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Comentário IV

DEBATES

Comentário IV

Eduardo Ismael Murguia

Professor do Departamento de Ciência da Informação, Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, UNESP-Marília. E-mail:<murguia@marilia.unesp.br>.

A leitura do texto de Guimarães me coloca diante de muitas inquietações. Os temas aos quais ele alude refletem preocupações recentes da historiografia contemporânea, que vão além da escrita para se inscreverem no olhar.

Quando terminei a primeira leitura do texto, tive uma sensação de estranheza, já que não ficava muito claro onde o autor queria chegar. Mas, depois de ler o resumo, compreendi qual era o fio condutor dos seus argumentos: "O presente trabalho pretende investigar algumas das estratégias contemporâneas de dar visibilidade ao passado". Obviamente, a hipótese do trabalho se insere dentro do titulo: "Vendo o passado: representação e escrita da história". Em outras palavras, o autor investiga os trajetos da história na criação de estratégias que permitam a visibilidade do passado.

Para explicar essas estratégias, Guimarães pressupõe que, na sociedade contemporânea, a culturização do tempo define-se não por uma presentificação do passado, mas por um presente que se quer passado. Acredito que essa afirmação mereça algumas considerações. A modernidade do século XX, notadamente através dos movimentos vanguardistas, glorificavam o futuro depreciando o passado – lembrem a proposta do Manifesto futurista, de Marinetti, que propunha a destruição dos arquivos e museus, lastros do passado. A Primeira Guerra, para Argan (1992), coloca em questão essa visão do presente como futuro, uma vez que a sociedade da virada do século XIX para o XX acreditava ter chegado ao ápice da história1 1 . Curiosamente, essa idéia também é assumida por alguns pensadores contemporâneos, como Fukuyama. . A decepção seria imediata: a esperança num futuro tecnológico e industrial levou não ao fim da história, mas à destruição da própria história. Assim, é nesse sentido que podemos concordar com Hobwsbawn (1995), para quem o século XX se inicia com a Primeira Guerra, isto é, o século XX nasce com a angústia da destruição, com a insegurança das transformações e com o fascínio e o terror da tecnologia que ele engendrou.

Mas, a partir da década de 1980, acontecem algumas mudanças econômicas e sociais – sintetizadas na globalização –, permitidas pelas novas tecnologias, com conseqüências irreversíveis na cultura. A pós-modernidade seria, então, a cultura correspondente do capitalismo tardio (JAMESON, 1995). A discussão da pós-modernidade talvez tenha sido uma das polêmicas mais calorosas dos meios acadêmicos nas duas últimas décadas. Na polêmica, além das características atribuídas a esta nova etapa histórica (como o narcisismo, a velocidade etc.), diferente da Modernidade, o ponto de atenção radica-se numa nova percepção e entendimento do espaço (fragmentação) e do tempo (velocidade).

Assim, para o tempo, os conceitos de Deleuze ("linhas de fuga") e Certeau ("trajetórias") e, para o espaço, de Certeau ("lugares") e de Augé ("não-lugares") tratam de explicar o que Foucault denomina "agenciamentos" do sujeito na história. Coloco entre aspas esses termos para demarcar o esforço para entender a contemporaneidade no âmbito das categorias apriorísticas espaço/tempo. Idéias, conceitos, entendimentos de uma realidade que percebemos como fugidia e, o que é pior, até difícil de observar. Nesse sentido, a metáfora usada por Sevcenko (2001), "no loop da montanha-russa", permite visualizar a contemporaneidade: a sensação de vertigem, de velocidade, de atordoamento. Dentro desse marco é que caberia a questão, de Guimarães, de "investigar algumas das estratégias contemporâneas de dar visibilidade ao passado". Sem resposta a essa indagação, o autor reformula no final: 1) as tecnologias nos permitiriam uma forma mais contundente de vivenciar o passado?; 2) voltamos ao passado porque o presente nos incomoda?; 3) a História não mais nos impele para o futuro, mas reforça a manutenção do presente?

O autor apresenta essas estratégias sem nenhuma indicação da escolha dos temas que articularão seu discurso, assim como não existe um corte temporal que os integre: a questão do patrimônio, a relação entre escrita e imagem, a visibilidade do passado pelos objetos e a visibilidade do passado pelo oficio do historiador. Esclareço que não são esses os títulos que Guimarães dá a cada um dos itens, mas, sim, o roteiro de minha leitura e de meus comentários.

