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Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX

Resumos

Este artigo traz considerações sobre a análise histórica de imagens fotográficas, aplicando as propostas teórico-metodológicas apresentadas a uma série fotográfica composta pelas imagens de duas revistas ilustradas, Careta e O Cruzeiro, publicadas na cidade do Rio de Janeiro entre 1900 e 1960. Por meio da análise da mensagem fotográfica relaciona-se a elaboração dos códigos de comportamento de classe às suas representações sociais.

Fotografia; Revistas ilustradas; Rio de Janeiro; Careta; O Cruzeiro; Representações sociais


This article presents a historical approach for the analysis of photographic images, followed by the application of these theoretical and methodological considerations to a series of photographs issued in two popular magazines, published in the city of Rio de Janeiro between 1900 and 1960. Through the analysis of the photographic message, class behaviour codes are related to their social representations.

Photography; Ilustrated magazines; Rio de Janeiro; Careta; O Cruzeiro; Social representations


ESTUDOS DE CULTURA MATERIAL

Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX1 1 . Este trabalho inscreve-se no projeto de pesquisa intitulado Através da imagem:memória e história do fotojornalismo no Brasil contemporâneo, financiado pelo CNPq (agosto 2002-fevereiro 2005), sendo também um dos resultados do estágio de pós-doutorado realizado, entre setembro de 2003 e janeiro de 2004, junto à equipe do Serviço de Documentação Textual e Iconografia do Museu Paulista composta pelas doutoras Solange F. Lima e Vânia C. Carvalho.

Ana Maria Mauad

Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e Laboratório de História Oral e Imagem da UFF

RESUMO

Este artigo traz considerações sobre a análise histórica de imagens fotográficas, aplicando as propostas teórico-metodológicas apresentadas a uma série fotográfica composta pelas imagens de duas revistas ilustradas, Careta e O Cruzeiro, publicadas na cidade do Rio de Janeiro entre 1900 e 1960. Por meio da análise da mensagem fotográfica relaciona-se a elaboração dos códigos de comportamento de classe às suas representações sociais.

Palavras-chave: Fotografia. Revistas ilustradas. Rio de Janeiro. Careta. O Cruzeiro. Representações sociais.

ABSTRACT

This article presents a historical approach for the analysis of photographic images, followed by the application of these theoretical and methodological considerations to a series of photographs issued in two popular magazines, published in the city of Rio de Janeiro between 1900 and 1960. Through the analysis of the photographic message, class behaviour codes are related to their social representations.

Keywords: Photography. Ilustrated magazines. Rio de Janeiro. Careta. O Cruzeiro. Social representations.

Ao longo da década de 1990, a produção historiográfica sobre a imagem, notadamente a fotografia, ampliou-se de forma significativa2 2 . Três trabalhos publicados ao longo dessa década são importantes referências para se mapear as transformações neste campo de estudos: CARVALHO, 1994, p. 253-300; TURAZZI, 1998;MAUAD, 2000. coordenando a problemática dos saberes de ordem técnica aos seus usos sociais. Tal movimento aliou-se a um investimento transdisciplinar que visou a superar os limites da análise histórica do gênero iconográfico, buscando em diferentes disciplinas das Ciências Sociais uma inspiração metodológica renovadora.

O presente artigo procura articular a discussão teórico-metodológica mais ampla, sobre visualidade e história, a uma análise mais apurada da linguagem fotográfica, relativa à modalidade de registro visual produzido pela mídia impressa. A escolha da série recaiu sobre as imagens fotográficas veiculadas em duas revistas ilustradas de críticas de costumes que circulavam na cidade do Rio de Janeiro, quando capital federal, durante mais de 50 anos, são elas: Careta e O Cruzeiro. Tais fotografias compunham o circuito social da fotografia no Novecentos, conjuntamente com aquelas concernentes ao espaço doméstico e íntimo das frações da classe dominante, no seu processo de aburguesamento. Conjuga-se assim, a educação do olhar, promovida pela ampla circulação de determinados tipos de fotografias, à consolidação dos códigos de comportamento e representações sociais que passavam a regular as relações no processo de produção de sentido social hegemônico.

Como forma de sistematizar adequadamente tal proposta, dividi o artigo em duas partes: uma primeira voltada para a exposição dos quadros de análise histórico-semiótica de séries fotográficas (sem aprofundar na problemática ontológica da imagem fotográfica); e uma segunda, cujo objetivo, nos limites deste artigo, é o de aplicar tal análise a uma série específica de imagens composta pelas fotografias das Ilustradas.

Primeira parte

Desde as últimas décadas do século XIX a percepção visual do mundo foi marcada pela utilização de dispositivos técnicos para a produção das imagens. A demanda social de imagens foi se ampliando ao longo do século XX a ponto de podermos contar a sua história por meio das imagens técnicas, notadamente, a fotografia. Sendo assim, as imagens técnicas em sua dimensão de documentos e monumentos da história contemporânea devem ser trabalhadas a partir da ampliação da noção de testemunho, à maneira de Bloch.

Tal procedimento engendra alguns desdobramentos teórico-metodológicos, dentre os quais realçamos os processos de produção de sentido na sociedade contemporânea, com destaque para o papel desempenhado pela tecnologia; a definição do circuito social da produção de imagens técnicas, enfatizando a historicidade dos regimes visuais; o papel dos sujeitos sociais como mediadores da produção cultural, compreendendo que a relação entre produtores e receptores de imagens se traduz numa negociação de sentidos e significados; e a capacidade narrativa das imagens técnicas, discutindo-se aí a dimensão temporal das imagens, os elementos definidores de uma linguagem eminentemente visual e por fim o diálogo estabelecido entre imagens técnicas e outros textos, tanto de caráter verbal como não-verbal, a partir do princípio de intertextualidade.

Desse conjunto de desdobramentos podemos sintetizar os três principais aspectos ao considerarmos as imagens visuais:

A questão da produção – o dispositivo que media a relação entre o sujeito que olha e a imagem que elabora. Por meio dessa atividade de olhar ocorre a manipulação de um dispositivo de caráter tecnológico que possui determinadas regras definidas historicamente.

A questão da recepção – associada ao valor atribuído à imagem pela sociedade que a produz mas também a recebe. Na medida em que esse valor está mais ou menos balizado pelos efeitos de realismo da imagem, ele apontará para a conformação histórica de certo regime de visualidade. Portanto, se a questão da relação da imagem com o seu referente e o grau de iconicidade dessa imagem é uma questão estética, seu julgamento (ou apropriação) tem a ver com as condições de recepção e de como, por meio dessa, atribui-se valor à imagem: informativo, artístico, íntimo, etc.

A questão do produto – entende-se aí a imagem consubstanciada em matéria, a capacidade da imagem potencializar a matéria em si mesma, como objetivação de trabalho humano, resultado do processo de produção de sentido e relação sociais. Compreendida como resultante de uma relação entre sujeitos, a imagem visual engendra uma capacidade narrativa que se processa numa dada temporalidade. Estabelece, assim, um diálogo de sentidos com outras referências culturais de caráter verbal e não-verbal. As imagens nos contam histórias (fatos/acontecimentos), atualizam memórias, inventam vivências, imaginam a história.

Fotografia, visualidade e conhecimento

A história da fotografia confunde-se com as diferentes abordagens que, em diversos momentos do pensamento ocidental, aplicou-se à imagem fotográfica. A idéia de que o que está impresso na fotografia é a realidade pura e simples já foi criticada por diferentes campos do conhecimento, desde a teoria da percepção até a semiologia pós-estruturalista. A própria crítica à essência mimética da imagem fotográfica já envolve um exercício de interpretação dessa imagem, datado e, por conseguinte, historicamente determinado.

Percebendo tal problemática, o filósofo francês Philipe Dubois, no primeiro capítulo do seu já clássico livro O ato fotográfico, apresenta dois momentos dessa crítica3 3 . A discussão sobre o realismo fotográfico pode ser encontrada também em outros autores, no entanto, optei pela abordagem de Dubois pelo seu caráter sistemático. Para um aprofundamento da crítica ao realismo fotográfico ver BURGIN, 1982;TAGG, 1988; BARTHES, 1977, 1980; SONTAG, 1977; BOURDIEU, 1990; SOLOMON-GODEAU, 1991. :

A fotografia como transformação do real (o discurso do código e da desconstrução).

A fotografia como o vestígio de um real (o discurso do índice e da referência).

No primeiro, a crítica fundamental residiria na ilusão arquitetada pelos efeitos do realismo fotográfico. A fotografia, segundo diferentes setores associados a essa crítica, é um discurso feito a partir da realidade, descolando-se completamente dela à medida que criava a sua representação de acordo com uma série de códigos convencionados socialmente. Desde a crítica que desnaturaliza a imagem, segundo critérios perceptivos – a fotografia é bidimensional, plana, com cores que em nada reproduzem a realidade (quando não é em preto-e-branco), puramente visual, excluindo outras formas sensoriais como o olfato e o tato –, até a crítica ao convencionalismo da visualidade ocidental tributária da perspectiva renascentista, incluindo-se aí todo um conjunto de "denúncias" contra a encenação fotográfica, a fotografia foi sendo considerada como mero efeito do real.

O grande problema desse primeiro momento da crítica à imagem fotográfica, apontado por Dubois, é desconsiderar a realidade empírica que fundamenta os discursos imagéticos, operando, exclusivamente, sobre eles. Nesse sentido, não haveria realidade fora dos discursos que a revelam.

Já a segunda postura crítica em relação ao realismo fotográfico ultrapassa os processos de desconstrução discursiva, retomando, em outro nível, a questão do referente, ou ainda da materialidade da imagem fotográfica. O ponto de partida é compreender a natureza técnica do ato fotográfico, a sua característica de marca luminosa, daí a idéia de indício, de resíduo da realidade sensível impressa na imagem fotográfica. Em virtude desse princípio, a fotografia é considerada como testemunho: atesta a existência de uma realidade. Como corolário desse momento de inscrição do mundo na superfície sensível, seguem-se as convenções e opções culturais historicamente realizadas.

Portanto, o segundo passo é entender que entre o objeto e a sua representação fotográfica interpõe-se uma série de ações convencionalizadas, tanto cultural como historicamente. Afinal de contas, existe uma diferença bastante significativa entre uma carte de visite e um instantâneo fotográfico de hoje. Por fim, há de se considerar a fotografia como uma determinada escolha realizada num conjunto de escolhas possíveis, guardando nessa atitude uma relação estreita com a visão de mundo daquele que aperta o botão e faz clique.

É, justamente, por considerar todos esses aspectos, que as fotografias nos impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim imprimem em nosso espírito sentimentos diferentes. Cotidianamente, consumimos imagens fotográficas em jornais e revistas que, com o seu poder de comunicação, tornam-se emblemas de acontecimentos, como aquela já famosa foto da menina vietnamita correndo com o corpo queimado de napalm, durante a Guerra do Vietnã. A simples menção da foto já nos remete aos fatos e aos seus resultados.

Por outro lado, também faz parte da nossa prática de vida fotografar nossos filhos, nossos momentos importantes e os não tão significativos. Um elenco de temas que vai desde os rituais de passagem até os fragmentos do dia-a-dia no crescimento das crianças. Apreciamos fotografias, as colecionamos, organizamos álbuns fotográficos, em que narrativas engendram memórias. Em ambos os casos é a marca da existência das pessoas conhecidas e dos fatos ocorridos que salta aos olhos e nos faz falar "Olha só como ele cresceu!", ao vermos a foto recém-chegada da revelação.

