta é “as classificações biológicas devem ser um reflexo inequívoco do conhecimento atual sobre as relações de parentesco entre os táxons”.32 32 Henning (1966) apud Amorim (2002).

O termo “biodiversidade” é ainda mais atual, considerando-se que teve origem durante o National Forum on BioDiversity, em 1986, organizado pela National Academy of Sciences e pela Smithsonian Institution. Os resumos do encontro foram publicados dois anos depois com o título de BioDiversity, sendo mais tarde utilizado por outros autores de forma mais “simples” (com o “d” em minúsculo) Biodiversity, tornando-se um best-seller da National Academy Press.33 33 Wilson (1997).

Em contrapartida, os “fósseis” estão presentes em exposição desde os gabinetes de curiosidades, sejam como objetos de fetiche, sejam como evidências materiais do processo evolutivo. Historicamente, nos museus, ressalta-se a figura de Georges Cuvier e sua pesquisa com grandes mamíferos fósseis no Muséum National d'Histoire Naturelle (Paris, França), ainda no século XVIII.34 34 Lopes (1999).

Além de marcadores cronológicos das narrativas expositivas, os conceitos compartilhados pelas três exposições analisadas podem ser observados do ponto de visa quantitativo, o que também sinaliza similaridade entre as exposições, bem como dá indícios de como as narrativas foram construídas.

Dessa forma, tem-se que os 11 conceitos compartilhados pelas exposições em questão apareceram 45 vezes nas narrativas, o que significa que um mesmo conceito foi representado mais de uma vez em cada uma das exposições. A exposição “Conchas, corais e borboletas” possui o maior número de representações de conceitos evolutivos (18), em oposição à exposição “Tiempo y materia”, que representou cada um dos 11 conceitos apenas uma vez, com exceção do conceito de “ancestral comum”, representado duas vezes.

Dos conceitos compartilhados, aquele que foi representado em maior número de vezes foi o conceito “cladograma”, que apareceu seis vezes ao longo das três exposições estudadas (Figuras 4A, B e C).

Figuras 4A, B e C
Diferentes representações do conceito de cladograma. Em A, painel Classificación de las Aves. Un poco de orden en tanta diversidad, da exposição “Las aves”. Em C, gráfico com árvore com as relações entre grupos de animais e proporção quanto ao número de espécies, da exposição “Conchas, corais e borboletas”. Em C, texto Universalidad do código genético y diversidad e cladogramas ilustrados, da exposição “Tiempo y materia”. Fotografias de Mariana Galera Soler.

A partir dos conceitos elencados e considerando os tipos de recursos expositivos disponíveis, foram identificadas cinco categorias que sintetizam os suportes dos conceitos evolutivos compartilhados nas exposições estudadas. As categorias reconhecidas foram:

1. Texto: conceitos expressos apenas por texto.

2. Objeto: a observação (ou interação) com os objetos (acervos) ou conjunto de objetos (animais taxidermizados, réplicas ou dioramas) permite a interpretação (ou percepção) do conceito. Podem existir legendas.

3. Texto + Gráfico: conceitos são apresentados por meio de textos ilustrados com fotografias, esquemas, gráficos, desenhos ou ilustrações científicas.

4. Texto + Objeto: texto explicativo que apresenta o conceito, sendo que o objeto (ou conjunto de objetos) serve de apoio à compreensão e ilustração do conceito. Tais textos não são legendas dos objetos, pois trazem informações adicionais, que não podem ser observadas no objeto.

5. Texto + Gráfico + Objeto: a representação do conceito é realizada pela interpretação combinada de textos explicativos, imagens, gráficos, desenhos ou fotografias associados a um objeto (ou conjunto de objetos).

Diante dessas categorias, tem-se que as categorias “3 - Texto + Gráfico” e “5 - Texto + Gráfico + Objeto” foram aquelas mais utilizadas ao longo das exposições estudadas. Analisando-se individualmente cada uma das exposições, notou-se também a prevalência dessas categorias, com exceção da “Tiempo y materia”, em que prevalecem as categorias “1 - Texto” e “3 - Texto + Gráfico”.