Lowenthal (1998) propõe que separar passado do presente é uma operação própria da sociedade ocidental, embora seja própria da humanidade certa consciência do tempo.

Na verdade, temos consciência do passado como um âmbito que coexiste com o presente ao mesmo tempo que se distingue dele. O que os une é nossa percepção amplamente inconsciente da vida orgânica; o que os separa é nossa autoconsciência – o pensar sobre nossas memórias, sobre história, sobre a idade das coisas que nos rodeiam (LOWENTHAL, 1998, p. 65).

Assim, caberia explicitar que as estratégias aludidas na proposição inicial devam ser entendidas como processos autoconscientes de visualizar o passado. Seriam estratégias vindas de algum lugar ou seria tendência inconsciente? Como o próprio autor menciona, como se opera esta culturização do tempo se, organicamente, optamos por uma unificação?

Continuando, Lowenthal (1998) afirma que o passado é irrecuperável, o que significa mais do que invisível. Mas podemos representá-lo ou criá-lo, embora de maneira sempre fragmentada. Para isso, assinala três formas como conhecemos o passado: a memória, a história e os rastros. Não entrarei numa descrição minuciosa da sua proposta, mas destaco essas formas como vias de aproximação, com a finalidade de recuperar os outros dois caminhos que não necessariamente a história. O autor identifica a memória como uma aproximação emotiva, seja individual ou coletiva. Os rastros, entre os quais inclui a imagem, também como vestígios de processos. E a história, fundamentalmente, como um exercício ciente de escrita que, à diferença da literatura, pretende narrar acontecimentos verdadeiros, evitando a criação fictícia. Essas aproximações do passado não são excludentes – pelo contrário, elas se permeiam, cruzam-se, e muitas vezes se pressupõem.

Fiz essa apresentação de Lowenthal (1998) com o intuito de poder entender melhor a primeira parte do trabalho – Notas sobre o presente do passado... –, que entendo como uma discussão entre a memória, sua institucionalização e sua relação com a história, embora não necessariamente nessa ordem. Dessa forma, Guimarães propõe:

Esta discussão implica necessariamente um cuidado, no sentido de precisar os termos com que operamos, que se torna evidente já na definição do que seria a visualização do passado, implicada tanto numa narrativa escrita sobre eventos pretéritos (que supõe do leitor uma imaginação do que está sendo narrado) como também num projeto de patrimonialização desse mesmo passado em instituições que dão suporte a esta visualização (p. 12).

Acredito que a questão da memória na sociedade contemporânea deva ser destacada porque elucida de forma mais direta o problema da patrimonialização. Nesse sentido, justifica-se a percepção de Nora (1993) a respeito dos lugares da memória, numa sociedade em que ela perdeu o papel que detinha antes da industrialização, no sentido de outorgar e articular identidades e relações. Para Nora (1981, p. 9), a memória, referência para as identidades sociais, teria sido usurpada pela história, que – em seu ato de reconstrução (sempre incompleta e problemática) da vida e do passado – transformou-a em um objeto de uma "história possível". Neste contexto, Nora (1981, p. 8) afirma que não estamos mais vinculados à memória, mas à história; e lança a idéia de que, se ainda habitássemos nossa memória, se não estivéssemos destituídos da "memória espontânea", não precisaríamos de tantos lugares de memória. "Não haveria lugares, porque não haveria memória transportada pela história". Assim, para o autor, a memória estaria ligada ao absoluto, enquanto a história só seria capaz de conhecer o relativo (NORA, 1981, p. 9).

Também essa noção oferece um ponto de articulação entre um aspecto não mencionado por Guimarães, que é o contrário da sua proposta: a história oficial pode também tornar-se memória. Tornando-se memória, a história oficial opera criando a identidade nacional; e isso muito mais pela ausência de um sentimento de pertencimento a um outro grupo ou lugar do que a um projeto político unificador.

O poder evocativo da memória poderia possibilitar essa tendência, destacada por Guimarães, de o presente vir a ser passado. Isso porque os lugares da memória são também simbólicos. Pela representação que comportam, eles servem para criar um dispositivo de identidade para diversos grupos, podendo vir a contrapor-se à história oficial como memória. Nesse sentido, a memória-símbolo é permeada por jogos de força política, de enquadramentos, apropriações e negociações. Aspecto que o texto desconsidera.