Desde a sua descoberta até os dias de hoje, a fotografia vem acompanhando o mundo contemporâneo, registrando sua história numa linguagem de imagens. Uma história múltipla, constituída por grandes e pequenos eventos, por personalidades mundiais e gente anônima, por lugares distantes e exóticos e pela intimidade doméstica, pelas sensibilidades coletivas e ideologias oficiais. No entanto, a fotografia lança ao historiador um desafio: como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?

História e imagem, problemas e soluções possíveis

Não é de hoje que a história proclamou sua independência dos textos escritos. A necessidade dos historiadores em problematizar temas pouco trabalhados pela historiografia tradicional levou-os a ampliar seu universo de fontes, bem como a desenvolver abordagens pouco convencionais à medida que se aproximavam das demais ciências sociais em busca de uma história total. Novos temas passaram a fazer parte do elenco de objetos do historiador, dentre eles a vida privada, o cotidiano, as relações interpessoais, etc. Uma microhistória que, para ser narrada, não necessita perder a dimensão macro, social e totalizadora das relações sociais. Nesse contexto, uma história social da família, da criança, do casamento, da morte etc. passou a ser contada, demandando, para tanto, muito mais informações que os inventários, testamentos, curatela de menores, enfim, tudo o que uma documentação cartorial poderia oferecer. A tradição oral, os diários íntimos, a iconografia e a literatura apresentaram-se como fontes históricas da excelência das anteriores, mas que demandavam do historiador uma habilidade de interpretação com a qual não estava aparelhado. Tornava-se imprescindível que as antigas fronteiras e os limites tradicionais fossem superados. Exigiu-se do historiador que ele fosse também antropólogo, sociólogo, semiólogo e um excelente detetive para aprender a relativizar, desvendar redes sociais, compreender linguagens, decodificar sistemas de signos e decifrar vestígios, sem perder, jamais, a visão do conjunto.

Michel Vovelle, na primeira parte de Ideologias e mentalidades, discute a relação entre iconografia e história das mentalidades, destacando a sua utilização por parte dos historiadores da Idade Média que – ao analisarem ex-votos, altares, estátuas, etc. – buscaram traçar tanto uma geografia do sagrado como o perfil das sensibilidades coletivas no passado. As questões levantadas por Vovelle convergem para uma única questão: "Pode-se, efetivamente, elaborar uma verdadeira semiologia da imagem?"4 4 .VOVELLE, 1987, p. 93. .

A essa pergunta o coro de respostas não é unívoco, muito menos consensual, e engloba propostas das mais diversas, incluindo o estudo do mito, o trabalho lingüístico, a abordagem filosófica, a avaliação estética e a discussão sobre o tipo de mensagem que as iconografias transmitem, segundo a abordagem da comunicação, métodos quantitativos, etc.

Nesse âmbito, como no anterior, a diversidade converge para um ponto único: a questão da grade interpretativa. Que unidades comporiam a grade de interpretação das imagens do passado? Mais uma vez, tal como no jogo infantil de encaixe, ao tirarmos uma caixa encontramos outra. Cabe, portanto, as perguntas: como interpretar as imagens produzidas no passado? Qual a natureza da produção imagética? Essa produção é invariável ou possui condicionantes históricos? Será a imagem das pinturas, dos desenhos, da estatuária sagrada, dos vitrais das capelas medievais, da mesma natureza que as imagens técnicas, a exemplo das do cinema e da fotografia? São esses questionamentos que complicam e enriquecem o trabalho do historiador dedicado à análise de fontes não-verbais. Dessa forma, como bem aponta Michel Vovelle, "as interrogações que hoje se colocam são antes uma prova de saúde do que de enfermidade"5 5 .VOVELLE,1987, p.102. .

Da publicação do clássico trabalho de Michel Vovelle até hoje, o campo de estudos sobre a visualidade a partir de uma abordagem histórica se ampliou de forma considerável tanto internacional como nacionalmente. No âmbito internacional, registra-se a publicação, ao longo da década de 1990, de um número significativo de trabalhos sobre o campo da cultura visual, com abordagens inter e transdisciplinares6 6 . KNOWLES; SWEETEMAN, 2004. Em especial o balanço realizado na introdução do volume. . Em termos das diretrizes da atual produção acadêmica no campo das Ciências Humanas, um excelente balanço foi feito recentemente pelo historiador Ulpiano T. Bezerra de Meneses, do qual se destaca a defesa por uma História Visual, cujo horizonte teórico-metodológico configura-se em torno de três dimensões: visual, visível e visão, considerados elementos definidores da visualidade, historicamente concebida como o conjunto de práticas e discursos associado às distintas formas de experiência visual7 7 . MENESES, 2003, p. 31. .

No que diz respeito à fotografia, algumas situações merecem atenção especial. Tópicos que envolvem tanto a natureza técnica da imagem fotográfica como o próprio ato de fotografar, apreciar e consumir fotografias, entendendo-se esse processo como o circuito social da fotografia. Deve-se acrescentar ainda, é claro, os problemas relativos à análise do conteúdo da mensagem fotográfica que envolvem questões específicas aos elementos constitutivos dessa mensagem: existe a possibilidade de segmentar o contínuo da imagem? Em caso afirmativo, qual a natureza das unidades significantes que estruturam a mensagem fotográfica? Entendendo-se a fotografia como mensagem, quais os níveis que a individualizariam?

Para tentar solucionar esse feixe de dúvidas há de se assumir uma proposta transdisciplinar. A aproximação da História com a Antropologia e Sociologia é bastante profícua. Em relação à Antropologia destacam-se algumas importantes contribuições como a abordagem antropológica do conceito de cultura, o estudo da dimensão simbólica das diversas práticas cotidianas, a análise da extensão ideal das práticas materiais, etc.

Tais preocupações estão associadas a uma perspectiva sociológica que distingue, entre outros aspectos, a importância em considerar a dimensão de classe da produção simbólica, bem como o papel da ideologia na composição de mensagens socialmente significativas e da hegemonia como processo de disputa social que se estende à produção da imagem. Não se deve descartar também o fato de que a avaliação das redes sociais da fotografia envolve uma abordagem em que produtores e consumidores da imagem fotográfica possuem um locus social definido.

Tudo isso está aliado à necessidade de se analisar o conteúdo da mensagem fotográfica que demanda, por sua vez, conceitos de disciplinas, cujo diálogo não se faz com a freqüência das acima indicadas, compondo, assim, metodologias coordenadas, tais como uma abordagem histórico-semiótica da fotografia.

Nessa perspectiva, a fotografia é interpretada como resultado de um trabalho social de produção de sentido, pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente. É uma mensagem que se processa através do tempo, cujas unidades constituintes são culturais, mas assumem funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem é veiculada quanto com o local que ocupam no interior da própria mensagem8 8 . MAUAD, 1990. . Estabelecem-se, assim, não apenas uma relação sintagmática, à medida que veicula um significado organizado, segundo as regras da produção de sentido nas linguagens não-verbais, mas também uma relação paradigmática, pois a representação final é sempre uma escolha realizada num conjunto de escolhas possíveis.

Portanto, ao redimensionar o papel da interpretação dos conceitos, conjugando uma série de disciplinas na elaboração da análise, a abordagem das mensagens visuais é transdisciplinar. Nesse sentido, se é a associação da História à Antropologia ou à Sociologia (ou às duas juntas) que indaga sobre as maneiras de ser e agir no passado, é a Semiótica que oferece mecanismos para o desenvolvimento da análise e permite a compreensão da produção de sentido nas sociedades humanas como uma totalidade para além da fragmentação habitual que a prática científica imprime.

Dessa forma, para a análise das ideologias, mentalidades ou práticas culturais, a utilização de fontes não-verbais deve ter em pauta o imperativo metodológico, sugerido pelo historiador americano Robert Darnton:

ao invés de confiar na intuição numa tentativa de invocar um vago clima de opinião, seria o caso de tomar pelo menos uma disciplina sólida dentro das ciências sociais e utilizá-la para relacionar a experiência mental com as realidades sociais e econômicas9 9 . DARNTON, 1990, p. 254. .

A conjunção de uma problemática histórica, no trabalho com fotografias, e a procedência variada de olhares e abordagens que vêm sendo implementadas no trato com a imagem visual resultaram no surgimento de questões recorrentes aos diferentes trabalhos publicados atualmente10 10 . Para uma avaliação precisa desse movimento de renovação do trabalho com imagens fotográficas, cf. MAUAD 2000, p. 6-229. . A partir da avaliação da produção recente, é possível estabelecer três premissas para o tratamento crítico das imagens fotográficas do passado e do presente, a saber:

A noção de série ou coleção. Evidencia-se na produção contemporânea como a fotografia para ser trabalhada de forma crítica não pode ficar limitada a um simples exemplar. A noção de exemplo foi superada pela dinâmica da série que estabelece contatos diferenciados com distintos suportes da cultura material. Assim, a idéia da série extensa e homogênea foi tornada complexa pela noção de coleção, que rompe com a homogeneidade, demandando ao pesquisador uma metodologia que considere seu caráter polifônico, resultante do circuito social de produção, circulação e consumo de imagens.

O princípio de intertextualidade. Como corolário da primeira premissa depreende-se que uma fotografia, para ser interpretada como texto (suporte de relações sociais), demanda o conhecimento de outros textos que a precedem ou que com ela concorrem para a produção da textualidade de uma época. Sendo assim, o uso de fotografias como fonte histórica obriga tanto as instituições de guarda quanto os historiadores ao levantamento da cultura histórica, que institui os códigos de representação homologadores das imagens fotográficas no processo continuado de produção de sentido social.

O trabalho transdisciplinar. O resultado da revolução documental dos anos 1960 foi a transformação da consciência historiográfica, expressa na aproximação efetiva da História com as diferentes disciplinas das Ciências Sociais. Nesse sentido, a compreensão da fotografia como uma mensagem significativa que se processa através do tempo, dialogando reiteradamente com os elementos da cultura material que a produz, demanda por parte do historiador um aparato teórico-metodológico que a crítica tradicional não habilitava, obrigando-o ao desenvolvimento de novos questionamentos e procedimentos em perfeita coordenação com outros saberes.

Por fim, complementando o inventário de desafios e possibilidades da relação entre história e imagem, especificamente a fotográfica, cabe fazer uma breve referência às condições de acesso às coleções sob a guarda de instituições de pesquisa – institutos, bibliotecas, museus e arquivos11 11 . Um estudo consolidado sobre cinco instituições de guarda de acervos fotográficos pode ser encontrado no meu relatório de pós-doutorado, publicado em http://www.historia.uff.br/labhoi/ofic.htm . Em termos gerais, ainda existe uma forte resistência ou ceticismo em relação à possibilidade de estabelecimento de um vocabulário adequado à natureza visual da fotografia, o que corrobora a conclusão tirada pelas pesquisadoras do Museu Paulista, Solange Lima e Vânia Carvalho:

Apesar dos avanços já empreendidos, os critérios de seleção e montagem das formas descritivas da imagem ainda deixam muito a desejar quando se trata de atender às necessidades de produção de conhecimento sobre a própria fotografia. A ausência de descritores voltados para os atributos formais da imagem é um dos problemas que merece destaque. O grau de estandardização dos termos descritivos do conteúdo visual deve levar em conta o perfil do público consulente, muitas vezes heterogêneo, e a tendência de integração das informações em redes internacionais. No entanto, não nos parece que a necessidade de descritores genéricos deva comprometer as particularidades das coleções institucionais, muito menos ignorar as expectativas do especialista ou os próprios atributos da fotografia12 12 . CARVALHO; LIMA, 2000, p. 24. .

Fotografia, história e os usos do passado

A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há de se considerar a fotografia simultaneamente como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas e lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado – condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho, etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.

Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia13 13 . Fabris, 1995. nos diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nessa categoria, todo o processo de produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim será possível restabelecer as condições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Dessa maneira, texto e contexto estarão contemplados.

Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolvem, necessariamente, três componentes: o autor, o texto propriamente dito e o leitor14 14 . VILCHES, 1992. . Cada um desses três elementos integra o resultado final à medida que todo o produto cultural envolve um locus de produção e um produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à sua atividade, um leitor ou destinatário, concebido como um sujeito transindividual cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do contexto histórico no qual se insere, e, por fim, um significado aceito socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido.

No caso da fotografia, é evidente o papel de autor imputado ao fotógrafo. Porém, há de se concebê-lo como uma categoria social, seja profissional autônomo, fotógrafo de imprensa, oficial ou um mero amador "batedor de chapas". O grau de controle da técnica e das estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o controle de uma câmara fotográfica impõe uma competência mínima, por parte do autor, ligada fundamentalmente à manipulação de códigos convencionados social e historicamente para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No século XIX, esse controle ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais que manipulava aparelhos pesados e tinha de produzir o seu próprio material de trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento da indústria óptica e química, ainda no final dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmaras, possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX, já era possível contar com as indústrias Kodak e a máxima da fotografia amadora: "You press the botton, we do the rest."

É importante levar em conta também que o controle dos meios técnicos de produção cultural envolve tanto aquele que detém o meio quanto o grupo ao qual ele serve, caso seja um fotógrafo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 1950, foi privilégio da classe dominante ou frações dessa.

Paralelamente ao processo de desenvolvimento tecnológico, o campo fotográfico foi sendo constituído a partir do estabelecimento de uma estética que incluía desde profissionais do retrato em busca da feição mais harmoniosa para seu cliente e o paisagista que buscava a nitidez da imagem e a amplitude de planos até o fotógrafo amador-artista, geralmente ligado às associações fotoclubísticas, que defendia a fotografia como expressão artística, baseada nos mesmos cânones que a pintura (por isso, não poupava a imagem fotográfica de uma intervenção direta, tanto por meio do uso de filtros quanto do retoque, entre outras técnicas). Técnica e estética eram competência do autor.

À competência do autor corresponde a do leitor, cuja exigência mínima é saber que uma fotografia é uma fotografia, ou seja, o suporte material de uma imagem. Na verdade é a competência de quem olha que fornece significados à imagem. Essa compreensão se dá a partir de regras culturais, que fornecem a garantia para que a leitura da imagem não se limite a um sujeito individual, mas que acima de tudo seja coletiva. A idéia de competência do leitor pressupõe que, na qualidade de destinatário da mensagem fotográfica, ele detenha uma série de saberes que envolvem outros textos sociais. A compreensão da imagem fotográfica, pelo leitor/destinatário, dá-se em dois níveis, a saber:

  • Nível interno à superfície do texto visual, originado a partir das estruturas espaciais que constituem tal texto, de caráter não-verbal.

  • Nível externo à superfície do texto visual, originado a partir de aproximações e inferências com outros textos da mesma época, inclusive de natureza verbal. Nesse nível, pode-se descobrir temas conhecidos e inferir informações implícitas.

É importante destacar que a compreensão de textos visuais é tanto um ato conceitual (os níveis externo e interno encontram-se necessariamente em correspondência no processo de conhecimento) quanto um ato fundado numa pragmática, que pressupõe a aplicação de regras culturalmente aceitas como válidas e convencionalizadas na dinâmica social. Percepção e interpretação são faces de um mesmo processo: o da educação do olhar. Existem regras de leitura dos textos visuais que são compartilhadas pela comunidade de leitores. Tais regras não são geradas espontaneamente; na verdade, resultam de uma disputa pelo significado adequado às representações culturais. Sendo assim, sua aplicação por parte dos leitores/destinatários envolve, também, a situação de recepção dos textos visuais. Essa situação varia historicamente, desde o veículo que suporta a imagem até a sua circulação e consumo, passando pelo controle dos meios técnicos de produção cultural, exercido por diferentes grupos que se enfrentam na dinâmica social. Portanto, se a cultura comunica, a ideologia estrutura a comunicação, e a hegemonia social faz com que a imagem da classe dominante predomine, erigindo-se como modelo para as demais.

No caso da fotografia, os veículos incluem desde os tradicionais álbuns de retrato até os bytes de uma imagem digitalizada, podendo a circulação limitar-se ao ambiente familiar ou ampliar seus caminhos navegando pela Internet. Já a situação de consumo é direcionada para um destinatário: um apaixonado que guarda o retrato de sua amada como uma relíquia ou um banco de memória que armazenará a imagem fotográfica até que alguém acesse a informação e assuma o papel de leitor/destinatário.

Na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, como enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor, etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõe a fotografia. Ambos os segmentos se correspondem no processo contínuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado.

Historicamente, a fotografia forma, com outros tipos de texto de caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Tal idéia implica a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de certo contexto histórico: à medida que os textos históricos não são autônomos, necessitam de outros para sua interpretação. Da mesma forma, a fotografia – para ser utilizada como fonte histórica, ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo – deve compor uma série extensa e homogênea para dar conta das semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. Nesse sentido, o corpus fotográfico pode ser organizado em função de um tema, como a morte, a criança, o casamento, etc., ou em função das diferentes agências de produção da imagem que competem nos processos de produção de sentido social, entre as quais a família, o Estado, a imprensa e a publicidade. Em ambos os casos, a análise histórica da mensagem fotográfica tem na noção de espaço a sua chave de leitura, posto que a própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espaços que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espaço geográfico, dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), da figuração e das vivências, comportamentos e representações sociais.

Do ponto de vista temporal, a imagem fotográfica permite a presentificação do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo, colocando, por conseguinte, um novo problema ao historiador que, além de lidar com as competências acima referidas, deve lidar com a sua própria competência, na situação de um leitor de imagens do passado. Retomamos, nesse ponto, a pergunta anterior: como olhar através das imagens? Por tudo que já foi dito, considerando-se a fotografia como uma fonte histórica que demanda um novo tipo de crítica, uma nova postura teórica de caráter transdisciplinar, algumas pistas para responder tal questão já foram dadas. Resta, no entanto, indicar, nessa cadeia de temporalidades, qual o locus interpretativo do historiador.

Já foi dito que as imagens são históricas e dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo concorrentes no jogo das relações sociais. Nesse sentido, as fotografias guardam, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser, recuperam o seu caráter de presença num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com esse presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática a ser estudada. Aí reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas sejam feitas.

Olhando através da imagem

Todas essas reflexões inspiraram a elaboração de uma abordagem histórico-semiótica que, sem a pretensão de ser definitiva, vem sendo aplicada, com sucesso, em diferentes tipos de fotografias.

A fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de trabalho social de produção sígnica. Nesse sentido, toda a produção da mensagem fotográfica está associada aos meios técnicos de produção cultural. Dentro dessa perspectiva, a fotografia pode, por um lado, contribuir para a veiculação de novos comportamentos e representações da classe que possui o controle de tais meios, e, por outro, atuar como eficiente meio de controle social por meio da educação do olhar.

Partindo-se dessa premissa, a fotografia não é apenas documento, mas também, monumento e, como toda a fonte histórica, deve passar pelos trâmites das críticas externa e interna para depois ser organizada em séries fotográficas, obedecendo a certa cronologia. Tais séries devem ser extensas, capazes de dar conta de um universo significativo de imagens, e homogêneas, posto que numa mesma série fotográfica há de se observar um critério de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de fotografia. Por exemplo, pode-se trabalhar com álbuns de família e revistas ilustradas para recuperar os códigos de representações sociais e programações de comportamento de certa classe social, num dado período histórico; no entanto, cada tipo de fotografia compõe uma série que deve ser trabalhada separadamente. Feito isso, parte-se para a análise do material.

O primeiro passo é entender que, numa dada sociedade, coexistem e se articulam múltiplos códigos e níveis de codificação, que fornecem significado ao universo cultural dessa mesma sociedade. Os códigos são elaborados na prática social e não podem nunca ser vistos como entidades ahistóricas.

O segundo passo é conceber a fotografia como resultado de um processo de construção de sentido. Assim formada, ela nos revela, por meio do estudo da produção da imagem, uma pista para se chegar ao que não está aparente ao primeiro olhar, mas que concede sentido social à foto.

A fotografia comunica-se por meio de mensagens não-verbais, cujo signo constitutivo é a imagem. Portanto, sendo a produção da imagem um trabalho humano de comunicação, pauta-se, enquanto tal, em códigos convencionados socialmente, possuindo um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto no qual está inserida como mensagens.

O terceiro passo é perceber que a relação acima proposta não é automática, posto que entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe todo um processo de investimento de sentido que deve ser avaliado. Portanto, para se ultrapassar o mero analogon da realidade, tal como a fotografia é concebida pelo senso comum, há de se atentar para alguns pontos. O primeiro deles diz respeito à relação entre signo e imagem. Normalmente caracteriza-se a imagem como algo "natural", ou seja, algo inerente à própria natureza, e o signo como uma representação simbólica. Tal distinção é um falso problema para a análise semiótica, tendo em vista que a imagem pode ser concebida como um texto icônico que antes de depender de um código é algo que institui um código. Assim, no contexto da mensagem veiculada, a imagem – ao assumir o lugar de um objeto, de um acontecimento ou ainda de um sentimento – incorpora funções sígnicas.

Um segundo ponto remete à imagem fotográfica como mensagem, estruturada a partir de uma dupla referência: a si mesma (como escolha efetivamente realizada) e àquele conjunto de escolhas possíveis, não efetuadas, que se acham em relação de equivalência ou oposição com as escolhas efetuadas. Dito em outras palavras, deve-se compreender a fotografia como uma escolha efetuada em um conjunto de escolhas então possíveis.

Finalmente, o terceiro ponto concerne à relação entre o plano do conteúdo e o plano da expressão. Enquanto o primeiro leva em consideração a relação dos elementos da fotografia com o contexto no qual se insere, remetendo-se ao corte temático e temporal, o segundo pressupõe a compreensão das opções técnicas e estéticas, as quais, por sua vez, envolvem um aprendizado historicamente determinado que, como toda a pedagogia, é pleno de sentido social.

A partir desses três pontos, foram organizadas duas fichas de análise no intuito de decompor a imagem fotográfica em unidades culturais, guardando-se a devida distinção entre forma do conteúdo e forma da expressão.

Cada um dos campos das duas fichas deverá ser preenchido por itens presentes nas fotografias, concebidos como unidades culturais. O conceito de unidade cultural, sob o ângulo semiótico, é assim apresentado por Umberto Eco:

uma unidade é simplesmente toda e qualquer coisa culturalmente definida e individuada como entidade. Pode ser pessoa, lugar, coisa sentimento, estado de coisas, pressentimento, fantasia, alucinação, esperança ou idéia [...] uma unidade cultural pode ser definida semioticamente como unidade semântica inserida num sistema. [...] Reconhecer a presença dessas unidades culturais (que são, portanto, os significados que o código faz corresponder ao sistema de significantes) significa compreender a linguagem como fenômeno social15 15 . ECO, 1974, p. 16. .

Feito isso, tais unidades culturais serão realocadas em categorias espaciais, estabelecidas para a estruturação final da análise, a saber:

Espaço fotográfico: compreende o recorte espacial processado pela fotografia, incluindo a natureza desse espaço, como se organiza, que tipo de controle pode ser exercido na sua composição e a quem está vinculado – fotógrafo amador ou profissional –, bem como os recursos técnicos colocados à sua disposição. Nessa categoria estão sendo considerados as informações relativas à história da técnica fotográfica e os itens contidos no plano da expressão – tamanho, enquadramento, nitidez e produtor – que consubstanciam a forma da expressão fotográfica.

