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Deslocamentos e persistências da memória: uma leitura dos depoimentos do goalkeeper Marcos Carneiro de Mendonça ao Museu da Imagem e do Som (1967-1982)

Memory displacements and persistence: a reading of goalkeeper Marcos Carneiro de Mendonça’s testimonies (1967-1982) given to the Museum of Image and Sound

RESUMO:

Em um intervalo de quinze anos, o ex-goleiro Marcos Carneiro de Mendonça (1894-1988) prestou dois depoimentos ao Museu da Imagem e do Som, em suas matrizes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ícone do chamado amadorismo na história do futebol brasileiro, tendo sido goleiro do Fluminense durante a belle époque, ídolo da seleção e protagonista do primeiro título sul-americano da modalidade em 1919, a trajetória de Marcos é alvo recorrente de interesse acadêmico entre os historiadores e pesquisadores, seja em seus aspectos biográficos e imagéticos, seja nos arquivísticos. Neste artigo revisita-se a construção da persona e do significado do atleta, enfatizando menos sua biografia, suas imagens e seu conhecido álbum de recortes, depositado na Biblioteca Nacional, e mais esses dois relatos orais. A finalidade precípua é tomar os dois depoimentos em conjunto, como se se tratasse do mesmo testemunho, dilatado no tempo, com vistas a identificar suas continuidades e descontinuidades. Reutilizar essa fonte sonora dá subsídios para entender as estratégias dos entrevistadores na assunção do passado e, em contrapartida, permite compreender como o próprio depoente constrói o pioneirismo de sua figura desportista e direciona os episódios e os aspectos da técnica futebolística, especialmente os da posição de goleiro, que considera dignos de rememoração, em consonância com o período histórico e com o espaço institucional em que as entrevistas foram concedidas.

PALAVRAS-CHAVE:
História do futebol; Amadorismo; Memórias; Entrevistas; Museu da Imagem e do Som

ABSTRACT:

In a span of fifteen years, former goalkeeper Marcos Carneiro de Mendonça (1894-1988) gave two testimonies to the Museum of Image and Sound, at its headquarters in Rio de Janeiro and São Paulo. An icon of the so-called amateurism in the history of Brazilian football, having been Fluminense’s goalkeeper during the belle-époque, idol of the national team and protagonist of the first South American title of the modality in 1919, Marcos’ trajectory is a recurring target of academic interest among historians and researchers, whether in biographical and imagery aspects, or archival ones. This article revisits the construction of the athlete’s persona and meaning, emphasizing less his biography, images and well-known scrapbook, held in the National Library, and more these two oral testimonies. The main purpose is to take the two testimonies together as if they were one, extended in time, to identify their continuities and discontinuities. Reusing this sound source helps us to understand the interviewers’ strategies in assuming the past and, on the other hand, allows us to understand how the interviewee himself builds the pioneering spirit of his sports figure and directs the episodes and aspects of the soccer technique, especially those of the goalkeeper position, which he considers worthy of remembrance, in consonance with the historical period and the institutional space in which the interviews were granted.

KEYWORDS:
History of football; Amateurism; Memories; Interviews; Museum of Image and Sound

INTRODUÇÃO

Em um intervalo de quinze anos, o ex-goleiro Marcos Carneiro de Mendonça (1894-1988) prestou dois depoimentos ao Museu da Imagem e do Som (MIS), em suas matrizes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ícone do chamado amadorismo na história do futebol brasileiro, tendo sido goleiro do Fluminense durante a belle époque, ídolo da seleção brasileira e protagonista do primeiro título sul-americano da modalidade em 1919, a trajetória de Marcos é alvo recorrente de interesse acadêmico entre os pesquisadores, seja em seus aspectos biográficos e imagéticos, seja nos arquivísticos.

Neste artigo revisita-se a construção da persona e do significado do atleta, enfatizando menos sua biografia, suas imagens e seu conhecido álbum de recortes, depositado desde 1993 na Biblioteca Nacional. O interesse aqui incide mais sobre esses dois relatos orais concedidos ao MIS-Rio e ao MIS-SP, entre fins dos anos 1960 e princípios da década de 1980. Dito de modo sumário, a finalidade precípua é tomar os dois depoimentos em conjunto, como se se tratasse do mesmo testemunho, dilatado no tempo, com vistas a reconhecer suas continuidades e descontinuidades.

Reutilizar essa fonte sonora dá subsídios para entender as estratégias dos entrevistadores na assunção do passado e, em contrapartida, permite compreender como o próprio depoente reconstrói o pioneirismo de sua figura desportista. Para tanto, realça partidas históricas, relembra cenas e situações prosaicas do campo de jogo e, em especial, direciona os episódios e os aspectos da técnica futebolística, notadamente os da posição de goleiro. Ao centrar-se na prática e na cultura material do futebol, seleciona os fatos e artefatos que considera dignos de rememoração, em consonância com o período histórico amador e com o espaço institucional em que as entrevistas foram concedidas.

Destarte, o texto começa com uma avaliação do modo pelo qual o atleta tem sido tratado em estudos pretéritos.2 2 Cf. Pereira (1997), Silva (2014) e Silva (2019). Neles, no geral, avulta sua importância emblemática de representante maior da fase do chamado amadorismo futebolístico e averígua-se a principal fonte que o notabilizou, com o escrutínio do seu álbum de memórias, composto de comentários da imprensa sobre sua performance, tal como retratada nos principais jornais de então.

Em seguida, o texto se debruça sobre as condições museológicas que tornaram possíveis a gravação dos dois relatos orais de Marcos, na esteira da criação de museus tecnológicos, considerados de ponta à época de sua criação. Com efeito, tal iniciativa permite a concepção de séries temáticas gravadas em áudio, dentro das quais o futebol foi legitimado como objeto digno, ao lado da história, da cultura e mesmo das artes nacionais.

Por fim, o texto coteja as duas fontes orais do mesmo personagem. Conquanto distantes quinze anos no tempo, trata-se o discurso rememorativo à luz de um só relato, de modo a identificar as recorrências de seu processo de rememoração, mas também com o intuito de captar diferenças explícitas ou subjacentes a uma e outra. Sugerimos que estas são devidas nem tanto ao emissor, mas, em parte, às questões do roteiro, aos propósitos dos entrevistadores, às circunstâncias do depoimento e às peripécias, ou sortilégios, da singularidade de uma entrevista, quando ela ainda não se via nem se concebia como um trabalho de “história oral”.

Ao fim e ao cabo, nosso ponto central argumenta que o depoente revela a visão de um etos amadorista flexível e ele próprio com diferentes fases internas no decurso de três décadas. Sendo assim, o relato apresenta o amadorismo como um fenômeno futebolístico não estanque nem maniqueísta, como antípoda do profissionalismo, tal qual tradicionalmente se dimensiona e como por vezes o próprio Marcos contribui para que seja lhe atribuído. Isso tem ocorrido na medida em que sua imagem foi cristalizada como ídolo de toda uma época de vigência elitista, quintessência amadora, como figura representada desde pelo menos O negro no futebol brasileiro (2003)RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003., nos idos dos anos 1940. As entrevistas revelam, entre outras coisas, a grande amizade entre o goleiro e o jornalista Mário Filho, cultivada desde a década de 1920.

A contrapelo da dicotomia amador-profissional, levanta-se esse argumento com vistas a salientar a importância do tipo de registro – o oral – aqui acionado. Mesmo que as entrevistas analisadas neste artigo tenham sido concebidas numa fase anterior à institucionalização da história oral, ou em meio a uma transição em seu favor, o olhar sobre o relato a seguir selecionado frisa a capacidade de a fonte fornecer elementos novos e insuspeitados ou sutis, mas capazes de nuançar o seu modo tradicional de enquadramento da história dos primórdios do futebol no Brasil.