O sentido de patrimonialização alargou-se ao passado como um todo, incluindo a memória, a história, os objetos e as edificações. Mas a patrimonialização não é um fenômeno metafísico (valores são históricos) e obedece a um longo percurso de reflexões e ações, até chegar à contemporaneidade. O patrimônio como herança é um valor recente, no qual confluem juízos artísticos, étnicos, econômicos e sobretudo políticos. (CHOAY, 2001). Isto é, numa sociedade de consumo, mais do que um alargamento do patrimônio, existe é uma banalização do consumo, incentivada pela mídia. Nesse sentido considero importante lembrar Argan (1992), acerca da diferença entre a notícia e o acontecimento:

Por uma hora, a notícia foi um mito de massa; como todos os mitos, passa para o inconsciente sem passar pela consciência. As reportagens fotográficas dos jornais, a televisão trazem-nos notícias incessantes; fazem-nos assistir ao assassinato de Kennedy, ao acidente espetacular da estrada. Somos todos testemunhas, mas onde todos são testemunhas ninguém é juiz: o que "faz notícia" não faz história. Assim é na sociedade de massa, assim quer o sistema do consumo ilimitado; na verdade, o juízo estabelece o valor, o valor detém o consumo (ARGAN, 1992, p. 647).

E radica-se aqui uma outra questão importante para a patrimonialização: a invasão incessante de imagens integra um sistema produtivo cujo fim é o consumo. Alguns cientistas sociais chamam a contemporaneidade de "sociedade do descarte", da circulação e consumo incessante de bens (HARVEY, 1992). Portanto, mais do que uma patrimonialização do passado, eu veria uma banalização que perpassa totalmente a contemporaneidade. A visualização, então, corresponder-se-ia com a chamada sociedade transparente, na qual tudo é mostrado, diluindo-se as fronteiras entre as noções de público e de privado. Num cenário desses, considero que adquira total pertinência a reflexão de Argan (1992), outro ponto de articulação da história com a visibilidade da memória patrimoniada, um sinal de resposta à questão final de Guimarães.

Esses apontamentos, espero, servem para complementar a afirmação de Guimarães, no caso específico da "patrimonialização desse [...] passado em instituições que dão suporte" à história. No meu entender, essas instituições seriam basicamente as bibliotecas, arquivos e museus. No caso específico dos arquivos, eles nascem com a institucionalização do poder, são lugares de guarda e interpretação das normas e das leis. Isto se evidencia ainda mais com o surgimento dos Estados modernos, que precisam de um exército e de uma burocracia que emite, interpreta, faz circular e guarda os dispositivos legais.

Os arquivos, portanto, estão associados ao exercício do poder institucional, servindo para sustentar esse poder pelos documentos que respaldam e, ao mesmo tempo, silenciam aquilo que a autoridade considera que não deva ser lembrado. É essa associação que Derrida (2001) chama de "mal de arquivo". Paralelamente, os arquivos são também lugares da investigação do passado. Como menciona Steedman (2001), são espaços freqüentados basicamente por historiadores. Lugares da memória (entendida como virtualidade à espera da narração do historiador), eles proporcionam fragmentos (sobretudo escritos) de um passado que não existe mais – não obstante, paradoxalmente, evidenciarem uma ausência. Os arquivos, na sua materialidade, são documentos empacotados, organizados ou não, que nada dizem – a não ser por aquilo que a autora chama de "sonhos do historiador". Ela recupera uma passagem de Michelet, em que o historiador francês, em sua Introdução a História da França, evoca as visões e vozes emanadas dos documentos do passado, quando percorria os arquivos franceses. Para ele, o arquivo é lugar de solidão, onde o historiador faz com que os documentos falem pelos sonhos que ele tem do passado. Assim, a visualização do passado que o arquivo oferece é mediada pela escrita. É um caminho diferente do dos museus e semelhante ao das bibliotecas. Arquivos e bibliotecas não revelam ostensivamente o passado – eles o mostram na discursividade. Embora vestígios, os documentos são também uma articulação lingüística.