Para a composição do espaço fotográfico recuperam-se as unidades culturais relacionadas à elaboração da linguagem fotográfica, buscando-se criar um padrão descritivo que evidencie as opções efetivamente realizadas. Para cada item do plano da forma da expressão são definidas as variações básicas. Por exemplo:

Tamanho: numa série de fotografias o tamanho variará em função do tipo de câmera e do suporte. Assim, as fotos de família dos anos 1960, feitas com uma Kodak instamatic seguiam um padrão dado pela câmera e pela película utilizadas. Já nas revistas ilustradas, o papel desempenhado pelo editor das matérias fazia com que as fotografias variassem de tamanho de acordo com a sua importância nos termos da ênfase da notícia. Era comum que fotos de impacto para a opinião pública tivessem tamanho grande, geralmente uma página dupla. O fundamental é avaliar a variação do tamanho na série (composta por fotografias privadas, da imprensa, associadas ao poder público, de empresas, etc.)

Formato e suporte: da mesma forma que o item tamanho, o formato também varia em função da câmera utilizada, do suporte de veiculação e das finalidades sociais da fotografia. Uma fotografia no modelo carte de visite do século XIX tinha o seu formato e tamanho padronizados (retangular 6 x 9 cm) pela câmera inventada pelo fotógrafo francês Eugene Disdéri, em 1864, para a produção de retratos. No entanto, o fotógrafo poderia usar o efeito flou, envolvendo a imagem do retratado com nuvens, ou ainda usar uma janela oval dentro da imagem. Nesse caso, como no anterior, a definição da variação se fará em função da natureza da série.

Tipo de foto: nesse item define-se se a foto é instantânea ou posada. A sua definição se faz em função da presença ou não de uma encenação, ou ainda, da disponibilidade técnica para a realização da foto instantânea. Portanto, somente no final do século XIX, ocorreram as condições técnicas para o surgimento de fotos instantâneas.

Enquadramento I – sentido da foto: define-se em torno dos eixos vertical e horizontal, que estão relacionados à posição do visor da câmera na composição da foto. As variações de sentido se associam às opções de estilo, por exemplo, os fotógrafos paisagistas do século XIX buscavam por meio da utilização de chapas de grande formato a elaboração de um arranjo fotográfico que dialogasse com as pinturas a óleo, impondo o sentido horizontal, como predominante.

Enquadramento II – direção da foto: estabelece o caminho proposto para a leitura da fotografia. Em geral, os estudos sobre visualidade afirmam que o observador inicia o percurso do seu olhar pela imagem da direita para a esquerda de cima para baixo, numa trajetória em "S". No entanto, as imagens fotográficas inscrevem, pela disposição dos elementos no arranjo fotográfico, um percurso a ser seguido pelo olhar que nem sempre segue esse padrão geral. O que de fato determina o caminho a ser varrido pelo olhar é a composição na foto e o papel que desempenha na série. Por exemplo, as fotografias de família, que povoavam os álbuns de retratos oitocentista, tinham como padrão a direção central, evidente para enfatizar o tema retratado – o indivíduo. Já nas revistas ilustradas da primeira metade do século XX, a variação entre as três direções de forma relativamente equilibrada supõe o movimento das páginas ao folhear-se uma revista.

Enquadramento III – distribuição de planos: a colocação do maior número de planos dentro do enquadramento diz respeito a duas condições, uma de caráter técnico, a profundidade de campo dada pelo controle do diafragma da câmera, e outra associada aos objetivos da mensagem fotográfica, pois quanto mais planos o fotógrafo conseguisse colocar no foco, mais informações incluiria na fotografia. Assim, as fotografias de Augusto Malta quando do registro das obras de Pereira Passos, na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, primavam pela capacidade de dispor na sua composição até três planos. Isso porque, o fundamental dessa fotografia era registrar a ação do poder público na modernização da cidade, quanto mais elementos informassem tal ação, melhor seria.

Enquadramento IV – objeto central, arranjo e equilíbrio: na verdade esse último item do enquadramento poderia ser condensado na noção de composição fotográfica, estando assim estreitamente ligado às condições de nitidez. Toda a fotografia tem um objeto central, que qualifica a mensagem fotográfica, variando de acordo com a agência e tempo histórico de produção da imagem. No entanto, sempre esse objeto deve ser apresentado a partir da relação que estabelece com o entorno e/ou fundo. Dependendo dos objetivos na construção da composição, em torno do objeto central, o arranjo dos elementos da foto pode ser linear ou espalhado, concentrar-se na parte superior ou inferior ou ainda equilibrar a sua distribuição pelo marco da foto. Um exemplo, a célebre foto de Erno Schneider, vencedora do Prêmio Esso em 1962, tirada de Jânio Quadro com os pés invertidos, é uma forma clara de mostrar que a composição definida em torno do objeto central elabora uma mensagem que se inscreve como signo da situação histórica.

Nitidez – foco, impressão visual e iluminação: associa-se às condições de inteligibilidade visual. O fato de só o objeto central ou de todos os planos estarem no foco, enquanto os demais elementos estão desfocados, produz uma diferença visual significativa, interferindo na recepção da mensagem visual. Da mesma forma, a impressão visual, definida por um contraste maior ou menor, habilita a distinção entre os elementos da foto. Por fim a iluminação, com mais ou menos sombra, caracteriza o tipo de relação entre os elementos na composição fotográfica. É possível, de maneira esquemática, estabelecer algumas variações básicas em torno do item nitidez, sendo assim, temos: fora de foco, objeto central no foco, tudo no foco (quando todos os planos estão dentro do foco); impressão visual: linhas bem definidas (quando o contraste é forte), linhas definidas (quando o contraste é suficiente), linhas mal definidas (quando o contraste é fraco, a foto esmaecida ou ainda fora de foco); iluminação: clara com sombras (quando a foto define bem os elementos, mas apresenta sombra como efeito estilístico), clara sem sombras (fotos com definição clara de elementos sem sombra alguma) e escura (apresenta dificuldade de visualização por erro técnico).

Nas coleções familiares, em que algum membro da família é o responsável pela produção das fotos, é muito comum guardar fotos fora de foco com o mesmo cuidado que se guardam as outras de qualidade técnica superior. Nesse caso, o referente, que não pode ser claramente visualizado, mantém-se como objeto central da foto desejada, guardada na imaginação pela memória da experiência vivida.

A questão da interpretação histórica das opções técnicas e estilísticas definidoras do espaço fotográfico insere-se na discussão sobre o conceito de intertextualidade, exposto anteriormente. Nesse sentido, só se pode compreender determinadas escolhas visuais no marco da sua historicidade e pela relação que as fotografias estabelecem com outros textos culturais.

O espaço geográfico compreende o espaço físico representado na fotografia, caracterizado pelos lugares fotografados e a trajetória de mudanças ao longo do período que a série cobre. Tal espaço não é homogêneo, mas marcado por oposições como campo/cidade, fundo artificial/natural, espaço interno/externo, público/privado, etc. Nessas categorias estão incluídos os seguintes itens: ano, local, atributos da paisagem, objetos, tamanho, enquadramento, nitidez e produtor.

Ao espaço do objeto estão integrados todos os objetos fotografados tomados como atributos da imagem fotográfica. Analisa-se, nessa categoria, a lógica existente na representação dos objetos, sua relação com a experiência vivida e com o espaço construído. Assim, estabeleceu-se uma tipologia básica constituída por três elementos: objetos interiores, exteriores e pessoais. Na composição do espaço do objeto estão incluídos os itens tema, objetos, atributo das pessoas, atributo da paisagem, tamanho e enquadramento.

O espaço da figuração é composto pelas pessoas e animais retratados, pela natureza do espaço (feminino/masculino, infantil/adulto) e pela hierarquia das figuras e seus atributos, incluindo-se aí o gesto. Tal categoria é formada pelos itens pessoas, atributos da figuração, tamanho, enquadramento e nitidez.

No espaço da vivência (ou evento) estão circunscritas as atividades, vivências e eventos que se tornam objeto do ato fotográfico. Esse espaço é concebido como uma categoria sintética, por incluir todos os espaços anteriores e por ser estruturado a partir de todas as unidades culturais. É a própria síntese do ato fotográfico, superando em muito o tema, à medida que, ao incorporar a idéia de performance, ressalta a importância do movimento, mesmo em imagens fixas. Ou, para se utilizar a terminologia de Cartier-Bresson, trata-se do movimento de quem posa ou é flagrado por um instantâneo e do movimento de quem monta a cena ou capta o "momento decisivo".

Pelo exposto, fica evidente que a mesma unidade cultural pode estar presente em diferentes campos espaciais e que tais campos não são estanques. Na verdade, eles possuem interseções, à medida que representam reconstruções de realidades sociais. Daí os campos espaciais permitirem o restabelecimento dos códigos de representação social de comportamento, no seu marco de historicidade.

Vários autores – dentre os quais o já citado Umberto Eco, a artista plástica e teórica da arte Fayga Ostroyer e a historiadora Míriam Moreira Leite, que de longa data reflete sobre a utilização da fotografia como fonte histórica – são unânimes na escolha da noção de espaço como chave de leitura das mensagens visuais por causa da natureza desse tipo de texto. Vale a referência ao trabalho de Míriam Moreira Leite pela dimensão histórica que tal escolha assume:

Chegou-se a conclusão de que a noção de espaço é a que domina as imagens fotográficas explícitas. Não apenas as duas dimensões em que a imagem representa as três dimensões do que comunica. Mas toda captação da mensagem manifesta se dá através de arranjos espaciais. A fotografia é uma redução, um arranjo cultural e ideológico do espaço geográfico, num determinado instante16 16 . LEITE, 1993, p. 19. .

Finalmente, a própria experiência vem demonstrando que, a cada novo tipo de fotografia e objeto a ser estudado a partir da imagem fotográfica, o pesquisador vê-se obrigado a atualizar o método de análise e adequá-lo à sua matéria significante, guardando os imperativos metodológicos apresentados. Nesse sentido, é sempre importante lembrar que toda a metodologia, longe de ser um receituário estrito, aproxima-se mais de uma receita de bolo, na qual, cada mestre-cuca adiciona um ingrediente a seu gosto.

Nunca ficamos passivos diante de uma fotografia: ela incita nossa imaginação, nos faz pensar sobre o passado a partir do dado de materialidade que persiste na imagem. Um indício, um fantasma, talvez uma ilusão que, em certo momento da história, deixou sua marca registrada, numa superfície sensível, da mesma forma que as marcas do sol no corpo bronzeado, como lembrou Dubois17 17 . DUBOIS, p. 55. . Num determinado momento o sol existiu sobre aquela pele, num determinado momento aquilo existiu diante da objetiva fotográfica, diante do olhar do fotógrafo, e isto é impossível negar.

Discute-se a possibilidade de mentir da imagem fotográfica. A revolução digital, provocada pelos avanços da informática, torna isso cada vez mais presente, permitindo que até os mortos ressurjam para tomar mais um chope tal como a publicidade já mostrou. Não importa se a imagem mente; o importante é saber por que e como mentiu. O desenvolvimento dos recursos tecnológicos demandará do historiador uma nova crítica que envolva o conhecimento das tecnologias feitas para mentir.

Toda a imagem é histórica. O marco de sua produção e o momento da sua execução estão, indefectivelmente, decalcados nas superfícies da foto, do quadro, da escultura, da fachada do edifício. A história embrenha as imagens nas opções realizadas por quem escolhe uma expressão e um conteúdo, compondo por meio de signos, de natureza não-verbal, objetos de civilização, significados de cultura.