ESTADO DA ARTE: O GOLEIRO DA ACADEMIA

À primeira vista, impressiona a atenção dispensada à figura do futebolista Marcos Carneiro de Mendonça, em detrimento de outros personagens da era amadora. Durante o chamado período de vigência amadorista, seu nome, juntamente ao de Arthur Friedenreich, é muito provavelmente o mais citado. Ademais, isso é feito de modo a encarnar em sua trajetória o conjunto dos valores de toda uma época e, nesse sentido, a trajetória de Marcos é tida por mais emblemática e representativa de uma elite futebolística, quando comparada ao “mestiço” Friedenreich.

Conforme dito na “Introdução”, sua personagem é destacada no livro do jornalista Mário Filho, mas não só nele. Na sequência, a obra jornalístico-biográfica Gigantes do futebol brasileiro (2011)MÁXIMO, João; CASTRO, Marcos de. Gigantes do futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.,3 3 Máximo e Castro (2011). de autoria de João Máximo e Marcos de Castro, com prefácio do escritor Paulo Mendes Campos, de meados dos anos 1960, endossa o papel fundante e pioneiro do goleiro, ao perfilá-lo numa seleta antologia de dezenas de biografados.

Tal seleção se refletiu, em alguma medida, no interesse subsequente dos estudos acadêmicos. Em fins dos anos 1990, a historiografia do futebol assiste à importante publicação de um artigo de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, que logo depois desponta com o seu livro FootballmaniaPEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000., fruto de sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na qual historiciza a prática futebolística na Primeira República e na Era Vargas. O artigo resultante da tese então em andamento é publicado em 1997 e intitula-se “Pelos campos da nação: um goal-keeper nos primeiros anos do futebol brasileiro”.

Trata-se de publicação que vem a lume no escopo do dossiê “Indivíduo, biografia, história”, organizado pela revista Estudos Históricos, da Fundação Getútlio Vargas (FGV) e do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). O manuscrito centra-se na figura de Marcos de Mendonça e sublinha essa condição de futebolista encarnador do etos amadorista da belle époque tropical,4 4 Cf. Needell (1993). a fim de mostrar, por meio de sua vivência esportiva, as oposições entre amadorismo e profissionalismo.

No argumento do artigo, tal tensionamento leva à desistência relativamente precoce da carreira futebolística no início dos anos 1920. O decênio, como se sabe, acirra os conflitos entre amadoristas e defensores da profissionalização do jogo, o que só é adotado e formalizado durante a década seguinte. Para tal reconstituição, o texto começa com a descrição da cena final do Campeonato Carioca de 1919, entre Flamengo e Fluminense, em que o goleiro tricolor se consagra tricampeão e atinge o ápice da carreira.

O autor passa em seguida a tecer o enredo biográfico do protagonista, desde o nascimento na cidade mineira de Cataguases, sendo filho de uma família aristocrática, até a radicação no Rio de Janeiro, com seus estudos de engenharia, seu envolvimento no esporte, sua ascensão clubística até o Fluminense, a consagração do sportman refinado e ao mesmo tempo do ídolo nacional, as conquistas internacionais na Copa Roca de 1914 e os triunfos esportivos nos Sul-Americanos de 1919 e 1922. Por fim, a trajetória acompanha a decisão pelo abandono dos gramados e a reconversão de sua imagem em industrial, administrador e historiador vinculado ao Instituto Histórico Geográfica Brasileiro (IHGB), entre outros engajamentos, inclusive os de ordem esportiva.

A argumentação de fundo do autor mira um debate historiográfico acerca das articulações entre Estado e sociedade, bem como as estratégias ativas de grupos sociais subalternos de interpretar e se apropriar do fenômeno futebolístico de modo diverso de seu significado inicial, quando circunscrito às elites urbanas cariocas e aos seus círculos letrados. Por limitações de espaço e finalidade, não convém aqui revisitar, tampouco entrar no mérito do argumento, que joga luz sobre clubes suburbanos e operários ofuscados pela produção acadêmico-intelectual e jornalística na narrativa do período.

De todo modo, ao dar protagonismo a Marcos no processo mais amplo de transformação da prática do futebol em “verdadeiro símbolo nacional”, Pereira reforça a posição decisiva, e um tanto paradoxal, desse goleiro amadorista em meio ao processo de popularização progressiva durante os três primeiros decênios do século XX, desde o surgimento do Campeonato Carioca, em 1906. Com efeito, de maneira por assim dizer colateral, o artigo contribui para cristalizar a condição arquetípica de refinamento, elegância e distinção do jogador, pertencente a um grupo seleto de estudantes enricados, praticantes de um “amadorismo puro”, fase que o projeta como “eterno goal-keeper”, emblema maior dessa geração (branca, amadora e de elite) e da representação histórica desse período.

O historiador Leonardo Pereira vale-se de fontes jornalísticas dos principais periódicos da época – O Imparcial, O País, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, entre outros – e mobiliza ainda o depoimento concedido pelo ex-atleta ao MIS-Rio, no final dos anos 1960. Ainda que não distinga a especificidade da fonte oral vis-à-vis do registro jornalístico e cronístico, o autor é provavelmente um dos primeiros pesquisadores a recorrer ao acervo sonoro de esportes desse museu para um trabalho acadêmico voltado ao futebol.

Na sequência, destaca-se o estudo doutoral de Marcelino Rodrigues da Silva, que resultou no livro Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho (2006)SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.. Vinculado à área de letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcelino oferece uma mudança de ênfase em face do trabalho de Leonardo. Embora o centro de seu objeto seja a personagem do jornalista Mário Filho, o debate heurístico o leva para a composição do livro emblemático da história e do memorialismo esportivo, com base nas fontes primárias reunidas por Marcos de Mendonça. Em especial, refere-se ao seu afamado álbum de recortes, emprestado a Mário Filho nos anos 1940, e que será doado postumamente pela família de Marcos – ele falece em 1988 – em princípios da década de 1990 à Biblioteca Nacional, suporte depositado em sua seção de manuscritos.

O referido álbum, a propósito, também fora consultado por Pereira em seu artigo e em sua tese, mas é a sua confecção intelectual, ou sua artesania, que interessa a Marcelino logo no início de sua investigação sobre o caráter narrativo da história futebolística. Para assim observar a construção retórica do equivalente desportivo de As mil e uma noites, Marcelino invoca uma passagem de Nelson Rodrigues, a fim de dar saliência ao duo Mário Rodrigues Filho/Marcos Carneiro de Mendonça:

Até que, um dia, Mario Filho apareceu. Pode-se datar o nascimento da crônica esportiva. Foi quando ele publicou uma imensa entrevista com Marcos de Mendonça. O famoso goleiro anunciava sua volta. O patético, porém, não era o fato em si, mas a sua escandalosa valorização jornalística. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol – meia página! Era a época em que o esporte vivia empurrado, escorraçado para um canto da página. O melhor jogo do mundo não merecia mais de três linhas. [...] A entrevista de Marcos foi para nós, do esporte, uma Semana de Arte Moderna. Em meia página, Mario Filho profanou o bom gosto vigente até em jornal de modinhas.5 5 Silva (2006, p. 33).

O autor e boa parte dos analistas voltaram-se nessa citação à exaltação que Nelson Rodrigues faz do irmão, nivelando-o a uma espécie de modernista dos esportes na década de 1920. Em contrapartida, chama-nos a atenção aqui o papel central de Marcos no acesso às fontes do futebol do passado, nem tão distante, e à dependência de testemunhos vivos como ele para a sua comprovação. Junto da oralidade e do memorialismo implícitos no recurso a uma “entrevista” com o ícone do amadorismo, encontra-se o propalado álbum montado e conservado pelo ex-jogador. A relação de amizade com Mário Filho faz com que este reconheça na primeira edição de sua obra que a coleção de recortes de Marcos é “o mais completo repositório dos acontecimentos do futebol de 10 a 19”.6 6 Ibid., p. 39.

Marcelino dedica-se ao artefato na seção “Relíquias de um goal-keeper”. O pesquisador examina os dois grandes cadernos de papel pardo, com atenção não apenas a seu conteúdo, mas em particular às condições de produção e às circunstâncias de sua carreira que motivaram a confecção de tal suporte textual e imagético. Segundo Marcelino, a “tesoura narcisista” de Marcos compilou, selecionou, recortou e colou uma extensão variada de periódicos da época, com um painel dos principais órgãos da imprensa carioca do período.