Steedman (2001), mais uma vez, dialogando com Derrida, aponta para o arquivo como lugar das origens. A discussão é muito ampla e ia requerer mais espaço e aprofundamento. Mas, em resumo, Derrida afirma que, determinada pela tradição judaica, a psicanálise interpreta o arquivo como um lugar onde as coisas começam e onde tudo é explicado pelas origens. Nele, sempre estamos procurando o início, o começo: uma recorrência constante, que manifesta a pulsão de morte. Ou seja, seria um presente que quer ser passado? Ou, ao contrário, seria um eterno presente, construído na volta reiterada às origens?

Considero instigante essa interpretação pelo fato de, para além da patrimonialização do passado ou de sua visualização, essas instituições apontarem paradoxalmente para uma pulsão tanática. Assim, se por um lado elas oferecem "subsídios para reconstruir" o passado, seja pela visão ou pela imaginação – o que significaria uma pulsão de vida –, por outro lado, como símbolo das origens, como lugares onde tudo começa, elas nos detêm no tempo, além do princípio do prazer.

Guimarães indaga-se como poderiam o patrimônio e suas instituições imbricar-se com a escrita da história. Questão que nos remete ao segundo recorte do texto – Historicizando um problema: a relação entre o escrito e a imagem. A relação entre texto e imagem é tão ampla quanto a relação entre texto e oralidade. As aproximações ou oposições que se estabelecem entre tais relações dependem também de muitas variáveis. Guimarães opta pela religião – a maneira como a tradição judaico-cristã lidou com a imagem –, opção que não vislumbro claramente. Isto é, num texto que não cessa de abrir possibilidades de leitura, que em todo momento aumenta possibilidades interpretativas, a inserção de um tema também amplo (texto/imagem) deveria ter merecido um outro enfoque. Inclusive porque, neste começo de século, numa sociedade cada vez mais laica, a produção de imagens não mais contempla aquela relação direta com as esferas religiosas. Resta-me, porém, uma dúvida: não teria sido o caso de fazer-se uma relação com a fotografia ou o cinema?

Com a finalidade de encaminhar uma discussão que teria sido bem mais pertinente, levanto a questão da relação texto/imagem dentro do âmbito da história. Para tanto, acho fundamental a obra de Francis Haskell (1993), History and its images..., obra de erudição monumental, que analisa as relações entre História e imagem, embora circunscrita à arte. Dela extraio três exemplos que ilustram essa relação. 1) A imagem e sua influência na escrita da história (a visão do passado do historiador?), que pode ser: indireta, como em Montesquieu e seu contato com as galerias italianas de antiguidades; ou direta, embora com interpretações diferentes, como no caso de dois historiadores do século XIX, Ruskin e Burckhardt. 2) A criação de um passado em imagens a partir da história. Como foi o caso da criação das pinturas que preencheriam o Museu de Versailles, que contaria a história da França, recriando personagens, lugares e acontecimentos que louvavam a monarquia recém-reinstaurada por Luís Felipe. 3) A imagem como ilustração do texto histórico. Como, por exemplo, a denúncia escandalizada de Thierry, que acusa o pouco caso de historiadores que apresentam ilustrações que não condizem com a verdade.

Quando dedica o capítulo nono do seu livro ao Musée des Monuments Français, Haskell (1993) ainda há de servir como passagem para comentar a terceira parte do texto de Guimarães – Produzir o passado como visibilidade: cultura antiquária e colecionismo. Nesse capítulo, resumidamente, o autor narra as vicissitudes que Lenoir atravessa para a criação do museu. Perante a destruição e o saque dos tesouros reais e da nobreza francesa durante a Revolução, Lenoir decide salvar esses objetos do desaparecimento total. Mas, além da delicada posição de Lenoir com os políticos revolucionários que justamente tratavam de apagar qualquer vestígio do Antigo Regime, eu gostaria de destacar as mudanças que a criação do museu assinala. Com os destroços de alguns monumentos destruídos, Lenoir monta outros (v. g. o túmulo de Abelardo e Eloísa). Os monumentos e os objetos são arranjados numa ordem específica (cronológica) e são postos ao olhar público (exposição).