O estudo das imagens, como bem ensinou Panofsky18 18 . PANOFSKY,1991. no seu método iconológico, impõe o estudo da sua historicidade. O objetivo central desta primeira parte, embora sem seguir uma linha iconológica, foi o de refletir sobre a dimensão histórica da imagem fotográfica e as possibilidades efetivas de utilizá-la na composição de certo conhecimento sobre o passado. O caminho proposto é também uma escolha num conjunto de reflexões possíveis.

A seguir, avalio a produção da mensagem fotográfica em duas revistas ilustradas cariocas – Careta e O Cruzeiro – segundo a metodologia histórico-semiótica acima esboçada. Como já foi dito, anteriormente, o objetivo de tal avaliação é sistematizar os quadros de representação social das frações de classe que se formavam hegemônicas ao longo da primeira metade do século XX, na cidade do Rio de Janeiro. Sem querer esgotar o estudo sobre a cultura visual do período, pretendo indicar como tais quadros de representação social foram sendo historicamente elaborados pela fotografia19 19 . Um estudo mais sistemático sobre as revistas ilustradas do período, considerando os elementos propriamente fotográficos como gêneros, articulações narrativas, relação texto/imagem e o impacto da modernização técnica no uso da linguagem fotojornalística, está sendo organizado com resultado de minhas pesquisas recentes. .

Segunda parte

Fotografia de imprensa e o gosto burguês no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX

Vivemos em um mundo repleto de imagens, constatação que sobrevive no senso comum dos habitantes das cidades deste novo milênio. No entanto, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe muitos mais do que os olhos podem ver.

É interessante notar que o processo de naturalização e homogeneização das representações por elas engendradas se faz, par a par, à instituição da ordem burguesa, movimento pelo qual a burguesia transforma a realidade do mundo em imagem do mundo20 20 . BARTHES, 1989, p. 208. . Portanto, o que aparenta naturalidade é, em suma, o resultado desse processo de investimento de sentido.

A produção de sentido envolve as sociedades históricas desde que o primeiro homem manifestou-se por meio de gestos e desenhos nas paredes das cavernas. A escolha da expressão correta para produzir um determinado conteúdo é resultado de uma experiência histórica de julgar, escolher e interpretar. Existe sempre um conjunto de escolhas possíveis, a partir do qual, uma escolha é feita. Tal conjunto pode, com certeza, ser denominado de cultura.

Ao longo dos primeiros 50 anos do século XX, a capital federal passou por intervenções cirúrgicas na sua forma urbana, resultado de uma política que visava a moldar a metrópole tropical à imagem e semelhança das cidades temperadas. Nesse sentido, bulevares substituíram vielas, cafés e confeitarias os freges e quiosques, e o pacato cidadão deu lugar ao dandy ou ao smart; todas as instâncias do viver em cidade foram sendo adequadas a um novo padrão de comportamento. Nesse processo, as revistas ilustradas de críticas de costumes, publicadas na cidade desde o início do século, tiveram um papel fundamental.

Janelas que se abrem para o mundo por meio dos clichês fotográficos, os periódicos ilustrados possibilitaram a divulgação e assimilação rápida de imagens de pessoas, objetos, lugares e eventos contribuindo, de forma decisiva, para a criação desse novo padrão de sociabilidade.

O presente trabalho objetiva levantar a discussão do papel da imagem fotográfica, veiculada pela imprensa ilustrada, na conformação do gosto na sociedade carioca, da primeira metade do século XX. Um gosto que resulta no julgamento de comportamentos, aceitando uns e rejeitando outros, considerados o reverso da imagem.

A construção histórica do gosto, por meio da imagem técnica, é uma temática relevante principalmente na sociedade contemporânea, dominada pela relação mediatizada que se tem entre a realidade e sua representação e vivência. Discutir a dimensão histórica desse processo implica desnaturalizá-lo, retirando-o do senso comum ao analisá-lo de forma crítica.

Na mira do próprio olhar: as revistas ilustradas no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX

Careta, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana, Kosmos, Malho, Avenida, Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida doméstica, Selecta, Eu sei tudo, Para todos, Vamos ler, Scena muda, Cinearte, Beira Mar, entre outras, compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas o seu principal veículo de divulgação.

Um veículo que, por meio de uma composição editorial adaptada ao seu próprio tempo e às tendências internacionais, criavam modas e impunham comportamentos, assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo que representavam.

Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em grande medida, para a generalização do mito da verdade fotográfica, na medida em que, por meio de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam realidades, num processo que transformaria a cidade em cenário e as frações da classe dominante, associadas às agências do Estado e às atividades urbanas, tais como setor de serviços, comércio de exportação e capital financeiro, em seus atores principais. Assim, foram importantes instrumentos, desse grupo social, no empenho de naturalizar suas representações pela imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo, sobre todas as outras possíveis.

Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas auxiliaram também a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando como modelos a serem copiados e exemplos a serem seguidos.

Na primeira metade do século XX, as revistas ilustradas passaram por importantes transformações, muito mais de forma do que de conteúdo. Adaptando-se às mudanças políticas, às influências internacionais e ao mercado consumidor que, ao longo desse período, cresce e se diversifica, o leitor da Fon-Fon ou da Careta, de 1908, por exemplo, poderia ser o mesmo até 1950, porém com certeza dividiria as suas páginas com seus filhos e netos, frutos de um outro tempo, mas pertencentes à mesma classe social. Daí a manutenção de determinados conteúdos de classe que, simplesmente ao longo do tempo, adaptaram-se às novas tendências. Entre o dandy e o self-made-man existe uma diferença de forma, mas a substância, para a sociedade carioca, é a mesma.

Em linhas gerais, esse longo período da história das publicações ilustradas de críticas de costumes, que circunscreve a primeira metade do século XX, pode ser dividido em dois subperíodos delimitados por transformações de ordem técnica que influenciaram a forma de apresentação dessas revistas.

O primeiro subperíodo se inicia em 1900 com a introdução de fotografias na Revista da Semana, o único periódico ilustrado com fotos até então, e se prolonga até 1928, quando foi lançada a revista O Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro, tanto por introduzir uma linha editorial de influência marcadamente norte-americana quanto pelo aumento significativo no uso de fotos.

Nesse primeiro momento, o tom das publicações variava do crítico e cômico ao refinado e artístico, circunscrevendo o universo mental da elite carioca em todas as suas possibilidades. A tendência crítica e cômica pode ser exemplificada nos editoriais de lançamento das revistas Fon-Fon e Careta. A Fon-Fon se lançava como um "semanário alegre, político, crítico e esfuziante, noticiário avariado, telegrafia sem arame e crônica epidêmica" cujo único objetivo era

fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa [...] com o comentário leve das coisas da atualidade [...]. Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a sisudez conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais, cá temos a resposta própria: aperta-se a sirene... FON-FON!21 21 . Fon-Fon, 15/4/1907. .

A revista Careta, por sua vez, seguia o mesmo tom de pilhéria, propondo em seu editorial "um programa vasto e sedutor" para o público "apreciador das sessões galantes do jornalismo smart"22 22 . Careta, 6/6/1908. . Dentro dessa mesma linha editorial, situavam-se a Revista da Semana e o Malho, esta última foi lançada em 1902 e especializou-se em crítica política e caricaturas. A tendência mais refinada e artística teve como representantes a Ilustração Brasileira e a Kosmos. Em 1904 surgiu o primeiro número da Kosmos, uma revista nos moldes modernos dos semanários internacionais, apresentando, portanto, uma publicação bem cuidada de acabamento primoroso. À época de seu lançamento, a revista Kosmos foi descrita da seguinte maneira: "um primoroso álbum de nossas belezas e primores artísticos, propagando o seu conhecimento a outros pontos do país e do estrangeiro"23 23 . NOSSO SÉCULO, 1980, v. I, p. 220. . No seu conteúdo constavam manifestações artísticas e literárias e crônicas e reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Colaboravam nessa revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha.

O segundo subperíodo se inicia com o lançamento da revista O Cruzeiro e se prolonga, em termos de linha editorial, até a década de 1960, com a introdução, entre outras modificações, da cor nas fotos de revista.

Essa nova etapa das publicações ilustradas diferencia-se da anterior tanto pela introdução de novas técnicas de impressão, como a rotogravura, quanto por uma redefinição no perfil do mercado editorial, ávido por informações atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a mudança no padrão estético e informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro momento foi fortemente marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e fotografias pequenas e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a interpretação dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias em grande formato.

É importante enfatizar a diferença entre esses dois subperíodos como forma de caracterizar as mudanças inscritas na própria transformação da audiência das revistas, dentre as quais se pode destacar: a ampliação dos estratos médios da sociedade carioca, o crescimento urbano, a valorização de padrões comportamentais associados aos meios de comunicação, etc.

A revista O Cruzeiro foi lançada em 10/11/1928, com uma tiragem inicial de 50.000 exemplares, cifra bastante significativa para a época. Em seu editorial de lançamento, evidenciou-se o perfil moderno e inovador que Os Diários Associados, empresa pertencente a Assis Chateaubriand e responsável pela publicação de O Cruzeiro, O Jornal e o Diário da Noite, queriam traçar para si mesmos:

Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a civilização traçou a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. O CRUZEIRO encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelephonia e o correio aéreo. O esboço de um mundo novo no novo mundo [...]. A revista é um compêndio da vida [...] revela a sua expressão educativa e estética, por isso a imagem é um elemento preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal onde se reflete a vida, seus aspectos edificantes, atraentes e instrutivos (O Cruzeiro, 10/11/1928).

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que a revista O Cruzeiro se inseria no conjunto das chamadas publicações "frívolas", advogava para si o direito quase missionário de ser o espelho fiel da vida. A imprensa segundo a concepção dessa revista ficaria encarregada da nobre missão de, no caso dos jornais, julgar e, no das revistas, depurar os fatos da vida para que o leitor se educasse de forma correta.

Essa postura tem como premissa básica a idéia de que o que está escrito é a própria verdade. Tal concordância seria reforçada pela utilização maciça de imagens. Isso porque a imagem, diferentemente do texto escrito, chega de forma mais direta e objetiva à compreensão, com menos espaço para dúvidas, pois o observador confia nas imagens técnicas tanto quanto nos seus próprios olhos.

Com o intuito de reafirmar o papel predominante da imagem sobre o texto, a empresa dos Diários Associados investiria, três anos depois do lançamento da revista, na modernização dos equipamentos de impressão, buscando uma melhoria na qualidade da imagem fotográfica. Rapidamente as páginas de O Cruzeiro ganharam cor, a princípio apenas em ilustrações e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.

Em sua primeira fase editorial, que se prolongaria até o final da década de 1930, O Cruzeiro, apesar de em muitos pontos assemelhar-se às outras revistas ilustradas contemporâneas, especialmente à Revista da Semana, apresentou um caráter mais cosmopolita, obtido pela utilização dos serviços das agências de notícias internacionais, ampliando assim o seu universo temático. Um exemplo disso foi o aparecimento de sessões exclusivas como a chamada: Pelas Cinco Partes do Mundo.

No entanto, foi a partir da década de 1940 que a revista incorporaria o padrão de qualidade das publicações internacionais, incluindo, desde então, nas suas primeiras páginas, um detalhado expediente, em que se podia constatar a especialização de seus serviços em vários departamentos, nos moldes das famosas revistas Life, Look, Paris Match, entre outras. Por essa época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de 120.000 exemplares.