Demonstra-se assim a importância dos textos para comunicação de conceitos evolutivos nessas exposições. Os animais (acervo zoológico, assim como os demais tipos de acervos), bem como os gráficos (desenhos, gráficos, ilustrações científicas, silhuetas, fotografias etc.), serviram de apoio à informação essencial que está exposta por uma linguagem escrita.

Sobre a linguagem escrita, ressalta-se que os textos são elementos presentes frequentemente nos museus e possuem variadas funções no espaço expositivo. Sobre o papel dos textos na comunicação museográfica, Marandino aponta que os textos nos museus não são apenas um dos elementos plásticos para compor a cenografia.35 35 Marandino (2002). Segundo a autora, nos museus de ciências os textos são usados constantemente, desde sinalizações e indicações sobre o circuito, até explicações sobre objetos e fenômenos, etiquetas para identificação de espécimes e de amostras, além de auxiliar o visitante na compreensão dos conceitos e a interpretar maquetes e reconstituições, sendo essa última função corroborada pelos dados deste trabalho.

A prevalência do texto nas exposições é também indicada por Dean ao descrever exposições que são baseadas em conceitos.36 36 Dean (2003). Nesse tipo de exposição a compreensão baseia-se na interpretação dos textos e nos elementos gráficos. Os objetos, quando presentes, são elementos complementares, facilitam a compreensão e servem de ilustração ao conceito exposto.

Contudo, diversos autores identificam o objeto como o maior diferencial do museu frente a outros meios de divulgação/comunicação científica, apontando que sua presença garante a confiabilidade, veracidade e realidade aos museus.37 37 Chelini; Lopes (2008), Hooper-Greenhill (1995).

Em contraponto, cabe destacar uma exemplar exceção na comunicação de conceitos evolutivos: o conceito de adaptação na exposição “Las aves”. Esse conceito é apresentado por meio de uma vitrine, em que são expostos esqueletos de aves preservados em via seca e montados sobre silhuetas que recriam a forma dos animais em vida. Nas legendas são ressaltadas as diferenças entre esses animais, demonstrando as especializações para alimentação e locomoção. Colocados lado a lado, os esqueletos de sete aves de tamanhos e formas diferentes, mas que compartilham as mesmas estruturas ósseas, evidenciam a continuidade das estruturas, bem como suas especializações, que são contextualizadas nas legendas. De forma que, ao considerarmos adaptação “uma particularidade de um organismo que permite que ele sobreviva e reproduza em um ambiente natural melhor do que na ausência desta característica”,38 38 Ridley (2006). nessa vitrine há a representação essencialmente desse conceito por meio dos objetos, utilizando os elementos gráficos (silhueta da forma completa do animal) e texto, apenas para suporte dessa informação (Figura 5).

Figura 5
Vitrine “... se adaptaron a diversos modos de vida”, presente na exposição “Las aves”. Fotografia de Mariana Galera Soler.

3.2 Diferentes conceitos expressos pelos mesmos animais

A análise dessas exposições possibilitou uma outra reflexão sobre o uso de animais na construção de narrativas em museus de história natural, com base em dois peculiares grupos exemplares: moluscos e besouros. Estes são grupos zoológicos que são comuns às três exposições estudadas (e também grupos de expressiva diversidade de natureza), mas que realizam funções comunicativas completamente díspares.

Foram categorizadas três funções principais desses animais:

1. Representação taxonômica: a função mais comum dos animais em exibição, em que servem de suporte para representar a diversidade de formas (características morfológicas) do grupo taxonômico em que se inserem (específico, genérico ou supragenérico). A ampla utilização dessa função é coerente com a história dos museus de história natural vinculados à disciplina taxonômica que fundamenta o conhecimento da diversidade animal e a abordagem sistemática da natureza.39 39 Marandino (2012).

Pode-se observar na exposição “Las aves” uma vitrine em que são apresentados os outros animais que podem voar, além das aves. Nesse caso, há um besouro preservado em via seca e montado de forma a simular seu movimento em voo. O besouro exposto representa todos os besouros e demais insetos (grupo de animais que surgiu antes das aves na história evolutiva da vida na Terra), tendo sido os primeiros animais a conquistar o ambiente aéreo (Figura 6A).