Bennett (1995) interpreta essa atitude como um intento de mostrar ao público francês o invisível, de dois modos: primeiro, através do arranjo cronológico de tumbas e relíquias, Lenoir mostrava as glórias do Estado francês; segundo, o progresso da civilização pelo Iluminismo. As reformas arquitetônicas do prédio visavam a levar o espectador da escuridão das trevas antigas a espaços mais iluminados, assinalando o progresso da civilização:

Whatever the differences between them in other aspects, then, the objects housed and displayed in collecting institutions – whether museums, temples, or cabinets of curiosities – functions in an analogous manner. In comprising a domain of the visible, they derive their significance from the different "invisibles" they construct and from the ways in which they mediate these to the spectators. [ ] However much truth there might be in these generalizations, though, the orders of the visible and the invisible are not connected in an invariant manner. Rather, the ways in which the former mediate the relations between the latter and the spectator depend on the role of specific ideologies of the visible. At times, different ideologies of the visible may even inform the arrangement of the same collection, giving it a multi-levelled structure (BENNETT, 1995, p. 165-166).

Com essa citação, destaco o deslocamento das coleções dos antiquários para as coleções institucionais, resgatando a questão da ordem, da exposição e da ideologia do visível. Porém, esse movimento se articula em práticas concretas, ocorridas pelas mudanças políticas advindas da Revolução Francesa (basicamente pela institucionalização das coleções), quando se passa de um olhar privado para o olhar público. Quando apresentei o arquivo, fiz isso da perspectiva do poder. Mas o fato também encontra sua correspondência nas coleções que se tornam museus.

Nesse sentido, acredito que a discussão (acerca de um eixo teórico de interpretação que se articula na relação visível/invisível) – iniciada por Pomian (1984) e depois retomada por Bennett (1995) –, que Guimarães incorpora no texto apresentado, deva ser complementada com explicações mais concretas, como, por exemplo:

The ruptures of revolution created the conditions of emergence for a new truth, a new racionality, out of which came a new funcionality for a new institution, namely the public museum. The old collecting practices of the king, the aristocracy, and the church were radically revised, taken over, and rearticulated in a new field of use. The collections themselves were torn out of their earlier spaces and groupings and were rearranged in other contexts as statements that proclaimed at once the tyranny of the old and the democracy of the new (HOOPER-GREENHILL, 2003, p. 171).

Guimarães aponta para o fato de tanto antiquários como colecionistas conferirem de forma diferente uma visibilidade ao passado, sendo que os primeiros privilegiam o esquadrinhamento do objeto, enquanto os segundos priorizam a reflexão e a linguagem escrita. Seria pertinente ampliar a idéia, acrescentando que essa mudança na atitude a respeito da visibilidade do passado se enquadra numa transformação maior no conhecimento. Assim, Hooper-Greenwill (2003), no capítulo dedicado ao Repositório da Royal Society, fundada no final do século XVII, menciona ter sido ela criada como clube de amigos, para rapidamente tornar-se uma instituição pública. Tinha como objetivo as pesquisas que confirmassem a existência de fenômenos cientificamente demonstráveis – que seriam submetidas a discussão pelos pares da instituição. Também pretendeu criar uma coleção, compilando um sistema completo de objetos que fossem causa ou efeito de fenômenos naturais. Além disso, esses objetos deveriam ser classificados segundo os esquemas científicos que começavam a surgir na época, notadamente os de Bacon. Neste caso, o repositório servia como demonstração de um esquema, ao mesmo tempo em que visualizava um novo tipo de conhecimento, fundamentado na ordem, na razão e na demonstração dos fenômenos observáveis.

A quarta parte do texto de Guimarães – A visibilidade do passado pela disciplina histórica oitocentista –, que considero um desdobramento da discussão anterior, estrutura-se novamente a partir da literatura, concluindo:

E este processo de cientifização submete a visão às fontes textuais, mesmo naqueles projetos de visualização do passado como o pretendido pela pintura histórica, que assentava a produção de imagens à pesquisa e ao conhecimento das fontes escritas. As imagens são lidas como fontes, tradição que acabou por encontrar uma larga aceitação entre os historiadores, sobretudo a partir do século XX (p. 29-30)

Considero a afirmação de Guimarães instigante e provocativa, porém muito geral. Entendo que alguns matizes devam ser esclarecidos, desde um entendimento do que consideraria dois problemas:

1. O problema da representação. Argan (1992), influenciado pela filosofia kantiana, afirmava existirem duas categorias que não precisam nem podem ser demonstradas: espaço e tempo. Assim, espaço e tempo não são apreendidos pelos sentidos, mas podem ser vivenciados. Ou seja, o tempo é um conceito. De certa forma, trabalhar com um conceito fragiliza qualquer abordagem que se faça dele. O conceito de tempo será sempre relativo, motivo pelo qual todo enunciado ou abordagem sobre tempo será sempre uma representação. Portanto, a história seria uma das possíveis representações do tempo – neste caso, do passado. Outras representações do passado convivem, nem sempre de forma amigável, com a história. As representações são um modo de se apropriar, de se aproximar da realidade externa, embora obedeçam a circunstâncias sociais específicas permeadas pelo poder. No início do texto, Guimarães propõe-se a identificar as estratégias das representações do passado e assim o faz, mas percebo a falta do "poder" como articulador do texto.

2. O problema da escrita. Olson (1994) propõe a escrita como suporte da memória, portanto, reflexo imediato da fala. Porém, na medida em que se flexibiliza, no sentido de uma maior economia de signos, ela deixa de ser reflexo da linguagem para determinar a própria linguagem e, portanto, o próprio pensamento. Destaco essa idéia porque identifico a história como um tipo especial de discurso, portanto, também uma representação. Um discurso que possui práticas específicas, seus valores, sua metodologia, sua epistemologia etc. Quando, no início do texto, Guimarães verifica que estamos sendo invadidos por imagens e, no final, afirma que a escrita "submete a visão às fontes textuais", devemos ter cuidado para não cair num maniqueísmo conceitual. Se a escrita aparece como prótese da memória quando registrada no documento, devemos pensar que, graças a esse acontecimento, foi possível o desenvolvimento do conhecimento, das artes, da ciência etc. Especificamente, no século XIX, a história, como todos os saberes, sofre uma mudança que privilegia o documento escrito como prova de um acontecimento anteriormente existente. Hoje sabemos que a prova pretendia a verdade e que a verdade nada mais é que um valor. Por esse motivo, concordo com Guimarães quando menciona a cientificidade da história do século XIX. Mas não podemos confundir ciência com verdade – que, ao contrário do que pensamos, nem sempre andam juntas, mesmo porque, como valor, a verdade sempre será histórica e mediada pelas relações materiais nas quais se insere. Voltando para a escrita, acredito que o exercício dela permite, e permitiu, justamente o aparecimento da crítica. O pensamento ocidental foi capaz de se pensar, de se conhecer porque foi capaz de comparar textos. Isto é, a reflexão é possível pela escrita, podemos induzir e deduzir pela fala, podemos observar os fenômenos naturais, mas a crítica que propicia a reflexão é textual.

Jenkins (2001) diz que, depois da implosão das grandes narrativas universais e dos totalizadores que explicavam o mundo, abriram-se novas possibilidades para o aparecimento de novos gêneros; no caso específico da história:

Questionar a noção de verdade do historiador, assinalar a facticidade variável dos fatos, insistir em que os historiadores escrevem o passado a partir de posições ideológicas, enfatizar que a história é um discurso escrito tão passível de desconstrução quanto qualquer outro, afirmar que o "passado" é um conceito tão especulativo quanto o "mundo real" a que os romancistas aludem na ficção realista – só existindo nos discursos presentes que o formulam. Tudo isso desestabiliza e fratura o passado, de modo que nas rachaduras nele abertas se podem produzir novas histórias (JENKINS, 2001, p. 102).

Assim, ver o passado – da mesma forma que escrever o passado – é sempre a manifestação de uma tensão social. No caso da contemporaneidade, a construção do passado perpassa as instituições-laboratórios da história, os meios de comunicação, os centros de criação de conhecimentos etc. Sendo a história um topos de enunciação do passado, nele se articulam múltiplos interesses, ao mesmo tempo em que ela se relaciona das maneiras as mais variadas com os outros modos de construção do passado. Os discursos do passado serão sempre mediados pelo poder: de onde provêm?, a quem se dirigem? por que e como são enunciados? Acredito que muita atenção deva ser dada a essas rachaduras que menciono na citação anterior, porque é justamente nelas que essas questões poderão ser colocadas. Como decorrência, se existe uma diferença entre ver o passado e escrever o passado, cabe à escrita exercer seu papel de crítica. Isto é, cabe à história responder a essas questões que, a maior parte das vezes, surgem da visão do passado.

  • 1
    . Curiosamente, essa idéia também é assumida por alguns pensadores contemporâneos, como Fukuyama.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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