O autor sublinha que, ao contrário de uma amostra fiel do futebol de então, a leitura do material revela a intenção precípua e o aspecto subjetivo de conservação da memória glorificadora e da trajetória do próprio colecionador, em sua posição altiva de ídolo esportivo. Assim, se tal fonte, para muitos, como Mário Filho, proporcionou um panorama representativo da década de germinação e afirmação do futebol, para Marcelino a tarefa mais interessante de seu estudo foi proceder ao caráter fragmentário dos recortes da imprensa esportiva, a seus critérios de seleção e a seu modo de organização/disposição nos cadernos, cruzando o que chama de “patamares discursivos”,7 7 Ibid., p. 41. em que a coleção em si já constitui uma interpretação.

Nessa crítica de ordem genética, o autor se detém com argúcia sobre as anotações às margens do material, assinadas por mais de uma pessoa, e não apenas pelo goleiro, dado revelador a seu juízo da superposição de sujeitos responsáveis pela fatura do produto e pela complexidade dos discursos de enunciação envolvidos na construção do imaginário futebolístico e histórico nacional.

Anos depois do doutoramento de Marcelino, outro trabalho em nível doutoral deu continuidade a esse tipo de indagação artesanal do álbum. Refiro-me à historiadora Diana Mendes da Silva, que, em 2019, defendeu a tese Cultura visual e futebol: a construção da figura do craque: Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva (1910-1942)SILVA, Diana Mendes Machado da. Futebol e cultura visual: a construção da figura do craque: Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva (1910-1942). 2019. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.. Enquanto Marcelino ateve-se mais à dimensão enunciativa do álbum, o foco de Diana incidiu na análise do conjunto de imagens verbais e visuais do álbum memorialístico do goleiro. A autora se debruça sobre os volumes de grandes dimensões (50 cm × 40 cm) e suas mais de quinhentas páginas, com fotografias originais, excertos de reportagens e apontamentos manuscritos. Seu olhar recai sobre a visualidade dos cadernos, com foco nos registros fotográficos das partidas e em seu processo de construção de um discurso visual e autobiográfico para o futebol de início do século XX.

A abordagem das fotos como recurso para a narrativa pessoal do jogador faz com que Diana também se valha da gravação do depoimento de Marcos ao MIS-Rio em 1967, ainda que de forma acessória e complementar ao seu objetivo principal de exame imagético do suporte. Se a historiadora tem um propósito mais específico que o de Marcelino na assunção dos cadernos, enquadrados na tradição colecionista dos álbuns de família e dos álbuns de memória, há vários pontos de convergência nos resultados de ambos os investigadores.

A título de exemplo, observe-se o que a historiadora chama de “scrapbook”. Por seu intermédio, a memória é construída sob a égide da notoriedade pública, a começar pelas primeiras páginas do álbum examinadas pela autora, em que as reportagens tratam o goleiro como revelação e vaticinam um início de carreira promissor. Nesse sentido, a autora se volta para a observação das práticas fotográficas e das coleções pessoais, com suas formas de representação, autorrepresentação e rememoração, com vistas a lograr seu objetivo principal: a compreensão da construção do crack Marcos pela fotografia e a preocupação com sua notoriedade social refletida na composição do álbum.

Embora instigante, não cabe dar continuidade ao acompanhamento do trabalho de Diana, que avança na tese em uma comparação com o modo pelo qual outros craques esportivos da fase profissional – Domingos da Guia e, em especial, Leônidas da Silva – serão enquadramentos imageticamente pelos periódicos da primeira metade do século XX. Para os fins deste texto, vale ficar com a observação de que o jogador em tela foi alvo de reiterada atenção por parte de pesquisas antecessoras, prova de sua importância e de seu interesse para a academia.

DOIS MUSEUS, UM DEPOENTE

Feita a apresentação de pesquisas anteriores que mobilizaram o personagem, passemos à inquirição do objeto de nosso estudo, qual seja, as duas fontes orais remanescentes, com o exame das entrevistas concedidas pelo ex-jogador. Se Leonardo Pereira e Diana Mendes chegaram a mencionar, de modo pontual, o depoimento de Marcos de Mendonça ao Mis-Rio, datado de agosto de 1967, a segunda entrevista, concedida ao MIS-SP em agosto de 1982, passou despercebida e nem sequer foi aludida pelos estudiosos em geral.

Pode-se conjecturar que o privilégio dado ao registro escrito consignado nos jornais e o relevo imputado ao álbum de recortes jornalísticos ofuscaram as atenções às duas gravações. O investimento no testemunho oral foi visto, no geral, como um recurso de investigação complementar e apenas subsidiário aos pesquisadores.

Antes de adentrar na leitura do conteúdo propriamente dito dos dois áudios, é necessário circunstanciar as fontes e compreender como ambas foram produzidas, em suas vicissitudes institucionais e segundo a iniciativa de determinados agentes envolvidos que convém explicitar. O mesmo procedimento é válido para as circunstâncias de vida do próprio depoente no período do depoimento, a posição social ocupada e sua relação com as instituições museais, entre outros.

Acerca da primeira, ao MIS-Rio, o relacionamento do entrevistado com o equipamento era mais direto e evidente. Em 1967, Marcos contava 73 anos e o museu era recém-inaugurado. Tema de percuciente estudo da historiadora Cláudia Mesquita,8 8 Mesquita (2009). a inauguração do museu data de 1965, nos estertores do governo de Carlos Lacerda, à frente do estado da Guanabara, depois de eleito em 1960. A iniciativa de sua criação comporta tanto aspectos políticos quanto culturais. Com a perda da capitalidade para Brasília, a cidade do Rio de Janeiro transforma-se em estado guanabarino no ano da vitória eleitoral de Lacerda.

Como é sabido, Lacerda era uma liderança política à direita do espectro político, renitente opositor do trabalhismo de Getúlio Vargas, o que se ampliaria no início dos anos 1960 frente à presidência esquerdista de João Goulart. Apoiador de início do golpe de 1964, o então governador da Guanabara logo reveria sua posição frente ao regime civil-militar e passaria ao campo da oposição. Para a delimitação deste artigo, cabe salientar que uma das medidas tomadas pelo primeiro governo eleito daquele estado foi justamente a valorização do passado cultural, da memória urbana e das tradições da cidade, que perdera o status de capital da República, uma centralidade vigente desde meados do século XVIII.

A política cultural delineada pelo governo de Lacerda abraçou então a proposta de criação no centro da cidade de um equipamento museal novo e de ponta sob o prisma tecnológico da época. Em certo sentido, tratava-se de um museu ao mesmo tempo voltado ao passado e ao futuro, ao definir-se tematicamente sob a égide “da imagem e do som”. Isto é, superava-se o paradigma das instituições voltadas apenas à exposição de objetos representativos da nação ou das belas-artes. Com base em duas coleções herdadas do patrimônio da cidade – as fotografias de Augusto Malta e a discoteca de Almirante –, e que se ampliariam após a abertura, a missão precípua do museu era constituir-se uma referência tecnológica para a conservação e a reprodução de acervos sonoros e imagéticos no Rio de Janeiro e no país.

Junto da compilação de séries fotográficas e musicais, o primeiro diretor do MIS-Rio foi o produtor musical baiano Ricardo Cravo Albin. Ele concebe um programa para o registro vocal de personalidades das artes e da cultura brasileira do período, em suas diversas frentes, com privilégio para a música popular, mas também para a memória do rádio, da televisão, do teatro e da literatura, entre outras áreas. Apesar de Mesquita acionar diversas informações de bastidores do museu, não é sabido ao certo de que modo o futebol foi incorporado a esse rol artístico-cultural. Seja como for, uma seção esportiva também é criada, sob o nome solene de Comissão Executiva do Esporte Brasileiro, donde resulta a concepção da série “Depoimentos à Posteridade”, o que contempla entrevistas com atletas, futebolistas, treinadores, dirigentes e jornalistas esportivos referenciais.