Figuras 6A e B
Animais como representantes de grupos taxonômicos. Em A, um besouro pertencente à vitrine “Os insetos foram os primeiros animais a voar” na exposição “Las aves” − MACN. Em B, duas das mesas-vitrines que apresentam a diversidade de espécies de moluscos, na exposição “Conchas, corais e borboletas” - MNRJ. Fotografias de Mariana Galera Soler.

Já na exposição “Conchas, corais e borboletas”, ao longo de quatro vitrines estão expostas 286 espécies de moluscos representados por suas conchas, dispostos e identificados individualmente. Na legenda para cada uma dessas espécies há informações como nome científico e classificação taxonômica, hábitos alimentares, ambiente em que vivem e distribuição geográfica. Nesse caso, cada espécime de molusco (ou pequeno conjunto de espécimes similares) representa um único grupo taxonômico: uma espécie (Figura 6B).

2. Representação conceitual: animais emprestam sua forma e padrões para exemplificar conceitos que são explicitados em textos.

Na exposição “Tiempo y materia”, por exemplo, quinze besouros da espécie Calocomus desmaresti apresentam diferenças em tamanho e nos padrões de desenho e cores nos élitros (asas anteriores enrijecidas) e foram posicionados sobre uma prancha com fundo de diferentes cores ilustrando a variação que ocorre dentro de uma mesma espécie (intraespecífica). Esse grupo de besouros está associado a um texto que apresenta a ideia de variações fenotípicas das espécies relacionadas às circunstâncias ambientais. A variação entre os exemplares de besouros exibidos serve de ilustração para o conceito “variação fenotípica” e não há referências à espécie particular que ilustra esse conceito (Figura 7A). Ainda sobre “variação fenotípica”, a exposição apresenta três espécies de conchas de moluscos bivalves que estão representadas por cerca de 40 valvas (parte das conchas) cada uma, dispostas sobre um pequeno banco de areia, de modo a demonstrar a “variabilidade” observada em cada uma das espécies, em decorrência das alterações ambientais (Figura 7B).

Figuras 7A, B e C
Animais como representantes de conceitos científicos. Em A, besouros emprestam cores e formas dos élitros para ilustração do conceito de variação fenotípica. Em B, conchas de bivalves ilustram a variabilidade. Ambos compõem uma única vitrine na exposição “Tiempo y materia: laberintos de la evolución” - MLP. Em C, destaque para o painel na parte superior da parede, com conchas não identificadas, apenas ilustrando a diversidade de formas dos moluscos gastrópodes, na exposição “Conchas, corais e borboletas” - MNRJ. Fotografias de Mariana Galera Soler.

Para abordar a diversidade dentro de um grupo taxonômico supraespecífico (acima de gênero), a exposição “Conchas, corais e borboletas” apresenta um painel com formato similar a uma concha, contendo 49 conchas posicionadas sobre ele. Com foco na apresentação da diversidade de formas das conchas dos gastrópodes, não há identificação de espécies dos moluscos exibidos (Figura 7C).

3. Representação cultural: o animal é utilizado para apresentar alguma atividade humana, seja científica ou cultural.

Na exposição “Conchas, corais e borboletas” tal representação é exemplificada por uma vitrine que apresenta a importância das coleções científicas e do trabalho do entomólogo, com uma gaveta entomológica composta por quinze diferentes besouros, mostrando como esses animais são guardados nas coleções (Figura 8A). Na mesma exposição, há outras duas vitrines destinadas a mostrar o uso de insetos na cultura ocidental. Em uma delas são apresentados exemplares originais de animais que foram representados em pinturas clássicas, evidenciando a capacidade dos artistas de produzirem obras similares aos espécimes reais. No caso dos besouros, um exemplar da espécie Lucanus cervus foi apresentado sobre parte de uma reprodução da obra Natureza morta com besouro lucanídeo, de Georg Flegel (Alemanha, 1635) (Figura 8B).

Figuras 8A e B
Animais como representantes de práticas humanas. Em A, uma gaveta entomológica montada com diversas espécies de besouros serve de exemplo à prática científica da entomologia. Em B, um espécime do besouro Lucanus cervus preservado em via seca serve como “comprovação” da habilidade do pintor ao representá-lo em sua obra. Ambos na exposição “Conchas, corais e borboletas” - MNRJ. Fotografias de Mariana Galera Soler.