Dentre os repórteres que faziam parte do quadro regular da revista constavam: David Nasser, Edmar Morel, Rocha Pita, Nelly Dutra, etc. Como colaboradores eventuais: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Millôr Fernandes. Cabe ressaltar que foi O Cruzeiro a primeira publicação a conceder o crédito das fotografias publicadas, contando inclusive com um departamento e equipe de fotografia que reunia profissionais como: Jean Manzon, Edgar Medina, Salomão Scliar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio Damm, José Medeiros entre outros. Todos estavam encarregados de introduzir uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.

Essa nova linguagem era imbuída de um caráter didático e de um controle rígido da correlação texto/imagem por parte da equipe editorial. O fato é literalmente construído, dessa forma as fotografias deixaram de ser apenas dispostas nas páginas das revistas para serem, com diferentes tamanhos e formas, deliberadamente arranjadas rompendo com o esquema ilustrativo tradicional.

Com tais mudanças, a revista O Cruzeiro promoveria uma reformulação geral no padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para concorrer com o novo padrão estético imposto. Algumas publicações que tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, como Careta, Fon-Fon e Revista da Semana, conseguiram se reformular e sobreviver.

Ver, imaginar, criar: os quadros de representação social da classe dominante nas revistas ilustradas cariocas

Para proceder à recuperação dos quadros das representações sociais de comportamento da burguesia urbana elaborados pela imprensa ilustrada carioca, na primeira metade do século XX, por meio da imagem fotográfica, organizou-se um corpus, ou seja, uma série fotográfica extensa e homogênea. Tal série foi composta por 867 fotografias selecionadas das revistas O Cruzeiro e Careta, nos anos-chave em que ocorreram modificações nas suas formas de expressão e conteúdo24 24 . Os anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade dos anos publicados. Com o decorrer do tempo, as revistas apresentaram mudanças na linha editorial como diminuição do texto escrito em relação à foto, ampliação do número de fotos, mudança na identidade visual, anúncio de inovações técnicas pelo editor, trocas na equipe de colaboradores, etc. Enfim modificações ligadas ao próprio veículo. Porém foram considerados também anos importantes aqueles em que ocorreram marcos cruciais relacionados à história da cidade/país e do mundo, tais como as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e internacionais, reformas urbanas, eleições, etc.Via de regra o que vigorou foi um entrecruzamento desses dois critérios. .

Nesse sentido destacou-se respectivamente 1908, 1914, 1922, 1928, 1935, 1942 e 1949 para a revista Careta e 1928, 1934, 1943 e 1950 para a revista O Cruzeiro. Em cada ano foram escolhidos três números relativos, cada um a uma época do ano: janeiro/fevereiro, junho/julho e dezembro, com o intuito de cobrir os principais eventos da cidade, tais como: festas de fim de ano, carnaval e as aberturas de temporada – verão e inverno. Vale lembrar que essas revistas foram escolhidas pela constância na periodicidade, volume de fotografias, condições de acesso e reprodução das imagens e por serem um exemplo típico de dois momentos das publicações ilustradas, anteriormente assinalados.

O segundo passo foi a escolha de um eixo de análise que dominasse o caráter não-verbal da linguagem fotográfica. Optou-se pela avaliação de como a noção de espaço foi codificada na mensagem fotográfica elaborada pelas revistas ilustradas. Tal escolha justifica-se tanto pelo papel determinante que a noção de espaço ocupa nas linguagens visuais, gestuais, etc. quanto nos critérios a partir dos quais o imaginário urbano é construído, tomando-se sempre como referência básica a existência de um topos. Assim, a noção de espaço codifica tanto a expressão da linguagem fotográfica quanto o conteúdo a ela subjacente nos semanários ilustrados da primeira metade do século XX.

Entretanto, cabe ressaltar que essa noção não é homogênea. Tal como foi exposto na primeira parte deste texto, seu desdobramento é balizado pelas unidades culturais que estruturam a mensagem fotográfica e que podem ser organizadas, para efeito de análise, nas seguintes categorias espaciais: espaço fotográfico, geográfico, do objeto, da figuração e da vivência.

Cada uma delas é analisada separadamente; no entanto, na dinâmica de produção de sentido social, entrecruzam-se. Em tal processo, balizam a elaboração dos quadros de representação social, norteadores das formas de ser e agir da burguesia urbana.

As opções estéticas, as formas de consumo, os lugares da cidade que deveriam ser freqüentados, como signo de distinção e pertencimento social, enfim, toda a codificação em torno da noção de "bom gosto" (identificado com o gosto burguês) era estabelecida pelas imagens fotográficas e padrão gráfico das revistas ilustradas.

A seguir serão avaliadas as categorias espaciais nas fotografias de ambas as publicações – Careta e O Cruzeiro –, buscando-se, com isso, recuperar os comportamentos e os quadros de representação social correspondentes à burguesia urbana25 25 . A historiografia brasileira sobre o período estudado não é consensual no que diz respeito à utilização do conceito de classe burguesa para esse período da história do Brasil. Noções como camadas médias urbanas, classes médias, frações dominadas da classe dominante são correlativas à noção de burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo conceito de burguesia urbana ocorreu principalmente em conseqüência do objetivo central do estudo: avaliar como, dentro do contexto de inserção do Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e comportamentos no espaço das cidades, notadamente na capital, transformaram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de comportamento dos países do hemisfério norte inicialmente a França e a Inglaterra, e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA que sem dúvida estavam pautados em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base econômica da classe dominante brasileira do período que era eminentemente agrária, mas, absenteísta por natureza e cosmopolita por verniz. em ascensão.

Flagrantes e instântaneos

A composição do espaço fotográfico está intimamente relacionada ao tipo de aparelhagem utilizada. A máquina fotográfica limitará as possibilidades de enquadramento, tamanho, profundidade de campo e nitidez da foto.

As imagens fotográficas das revistas ilustradas passaram por uma variação de padrão correspondente à própria evolução da técnica fotográfica e do acesso que as redações das revistas tinham a esse progresso tecnológico. Paralelamente a essas variáveis, mais um fator interfere na composição do espaço fotográfico das revistas: a relação da imagem com o texto escrito.

Dessa forma, as variáveis na composição do espaço fotográfico foram:

  • Tamanho: variou entre pequeno, médio e grande. As fotos pequenas tomaram no máximo 1/8 do espaço total da página, as médias, cerca de 1/4 e as grandes, mais de 1/2. A opção por expressar os valores métricos em frações ocorreu pelo fato das fotografias não possuírem um padrão métrico constante como as que integram um álbum de família.

  • Formato: variou entre o quadrilátero, que inclui o formato retangular e o quadrado, e a circunferência, que inclui o formato oval e circular, bem como outras formas semelhantes, como no caso de foto dentro de letras ou emolduradas.

  • Suporte: caracteriza-se pela relação entre o texto escrito e a linguagem fotográfica. Os tipos de relação podem ser:

1ª relação: reportagem fotográfica com título, texto e legenda.

2ª relação: reportagem fotográfica com título e legenda.

3ª relação: fotografia avulsa com título e legenda.

4ª relação: fotografia avulsa somente com título.

O dado levantado é a existência de parceria entre fotógrafo e repórter, ambos assinando seu trabalho, texto escrito e visual. Esse foi um recurso nas reportagens fotojornalísticas a partir do final da década de 1930, o que estabeleceu uma nova relação entre linguagem escrita e visual.

  • Tipo da foto: posada ou instantânea, para se avaliar o grau de naturalidade das fotos e se detectar a existência de comportamentos emergentes.

  • Enquadramento: item que reuniu o sentido, a direção e distribuição dos planos, o objetivo central e o arranjo das fotos coletivas, como forma de avaliar a hierarquização do espaço fotográfico e possíveis seqüências de significados.

  • Nitidez: inclui o foco, a impressão visual e a iluminação. A avaliação apurada de tais itens, ao longo do tempo, permite recuperar as mudanças estéticas na forma de expressão da fotografia de imprensa, enfatizando-se ou não o mito da verdade fotográfica.

A revista Careta apresentou o seguinte padrão de espaço fotográfico ao longo dos 50 anos cobertos pela análise:

O espaço fotográfico da revista O Cruzeiro configurou-se da seguinte maneira:

Como pode ser constatado pelas tabelas existiam poucas diferenças entre as duas revistas. A Careta apresentava imagens com contornos bem definidos, planos distintos, equilíbrio de elementos e homogeneidade de organização. Tais opções reafirmam o pressuposto de que aquilo que era exibido na foto mantinha uma relação direta e objetiva com a própria realidade.

Já a revista O Cruzeiro foi mais ousada principalmente na avaliação de cada período em separado, quando se constata a influência de outros tipos de imagem, como o cinema, nas opções estéticas. No conjunto dos anos analisados, as imagens caracterizaram-se pela concentração no plano central, homogeneidade, pouca profundidade, definição de linhas e contornos e pela sexualização do espaço figurativo, com a escolha da mulher como objeto central na maioria das fotos.

Numa análise numérica da incidência homem/mulher como objeto central nas fotos de O Cruzeiro, o padrão encontrado fica evidenciado na tabela abaixo. Com efeito, a tendência geral é para a distribuição equilibrada entre o espaço feminino e masculino, já que ambos incidem igualmente no primeiro plano. No entanto, há de se ressaltar a constante incidência da figura masculina em segundo plano e da feminina em plano central, revelando-se aí uma maior valorização da imagem feminina na composição fotográfica da revista. Tal fato explica-se tanto pela introdução de sessões especializadas em modas como pela valorização do corpo feminino, a partir da década de 1940, associada a uma mudança em termos de representações culturais do popular e do nacional nos meios de comunicação.

Esse padrão, ao contrário do anterior, expressa uma carga maior de subjetividade própria às expressões artísticas, fato que foi resultado principalmente da existência de um grande número de reportagens fotográficas, nos moldes do fotojornalismo, cujas fotos eram identificadas e o trabalho do fotógrafo valorizado na sua dimensão criativa muito mais do que informativa.

Por outro lado, a opção pelo fotojornalismo criou uma ancoragem da imagem para com o texto escrito, sendo essa interpretada a partir das idéias escritas, limitando, assim, a autonomia do texto visual em relação ao escrito. Ao mesmo tempo, o fotojornalismo enfatizava o caráter didático que a imprensa assumiu a partir da década de 1940.

Geografia da diferença

A cidade e suas avenidas, praias, contorno dos morros ou baía – um espaço próximo e vizinho – compõem uma determinada imagem do Rio de Janeiro que por predominar silencia as demais.

O Brasil, com suas regiões e paisagens, cria uma imagem que expõe tanto a face da riqueza e desenvolvimento quanto a do lado pitoresco e exótico de um país tão cheio de diversidade.

O estrangeiro surge nas páginas ilustradas por meio das cidades-capitais e seus modos de vida peculiares. Com imagens que indicam a ampliação dos contatos internacionais, o mundo coloca-se, como que por mágica, ao alcance dos olhos. Tudo isso incita a curiosidade e a adoção de modismos e comportamentos emergentes.

O espaço engendrado pela mensagem fotográfica das revistas ilustradas tem como característica básica a variedade. Entretanto, mesmo dentro dessa variedade, existe uma hierarquia de temas que são associados a determinados espaços.

No conjunto, as imagens analisadas nas revistas Careta e O Cruzeiro indicam um espaço geográfico dividido em três grandes blocos regionais, cuja proporção de incidência na imagem foi a seguinte:

É importante ressaltar que cada uma dessas regiões manteve uma relação com o eixo principal – a cidade do Rio de Janeiro – ora reforçando-lhe seu caráter cosmopolita, ora atribuindo-lhe determinadas funções que podiam ser turísticas, políticas ou propriamente de palco para o desfile de personagens da classe em ascensão: a burguesia.