É possível especular que, tendo começado em 1966, as entrevistas coincidem com a edição de mais uma Copa do Mundo de futebol, realizada na Inglaterra, modalidade esportiva de que a seleção brasileira se sagrava então como atual bicampeã mundial (1958 e 1962). Jogadores como Garrincha e Pelé ocupavam a posição de astros, eram celebridades nacionais e internacionais, o que explica em parte as atenções dispensadas pelo novo museu ao futebol bicampeão. A ampliação do conceito museológico, com a absorção de novas técnicas expositivas e novos suportes arquivísticos, favorece, a nosso juízo, o acolhimento da temática esportiva e futebolística no espaço do prédio localizado na Praça XV e que fora abrigo de um dos pavilhões da Exposição Internacional de 1922, dedicada às celebrações do centenário da Independência.

Se fica claro o papel ativo do produtor musical Ricardo Cravo Albin na incorporação dos esportes e do futebol às novas frentes desse museu inovador, Marcos Carneiro de Mendonça figura igualmente entre os responsáveis pelo projeto. Isso porque o ex-futebolista é membro do conselho consultivo do museu e, não por coincidência, será o primeiro entrevistado na seara esportiva, com gravação ocorrida em 8 de agosto de 1967, nas dependências do MIS. Soa plausível inferir sua influência na composição dos registros orais, para além de seu próprio depoimento, por iniciativa da Comissão Executiva do Esporte Brasileiro, pertencente à mesma instituição.

A série terá vida longeva no museu. Ao tabular uma listagem de entrevistados, observa-se que as gravações são mais intensas em seu início, com nove entrevistas apenas no segundo semestre. Passado 1967, o fluxo continua, mas arrefece, sendo retomada mais à frente, já nos anos 1970. Sua existência vai variar, por suposto, ao sabor das conjunturas do museu e das políticas de sua direção, afetadas, como seria de se esperar, pelos agentes em interação e pelas injunções governamentais de cada época.

Malgrado as intermitências, “Depoimentos à Posteridade” tem continuidade na esteira da gravação inaugural de Marcos. O projeto registrou ao longo das décadas dezenas de entrevistas com desportistas da cidade e se estendeu até a década de 2010, quando uma nova sede na orla de Copacabana para o museu foi anunciada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, no contexto da revitalização urbana e da organização dos Jogos Olímpicos de 2016. Transcorrida quase uma década do fim das Olimpíadas Rio 2016, o plano ainda não foi concluído, com o prédio à espera da dotação de recursos finais e da conclusão de seu novo projeto museológico.

“Depoimentos à Posteridade” teve impacto na vida cultural da cidade. Por exemplo, chegou-se a produzir livros e discos com tais gravações, comercializados em livrarias e em bancas de jornal, a exemplo das entrevistas de João Saldanha, Zizinho, Domingos da Guia e Pelé. Se o futebol tem protagonismo na série, pode-se citar a entrevista com desportistas de outras áreas, como o corredor Ademar Ferreira e a nadadora Maria Lenk.

A entrevista concedida por Marcos na estreia da série tem cerca de três horas de duração. Ela é conduzida por figuras eminentes da época no meio esportivo. Ao todo, são cinco entrevistadores: o abalizado e veterano cronista esportivo Geraldo Romualdo da Silva; dois irmãos de Marcos, Luís e Fábio Carneiro de Mendonça; o ex-jogador do Flamengo, Paulo Buarque de Macedo, contemporâneo de amadorismo de Marcos; e Zélio Marins Davi, sobre quem não se encontraram mais informações, para além de ser partícipe da Comissão de Esportes do museu.9 9 A dinâmica das entrevistas seguia um padrão na definição do time de entrevistadores a cada gravação. No geral, membros da Comissão Executiva dos Esportes do MIS representavam a instituição, a que se somavam personalidades públicas conhecidas do entrevistado ou mesmo familiares, além de especialistas com reputação de notoriedade no universo dos esportes. A entrevista transcorrida em 1967, com o treinador Gentil Cardoso, contou com a participação de Luís Mendonça, secretário da comissão; Geraldo Pedroso, membro da comissão; Ricardo Cravo Albin, diretor executivo do MIS; Zélio Marins Davi e o filho de Gentil Cardoso, Pedro Cardoso.

A certa altura do registro, nota-se a presença de plateia, no caso, da esposa, a poetisa Anna Amélia de Queiroz (1896-1971), casada havia cinquenta anos com Marcos. Na gravação, ela é instada pelos entrevistadores a intervir, e declara um de seus poemas parnasianos dedicados ao arqueiro do Fluminense, de quem se enamora ao vê-lo atuar em campo e nos espaços de sociabilidade clubística que os fazem se conhecer nos idos de 1910. Não se sabe ao certo como do ponto de vista técnico, mas, de modo análogo a um programa de rádio, os entrevistadores reportam perguntas enviadas pela audiência, o que denota a transmissão ao vivo, algo peculiar para o registro.

O ambiente da gravação sonora é permeado por um tom de solenidade, uma vez que se trata de um “depoimento à posteridade”, a endereçar a fonte primária aos consulentes do futuro. O tom solene vem de par com um clima descontraído, informal, de bate-papo. Nele, a roda de entrevistadores transmite a ideia de uma mesa de conversa e, em meio à descontração, contam-se casos pitorescos e curiosidades acerca do passado, filtrados pela memória do entrevistado, muitas vezes instigados pelos irmãos entrevistadores, ou pelo colega futebolista, Paulo Buarque de Macedo, que o relembram de fatos e acontecimentos pretéritos, alguns deles olvidados por Marcos.

Já a segunda entrevista ocorre quinze anos depois, na cidade de São Paulo, para a instituição homônima, o Museu da Imagem e do Som (MIS-SP), a 5 de agosto de 1982. Sobre tal gravação dispõe-se de menos informações e mais conjecturas são necessárias. Deve-se observar que, a despeito da coincidência da homonímia dos museus, trata-se de instituições distintas, com administrações e histórias diferenciadas.

Se o congênere carioca foi alvo de estudos da historiadora Cláudia Mesquita, o MIS paulistano foi objeto de pesquisa de Isabella Lenzi,10 10 Lenzi (2018). uma dissertação de mestrado em museologia. Robusta, com mais de trezentas páginas, a pesquisa se cinge ao primeiro decênio, entre 1970 e 1980, em particular à gestão de Rudá de Andrade.

O MIS-SP foi fundado em 1970 por decreto do governo estadual de São Paulo, também em meio à conjuntura ditatorial, no caso durante o período pós-AI5. Abreu Sodré era o governador paulista à época, sendo filiado à Arena e alinhado ideologicamente ao regime discricionário de então. É bem provável que sua iniciativa derive da inauguração do homólogo carioca e que tenha sido emulado por ele, fruto de um tipo de concorrência interestadual que existia nesse eixo Rio-São Paulo também no plano da cultura. Espaço pioneiro e experimental, a missão precípua do equipamento é a mesma do MIS-Rio, a saber: a produção e difusão de um acervo documental, baseado por sua vez em novas mídias audiovisuais.

A pesquisa de Lenzi não abrange o período nem o escopo das entrevistas dedicadas ao futebol, mas contribui para a contextualização histórica precedente, responsável por criar as condições para sua emergência. Na esteira da série carioca “Depoimentos à Posteridade”, o diretor do MIS-SP de início dos anos 1980 é o fotógrafo e pesquisador da imagem e da história da fotografia no Brasil Boris Kossoy, que assume um projeto semelhante. Este volta-se a diferentes áreas – artes plásticas, carnaval, cinema, estudos brasileiros, folclore, teatro, televisão, entre outros – dentre os quais também figura um consagrado ao futebol.