As funções aqui identificadas correspondem à grande parte das funções comunicativas que animais assumem nas exposições. Para além de categorizações estanques, representam um gradiente entre as funções comunicativas expressas pelos animais, onde em um extremo há animais emudecidos e anônimos, servindo para representação de um conceito (como no exemplo supracitado de variabilidade genética) e, no outro extremo, cada uma das 286 espécies de moluscos distribuídas ao longo de quarto vitrines, dispostas e identificadas individualmente, com informações sobre distribuição e hábitos de vida.

Não obstante, mesmo diante das diferentes funções comunicativas, observa-se que tais organismos emprestam sua forma às representações externas a eles. Detalhes individuais e/ou sua biografia (como organismos vivos e/ou objeto de museu) não foram identificados. Assim, os animais presentes nas exposições analisadas encerram em si todo o significado do contexto em que se inserem (seja ambiental, conceitual, cultural e/ou taxonômico).

4 Considerações finais

“A stuffed tiger in a museum is a stuffed tiger in a museum and not a tiger”. Essa afirmação do museólogo britânico Kenneth Hudson40 40 Hudson (1977). leva ao seguinte questionamento: se um tigre em um museu não é um tigre, então o que ele é? A musealização da zoologia define os processos que transformam o “tigre” (ou qualquer outro animal) em objeto de museu (musealia). Como consequência, determina quais serão os caminhos desse “tigre” diante do seu novo status dentro de uma instituição: seja fazer parte de uma série em uma coleção, seja compor um diorama ou uma vitrine. Contudo, o que “resta” desse animal - tanto em significado, quanto em cultura material (pele, ossos, vísceras etc.) - ao tornar-se um objeto de museu?

As discussões realizadas neste trabalho estão inseridas no âmbito dos processos de musealização da zoologia. Diante disso, a exposição é um espaço privilegiado para análise, pois os procedimentos de preservação dos acervos interferem diretamente em quais informações estarão acessíveis para serem estudadas ou comunicadas. Sendo a exposição o principal meio de comunicação dos museus, a seleção de animais como objetos expositivos, bem como as mensagens transmitidas por eles nas narrativas, está, assim, prontamente associada às escolhas realizadas na preparação e preservação. A cadeia operatória da museologia, assim, encerra-se como um ciclo.

Em paralelo, a pesquisa em diferentes áreas das ciências naturais vem reunindo evidências a respeito da teoria evolutiva e, em grande parte, utilizando espécimes animais em acervos de museus de história natural. E cabe a essas tradicionais instituições compartilhar também o conhecimento gerado a partir de suas coleções, especialmente por meio de suas exposições. Tal como compreendidos na contemporaneidade, os conceitos evolutivos são mais complexos do que a simples ordenação de animais segundo uma ordem linear taxonômica, explicitando o aumento da complexidade como se pensava no século XIX, nas primeiras exposições evolutivas. As exposições analisadas neste trabalho são contemporâneas e suas narrativas foram construídas a partir de conceitos e acervos já conhecidos no século XIX, bem como discursos e práticas científicas atuais.

No entanto, tais conceitos estão essencialmente comunicados por meio da linguagem escrita. A teoria evolutiva é apresentada como resultado de pesquisa científica e os animais prestam suas estruturas para ilustração e demonstração de tais conceitos, servindo como evidência material da teoria, em virtude de sua capacidade de atração pública, apelo estético e tridimensionalidade.

Retomando a questão “se um tigre em um museu não é um tigre, então o que ele é? ”, pode-se dizer que ele é o conjunto preservado de suas partes, que serve tanto como conjunto de evidências para determinada área do conhecimento científico como para ilustração de conteúdos e conceitos. Apesar de algumas raras exceções, nota-se que as peculiaridades do animal como objeto museológico (como por exemplo: polissemia, biografia e registro de uma espécie em determinado tempo e espaço) foram raramente exploradas. Evidencia-se, então, o silêncio do animal como musealia, perante a fluência da linguagem escrita na comunicação de conceitos científicos.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2016
  • Aceito
    13 Fev 2017
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