Os blocos regionais, por sua vez, foram subdivididos em diferentes lugares (espaços), compondo uma paisagem formada por clubes com seus salões luxuosos e áreas externas, estádios de esporte, hotéis, praias, avenidas, ruas, edifícios públicos, escolas, teatros, estúdios, ambientes domésticos, selvas, etc.

Duas regiões se destacam do conjunto: na revista Careta, a zona sul do Rio de Janeiro e na revista O Cruzeiro, o estrangeiro. Emblemas de um estilo de vida que estava se impondo. Comecemos pela zona sul e sua identificação com o habitus da classe dominante.

Ao reunir os bairros litorâneos localizados entre o mar e os morros, a zona sul apresenta-se mais distante do centro de negócios e, até os anos de 1950, era fundamentalmente voltada à moradia e ao lazer das camadas mais ricas da população urbana. Portanto, era uma área onde se podia com facilidade retratar a vida, os hábitos, as maneiras de vestir, os passeios, os eventos, etc. de uma classe que cada vez mais se identificava com os valores e comportamentos da burguesia ocidental.

Na revista Careta, os lugares de maior incidência nas fotos dessa região são parques, avenidas, ruas, clubes, praias, estádios de futebol de clubes, hotéis e veredas tropicais à beira-mar. Assim, os lugares fotografados compunham uma mensagem que reafirmava a vocação desses espaços para o lazer e a diversão.

Essa tendência era evidenciada nas fotografias de escolas, cujo tema escolhido não era o das salas de aula, mas o das festas de formatura e fim de ano; no mesmo estilo, os prédios públicos, principalmente, o palácio do governo localizado no bairro de Laranjeiras (zona sul), compareciam apenas nas fotos de festividades, geralmente, Natal, quando se distribuíam presentes aos pobres.

Na revista O Cruzeiro, a maioria das fotografias analisadas é de localidades estrangeiras, com destaque para a Europa Ocidental e Hollywood. Da Europa Ocidental chegavam notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a história contemporânea da humanidade. Porém, era com Hollywood que o carioca (como eram e todavia são chamados os habitantes da cidade do Rio de Janeiro) se reciclava e assimilava o padrão burguês de comportamento como uma norma de atitude.

Ao longo da década de 1920, os Estados Unidos da América cresceram economicamente, despontando como a terra do dinheiro fácil, de homens vigorosos e da ilusão consumista. Eram assim uma sociedade afluente e moldada sob medida para uma classe dominante e carente de um projeto cultural próprio, tal como a burguesia carioca se apresentava. O automóvel americano e as fitas de Hollywood exportaram o american way of life.

No caso do Rio de Janeiro, capital federal, a indústria cinematográfica, por meio da Companhia Cinematográfica Brasileira, consegue intervir no panorama urbano com a construção da Cinelândia. Um espaço, no centro de negócios da cidade, totalmente reformado para abrigar as novas salas de cinema. Ir ao cinema havia se transformado no ato de consumo de um produto: o filme, daí a necessidade de locais adequados para consumi-lo.

Ingressos caros, mas conforto, higiene e luxo eram oferecidos a todos os freqüentadores, pelos quatro cinemas inaugurados na Cinelândia entre 1925 e 1928. Capitólio, Odeon, Palácio e Glória, com suas estréias espetaculares, produziram um novo espaço de aparência na geografia da cidade. A revista O Cruzeiro lança em 1928, ano da inauguração do último cinema do complexo, uma sessão denominada Cinelândia. Nela eram tratadas as "coisas do cinema", uma composição de fotografias e comentários sobre a vida pessoal dos artistas, cenas de filme, a qualidade da audiência nos cinemas, etc. Tal tendência alastrou-se por outras publicações ilustradas que nos anos subsequentes inauguraram sessões exclusivamente sobre Hollywood, sinônimo de cinema, dentre as quais destacam-se: Galeria dos Artistas da Tela (Fon-Fon); Novidades de Hollywood (Careta); Cine-revista (O Cruzeiro), etc. Além disso, existiam ainda as revistas especializadas em cinema como: Selecta; Cinearte e Para Todos.

A imagem proveniente de Hollywood influenciava no tipo de indumentária, nos cortes de cabelo, na maquiagem do rosto, na forma de beijar26 26 . Técnicas do Beijo, reportagem publicada,com fotos de artistas se beijando, pela revista O Cruzeiro, em 1934. , bem como na redefinição dos locais de lazer da burguesia carioca e na estruturação de um star-system nacional utilizando-se das artistas do rádio. Nos anos de 1940, a política da boa vizinhança iniciada pelos EUA, para os países da América Latina, redefiniria a estratégia de sedução hollywoodiana. Carmem Miranda e o personagem de Walt Disney, Zé Carioca, tornaram-se ícones a partir dos quais deveríamos nos modelar. Uma imagem imposta redefinidora da nossa própria auto-imagem27 27 . Para uma avaliação do processo de internacionalização da cultura por meio das imagens, ver MAUAD, 2001, p. 134-146; 2002, p. 52-77. .

A ênfase dada pela revista O Cruzeiro ao espaço estrangeiro explica-se por ela ser mais cosmopolita e criada com base no novo padrão empresarial da imprensa moderna. Em compasso com essa tendência, mantinha contato direto com as agências internacionais de notícias Schert de Berlim, ABC de Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris, além de ter um correspondente especial em Hollywood.

Nessas imagens, há ausências. O Leste Europeu e o Oriente surgem somente como paisagens exóticas. No entanto, a América Latina, os bairros pobres da cidade carioca e do Brasil são apagados da imagem dominante como uma realidade inexistente por serem equiparados à condição de periferia na configuração da geopolítica ocidental burguesa.

Ambas as publicações seguem uma tendência semelhante, salvo as ênfases acima apresentadas. O Cruzeiro marca sua diferenciação do conjunto de revistas ilustradas, investindo no aspecto cosmopolita do Rio de Janeiro, capital federal, enquanto a Careta manteve sua tradição de revista de crítica de costumes, tipicamente carioca, elevando as imagens da zona sul ao padrão ideal de representação.

Assim, enquanto O Cruzeiro opõe a cidade a um outro espaço: Rio x Mundo, buscando sua identificação, a Careta complementa a cidade com esse espaço estranho, criando uma nova identificação: Rio = Mundo.

Vale complementar tal avaliação pela dimensão política da cidade, centro de decisões ligadas ao gerenciamento dos negócios públicos e privados. A cidade capital surge nas fotografias como referência paradigmática de Brasil. Ao longo de 50 anos de imagem, o Rio passa de Paris dos trópicos, símbolo da modernidade sustentada por uma elite agrária dominante, à metrópole sintetizada nos arranha-céus da Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1945. Em todos esses momentos atualiza sua função de centro de poder, local onde se decide o futuro do país e de onde o Brasil se projeta para o mundo civilizado, representando assim a estratégia das classes dominantes em manter a unidade nacional pela identificação do país com sua capital.

Emblemas do gosto burguês

Os objetos, numa coleção de fotografias de revista, são atributos da mensagem fotográfica que fornecem a dimensão dos lugares retratados e dos seus eventos.

Para efeito de análise, dividiram-se os objetos retratados em três tipos: objetos pessoais, interiores e exteriores. Na mensagem fotográfica transmitida pelas revistas ilustradas, tais objetos foram apresentados tanto como dignos do padrão de vida dominante quanto úteis à realização de determinadas tarefas. Entretanto, em ambos os casos, o objeto investe a imagem de determinados significados próprios do espaço e tempo da representação.

Os objetos pessoais estão associados à representação do indivíduo: seu estilo de vida e sua posição na hierarquia social. Os objetos interiores caracterizam o tipo de paisagem que se está retratando: privada ou pública; muitas vezes, como no caso das cenas de filmes, a transposição de objetos interiores para espaços públicos, como estúdios de cinema, visam a criar, justamente, uma ambiência privada. O terceiro tipo é formado pelos objetos exteriores, que caracterizam o meio retratado, podendo também, quando associados às pessoas, indicar o estilo de vida e o padrão social no qual elas se enquadram.

É, especialmente, no âmbito dos objetos que a mensagem fotográfica das revistas ilustradas entra na intimidade do leitor, moldando-lhe os gostos e educando-lhe o olhar, interferindo tanto na sua representação pessoal quanto na criação de novos códigos de comportamento para uso coletivo. Tal processo ocorre porque esses três tipos de objetos, que fazem parte do cotidiano dos receptores das mensagens fotográficas, ao serem recortados da realidade vivida e transpostos para a realidade da imagem adquirem uma função-signo de modelo, na qual estão investidos de um poder de persuasão até então não dimensionado. A combinação de redes de significado compondo objeto + figuração + vivência adere à representação, indicando formas corretas de se comportar em diferentes ocasiões.

No conjunto das fotografias analisadas, evidenciou-se um estilo de vida baseado no consumo supérfluo do luxo e da abundância de objetos, marca registrada do novo cidadão urbano. Em 70% das fotos os objetos estão em segundo plano atuando como elemento de reconhecimento do ambiente retratado, em geral urbano (66%) e elegante, tais como: clubes (26%), ruas e avenidas da moda (24%) e hotéis (14%). Em termos de objetos pessoais, em 50% das fotos analisadas a indumentária escolhida incluiu trajes como gala, passeio completo, esporte fino e esportivo. Tal preocupação pelo traje adequado para a hora certa denota a existência de um código do bem vestir pautado na utilização de objetos pessoais tanto para a caracterização da situação que se está vivenciando quanto como elemento de distinção social.

Os donos do olhar: hierarquia de gênero e idade na representação social da burguesia

Compreendendo o espaço da figuração das revistas ilustradas, delimitado pela mensagem fotográfica, a partir de três oposições básicas: grupo/indivíduo, homem/mulher e adulto/criança, desvenda-se um mundo em que os habitantes possuíam lugares determinados no espaço da representação, no qual a imagem feminina estava associada à frivolidade e aos papéis de espectadora e modelo exemplar, e a masculina à ação, inteligência e ao poder. No trabalho de relacionar a figuração ao evento retratado, tal distinção evidenciou-se. Os homens foram relacionados às temáticas que incluem os eventos sociais, militares, políticos e esportivos, além das curiosidades nacionais e internacionais, item que contém uma grande variedade de temas que poderiam incluir desde os acontecimentos cotidianos da cidade – como desastres de avião ou automóveis, especialidades culinárias dos cozinheiros dos principais hotéis e clubes da cidade, reportagens sobre recursos naturais, etc. – até as últimas novidades do século XX.

Por outro lado, a imagem feminina foi associada à vida dos artistas e de pessoas famosas da high society internacional e principalmente à moda, sobre a qual havia uma distinção entre as novidades internacionais e a sua utilização no âmbito nacional. É justamente por meio da imagem da moda nacional que a especialização entre o espaço feminino e masculino evidencia-se de forma mais clara, posto que tal temática está representada nas fotografias do Jockey Club, onde as mulheres são retratadas como o público elegante, destacando-se a sua indumentária bem cuidada e o seu estilo elegante. Quando a figura masculina está incluída nesse âmbito, aparece em segundo plano e em pequeno número. Assim, em tais representações, o espaço masculino associa-se ao esporte e à ação e o feminino à moda e ao papel de assistente.

No entanto, foi também no espaço feminino que se incluíram imagens das condições de vida das classes populares, veiculando uma representação dicotômica da sociedade que vem a confirmar os papéis socialmente impostos. A mulher das classes populares é fotografada, via de regra, trabalhando em serviços braçais, como lavar roupa, cozinhar, cuidar de criança, etc. ou em situações de dificuldade e precariedade. A ela são associadas roupas simples; e a sua casa, localizada nos subúrbios desassistidos pelas autoridades, poucos objetos interiores.