Para tanto, mobiliza dois membros da Academia da Universidade de São Paulo (USP) para a concepção dessa frente intitulada “História do Futebol Brasileiro”. Pode-se supor que eram parceiros de geração universitária de Kossoy, também com vínculos uspianos na Escola de Comunicações e Artes (ECA): os historiadores José Sebastião Witter e José Carlos Sebe Bom Meihy, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Ambos eram nomes com importância no meio acadêmico local. Witter, formado em história, discípulo de Sérgio Buarque de Holanda na USP dos anos 1970 e 1980, era então o diretor do importante Arquivo Público do Estado de São Paulo. O autor acalentava um interesse prévio pela temática futebolística e chega a publicar nesse momento o livro O que é futebol, sob o selo da propalada coleção “Primeiros Passos”, da editora Brasiliense.

Sebe formara-se doutor em história na USP em 1975 e viria a se tornar referência na história oral no país nos anos subsequentes, incluindo em sua gama de estudos sobre a cultura popular o temário do futebol. Juntos, os dois professores viriam a organizar em 1982, ano da Copa da Espanha, Futebol e cultura: coletânea de estudos, um trabalho que, embora com menos repercussão publica que Universo do futebol, de Roberto DaMatta, lançada no mesmo ano no Rio de Janeiro, constitui um marco pioneiro nos estudos acadêmicos futebolísticos em princípios da década de 1980.

Há semelhanças e diferenças a assinalar no tocante aos dois projetos de entrevistas. Assim como sucede no Rio de Janeiro, em que os entrevistados são moradores da cidade ou do estado, no MIS-SP de princípios da década de 1980 acontece o mesmo, com o convite a desportistas da localidade. Se no Rio o escopo abrange uma categoria mais ampla de interesse – “Esportes” – na capital paulista circunscreve-se o objeto apenas ao Futebol.

O título das séries também permite sugerir uma direção distinta em sua temporalidade. Enquanto o primeiro direciona-se “à posteridade”, logo às gerações futuras, o segundo volta-se à memória dos depoentes, logo à história, de modo a ancorar no passado seu interesse. Ainda que, no fim das contas, os dois projetos tivessem o mesmo propósito, tal detalhe sinaliza para diferentes vetores temporais. Mais uma observação de ordem comparada: os responsáveis pela série no Rio tinham formação jornalística, participavam da vida política e/ou cultural em algum nível, ao passo que em São Paulo a vinculação com a área acadêmica era muito mais estrita, o que ensejava, por via de consequência, articulações com o poder público nas esferas estadual e municipal.

No Rio, ao longo de décadas dilatadas no tempo, contam-se não mais que três dezenas de depoimentos. Já em São Paulo, precisamente entre 1981 e 1984, cerca de quatro dezenas de entrevistas são concentradas e produzidas no MIS local, a grande maioria com futebolistas, treinadores e jornalistas esportivos paulistanos ou paulistas. O universo selecionado compreende desde figuras de antigos personagens, como Feitiço, egresso da geração amadorista, Alfredo Ramos, Djalma Santos e Helio Mafia – um dos primeiros atletas a atuar no futebol do exterior —, passando por ex-goleiros, como Poy, São Paulo, e ex-ídolos, como Rivelino.

Localizou-se ainda uma entrevista com o futebolista Leônidas da Silva, gravada em 1976, antes e fora, portanto, do esquadro cronológico do projeto e cujas circunstâncias seria interessante descobrir, o que não foi possível até o momento. Há ainda uma coleção fotográfica preciosa, sob a rubrica “Memória do Futebol”, cuja relação com o projeto de Witter e Sebe também se desconhece, bem como locuções radiofônicas da Copa de 1970, que também necessita de investigação para a compreensão de seu abrigo no repositório do MIS-SP.

Afora esses pontos fora da curva, ainda incompreendidos, participaram da série “História do Futebol Brasileiro” treinadores em atividade, como Mário Travaglini e Oswaldo Brandão; comparecem também comentaristas esportivos com projeção, a exemplo de Alberto Helena Jr. e Juca Kfouri, então à frente da editoria da revista Placar. Destaque-se em adendo que atletas em atividade, como o lateral do Corinthians, Zé Maria, vão de igual maneira prestar seus depoimentos. Por último, mas não menos importante, vale dizer que, se “Depoimentos à Posteridade” é concebido no bojo das Copas do Mundo de 1966 e 1970, “História do Futebol Brasileiro” orbita no entorno do mundial da Espanha de 1982, e pode ser uma das motivações indiretas para a iniciativa, em meio à reabertura política do país, à redemocratização e às expectativas criadas para a performance brasileira nesse torneio.

Chama a atenção que a coleção de entrevistas do MIS-Rio tenha obtido mais visibilidade entre os pesquisadores, uma vez que, atualmente, o acesso ao acervo do MIS-SP mostra-se mais fácil, mais bem organizado e mais bem documentado para a pesquisa. Enquanto o MIS-Rio demanda visita física às suas dependências para aceder aos áudios, em fitas cassete cujo estado de conservação é desconhecido, o congênere de São Paulo dispõe em seu site das entrevistas audíveis, salvas digitalmente, o que a protege de futuras perdas dos originais. Junto da reprodução técnica, o cuidado arquivístico compreende os metadados estruturados e o registro fotográfico das entrevistas, de modo que se expõem imagens de entrevistados e entrevistadores em ação.11 11 Link para acessar o áudio: https://bit.ly/3QPdjmi.

Ademais, nesse contexto em que cada projeto recrutou, grosso modo, entrevistados residentes em suas respectivas cidades, causa certa surpresa a existência do depoimento do carioca Marcos Carneiro de Mendonça ao MIS-SP. A gravação data de 5 de agosto de 1982, nas dependências não do museu, mas do Arquivo Público do Estado, de que era diretor Witter, responsável pela condução da entrevista com Marcos.12 12 Ao contrário do esperado, os registros sonoros conduzidos por Witter apresentavam uma forma bem mais solta se comparada a uma metodologia de história oral. Embora atrelada a um roteiro, as gravações misturavam elementos da história de vida com debates muito próprios da chamada “falação esportiva” (HOLLANDA, 2013), tão observada nas mesas redondas radiofônicas e televisivas.

Para a entrevista, o diretor é ladeado por José Pedro Pinto Esposel, um dos pioneiros da arquivologia e do ensino de arquivística no Brasil. Não se dispõe de informações capazes de entender as circunstâncias da ida do futebolista a São Paulo, se se tratou de um convite formal, de quem partiu a iniciativa, quem custeou, entre outros dados contextualizadores. Sem embargo, a participação do professor Esposel da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Rio de Janeiro, pode ser um indício da mediação para a presença do goleiro no projeto paulistano do MIS, ainda que nos escapem evidências cabais para tal afirmação.

Uma pista ao menos está dada durante a própria gravação, no sentido de corroborar que é o próprio entrevistado que custeia sua presença na capital paulistana. Quando o entrevistado é instado a avaliar sua importância na história futebolística, ele responde:

quando eu comprei a passagem para vir aqui pra São Paulo, ter o prazer de contar essas histórias nessa reunião, eu apresentei o meu passaporte. Ao ver na passagem Marcos Carneiro de Mendonça, perguntou: “o senhor é que é o Marcos Carneiro Mendonça? O meu pai fala sempre no senhor, falou sempre, é um entusiasta de seu trabalho...”. Mais de sessenta anos depois de eu ter deixado o futebol, ainda tenho desses encontros de pai pra filho, de avô para neta etc. Hoje, quando eu vim pra cá, ainda tive mais essa manifestação.

Sabe-se que Marcos contava então com quase noventa anos de idade. Já era viúvo – Anna Amélia falecera em 1971 – e de há muito seus investimentos autodidatas no campo da história – não universitária, bem entendido – se dava em instituições como o vetusto IHGB. Tais incursões rendiam-lhe o prestígio de historiador da era pombalina e do Brasil colonial, mormente o século XVIII, conforme laureava, durante a segunda entrevista, José Sebastião Witter. O autor publicara diversos artigos na Revista do IHGB e livros de peso, lançados, por exemplo, pela coleção “Brasiliana”, da Editora Companhia Nacional, nos anos 1950 e 1960.