Nesse sentido, o espaço feminino para as classes populares é um espaço periférico, que acaba por confundir-se ao coletivo, não recebendo com isso a mesma valorização das mulheres da classe dominante, que surgiam na imagem sempre com boa aparência, em lugares exclusivos e protagonizando situações de lazer ou de romance.

Na representação criada pela imagem fotográfica, o universo infantil é um simulacro do adulto, no qual todas as potencialidades necessárias para formar um cidadão realizado são apresentadas como condição natural e inerente ao grupo social do qual provém.

Em 10% das fotos analisadas, as crianças aparecem sozinhas, em 14% estão acompanhadas de adultos, e o restante são fotos exclusivamente de adultos. Diante de tal proporção, investiu-se na descoberta dos temas e do tipo de indumentária associados às crianças, para assim dimensionar-se quais eram as representações sociais que estavam atreladas ao universo infantil.

Basicamente, os eventos sociais, os banhos de mar e os passeios foram os temas que obtiveram a maior incidência de crianças sem a companhia de adultos (21%). Nesse caso, os eventos sociais são formados por festas de encerramento do ano letivo e bailes infantis em ocasiões especiais – o exemplo desse tipo de evento são as fotos da Exposição Internacional de 1922, que contou com o equivalente infantil para o baile comemorativo do centenário da Independência.

Acompanhada de adultos, as crianças são retratadas nos eventos sociais, militares, políticos, esportivos e nos passeios e banhos de mar (18%). Dessa vez os eventos sociais, temática de maior incidência (7%), compõem-se por festas de caridade com a presença de menores carentes.

Com efeito, mesmo quando as crianças são retratadas independentemente dos adultos, mantêm-se a eles atreladas por meio da temática – geralmente equivalentes infantis para eventos adultos – ou de alguma relação estabelecida, no caso da ação caridosa a marca dessa dependência fica evidenciada.

No espaço infantil, a sociedade reaparece segmentada em dois grupos sociais distintos: um que, socialmente despossuído, depende do universo adulto por meio da caridade e outro que compartilha da fruição dos lugares exclusivos e do consumo dos signos de luxo e riqueza, preparando-se para assumir os papeis já estabelecidos na dinâmica social. A própria indumentária reafirma a existência de tais papéis, tendo em vista que, do conjunto de fotos de crianças acompanhadas ou não de adultos, cerca de 36% estão fantasiadas, 18% trajam passeio completo e 16,5%, esportivo. De acordo com tal proporção, é a fantasia a escolha principal para compor o espaço infantil, dentre as quais se destacam as de príncipes, nobres, militares, esportistas, bailarinas, etc. Imagens que associam as crianças a representações sociais tipicamente adultas e de universo determinado.

Distinção social e vivência de classe na sociedade carioca da primeira metade do século XX

As representações sociais de comportamento engendradas pela imagem fotográfica das revistas ilustradas criaram uma cidade onde os espaços são redimensionados para atividades às quais não foram programados, em função de uma vivência de classe. Dessa forma, o lazer é associado ao trabalho no exercício do poder à medida que os grandes negócios empresariais ou as importantes questões nacionais eram resolvidos em banquetes e festas.

Os espaços adquiriam uma nova dignidade por terem sido fotografados como ambientes para eventos exclusivos ou simplesmente porque neles se deixaram fotografar pessoas ostentando objetos que caracterizavam um determinado estilo de vida associado ao luxo e à exclusividade.

Assim a coesão de classe e a construção de uma capital cosmopolita e moderna, plenamente preenchida por valores burgueses, processa-se tanto pela vivência e pelo consumo de um mesmo universo de signos quanto pela produção de uma imagem onde o locus social aparece como dado inerente a própria História.

Careta, 2/1/1915, 2/2/1932.

Defini-se desde os primeiros números da revista a especialização dos espaços da cidade. O espaço dos gabinetes e instituições governamentais é estabelecido como eminentemente masculino assim como o da atividade esportiva. Enquanto na praia, espaço da sociabilidade familiar, a mistura de gênero era constante.

A caridade é uma experiência social reservada às mulheres nos poucos momentos em que a sua presença nos espaços do poder é evidenciada. O estabelecimento das competências profissionais se define também a partir do critério de gênero. As representações do feminino assumem a polifonia da sociedade urbana e industrial com a mulher profissional, glamorosa e participante, ratificando assim a sua condição de classe.

O Cruzeiro, 10/11/1928; 4/12/1943; 7/1/1950.

A dinâmica das fotos em série vai definir o padrão do fotojornalismo de O Cruzeiro, que celebrava tanto o anonimato da massa e revelava a celebridade na vida comum quanto reafirmava o mundo da alta sociedade como o padrão da imagem ideal da vida burguesa.

Nesse sentido, o pobre é retratado como naturalmente pobre, e o rico como naturalmente rico, posto que em nenhum momento são representados fora do código dominante que associa um determinado espaço geográfico a certos objetos e pessoas, orientando com isso a própria representação dos eventos/vivência dos grupos sociais. Assim, a naturalização do processo histórico, por meio da hegemonia da imagem fotográfica dominante, atuou como elemento estruturante das representações sociais de comportamento que se instituíram ao longo da primeira metade do século XX, moldando os gostos e escolhas dos cidadãos que se tornavam consumidores.

As revistas ilustradas compuseram o catálogo de valores, emblemas, comportamentos e representações sociais pelo qual a burguesia se imaginou e se fez reconhecer, criando a utopia de um mundo digno, porque civilizado e empreendedor, e livre, porque acessível e transparente aos olhos de todos. A imagem publicada torna-se o ícone, por excelência, de um modo de vida vitorioso, que prescinde da própria realização para existir, bastando para isso que as imagens fotográficas o reflitam.

Entre imagens...

Para concluir gostaria de colocar só uma última pergunta: como aprender por meio das imagens?

As imagens são históricas, dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto que as produziram e das diferentes visões de mundo que concorrem no jogo das relações sociais. No caso das fotografias, em suas diversas modalidades, elas guardam na sua superfície sensível a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, ou narrativa, próxima àqueles que as consumiam, possuíam, guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caráter de presença num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos produtores ou donos, aqueles que as estudam como história entram em contato com esse presente/passado e os investem de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática a ser estudada. Nisso reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas sejam feitas.

A imagem decalca-se em nosso pensamento como sombras, duplos, projeções, representações, mensagens para sempre ou por um instante na memória, imediatamente ou a longo prazo, como se pensar fosse ver e ver fosse também pensar, numa circularidade difícil de interromper28 28 . Sobre a capacidade cognitiva, mnemônica e simbólica da imagem ver CAPRETTINI, 1994, p. 177-199. . Reside aí a possibilidade de se conhecer por meio das imagens.

Artigo apresentado em 08/2004. Aprovado em 09/2004.

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  • VOVELLE, M. Ideologia e mentalidades São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • 1
    . Este trabalho inscreve-se no projeto de pesquisa intitulado
    Através da imagem:memória e história do fotojornalismo no Brasil contemporâneo, financiado pelo CNPq (agosto 2002-fevereiro 2005), sendo também um dos resultados do estágio de pós-doutorado realizado, entre setembro de 2003 e janeiro de 2004, junto à equipe do Serviço de Documentação Textual e Iconografia do Museu Paulista composta pelas doutoras Solange F. Lima e Vânia C. Carvalho.
  • 2
    . Três trabalhos publicados ao longo dessa década são importantes referências para se mapear as transformações neste campo de estudos: CARVALHO, 1994, p. 253-300; TURAZZI, 1998;MAUAD, 2000.
  • 3
    . A discussão sobre o realismo fotográfico pode ser encontrada também em outros autores, no entanto, optei pela abordagem de Dubois pelo seu caráter sistemático. Para um aprofundamento da crítica ao realismo fotográfico ver BURGIN, 1982;TAGG, 1988; BARTHES, 1977, 1980; SONTAG, 1977; BOURDIEU, 1990; SOLOMON-GODEAU, 1991.
  • 4
    .VOVELLE, 1987, p. 93.
  • 5
    .VOVELLE,1987, p.102.
  • 6
    . KNOWLES; SWEETEMAN, 2004. Em especial o balanço realizado na introdução do volume.
  • 7
    . MENESES, 2003, p. 31.
  • 8
    . MAUAD, 1990.
  • 9
    . DARNTON, 1990, p. 254.
  • 10
    . Para uma avaliação precisa desse movimento de renovação do trabalho com imagens fotográficas, cf. MAUAD 2000, p. 6-229.
  • 11
    . Um estudo consolidado sobre cinco instituições de guarda de acervos fotográficos pode ser encontrado no meu relatório de pós-doutorado, publicado em
  • 12
    . CARVALHO; LIMA, 2000, p. 24.
  • 13
    . Fabris, 1995.
  • 14
    . VILCHES, 1992.
  • 15
    . ECO, 1974, p. 16.
  • 16
    . LEITE, 1993, p. 19.
  • 17
    . DUBOIS, p. 55.
  • 18
    . PANOFSKY,1991.
  • 19
    . Um estudo mais sistemático sobre as revistas ilustradas do período, considerando os elementos propriamente fotográficos como gêneros, articulações narrativas, relação texto/imagem e o impacto da modernização técnica no uso da linguagem fotojornalística, está sendo organizado com resultado de minhas pesquisas recentes.
  • 20
    . BARTHES, 1989, p. 208.
  • 21
    .
    Fon-Fon, 15/4/1907.
  • 22
    .
    Careta, 6/6/1908.
  • 23
    . NOSSO SÉCULO, 1980, v. I, p. 220.
  • 24
    . Os anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade dos anos publicados. Com o decorrer do tempo, as revistas apresentaram mudanças na linha editorial como diminuição do texto escrito em relação à foto, ampliação do número de fotos, mudança na identidade visual, anúncio de inovações técnicas pelo editor, trocas na equipe de colaboradores, etc. Enfim modificações ligadas ao próprio veículo. Porém foram considerados também anos importantes aqueles em que ocorreram marcos cruciais relacionados à história da cidade/país e do mundo, tais como as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e internacionais, reformas urbanas, eleições, etc.Via de regra o que vigorou foi um entrecruzamento desses dois critérios.
  • 25
    . A historiografia brasileira sobre o período estudado não é consensual no que diz respeito à utilização do conceito de classe burguesa para esse período da história do Brasil. Noções como camadas médias urbanas, classes médias, frações dominadas da classe dominante são correlativas à noção de burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo conceito de burguesia urbana ocorreu principalmente em conseqüência do objetivo central do estudo: avaliar como, dentro do contexto de inserção do Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e comportamentos no espaço das cidades, notadamente na capital, transformaram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de comportamento dos países do hemisfério norte inicialmente a França e a Inglaterra, e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA que sem dúvida estavam pautados em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base econômica da classe dominante brasileira do período que era eminentemente agrária, mas, absenteísta por natureza e cosmopolita por verniz.
  • 26
    . Técnicas do Beijo, reportagem publicada,com fotos de artistas se beijando, pela revista
    O Cruzeiro, em 1934.
  • 27
    . Para uma avaliação do processo de internacionalização da cultura por meio das imagens, ver MAUAD, 2001, p. 134-146; 2002, p. 52-77.
  • 28
    . Sobre a capacidade cognitiva, mnemônica e simbólica da imagem ver CAPRETTINI, 1994, p. 177-199.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2004
    • Aceito
      Set 2004
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