O relato corrobora também que entendia de pedras preciosas e numismática, sendo colecionador tanto de manuscritos quanto de artefatos, dado que aproximava sua prática de pesquisa da tradição historiográfica dos antiquaristas. Reuniu o acervo pessoal do Marquês do Lavradio e dispôs em seus estudos de copiosa documentação internacional, coligida em suas viagens, como aquela feita à Inglaterra, para o garimpo de documentos primários constantes do Museu Britânico, em Londres. Estes serviram de base para suas publicações sobre a Amazônia na era do Marquês de Pombal. Em decorrência disso, sua residência – um casarão na zona sul do Rio, tombado e ainda hoje existente – passou a ser chamado de “Arquivo do Cosme Velho”.

A gravação em São Paulo tem duração de uma hora e 53 minutos, ao passo que a ocorrida no Rio conta quase duas horas e 45 minutos. Para o MIS-SP, ela começa de modo informal, como se a conversa já tivesse principiado antes do acionamento do gravador. Marcos narra cenas de sua técnica de goleiro e performa, conforme se depreende de foto, seu modo de encaixe das bolas nas mãos.


Enquanto concede entrevista ao MIS-SP, o ex-goleiro Marcos de Mendonça põe-se de pé e simula o modo como encaixava a bola em seu corpo, durante atuações no período amadorista do futebol, nos anos 1910.

Em seguida, Witter formaliza a gravação e dá início ao relato. Este superpõe aspectos da história de vida, o que vai de par com a suposta linearidade e uma problemática “unidade do eu”.13 13 Alberti (2000, p. 3). Seja como for, o relato dá ensejo a rememorar suas viagens à Europa e à África, a tratar de sua iniciação à pesquisa histórica na aquisição de arquivos em Portugal, e evocar lembranças mais específicas sobre o mundo futebolístico que testemunhou e de que foi expoente.

Dito isso, a terceira, última e principal seção do texto contempla uma análise mais detida sobre as duas entrevistas depositadas no MIS-Rio e no MIS-SP, com ênfase cerrada na reconstituição do futebol “de seu tempo”, na representação dos valores associados à sua prática e na atribuição reiterada da chancela de pioneiro futebolista, com a intenção de consolidar seu legado à posição de goleiro.

COTEJANDO RELATOS ORAIS: A PERSONA NOS PÍNCAROS DA MEMÓRIA

Uma vez apresentados o perfil de cada MIS e as vicissitudes institucionais de cada entrevista, passemos doravante a seu conteúdo. Um primeiro dado notável diz respeito à grande distância temporal entre o relato concedido e os fenômenos rememorados. Conforme assinalado antes, a carreira futebolística de Marcos vai de 1910 a 1919, quando integra diferentes clubes cariocas: primeiro o Haddock Lobo; depois o América; e por fim o proeminente Fluminense, que lhe rende títulos e fama. O decênio é marcado também pela representação no quadro nacional, com destaque para a sua atuação na Copa Roca de 1914 e no Sul-Americano de 1919, o que lhe confere projeção internacional.

Segundo o depoente, a pedido do tricolor carioca, retorna aos campos de futebol em 1921, dois anos depois de encerrada a carreira. Isso se dá em um momento de crise do time das Laranjeiras. O retorno enseja ainda a atuação em algumas partidas no Sul-Americano de 1922, em que se sagra bicampeão pela seleção. Na entrevista, afirma que a última partida acontece em 1924, quando encerra em definitivo sua participação no futebol.

Está-se, pois, em face de episódios ocorridos há cerca sessenta anos no primeiro depoimento e de setenta anos, no segundo caso. Não obstante, impressiona a riqueza de detalhes e o modo cristalino com que relembra lances das partidas, performance dos atletas e em especial momentos determinados da sua atuação em campo. Há uma renitente predisposição em destacar as características virtuosas de um goleiro e o tirocínio de sua contribuição à posição, quando não à exaltação de seu pioneirismo, endossada pelos entrevistadores no decurso da gravação. A função defensiva e o resguardo da meta ocupam grande parte das duas entrevistas, o que se traduz em relatos mnemônicos eminentemente internalistas, isto é, associados à enumeração dos aspectos intrínsecos ocorridos no campo de jogo.

O caráter obsessivo com a técnica e com o domínio corporal elide durante a maior parte das entrevistas o contexto social, político e cultural, conquanto este se manifeste aqui e ali de forma lateral e incidental. Ele é acionado, por exemplo, para explicar sua opção pelo gol, consequência de sua debilidade física e dos inúmeros problemas de saúde pública que acossaram a cidade do Rio na Primeira República (1889-1930). A contextualização também vem à tona quando interpelado pelos entrevistadores a comentar sua escolha, ao que responde com uma espécie de mantra de sua “filosofia de vida”: “tudo na minha vida foi por acaso”.

Enfatiza-se, no entanto, que os elementos contextuais se manifestam de modo secundário, porquanto, sobretudo na entrevista acontecida no Rio de Janeiro, os responsáveis pelas questões são peritos da crônica esportiva, familiares do jogador e colegas de amadorismo, atendo-se à memorialística do futebol e de suas competições. Na segunda, como se verá, o perfil acadêmico dos entrevistados e o maior distanciamento em nível pessoal entre quem pergunta e quem responde fazem com que a entrevista tenha um acento maior na trajetória a posteriori no futebol e que elementos sociológicos apareçam com mais expressão.

Nesse sentido, acentuam-se pedidos para destacar seus pares goleiros na época – Norris do Rio Cricket, Alvarenga do América, Werneck do Botafogo, Amado do Flamengo e Waterman do Fluminense –, para exemplificar suas influências prévias, para abordar referências na proteção do gol, mas também para a consecutiva afirmação de sua singularidade e de sua condição de modelo para a escola dos que vieram depois. O interesse principal incide no aprofundamento de seu estilo – a “pegada à Marcos” – e no aprofundamento de seu diferencial técnico. Este é o tema que parece mais satisfazer ao atleta, o que compreende desde a materialidade da bola até a reconstituição de situações de jogo em que se destacou, passando por idiossincrasias, como sua aversão ao uso de luvas e tornozeleiras, fundamentadas em elementos estritamente técnicos.

A entrevista apela com frequência também a um modo tradicional de organizar o discurso, qual seja, o contraste entre um futebol de “ontem” e um futebol de “hoje”. A temporalidade é, no geral, fluida e subentendida. Interpola-se um amadorismo genérico a um profissionalismo igualmente vago. Essa clivagem é recorrente e divide a narrativa entre o “meu tempo” na experiência do goleiro e o tempo “dos outros” na voz do mesmo narrador. Trata-se daquele de que não participou mais em campo, mas cujas transformações acompanhou e sobre as quais tem suposta autoridade para emitir juízos de valor comparativo.

Não deixa de haver, aqui e ali, remissões contextuais extracampo. Por exemplo, como dito, a recorrente naturalização do seu discurso passa por uma justificativa médica para a definição da sua condição de goleiro, em detrimento “da linha”. Nesse sentido, justifica sua posição em função de uma “deficiência física” de saúde que o compromete em princípios do século e que o impedia de correr e de tudo que implicasse esforços de maior monta. Depois de vitimar uma prima-irmã, Helena, e sua avó materna, a febre amarela e outras enfermidades públicas em alta sobressaltam os moradores da cidade do Rio de Janeiro.

Sendo assim, ainda em tenra idade, uma prescrição médica diagnostica arritmia no coração, identifica litros de líquido na pleura e impede-o, afinal, de correr. Na versão de seu relato, amparado na ciência, o gol torna-se a única alternativa restante. Sob orientação do professor Pedro de Almeida Magalhães, no Externato Aquino, onde fez os estudos secundários, é proibido também de cursar ginástica pelo professor Miguel –14 14 Sobrenome não informado. os nomes desses docentes só aparecem na entrevista de 1982.

A decisão é afinal autorizada a contragosto pelo pai, Alberto Carneiro de Mendonça, que também era do ramo dos esportes. O caráter precursor paterno é assim narrado na primeira entrevista:

o nosso pai Alberto Carneiro de Mendonça, que viveu muitos anos na Europa, que foi quem introduziu aqui como nadador eficiente que era, esse overarm, quer dizer aquele modo de nadar que depois o Abrão Salituri, foi campeão aqui muitos anos, ninguém o vencia etc. Meu pai praticamente foi que introduziu isso aqui, ele além disso era um grande patinador, saltava de vara como nós, e então ele me ensinou todos os movimentos para o exercício, que eu passei a fazer sistematicamente, eu creio que no mínimo em quarenta minutos a cinquenta ou uma hora a cada dia, e inclusive uns dez minutos de respiração. De maneira que isso deu o desenvolvimento, para que eu ficasse com saúde bastante boa até hoje. Graças a essa norma de preparação física que eu adotei. Somente e exclusivamente aquela preparação de braço, de busto, de cintura, e de pernas que o nosso pai me ensinou.

Em ambas as gravações, ainda que não haja qualquer procedimento metodológico consciente em fazer de uma “história de vida”, o ex-goleiro é demandado a retraçar sua genealogia. O recurso é adotado pelo entrevistador de modo intuitivo em mais de uma entrevista, ainda que a pergunta pelas origens familiares não aconteça no início, como de praxe. Com efeito, iniciam diretamente nos fatos mais marcantes da carreira, no acento ao que o depoente considera de notório e de notável, para tão somente no meio do relato questionar sobre a família e o pertencimento social.

No MIS-SP, já transcorrida metade da entrevista, José Sebastião Witter resolve formalizar a gravação e diz:

Então beleza! Tá bom, eu vou fazer agora a gravação oficial aqui. Já começou, já começamos a gravar, então Marcos Carneiro de Mendonça que está conosco aqui e vai passar com esta fita a fazer parte da memória do Museu da Imagem e do Som de São Paulo no projeto “Memória do Futebol Brasileiro”. Então, o senhor Marcos Carneiro de Mendonça vai começar fazendo uma identificação. Marcos Carneiro de Mendonça nascido tal pai, mãe, família, que é uma coisa bonita do senhor que você já me mostrou que tem e isso me deixa muito feliz que eu também tenho uma família muito bonita. Então, eu gostaria que realizasse primeiro, o registro.

Por sua vez, tal anúncio parece ir ao encontro dos anseios do então historiador, cioso em acentuar a trajetória de sua linhagem familiar e o percurso de sua infância. Reserva parte significativa da entrevista a abordar os ancestrais oriundos de fazendas mineiras. Migrantes estabelecidos no sul de Minas no século XVIII – alude-se às cidades de Barbacena e Poços de Caldas –, a família em seguida radica-se na Zona da Mata mineira, mais precisamente na cidade de Cataguases. Faz o panegírico dos “grandes fazendeiros de Paracatu”, sob a liderança do coronel Joaquim Carneiro de Mendonça, com papel de destaque na Revolução Liberal de 1842. Ao discorrer sobre sua árvore genealógica, apraz-se em mencionar ainda o tio-avô Visconde de Abaeté e em acentuar personagens históricos, como parentes signatários do Manifesto Republicano de 1870.

Nascido em 1895, é na transição para o século XX que os familiares, premidos por restrições econômicas críticas no cultivo do café, transferem-se para o Rio de Janeiro e reiniciam a vida na capital no ano de 1902. Nesses momentos, o depoimento é pródigo em rememorar referências às elites políticas da capital e às figuras de bacharéis – médicos, engenheiros e juristas – alguns deles atuantes no próprio meio futebolístico. Ademais, avultam fatos e personagens. Destaca-se a proximidade do sogro com Euclides da Cunha e sua lembrança de presidentes da Primeira República, tais quais Marechal Hermes da Fonseca, Campos Salles, Rodrigues Alves e Afonso Pena.

Uma marca que denota seu apego à época de que fala – transcorrido mais de meio século – é o uso dos termos do futebol em seus vocábulos originais. Isso começa pelo “goal-keeper”, assim pronunciado, bem como pelas demais posições em campo: full-back, half-back, center-half e forwards. Lances de jogo também permaneceram anglicizados, com a mobilização dos termos offside e free kick, entre outros. Em seu discurso, teria havido um “amadorismo puro” e um “pseudoamadorismo”, cujo marco divisório é a Grande Guerra (1914-1918). O depoente demarca diferenças do que era aceitável entre os futebolistas em seu tempo e que causa estranheza no tempo presente, a exemplo da permissão dos atacantes adversários atingirem o corpo do goleiro. Nesses casos, o gol era validado pelo juiz sem a correspondente marcação da falta.

Percebe-se o esmero de Marcos em se deter sobre detalhes do nível da fisiologia, cujas tecnicalidades descritivas impressionam no áudio. O relato oral detalha o modo de segurar a bola, o posicionamento em relação às traves, a colocação dos defensores na grande área, os golpes de vista, a velocidade dos arqueiros vis-à-vis dos atacantes oponentes, entre outros pormenores. Na dicção de Marcos, o modo pormenorizado como operam as articulações do corpo – joelhos, glúteos, braços – conjuga a intuição do instante e um tipo de reação behaviorista implicado no ato de defesa. Eis suas próprias palavras:

Todos sabem, todos já foram a um circo, já viram um grande trapezista. Não é força, é movimento, é aproveitamento de movimento. E a profissão de goal-keeper, tem que ser a de aproveitamento de movimento. Então casado o golpe de vista, casada a colocação, e casada então o controle da bola iminente, a gente sente nitidamente o momento em que o corpo tem que se despencar, para receber a bola rasteira. Quando o corpo se despenca, e que os glúteos tocam o calcanhar, nesse momento a bola tem que estar entrando na mão. Quanto mais força tiver a bola melhor, o glúteo bate e recebe o empuxo de baixo pra cima. Quando ele recebe o empuxo de baixo pra cima, e então já o que funciona são os joelhos. Então há um desdobramento de força... vem, abaixa, suspende, e o joelho já está em pé, e quando então há o movimento, quanto mais força melhor ele vem por cima. Então a gente joga a bola no chão com toda a força, e sai com ela dominada. Isso se faz numa fração de segundos. Eis a coisa muito agradável, e a técnica que eu acho que desenvolvi sem que nenhum outro goal-keeper da época tenha podido dominar inteiramente isso.

Os requisitos fisiológicos são complementados com a seriedade do preparo físico individual, pelo apuramento do estilo – distinto dos usuais pontapés – e da compleição atlética requeridos. A certa altura da primeira entrevista, um dos irmãos frisa seu hábito de treinar em casa com o uso de laranjas. Essa é, sem dúvida, a principal preocupação do entrevistado no realce de sua figura nas duas gravações e ocupa, em ambas, grande extensão de seu relato. Se a retórica da humildade é acionada para a autoapresentação de alguém desprovido de vaidade, são terceiros, como Paulo Buarque de Macedo, que insiste em exaltá-lo como modelar desportista, cujo etos é timbrado pela lealdade, correção, esforço, tenacidade e dedicação, para reproduzir predicados empregados pelo entrevistador.

Se essa é a tônica do discurso, há lembranças em 1982 que não se encontram em 1967, e vice-versa. No nível futebolístico, a segunda entrevista faz alusões às excursões de times internacionais em visita ao Brasil, a exemplo do “scratch” dos Browns da Argentina (alusão ao time portenho de Jorge e Juan Brown) e do Corinthians da Inglaterra. Quanto a este último, cuja passagem no Brasil data de 1910, descreve lances que assistira das arquibancadas. Narra a virada da equipe inglesa, que, após começar perdendo, reverte o placar da partida para um sensacional 10 a 1 contra a equipe das Laranjeiras.

Outra rememoração existente no segundo relato e inexistente no primeiro depoimento são as viagens internacionais à Europa e à África. A emulação para tais narrativas no exterior decorre do interesse do historiador José Sebastião Witter pela conversão de Marcos ao campo da história. Refere-se a seus trabalhos de pesquisa com documentos do século XVIII na Feira da Ladra (atual mercado Santa Clara), em Lisboa e a seu périplo por diversos países africanos com que trava contato – África do Sul, Moçambique, Angola, Congo Belga, Senegal – sendo recebido por reitores universitários, tal qual o caso da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e por autoridades estaduais, haja vista a recepção do governador de Lourenço Marques, atual Maputo.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Seria possível ainda nos delongarmos na seção anterior com conteúdos anedóticos e informações pitorescas abordadas por Marcos de Mendonça nas suas entrevistas. Mas, para fins deste texto, considera-se que o fundamental foi exposto. Procurou-se primeiro argumentar que as duas gravações podem ser tratadas como um continuum, isto é, um único relato, ainda que interrompidas em quinze anos no tempo. A capacidade reiterativa da memória filtra e condensa na percepção subjetiva o que é considerado digno de rememoração.

Por outro lado, o cotejo das entrevistas mostra que, para além do esperado mecanismo atávico de repetição de histórias consagradas, a discrepância no conjunto de dados futebolísticos e contextuais é grande, operando o que chamamos de um “deslocamento da memória”. Tal diferença se deve ao acionamento de reminiscências do futebol que decorrem de elementos não esperados – a evocação de um jogo, a alusão a determinado atleta, a figuração da circunstância específica de uma partida –, que mostram a profusão “oceânica” do ato de recordação, tendo em vista uma carreira de cerca de uma década e de duzentas partidas ao todo performadas.

Em moldes halbwachianos, poderia ser feita uma teorização tradicional em torno da memória coletiva, para reconsiderar os contornos limítrofes entre o que se apaga socialmente e o que se preserva subjetivamente, e vice-versa. De nossa parte, importa-nos salientar que a dialogia entrevistador-entrevistado, o dispositivo recordatório e a interação entre eles explicam as persistências ao mesmo tempo que as novidades aportadas na segunda abordagem.

Enquanto a diferença de contexto temporal de quem fala no final dos anos 1960 e de quem emite juízos sobre fatos pretéritos no início da década de 1980 não pode ser desconsiderada, queremos aqui sublinhar a condição decisiva do direcionamento das perguntas entre a primeira e a segunda gravações como fator diferencial para o curso do testemunho.

Se a familiaridade e a intimidade no MIS-Rio, espécie de “casa” onde depõe Marcos, chamam a atenção da entrevista inaugural da série “Depoimentos à Posteridade – Esporte”, o cenário paulistano é bem diferente. Nesse segundo caso, não são parentes próximos ou especialistas do meio esportivo, mas acadêmicos até então desconhecidos do depoente, em especial o historiador Witter, que direcionam as questões e encaminham as respostas. Donde o caráter indutor dos propósitos em jogo. Em São Paulo, Marcos não é o protagonista inaugural da série “Memória do Futebol”, embora a reverência para com a figura do futebolista ancião seja inconteste. No escopo do projeto, sua entrevista é a décima e, sua presença, deslocada do ambiente carioca de onde vem e onde construiu sua reputação, torna-se uma contribuição importante, mas, por assim dizer, excêntrica.

Talvez, por isso, as expectativas ao redor de um discurso de reiteração do consabido sobre o amadorismo e seu suposto “ciclo heroico” adquiram também outros caminhos, como aquele que se volta retrospectivamente para a sua reconversão de futebolista em historiador do Brasil colônia. Aos olhos do entrevistador, o Marcos historiador torna-se tão importante quanto o Marcos futebolista, e em vista disso boa parte da gravação envereda por essa faceta.

O exercício aqui intentado constitui um esforço inicial aproximativo, dentro de um quadro mais amplo do reúso de entrevistas e do potencial analítico que antigas coleções de relatos orais ensejam. Destas, os casos do MIS-Rio e do MIS-SP são os mais chamativos, porquanto permitem uma agenda de pesquisa em várias frentes, a saber:

  1. Questões gerais sobre trajetórias, narrativas e histórias de vida.

  2. Questões teóricas acerca da díade história e memória esportiva.

  3. Questões metodológicas sobre as entrevistas sonoras antes do estabelecimento da história oral como metodologia científica.

  4. Leituras de conjunto por coleção.

  5. Leituras cruzadas entre as duas coleções.

  6. Leituras focadas em uma única entrevista.

  7. Cotejo entre entrevistados que gravaram para diferentes séries.

  8. Cotejo entre entrevistados que gravaram para diferentes séries, como o exemplo do goleiro Marcos.

  9. Seleção por área de atuação do depoente: atletas, jornalistas, treinadores, dirigentes, juízes.

  10. Recorte por modalidade esportiva, por geração, por equipe, por posição.

Se a incursão exploratória deste artigo servir de estímulo para que novos pesquisadores se interessem por tais coleções de fontes orais, então este texto terá cumprido um de seus objetivos precípuos.

REFERÊNCIAS Livros, artigos e teses

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  • SILVA, Marcelino Rodrigues da. Quem desloca tem preferência: ensaios sobre futebol. Belo Horizonte: Relicário, 2014.
  • 2
    Cf. Pereira (1997)PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Pelos campos da nação: um goal-keeper nos primeiros anos do futebol brasileiro. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, p. 23-40, 1997., Silva (2014)SILVA, Marcelino Rodrigues da. Quem desloca tem preferência: ensaios sobre futebol. Belo Horizonte: Relicário, 2014. e Silva (2019)SILVA, Diana Mendes Machado da. Futebol e cultura visual: a construção da figura do craque: Marcos Carneiro de Mendonça e Leônidas da Silva (1910-1942). 2019. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019..
  • 3
    Máximo e Castro (2011)MÁXIMO, João; CASTRO, Marcos de. Gigantes do futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011..
  • 4
    Cf. Needell (1993)NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993..
  • 5
    Silva (2006, p. 33)SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006..
  • 6
    Ibid., p. 39SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006..
  • 7
    Ibid., p. 41SILVA, Marcelino Rodrigues da. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mário Filho. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006..
  • 8
    Mesquita (2009)MESQUITA, Cláudia. Um museu para a Guanabara: Carlos Lacerda e a criação do Museu da Imagem e do Som. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2009..
  • 9
    A dinâmica das entrevistas seguia um padrão na definição do time de entrevistadores a cada gravação. No geral, membros da Comissão Executiva dos Esportes do MIS representavam a instituição, a que se somavam personalidades públicas conhecidas do entrevistado ou mesmo familiares, além de especialistas com reputação de notoriedade no universo dos esportes. A entrevista transcorrida em 1967, com o treinador Gentil Cardoso, contou com a participação de Luís Mendonça, secretário da comissão; Geraldo Pedroso, membro da comissão; Ricardo Cravo Albin, diretor executivo do MIS; Zélio Marins Davi e o filho de Gentil Cardoso, Pedro Cardoso.
  • 10
    Lenzi (2018)LENZI, Isabella. O Museu da Imagem e do Som de São Paulo: o processo de criação e as diretrizes iniciais. 2018. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018..
  • 11
    Link para acessar o áudio: https://bit.ly/3QPdjmi.
  • 12
    Ao contrário do esperado, os registros sonoros conduzidos por Witter apresentavam uma forma bem mais solta se comparada a uma metodologia de história oral. Embora atrelada a um roteiro, as gravações misturavam elementos da história de vida com debates muito próprios da chamada “falação esportiva” (HOLLANDA, 2013)HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Mesas-redondas: da falação esportiva ao futebol falado. In: HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MELO, Victor Andrade de (org.). Olho no lance: ensaios sobre futebol e televisão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. p. 120-147., tão observada nas mesas redondas radiofônicas e televisivas.
  • 13
    Alberti (2000, p. 3)ALBERTI, Verena. Indivíduo e biografia na história oral. Rio de Janeiro: CPDOC, 2000..
  • 14
    Sobrenome não informado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2023
  • Aceito
    27 Out 2023
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